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O Regresso da Natureza nas Ciências Humanas E Sociais? A ação dos não-humanos em Marx, Durkheim e Weber

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Opinião Filosófica – ISSN: 2178-1176 - Editora Fundação Fênix. www.fundarfenix.com.br

https://doi.org/10.36592/opiniaofilosofica.v11.994

O Regresso da Natureza nas Ciências Humanas E Sociais? A ação dos não-humanos em Marx, Durkheim e Weber

The Return of Nature in Human and Social Sciences? The action of non-humans in Marx, Durkheim and Weber

Rafael Dalyson dos Santos Souza1

Resumo

Este artigo busca investigar qual a relação entre a abordagem sobre os fenômenos da natureza na Sociologia clássica de Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber e os seus principais conceitos sociológicos. Mediante o cenário do Antropoceno, surgido no início do século XXI, no qual a ação humana sobre a Terra foi evidenciada, as questões geosociais passaram a fundamentar uma nova ontologia em contraposição à ontologia que deu base à “questão social” dos autores clássicos da ciência sociológica, fato que influenciou vários cientistas, sobretudo das humanas e sociais, a uma reavaliação dos seus campos de estudo, destacando a partir de então os entrecruzamentos entre homem e natureza. Neste sentido, objetiva-se avaliar até que ponto a chamada “questão social” dos autores clássicos da Sociologia científica estava de fato restrita apenas aos aspectos humanos e se ela possuía algo de “geo”

em sua construção teórica e conceitual. Por meio de uma história dos conceitos, no qual iremos proceder pela articulação entre conceitos diferentes com vistas a buscar identificar as proximidades e os distanciamentos, iremos articular a análise dos principais conceitos sociológicos aos conceitos sobre a relação homem-natureza. O perscrutar da pesquisa evidencia que os autores da Sociologia clássica não só atribuíram ação a objetos e fenômenos naturais quanto também apontaram determinadas “intervenções” destes no social, ainda que este seja por eles definido como algo estritamente humano. Observa-se, neste sentido, uma ambiguidade

1 Mestrando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

E-mail: rafadalyssson@gmail.com

Revista

Opinião

Filosófica

Editora Fundação Fênix – www.fundarfenix.com.br

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caracterizada pelo fato de que a natureza nunca foi por eles expulsa da (co)existência humana, ainda que tenha sido expulsa (do conceito de social) a partir da ontologia que deu base às suas obras.

Palavras-chave: História dos conceitos. Sociologia. Antropoceno. não-humanos.

Abstract

This paper seeks to investigate the relationship between the approach to natural phenomena in classical sociology by Karl Marx, Émile Durkheim and Max Weber and their main sociological concepts. In view of the Anthropocene scenario, which emerged at the beginning of the 21st century, in which human action on Earth was evidenced, geosocial issues started to support a new ontology in opposition to the ontology that gave basis to the “social question” of the classic authors of science sociological, a fact that influenced several scientists, mainly human and social, to reevaluate their fields of study, highlighting, since then, the intersections between man and nature. In this sense, the objective is to assess the extent to which the so- called "social question" of the classic authors of scientific Sociology was in fact restricted only to human aspects and whether it had anything "geo" in its theoretical and conceptual construction. Through a history of concepts, in which we will proceed by articulating different concepts in order to seek to identify the closeness and the distance, we will articulate the analysis of the main sociological concepts to the concepts of the man-nature relationship. The search of the research shows that the authors of classical Sociology not only attributed action to objects and natural phenomena but also pointed out certain “interventions” of these in the social, even though this is defined by them as something strictly human. In this sense, there is an ambiguity characterized by the fact that nature was never expelled from them by human (co)existence, even though it was expelled (from the concept of social) from the ontology that gave basis to their works.

Key-words: History of concepts. Sociology. Anthropocene. non-humans.

Introdução

A chamada questão geosocial, surgida na transição entre os séculos XX e o XXI, que visa criticar a ontologia que deu base à “questão social” e construir uma nova ontologia, não é tão recente como pretendemos demonstrar. Ao contrário,

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mesmo entre os séculos XIX e XX, período em que a Sociologia surgiu, não tendo presenciado os desastres ambientais que marcam a contemporaneidade de maneiras cada vez mais fortes - as crises climáticas, as inundações e as queimadas em altos níveis como os atuais, entre outros - nossa abordagem busca evidenciar como a “questão social” de Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber tinha algo de

“geo”. Embora a Sociologia clássica tenha legado a concepção de sociedade enquanto limitada aos humanos ou, em outras palavras, às relações humanas, tendo a questão ambiental e a preocupação sócio-ecológica ficado no máximo em segundo plano ou mesmo tendo ficado alheia às discussões por eles levantadas, este paper busca justamente investigar qual a relação entre os principais conceitos da Sociologia clássica fundamentados por esta filosofia, ou ainda, por esta ontologia

“do social”, entre eles estão os conceitos de ação social e de secularização de Marx Weber; de estranhamento, de suprassunção, de divisão social do trabalho, de mercadoria e de objetos da produção de Karl Marx; de fato social, de suicídio, e na noção de crime de Émile Durkheim, e os objetos, os fenômenos da natureza, os animais e as técnicas abordados por eles.

A Sociologia científica surge num período em que a Europa passava por duas revoluções que iriam moldar o mundo moderno/ocidental: trata-se da Revolução Francesa de 1789 e da Revolução Industrial (inglesa) contemporânea. Criada a partir das tradições desencadeadas por essas revoluções - dentre as quais estão o drama do progresso, o avanço das tecnologias, o triunfo do capitalismo e os movimentos revolucionários (HOBSBAWM, 2015) –, esta ciência se dedicou a análise dessas questões, relativas, no geral, a aspectos problemáticos e irresolutos da vida humana e da sociedade. Deste modo, estes primeiros passos dados pelos primeiros sociólogos, Marx, Durkheim e Weber, que ficaram conhecidos como clássicos, iriam definir os passos futuros de uma ciência que ainda nos dias de hoje se mantêm fiel aos seus primeiros mentores, ao menos no que se refere aos fundamentos teóricos e conceituais básicos da disciplina.

A ontologia (do social) marcou justamente a disputa interna entre os sociólogos daquele período em que a Sociologia surgia, tendo resultado na reclusão de uma parte deles aos estudos que se desvirtuaram dos paradigmas centrais da sua ciência2. Ser sociólogo foi cada vez mais se definindo como uma atividade

2 Para Jeffrey Alexander (1987) as ciências sociais possuem paradigmas no plural e não no singular como descrito pela teoria da Estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn (2018).

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universitária e restrita a uma única área do saber: a ciência do social. Os casos de Gabriel Tarde, Le Bon e outros são exemplares disso: o quase anonimato de ambos na Sociologia teve como fatores principais justamente o fato de eles transitarem entre a universidade, a política e a imprensa, além de terem produzido estudos mais interdisciplinares, o que batia de frente com a proposta ascendente de

“exclusividade do saber” da sua ciência (CONSOLIM, 2009).

Só mais recentemente, estudos voltados para as ciências humanas e sociais no geral se dedicaram a uma tentativa mais efetiva de oferecer um novo significado ao conceito de social. Um desses legados surgiu a partir de uma proposta que visava identificar os pontos de entrecruzamento entre sociedade e natureza. Denominando a era atual de Antropoceno, em 2000, Paul Crutzen e Stormer Eugene (2000) lançaram um jornal denominado “Global Change Newsletter” (em tradução livre

“Boletim Informativo de Mudança Global”) com artigos que atestavam justamente os impactos do homem no planeta Terra, fato este que inaugurou uma nova era, a era do Antropoceno. Estes pesquisadores buscaram focalizar as evidências de que o século XXI é o século da questão geosocial em contraposição ao século XX que teria sido o século da questão social. Surge, portanto, uma nova ontologia, marcada pela preocupação com questões transdisciplinares e negando o distanciamento, ou mesmo a divisão, entre coisas como homem e natureza, “senso comum” e “senso crítico”, “construção” e “realidade” (LATOUR, 2020, p. 13)

Exemplos de autores e campos de estudo que atestaram essas evidências são a Sociologia Ambiental, surgida na década de 70, que buscava justamente criticar o antropocentrismo legado pelos clássicos e construir uma nova abordagem mais voltada para as questões que uniam as várias áreas do saber e da realidade (LENZI, 2007); o conceito de Gaia de James Lovelock, que difere da concepção de “natureza”

enquanto uma entidade sem ação (LATOUR, 2017); os estudos de antropólogos como Philippe Descola (2020) e Bruno Latour (1997) que se dedicaram a descrições tanto dos humanos quanto dos não-humanos3 em interação e, no Brasil, destaque para os estudos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2014) do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em especial o livro que

3 O conceito de “não-humanos” é definido por Latour (2012) como constituído por entes que não são homogêneos entre si, ou seja, que podem variar mesmo internamente, mas que produzem ação e que formam, conjuntamente com os humanos, o social, algo dado não à priori, mas

conjuntamente. Neste sentido é que Latour contrapõe não-humanos à objetos e a natureza, para evidenciar a ação dos primeiros em relação aos segundos.

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escreveu com a sua esposa a filósofa Déborah Danowski a respeito do Antropoceno e as evidências mitológicas e científicas do “fim”, atestando a inegável

“inconstância” da Terra, em contraposição à ideia gelada e uníssona de natureza, que a simplifica e a homogeneíza.

Em tempos de Covid-19, no qual, para além da crise sanitária, alguns pesquisadores pedem espaço para chamar a atenção justamente para a questão socioambiental4, apreender sobre as relações entre humanos e não-humanos nos clássicos da Sociologia constitui uma tentativa de transpor as obviedades a respeito das concepções de “natureza”, justamente aquelas que tratam de abordá-la como uma questão totalmente alheia e secundária à vida humana (TORRES e DABAT, 2012). Tais questões não são alheias à pandemia. Ao contrário, estão essencialmente imbricadas a ela. Assim como também não são alheias à Sociologia.

Levando em consideração que esta ontologia que marca o pensamento dos clássicos da Sociologia produz sentido e constrói conceitos sobre os fenômenos da natureza, iremos realizar o inquérito através da história dos conceitos. Inspirados por Reinhart Koselleck (1992), que afirma que um dos modos de investigar o contexto da criação de conceitos é através da articulação entre conceitos próximos (sinônimos) e conceitos distantes ou mesmo opostos (antônimos), entendendo que, às vezes, uns dão sentido aos outros e constroem-se em oposição aos outros, iremos analisar os conceitos sociais e os dados sobre os não-humanos nas obras dos clássicos da Sociologia, pondo-os em articulação, visando compreender as proximidades e os distanciamentos entre ambos.

O perscrutar da pesquisa aponta para a constatação de que Marx, Durkheim e Weber não negam ação aos não-humanos. Ao contrário, ainda que diferentes entre si, a análise mostra que há um ponto em comum entre ambos, que é o fato de que embora o social seja, para eles, algo essencialmente humano, os não-humanos nele intervêm, ainda que de forma diferente dos humanos, o que constitui uma ambiguidade, dado que embora o social seja algo criado, eliminado e recriado apenas pelos homens, ou exterior à eles mas composto por eles, ao mesmo tempo estes não estão escusos da relação e mesmo da interação com os não-humanos. A ambiguidade se caracteriza, neste sentido, pela contradição entre uma “questão social”, que é, na verdade, geosocial, e uma ontologia do social. Em outras palavras,

4 Philippe Descola (2020) destacou os perigos de subestimar os não-humanos, além de denominar de “vírus do mundo” o lado da humanidade responsável por estas crises.

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adaptando a frase do filósofo grego Lucrécio (2016) que diz “Expulsai a natureza pela porta e ela volta dobrada pela janela.”, certamente a natureza nunca foi expulsa pela teoria clássica sociológica, ela sempre (co)existiu, ainda que em certos momentos tenha sido expulsa (do social) por eles.

Observações teórico-metodológicas

Os principais conceitos formados pela Sociologia clássica partem de uma ontologia, ou seja, de um modo de ver a realidade, modo este que surgiu e se sedimentou ao longo da modernidade. Portanto, pode-se dizer que se trata de construções “conceituais” em cima destes dados. Assim como os autores produzem conceitos sobre a realidade social, ao abordar os não-humanos, esta abordagem define ao mesmo tempo conceitos sobre eles, definindo características, especificidades e personalidades. Isto implica que para caracterizar as relações entre estas duas abordagens é preciso primeiro compreender o que caracteriza essa ontologia e depois entender como se dá a definição conceitual sobre os não- humanos.

O filósofo Michel Foucault (1999), por exemplo, caracterizou a ontologia que dominou as ciências sociais e humanas a partir da modernidade enquanto aquela que separa os sentidos dos objetos e as palavras das coisas. O autor atesta em seu livro “As palavras e as coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas” uma divisão entre a forma como o conhecimento era produzido antigamente e a forma como estava passando a se produzir conhecimento a partir de então, caracterizando-se pela realização de uma ruptura (1999, p. 65):

A erudição, que lia como um texto único a natureza e os livros é reconduzida às suas quimeras: depositados nas páginas amarelecidas dos volumes, os signos da linguagem não têm como valor mais do que a tênue ficção daquilo que representam. A escrita e as coisas não se assemelham mais. Entre elas, Dom Quixote vagueia ao sabor da aventura.

“As coisas” passam, portanto, a aparecerem como “neutras” de sentido. A partir de então, quando os cientistas das ciências sociais e humanas se referem a elas, imitando a compreensão das ciências naturais e exatas daquela época, esta referência não parte de nenhuma correspondência que não da “natureza”, ela mesma, que por mais que não possa falar nada, que não possa agir e que não possa significar, ela ainda assim provê respostas que atendem aos interesses humanos.

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Com esta divisão, os sentidos, ligados apenas aos humanos, tornam-se amplos, multiplicados e replicados, enquanto que a natureza torna-se singularizada e petrificada, este adjetivo mais conveniente para esta forma de ver a as coisas que passou a ser adotada pela Sociologia clássica.

Latour (1994), diferentemente de Foucault, não apenas atesta esta divisão como a quer desmistificar para construir em seu lugar uma nova ontologia. Ao fazer isso, o autor define com detalhes a ontologia clássica da Sociologia. Denominando- a de “Crítica”, Latour (1994) faz uso de dois exemplos, um das ciências naturais, Robert Boyle pelo lado da “naturalização”, e Thomas Hobbes pelo lado da

“sociologização”. Ambos aspectos impediriam, segundo a abordagem latourniana, a construção de uma compreensão do real que permita entender as “naturezas- culturas” em suas dimensões reais, ou seja, que não seja limitadora dos aspectos da realidade, da ação dos entes e do social. Contudo, conclui Latour (1994), estes pensadores deixaram escapar a existência de interferências simultâneas: tanto aspectos sociais em Boyle quanto aspectos naturais em Hobbes. Isto implica numa contradição entre a construção ontológica dos autores, ou seja, o que está por trás da filosofia que dá base às afirmações categóricas conceituais, e a construção empírica, ou seja, os dados da realidade que se encontram misturados e não separados.

Estas duas abordagens, a de Foucault e a de Latour, embora díspares, permitem uma compreensão de que há uma lacuna entre a ontologia e os dados do real. Em outras palavras, há uma ambivalência entre a ontologia do social e a

“questão social”. Embora exista uma construção ontológica sobre eles (teórica e conceitual), o que ocorre, no entanto, é que esta ontologia deixa escapar dados que a negam, como a ação dos fenômenos da natureza, de objetos, de animais. Ao tempo em que se nega esta construção conceitual, filosófica, sobre a natureza, se está, ao mesmo tempo, afirmando-a. A análise desta perspectiva conceitual sobre a natureza na obra da Sociologia clássica perpassa por uma compreensão de que estes estão associados aos demais conceitos de suas obras, pois partem de uma só ontologia.

Neste sentido, cumpre investigar os conceitos sociais e os conceitos sobre a natureza em comparação, para avaliar a relação entre ambos.

A história dos conceitos possibilita uma compreensão analítica comparativa pois a problemática lançada por este campo de estudos está focalizada nos processos de teorização conceitual. Segundo Reinhart Koselleck (1992, p. 136), um dos seus

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principais teóricos, inquirir sobre os processos de surgimento dos conceitos pressupõe, portanto, buscar responder às seguintes perguntas: Quando surgiu a necessidade teórica destes conceitos? E ainda, quando surgiu o referencial histórico que o dá sustentação? (KOSELLECK, 1992, p. 135) O autor (1992) afirma que os conceitos são parte de algo maior que a linguagem, operando uma tentativa de associação com a teoria e com os dados da realidade “Todo conceito é não apenas efetivo enquanto fenômeno linguístico; ele é também imediatamente indicativo de algo que se situa para além da língua.” (KOSELLECK, 1992, p. 136).

Um dos modos de proceder por uma história dos conceitos é através da articulação entre conceitos próximos (sinônimos) e distantes (antônimos). Sobre isso, Koselleck (1992, p. 137) afirma que:

Assim procedendo estamos construindo uma cadeia, através do conjunto da língua, que articula um conceito a outro. Através desse procedimento podemos constatar, por exemplo, estreita articulação dos conceitos de Estado e Sociedade, articulação hoje esquecida, posto que a partir de Hegel esses dois conceitos foram pensados separadamente.

Nosso trabalho, portanto, seguindo esta metodologia da história dos conceitos, será o de avaliar a relação entre os conceitos sociológicos dos autores e os conceitos sobre os não-humanos, articulando estas duas categorias com vistas a compreender a relação entre ambos. Nesse sentido, nossa preocupação maior não é necessariamente em investigar as necessidades teóricas e empíricas que fizeram com que os principais conceitos dos clássicos da Sociologia surgiram, mas tão somente investigar quais as implicações destes em relação aos não-humanos abordados pelos autores, o que permite compreender se há ou não proximidade entre eles. Ou seja, ao investigarmos quais as relações entre estes dois tipos conceituais estaremos, ao mesmo tempo, investigando uma parte destas necessidades ontológicas que deram origem à estes conceitos.

Para fazer isso, precisamos ter claro de que tanto a forma como cada autor apresenta os fenômenos da natureza e os objetos, como a relação dicotômica entre teoria e empiria varia de autor para autor, o que irá ficar mais claro ao longo da descrição e análise detida de cada um especificamente. Inicialmente, realizamos a leitura detida de cada um dos clássicos, passando pelos vários livros e por alguns comentadores para melhor compreender o seu pensamento. Em seguida, procedemos por um processo de “marcação” de onde referências ligadas aos objetos,

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aos animais e os dados da natureza, apareceram nas obras particulares. E, por fim, realizamos a análise e a articulação com os conceitos relativos àquelas passagens.

Karl Marx

A afirmação de que Karl Marx focaliza a sua abordagem na análise do Capitalismo parece pouco controversa, dado que de todos os seus livros aquele que é considerado o de maior importância tem justamente o título de “O Capital” (2013).

Contudo, bastante controversa é a visão global do seu pensamento, mesmo dentro do marxismo. Uma das maiores controvérsias diz respeito à questão da unidade teórica na obra marxiana, tendo a sua existência sido considerada por alguns autores (SCHÄFER, 2011) enquanto que outros, na contra mão, enxergaram a existência de um recorte epistemológico no pensamento do autor, o dividindo entre um Jovem Marx e um Marx maduro (ALTHUSSER, 2015). Certamente, dentre os três clássicos da Sociologia, Marx é aquele que mais rendeu frutos através do seu materialismo histórico e dialético, tanto no sentido acadêmico quanto no sentido

“prático” (sistema político), uma vez que o seu pensamento visava reunir justamente as duas categorias. Lênin (1982), o líder soviético, afirmou que esta é justamente a característica que diferencia o materialismo anterior à Marx, de Feuerbach, e o do próprio Marx e de Engels, o “novo materialismo”, estando este último dedicado não apenas a interpretar o mundo, mas também a transformá-lo (LÉNINE, 1982, p. 9).

Em nossa descrição e análise das vezes em que coisas que não são humanas aparecem nas obras de Marx, constatamos que, ao menos no que se refere à relação entre o conceitos teóricos e os estes seres e objetos, há uma unidade de pensamento clara: trata-se de uma contradição marcada pela existência, em Marx, de uma concepção dos fenômenos ditos materiais enquanto atuantes no processo social de construção dos homens reais, ao mesmo tempo em que há uma recusa desta atuação, atribuindo todo o trabalho de construção, desconstrução e reconstrução do social apenas pelos homens.

Inicialmente, precisamos compreender o que define o materialismo histórico e dialético criado por Marx, mas também desenvolvido por Friedrich Engels, colaborador durante vários anos de sua vida e obra. Assim o materialismo é definido pelos dois autores no livro “A Ideologia Alemã” (2001, p. 12): “A base de nossa

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filosofia são os homens reais e, portanto, ela deve ser materialista.” Neste sentido é que os autores elaboram o seu pensamento: trata-se de revelar o caráter das relações que são estabelecidas dentro da sociedade capitalista, marcada por relações contratuais entre os indivíduos. Tais relações representam interesses humanos, porém elas estão escondidas por trás de “coisas” (que são os objetos dos contratos), coisas que falariam mais alto e que parecem dotados de uma alma própria (MALAGODI, 1993).

É neste objetivo em que o materialismo histórico e dialético de Marx e de Engels se baseia: trata-se de revelar a não ação dos objetos (da natureza) e a real ação dos humanos. Nos “Manuscritos econômico-filosóficos” (2010), Marx define dois conceitos importantes que ele os irá desenvolver ao longo da sua obra e que possuem proximidade com este objetivo revelador: são os conceitos de estranhamento, também chamado de estranhamento-de-si (Entfremdung), e o conceito de suprassunção (Aufhebung). Primeiro, passemos a análise do conceito de estranhamento. Marx (2010, p. 81) o define como o processo de perda do objeto do trabalho pelo trabalhador. Inicialmente, há uma relação imediata entre o homem e a natureza mediada pelo trabalho, ainda que esta última seja caracterizada como o “mundo exterior”:

O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível (sinnilich). Ela é matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual [o trabalho] é ativa, [e] a partir da qual e por meio do qual [o trabalho]

produz. Mas como a natureza oferece os meios de vida, no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais se exerça, assim também oferece, por outro lado, os meios de vida no sentido mais estrito, isto é, o meio de subsistência física do trabalhador mesmo.

É interessante notar aqui justamente a evidência que Marx aponta de que já havia uma separação entre o homem (trabalhador) e a natureza (mundo exterior), a qual ele não data especificamente de quando ocorreu. A diferença é que, na medida em que o trabalho avança sobre a vida do trabalhador, e que este assume características capitalistas, esta relação fica ainda menos intrínseca.

O conceito de estranhamento, portanto, define-se a partir de uma relação de exteriorização do objeto do trabalho (a natureza) e o homem, que era de outra característica anteriormente, definida por ele da seguinte maneira: “A relação imediata do trabalho com os seus produtos é a relação do trabalhador com os objetos da produção.” (MARX, 2010, p. 82, grifos do autor). Neste sentido, embora o agente aqui elencado por Marx seja o próprio processo de estranhamento,

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processo esse essencialmente social (inter-humanos), a “matéria” faz parte dele, na medida em que é a partir da sua separação da relação “íntima” entre ela e o homem, através do trabalho capitalista, que se dá o estranhamento.

Isto fica mais claro quando Marx (2010, p. 81, grifos do autor) define outro conceito, ligado ao estranhamento-de-si, que é o de exteriorização:

A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa (äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele (ausser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha.

Aqui, Marx define o produto do trabalho enquanto um objeto que possui vida, produz sentido e ação sobre o homem, mas que é produzido por ele mesmo, ou seja, que é fruto da ação do homem. O resultado desta relação se constata, segundo Marx, na existência da propriedade privada. Diz ele (2010, p. 106, grifos do autor) “A propriedade privada material, imediatamente sensível (sinnliche), é a expressão material-sensível da vida humana estranhada.” Há, neste caso, uma relação direta entre a transformação da natureza em propriedade privada e a transformação do homem em homem estranhado-de-si.

Lembremos, no entanto, que apesar de Marx definir as características da natureza na relação capitalista (enquanto propriedade privada), assim como em todos os demais sistemas econômicos, esta é, para ele, uma relação por essência social (inter-humanos): “Portanto, o caráter social é o caráter universal de todo o movimento: assim como a sociedade mesma produz o homem enquanto homem, assim ela é produzida por meio dele.” (MARX, 2010, 111, grifos do autor).

Resta saber como isto pode ser revertido a uma situação em que, segundo Marx, este estranhamento-de-si teria fim. É aqui que entra a suprassunção, assim definida pelo autor (2010, p. 106, grifos do autor):

A suprassunção (Aufhebung) positiva da propriedade privada, enquanto apropriação da vida humana é, por conseguinte, a suprassunção positiva de todo estranhamento (Entfremdung), portanto o retorno do homem da religião, família, Estado etc., à sua existência (Dasein) humana, isto é, social.

Esta efetivação (suprassunção), segundo Marx, só pode acontecer através de uma atividade prática (e não apenas teórica) do homem, no qual todas as oposições

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(subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo) perdem o seu caráter de “oposições teóricas” e passam a tornarem-se um só (MARX, 2010, p. 111).

É no socialismo que Marx (2010, p. 114, grifos do autor) vê essa negação da negação (suprassunção) efetivada: “[...] mas o socialismo não carece mais de uma tal mediação; ele começa a partir da consciência teorética e praticamente sensível do homem e da natureza como [consciência] do ser.” Note-se que tanto para os conceitos de suprassunção e de socialismo, quanto para o conceito de estranhamento, Marx vê a natureza e a forma como ela é “transformada” no capitalismo em uma perspectiva contraditória: ao mesmo tempo em que, na sociedade capitalista (que dá fruto à relação de estranhamento-de-si), a propriedade privada têm determinados “poderes” (alienação, objetivação) sobre os humanos, são os humanos os atores, os responsáveis portanto por construir o social, realidade revelada por Marx (2010, p. 86) por meio de seu materialismo: “Não os deuses, não a natureza, apenas o homem mesmo pode ser este poder estranho sobre o homem.”.

A contradição reside no fato de que Marx reconhece, em certos momentos, a ação da natureza enquanto partes do social, mas as nega, em outros, afirmando que são os próprios homens que a constrói.

Como outro exemplo dessa contradição, ainda nos Manuscritos e como referência à questão do estranhamento-de-si, agora especificamente o estranhamento-de-si realizado pela religião, Marx apropria-se de uma descoberta científica, considerada obsoleta efetivamente em 1859 por Louis Pasteur, mas já criticada desde 1668 (LEVINE, 2000), que afirmava que os seres vivos haviam se formado de maneira espontânea a partir da matéria orgânica, da matéria inorgânica ou de uma combinação de ambas: “A criação da terra recebeu um violento golpe da geognosia, isto é, da ciência que expõe a formação da terra, o vir a ser da terra como um processo, como autoengendramento. A generatio aequivoca [geração espontânea] é a única refutação prática da teoria da criação.” (MARX, 2010, p. 113, grifos do autor). Note-se que, embora uma descoberta científica seja também um processo realizado por homens, os cientistas, há que se destacar a ação da evidência natural (a criação dos seres a partir da combinação de organismos orgânicos e inorgânicos) para a refutação de uma concepção humana: a teoria da criação.

Portanto, entre o estranhamento-de-si, no qual há a separação entre homem e natureza, e a suprassunção, no qual há o fim desta (e de outras) contradição, há uma natureza ora inativa e ora ativa, que ora participa da construção do social, ora

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está alheio a ele, aguardando o momento da suprassunção para, finalmente, atingir um patamar de simetria.

Esta contradição - entre os seus principais conceitos, a definição que ele os dá e a apropriação dos objetos e dos dados da natureza em sua obra - pode ser percebida em alguns outros momentos como no caso d’O Capital (2013) no qual Marx define, entre outros conceitos, o de divisão social do trabalho. Assim descreve Marx (2013, p. 713) como se dá este processo:

Não a fertilidade absoluta do solo, mas sua diferenciação, a diversidade de seus produtos naturais é que constitui o fundamento natural da divisão social do trabalho e incita o homem, pela variação das condições naturais em que ele vive, à diversificação de suas próprias necessidades, capacidades, meios de trabalho e modos de trabalhar. É a necessidade de controlar socialmente uma força natural, de poupá-la, de apropriar-se dela ou dominá-la em grande escala mediante obras feitas pela mão do homem o que desempenha o papel mais decisivo na história da indústria.

Chama a atenção o caráter duplo deste procedimento: enquanto que Marx afirma que é a natureza que fundamenta a divisão social do trabalho, é o homem aquele que realiza a grande obra que irá desempenhar o papel mais decisivo na história. Outro exemplo, contido no livro “Lutas de Classes na França” (2012), demonstra esse caráter duplo do materialismo marxiano. Para o autor, quanto mais evidentes são as relações que ele caracteriza de “reais”, ou seja, entre os homens, mais importantes elas são para desmistificá-las, para retirar-lhes o “véu”. O oposto acontece quando as relações entre humanos e natureza são mais evidentes, ficando, portanto, em uma hierarquia de importância mais baixa, não representando tanto uma relação que Marx julga de real, mas apenas fomentando que esta apresente a realidade, ou seja, o caráter de disputa entre os humanos.

Isto acontece porque Marx não concebe a natureza e os objetos como atores reais, mas tão somente como atores controlados por homens. Ainda quando estes agem, para Marx (2012, p. 32) é nesta ação que fica mais evidente as relações entre as classes e não as relações entre homem e natureza:

A doença da batata inglesa e as quebras de safra de 1845 e 1846 aumentaram a intensidade da efervescência entre o povo. A carestia de 1847 provocou conflitos sangrentos, tanto na França quanto no resto do continente. Em contraste com as orgias despudoradas da aristocracia financeira – a luta do povo pelos gêneros primários de subsistência! Em Buzançais, revoltosos famintos sendo executados4 em Paris escrocs [escroques] empanturrados livrando-se dos tribunais com o apoio da família real!

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Torna-se evidente, através destes indícios, que esta contradição deve-se justamente ao fato de que para Marx a natureza assume exclusivamente a forma de mercadoria, o que deve ser antifetichizado5 através do seu método. No entanto, o próprio autor demonstra, em determinados exemplos, que a natureza não é inativa, ela também intervêm sobre características do social, seja para eliminar determinada crença, seja para diferenciar sujeitos, seja para fomentar lutas entre as classes, ou mesmo para exteriorizar as suas existências, ainda que o ator real para ele por trás do fetiche seja o próprio homem.

Émile Durkheim

Embora existam diversas diferenças entre Marx e Durkheim6, não só estes autores foram contemporâneos (Marx morreu em 1883 e Durkheim nasceu em 1858) como também compartilharam várias experiências comuns daquele momento histórico e por isso é de fundamental importância uma compreensão introdutória sobre o contexto de formação do pensamento de ambos. No caso de Durkheim, José Albertino Rodrigues (1998) realiza justamente este trabalho de definição do pensamento sociológico de Émile Durkheim através dos passos que este autor deu durante a sua vida, denominando-os de “marcas sociais”. Segundo Rodrigues (1998), o contexto dos fenômenos em que Durkheim foi contemporâneo é de fundamental importância para entendê-lo; dentre os quais estão a crítica à Sociologia de sua época, que ele caracterizava de globalizante, a relação entre as tomadas de posições e os tipos de amizade que ele possuía, o movimento de

“desproletarização” que o autor presenciou movido até pelo papa Leão XIII com o objetivo de que o proletariado deixasse de ser revolucionário, entre outros eventos, fizeram com que o pensamento de Durkheim se tornasse o que se tornou, ou seja, trata-se de um pensamento complexo como o seu próprio tempo era.

Não de forma diversa, José Benevides Queiroz (2011) chama a atenção para o que considera ter sido a retirada de contexto da obra durkheimiana quando da sua apropriação pela Sociologia brasileira. Isto foi feito, segundo o autor (2011), através

5 O conceito de fetiche em Marx (1993) está imbricado pela lógica da busca pela realidade concreta, ou seja, da tentativa de evidenciar a “superficialidade” por trás da mercadoria e partir à “superfície”

da realidade social.

6 Basta citar, dentre as várias diferenças existentes entre os autores, que enquanto Marx estuda primordialmente as lutas de classes e a sociedade capitalista, Durkheim estuda os fatos sociais, ou seja, estudos sobre as coerções sociais e as tendências sociais (CASTRO; ROSSETO, 2018).

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de uma “cirurgia teórica”, no qual os pesquisadores privilegiaram apenas os aspectos teóricos e metodológicos da obra do sociólogo francês, o que, quando transferido para outras realidades como a própria realidade do Brasil, torna-se anacrônica e errática a interpretação tanto sobre o país quanto sobre o próprio Durkheim.

Levando em consideração então estes fatores em relação à Durkheim – da complexidade do seu pensamento, da impossibilidade de se pensá-lo retirando-o do seu contexto, entre outros – o que podemos afirmar sobre a maneira como Durkheim aborda os não-humanos em sua obra?

Inicialmente, se faz necessária uma compreensão daquilo que Durkheim (2007) denomina de o objeto da Sociologia, particularmente da Sociologia que ele desejava: o fato social. Compreendendo este conceito, compreende-se, ao mesmo tempo, a própria noção do social para o autor. Durkheim (2007, p. 4) definia o social como a realidade exterior ao indivíduo, mas que perpassa por ele: “São realidades exteriores (por que já criadas antes dos indivíduos nascerem e independem deles) e interiores (por que sentidas pelos indivíduos).” No entanto, embora passem pelos indivíduos, os fatos sociais são distintos, segundo o autor, das repercussões que estes possuem em relação àqueles. Neste sentido, Durkheim (2007) busca justamente diferenciar o social do indivíduo, o fato social do fato biológico, pois, segundo ele, nem todos os fatos são sociais, pois alguns são fatos biológicos ou psicológicos, como comer, beber, dormir, raciocinar, (DURKHEIM, 2007, p. 1).

No projeto durkheimiano, fica clara a recusa às questões da relação homem- natureza. No entanto, elas não estão desprovidas de acontecer na realidade, segundo o próprio Durkheim (2007, p. 11):

[...] quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se divide politicamente, como essas divisões se compõem, a fusão mais ou menos completa que existe entre elas, não é por meio de uma inspeção material e por observações geográficas que se pode chegar a isso; pois essas divisões são morais, ainda que tenham alguma base na natureza física.

Observa-se, neste ínterim, uma simplificação das relações homem-natureza, e não a sua negação, portanto. Durkheim assim irá proceder ao longo da sua obra:

contrapondo os fatos sociais; que considera mais complexos, externos e com vida própria fora dos indivíduos, aos fatos da relação homem-natureza; que considera coisas mais próximas da interioridade dos indivíduos e fora do mundo-moderno-

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ocidental, ou, como preferia chamar, mais próximas à um tipo de relação das sociedades menos elevadas.

Exemplo disso é o caso em que Durkheim, no livro “A Divisão do Trabalho Social” (1999), ao dar continuidade a sua busca pelas causas comuns dos fenômenos sociais, inclui entre uma das suas preocupações a busca pela característica que une todos os tipos variados de crimes. Lança ele a pergunta: “O que há de comum entre os diferentes tipos sociais, no que concerne ao crime?” (DURKHEIM, 1999, p. 38).

A resposta, encontrada por Durkheim (1999, p. 36) é que:

Para ser profundo em uma sociedade o crime precisa possuir: um sentimento forte e não superficial (o que faz com que ele não se altere facilmente) e precisa ser preciso (não bastando apenas ter sobre um sentimento forte, como o sentimento contra a falta de compaixão, mas precisa ser expressamente definido). O único direito que tem essa perenidade e essa profundidade além de uma exatidão na pena trata-se do direito penal. Estes são os mesmos em toda parte.

Então o que seria, para o autor, o oposto de um crime forte, ou seja, um crime que seja fraco? A resposta vem em seguida quando Durkheim (1999, 41) afirma que:

[...] há uma multidão de atos que foram e ainda são considerados criminosos sem que, por si mesmos, sejam prejudiciais à sociedade. Em que medida o ato de tocar um objeto tabu, um animal ou um homem impuro ou consagrado, de deixar apegar-se o fogo sagrado, de comer certas carnes, de não imolar no túmulo dos parentes o sacrifício tradicional, de não pronunciar exatamente a fórmula ritual de não celebrar festas, etc.

pôde um dia constituir um perigo social?

Ao tempo em que o autor deixa clara a sua definição de social, ou seja, o conjunto de indivíduos mas exterior à eles, ele deixa evidente também que os atos citados por ele, de interação entre humanos e não-humanos, permeados por simbologias, são, ainda assim, crimes, mesmo sem constituírem um “perigo social”.

Neste sentido, embora Durkheim centre a sua preocupação em aquilo que está escrito de forma clara e objetiva pelas instituições modernas, ele não negligencia interações com sentidos variados entre homens e natureza, porém as restringem às relações “tradicionais”, exteriores ao mundo moderno, ou, como no trecho anterior, em graus muito baixos para implicar alguma ingerência no social.

Há outro caso em que se pode verificar que tais relações não estão excluídas do mundo moderno, porém, segundo a análise de Durkheim, são simplistas em contraposição àquelas em que se pode verificar com exatidão as causas. No caso do seu estudo sobre o suicídio, por exemplo, Durkheim (2000, p. ) constrói uma

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proposição baseada nos dados estatísticos que recolheu, afirmando que o suicídio é

“[...] todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato realizado pela própria vítima e que ela saiba que produziria esse resultado.”

Há ainda, no entanto, o tipo de suicídio que ocorre em animais. Apesar de Durkheim (2000) apontar um motivo para que este tipo ocorra, quando, por exemplo, um cachorro deixa de comer devido à falta do dono, ele aponta que esta forma não foi empregada como meio cujo efeito era conhecido e que, portanto, não tem razão se constituir um tipo de suicídio como o proposto por ele, com razões claras e com consciência da finalidade.

Através destes poucos exemplos, observa-se um esforço de simplificação dos fatos no âmbito das relações humano-natureza, ao mesmo tempo em que há uma amplificação dos fatos que Durkheim atribui de sociais. Isto tem a ver com outros processos de distinção, no projeto da Sociologia durkheimiana, que lhe são simultâneos: a distinção entre espécies sociais (mais elevadas e menos elevadas), tipos de solidariedade (solidariedade mecânica e solidariedade orgânica), distinções entre indivíduo e sociedade, entre outras.

Trata-se de uma “demarcação de território” no qual se vai definindo os limites da ciência sociológica. A questão, no entanto, é que no que concerne a relação homem-natureza, percebe-se claramente que esta não estava restrita, segundo Durkheim, a um tipo específico de sociedade: ela acontece em todos os tipos e tem importância em cada sociedade no qual se exerce.

Max Weber

Não diferente de Marx e Durkheim, o pensamento de Max Weber, o mais recente dentre os três clássicos, é mais um dos que sofreram recortes e fragmentações em sua obra ao longo da história, a depender do momento histórico particular e do lugar em que a recepção dela se deu. O sociólogo brasileiro Carlos Eduardo Sell (2009), por exemplo, ao investigar o “estado da arte” da obra de Weber na Alemanha, país de origem do autor, e nos Estados Unidos da América, constata uma variedade de possibilidades de abordagem sociológica a partir do pensamento weberiano, dentre as quais estão a Sociologia Econômica, a Sociologia Histórica e a Sociologia Comparada (SELL, 2009, p. 6).

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Além da fragmentação por diversos países e épocas diferentes ser algo bastante destacado na obra de Weber, dentre os seus analistas há outra controvérsia: a que diz respeito à unicidade ou não unicidade do seu pensamento.

Há os que discordam de uma linha única que o guiava, como é o caso de Julien Freund (2006) que atesta a posição contrária do próprio Weber a uma visão global ou universal sobre qualquer questão, assim como ataca a construção de sínteses gerais como algo anticientífico (FREUND, 2006, 10), o que demonstra a falta de unicidade em Weber. E há os que, na contramão de Freund, defendem a existência de um todo coerente em seu pensamento, um todo que confere, dá sentido e clareza ao longo do seu trabalho, como Gabriel Cohn (1988) defendeu, chamando atenção para a abordagem culturalista ao longo de todos os seus livros e definindo o pensamento weberiano enquanto o de um “homem de ação”, tanto na prática quanto na teoria (COHN, 1988, p. 19).

As causas para tal fragmentação não nos interessam neste momento. O que é importante constatar, no entanto, é que ela existe e que se baseia em formas de apropriação dos conceitos teóricos de Weber. Mas e sobre a relação entre o pensamento sociológico de Weber e a natureza? Pode-se falar de uma coerência ou há vários modos de tratamento pelo autor conferido a eles? Defendemos que há uma tomada de posição, através dos seus principais conceitos, que privilegia àquilo que Weber atribui como sendo coisas exclusivas dos humanos, como os sentidos, a racionalidade, a modernidade, coisas que, embora estejam atravessadas e circundadas por elementos da natureza e objetos, estes não tem qualquer relação com o social definido pelo autor.

Em “Economia e sociedade”, por exemplo, Weber (1999) apresenta de forma sistematizada e didática os conceitos que dão base a sua Sociologia. Um deles é o de ação social, definida por ele como uma ação “[...] em relação a outrem, seja no passado, no presente ou no futuro.” Procedendo a sua definição do conceito quase que por negação (negativo em relação à) Weber (1999, p. 14-15) prossegue:

[...] ação isolada (interna) não é ação social, nem mesmo ação pela expectativa de determinado comportamento de objetos materiais [...]

simples acontecimentos como o choque entre dois ciclistas é um simples acontecimento do mesmo caráter de um fenômeno natural, já o xinguamento entre eles e o desvio é ação social [...] O são quando há um sentido por trás.

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Fica evidente que Weber não nega ação aos objetos materiais, as bicicletas, o próprio choque entre os dois ciclistas e os fenômenos naturais. Contudo, ele restringe os “sentidos” aos humanos, como os únicos capazes de os produzirem. Os colocando acompanhados da locução adjetiva “simples acontecimento”, o autor deixa evidente o grande esforço da sua questão conceitual: ele precisa simplificar os comportamentos dos objetos ao mesmo tempo em que precisa elevar os comportamentos dos humanos, acrescentando a grande chave do “sentido” à ação, negando, portanto, qualquer possibilidade de sentido àquilo que não possui humanidade, ou mesmo a possibilidade de este provir da interação entre humanos e natureza.

Weber deixa evidente, portanto, que a sua Sociologia compreensiva parte dos sentidos “exclusivamente humanos” e assim demonstra não conceber a relação de construção conjunta entre humanos e natureza. Para ele (1999, p. 5), qualquer sentido externado pertence exclusivamente às características humanas:

Processos e objetos alheios ao sentido são levados em consideração por todas as ciências ocupadas com a ação: como ocasião, resultado, estímulo ou obstáculo da ação humana. “Alheio ao sentido” não é idêntico a

“inanimado” ou “não-humano”. Todo artefato, uma máquina por exemplo, somente pode ser interpretado e compreendido a partir do sentido que a ação humana (com finalidades possivelmente muito diversas) proporcionou (ou pretendeu proporcionar) à sua produção e utilização;

sem o recurso a este sentido permanece inteiramente incompreensível. O compreensível nele é, portanto, sua referência à ação humana, seja como

“meio” seja como “fim” concebido pelo agente ou pelos agentes e que orienta suas ações. Somente nessas categorias realiza-se a compreensão dessa classe de objetos.

Aqui fica mais claro o motivo pelo qual Weber insiste no conceito de ação social: é Weber quem separa os tipos de ação, através de sua construção do tipo ideal7. Dentre os vários tipos de ação social, elencados por Weber, está a ação racional com o objeto (ação clara e planejada combinada com os meios disponíveis), ação racional com relação a um valor (decisão reacional porque entende os riscos daquela ação), ação emocional (motivada somente pelas emoções que não tem a ver com um objetivo ou um sistema de valores) e a ação tradicional (sem objetivo e sem valor planejado e nem impelido por uma emoção, reflexos enraizados) (ARON,

7 De forma resumida, o conceito de tipo ideal pode ser definido, segundo Hector Saint-Pierre (1999), como um método de pesquisa que se caracteriza pela busca pelas probabilidades (o que caracteriza mais determinado objeto do conhecimento). Por isso se chama “tipos ideais”, para evocar a probabilidade típica ideal de fenômenos, dados do conhecimento e da realidade, evocando ao mesmo tempo a probabilidade multicausal dos fenômenos (tanto culturais, quanto econômicos, etc.).

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1982, p. 479). É interessante destacar que na lista de Weber os não-humanos estão elencados enquanto partes da ação social, o que muda apenas é o sentido, como na ação racional com relação a um objeto no qual a outra ponta se faz necessária, ou seja, o próprio objeto, pois sem ela não haveria a própria ação racional.

Um caso exemplar, no qual o autor coloca em prática a sua Sociologia compreensiva, é o do livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Na obra, Weber (2004) desenvolve alguns conceitos através do método do tipo ideal, entre eles está o conceito de secularização. Buscando contrapor-se ao materialismo histórico, no qual os fenômenos eram vistos pela ótica econômica, Weber dá o exemplo do caso de um “meio técnico” que os capitalistas modernos utilizam para tentar incrementar a produção que é através do aumento do salário por tarefa.

O autor então destaca que mesmo com o aumento os trabalhadores acabaram que não aceitando o aumento da produção e preferiram trabalhar menos ganhando a mesma quantia anterior. Ao observar este fenômeno, Weber (2004, p. 53) afirma que: “Eis um exemplo justamente daquela atitude que deve ser chamada de

‘tradicionalismo’: o ser humano não quer ‘por natureza’ ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, mas simplesmente viver, viver do modo como está habituado a viver e ganhar o necessário para tanto.”

Embora Weber não recuse a categoria de classes, atentando justamente para a multicausalidade dos fenômenos sociais e incluindo, entre eles, o fenômeno da economia, Weber recusa, ainda assim, atribuir qualquer causalidade, ou mesmo interferência na ação social, quando esta provêm de ações não-humanas. É o caso em que o autor escreve o seguinte:

Na agricultura, por exemplo, um caso que reclama imperiosamente o aumento máximo da intensidade do trabalho é o da colheita, visto que, notadamente quando o clima é incerto, oportunidades de lucros ou de prejuízos extraordinariamente altos dependem muitas vezes da possibilidade de sua aceleração. Daí o costume de usar quase sempre o sistema de salário por tarefa.

Embora tenha feito esta afirmação, Weber considera esta uma prática tradicionalista, pré-capitalista, alheia à racionalidade moderna, o que evidencia que embora esteja aberto à multicausalidade, esta tem para ele um limite, imposto justamente quando nos referimos anteriormente à ação social e ao que não é ação social.

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Entre a passagem da sociedade tradicional, pré-moderna e pré-capitalista para a sociedade racional, moderna e capitalista, há uma mudança que Weber denomina de secularização, mudança essa que marca justamente a entrada na cena de um novo espírito: o espírito do capitalismo moderno. Novamente contrapondo- se a qualquer possibilidade de uma infraestrutura condicionando uma superestrutura, Weber (2004, p. 60) afirma que são os comportamentos que se alteraram, através do exemplo de um capitalista filho de um homem pré-capitalista que, a partir de então

[...] assume totalmente as rédeas do processo de vendas por meio de um contato o mais direto possível com os consumidores finais: comércio a varejo, granjeia pessoalmente os clientes, visita-os regularmente a cada ano, mas, sobretudo, passa a adaptar a qualidade dos produtos exclusivamente às necessidades e desejos deles para “agradá-los” e a pautar-se ao mesmo tempo pelo princípio do “menor preço, maior giro”.

É evidente que Weber (2004) não assume exatamente uma posição alheia à importância dos produtos no cenário da secularização. Ao contrário, Weber reconhece a importância destes para a ação social, o que não é a mesma coisa que atribuir ação social à eles, mas a sua corelação, ou seja, a sua ação no social. Em outras palavras, não são os produtos que precisam agradar os humanos, mas eles precisam estar no jogo para que os humanos agradem-se entre si.

É esta a chave de interpretação da forma como Weber aborda os não- humanos em relação aos seus conceitos teóricos. Não há dúvida de que em seu pensamento há uma hierarquia e uma delimitação do que cada um é capaz de fazer.

Mas é evidente que Weber deixe escapar a importância da ação não-humana no social que ele constrói. Os seus conceitos – ação social, tipo ideal e secularização - podem ser definidos justamente como uma empreitada para definir uma separação entre o mundo humano, marcados pelos sentidos, pela racionalidade e pela modernidade, e o mundo não-humano, alheio à interação social, mas, ao mesmo tempo, participante do social.

Considerações finais

A despeito das evidentes diferenças entre Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber, é possível identificar alguns pontos de aproximação entre ambos os autores.

O conceito de social e os conceitos sobre a natureza e os objetos revelam isso. Não à

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toa, Boaventura de Sousa Santos (2008) chama a atenção para a existência de um paradigma dominante formado entre os séculos XVIII e o século XX, período em que os clássicos da Sociologia viveram e desenvolveram o seu pensamento, e que persiste até os dias atuais, no qual as ciências que estavam surgindo, entre elas a Sociologia, buscavam especializar os seus campos de conhecimento (SANTOS, 2008, p. 14). Este período foi marcado pela distinção entre sociedade e natureza, no qual cada área do conhecimento deveria se especializar em seus campos de estudos delimitados.

Isto explica o trabalho realizado pelos clássicos de amplificação e de complexificação no terreno das relações sociais, agora restrita apenas às relações humanas, em contraposição a uma ideia de natureza gelada e uníssona. Pode-se afirmar, portanto, que este é um processo duplo e simultâneo que precisa do outro para existir, ou seja, para que a Sociologia exista é preciso que ela se opusesse a uma construção conceitual sobre as ciências exatas e naturais, ainda que repita a noção de natureza construída pelas ciências naturais.

Bruno Latour (1994) é enfático ao afirmar que a Sociologia é marcada por um processo de purificação que demarca duas zonas ontológicas distintas: a do homem e a da natureza. A partir deste processo se partiram o mundo material e o mundo social, fazendo com que houvesse duas categorias distintas. Isto explica que mesmo não abordando os não-humanos enquanto partes do social, os sociólogos criaram concepções sobre eles, ou seja, ao definirem o papel deles na sociedade, e não no social, eles estão ainda assim construindo conceitos sobre eles.

No entanto, tanto o conceito de social tem, nos clássicos da Sociologia, o seu

“calcanhar de Aquiles”, que é o fato de que mesmo não sendo parte dele, os autores afirmam que os objetos e a natureza nele atuam, quanto os conceitos construídos sobre eles dão conta de demonstrar que a natureza é mais complexa do que se imagina. Trata-se, portanto, da constatação de duas ambivalências nas obras dos clássicos da Sociologia em relação a relação homem-natureza e os seus principais conceitos sociológicos.

Enquanto partes de uma ontologia, que se constroem através das construções conceituais e teóricas e que predispõem um olhar para o ser mais geral, as “questões sociais” lançadas por eles deixaram escapar a atuação não-humana. Definindo as relações entre homem e natureza, os autores deixaram evidente que estas relações não são tão simples assim e nem são tão restritas assim. Prova disto é a existência

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de uma controvérsia sobre a forma como eles agem; ora diferenciando sujeitos, ora destruindo crenças humanas, ora os tornando alienados, ora atuando sobre a política.

Aqui já é possível identificar a existência da primeira ambivalência, caracterizada pela imputação de uma essência singularizada da natureza que, na prática das suas descrições, demonstra na verdade uma pluralidade de várias naturezas, de vários meios-ambientes. Em certa medida, esta construção ontológica caminha de mãos dadas com a imputação de uma essência pluralizada pelo lado do social: as políticas no plural, as culturas no plural, as sociedades no plural. Ou seja, tudo o que está envolvido ao social é caracterizado enquanto algo multifacetado e complexo. Os conceitos sociológicos de cada um dão conta de demonstrar essa complexificação ontológica pelo lado do social e uma simplificação pelo lado da natureza.

A segunda ambivalência, relativa à concepção do social enquanto algo restrito às relações entre os homens que, embora predisponha a divisão entre sociedade e naturez , na prática, no entanto, constata os seus entrecruzamentos. É o caso, por exemplo, da concepção da mercadoria enquanto um agente na exteriorização do ser, ou mesmo o caso da natureza enquanto participante no processo de diferenciação dos sujeitos, ou ainda a atuação de objetos no que se refere a um choque entre dois humanos provocado por um “simples” acidente entre duas bicicletas.

O que queremos destacar é justamente o fato de que em ambos os casos não há uma separação real, mas ontológica, caracterizada por recortar coisas que na prática estão misturadas. O ponto que torna esta conclusão mais evidente é que através da questão geosocial foi possível identificar pontos em comum com a questão social sem necessariamente uma exclusão da mesma. Ou seja, trata-se não de excluir a importância que os conceitos da teoria da Sociologia clássica possuem para uma compreensão do mundo, mesmo do mundo contemporâneo, mas aliá-los a uma discussão que congregue aspectos sociais e ecológicos juntos e não separados.

Exemplo disso é o do pesquisador e indígena do povo krenak Ailton Krenak, que evidencia a não separação entre sociedade e natureza em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (2019), dentro de uma perspectiva indígena e que lança justamente um olhar crítico à ideia de uma humanidade unificada (poderíamos dizer também de um social) sem, no entanto, excluir a importância da atuação nas

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instituições políticas, nem tão pouco nas lutas sociais, mas incluindo nelas o conjunto da pauta socioambental (KRENAK, 2019, p. 12)

Outro exemplo é o do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2017) que aponta a existência de movimentos ecológicos nos países do Sul que buscam pôr em questão a concepção cartesiana do mundo desenvolvida pelo paradigma europeu, movimentos estes que defendem uma pauta mais ecológica e que fazem parte de uma agenda que o sociólogo destaca enquanto partes das epistemologias do Sul, voltada, entre outras coisas, para a compreensão de que a Terra têm direitos próprios e que não está apartada da convivência e cooperação com os humanos (SANTOS, 2017, p. 81). Boaventura (2017) reitera a importância da Sociologia clássica, mas afirma que sem uma apropriação verdadeira, conivente com as realidades dos países não europeus, esta Sociologia não produz sentido e nem resultados para a compreensão das relações sociais e socioambientais.

Além destes exemplos, há ainda o trabalho desenvolvido por Latour, mais especificamente no livro “Down to Earth: Politics in the New Climatic Regime”

(2018), no qual propõe uma reflexão acerca da agenda política e afirma haver uma centralidade das questões ambientais inclusive na estratificação social, fato este que nos impõe pôr estas questões em discussão política reavaliando as posições de

“esquerda” e de “direita”, na medida em que estes grupos não estão envoltos de questões de natureza geosocial, deixando-as para grupos excluídos da agenda política, e propõe, ainda que dentro das instâncias democráticas, uma pauta centralizada, que compreenda que a natureza não está dividida, dado que estamos todos com os “pés na Terra”, título do livro que serve de metáfora para a sua obra.

Há uma enormidade de exemplos ainda a ser citados, porém, com os exemplos citados, a maioria deles frutos da herança das discussões levantadas a partir do cenário do Antropoceno, o que se evidencia é justamente o fato de que não há razões, e em muitos casos não há como, para se abandonar as contribuições da Sociologia clássica. O que é necessário, no entanto, é incluí-las na discussão mais recente sobre as relações entre homem e natureza. Para fazer isso, precisamos ter clara a distinção entre a definição ontológica realizada pelos clássicos da Sociologia, caracterizada por uma restrição do social aos humanos e por uma complexificação da sociedade ao mesmo tempo em que há uma simplificação da natureza, e a sua posição prática, a parte “geo” da “questão social”, caracterizada pelo reconhecimento das relações entre humanos e não-humanos e pela compreensão da

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