Supremo Tribunal de Justiça Processo nº 084225
Relator: CURA MARIANO Sessão: 21 Setembro 1993 Número: SJ199309210842251 Votação: UNANIMIDADE Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE ESBULHO
NULIDADE DE SENTENÇA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
SENTENÇA ÂMBITO CONSTITUCIONALIDADE
Sumário
I - O requerente, arrendatário do prédio e, por isso, dele possuidor em nome alheio, esbulhado da sua posse por actuação violenta do requerido que, por meio de pessoal
às suas ordens, lhe retirou as condições de continuar a exercer aquela posse, tem direito a reagir contra o esbulhador por via de acção de restituição
provisória de posse.
II - Só se verifica a nulidade da sentença se houver falta absuluta de
fundamentação e não quando, na decisão, se indicam, por remissão, os factos em que se baseia e as normas legais respectivas.
III - Não se excede o âmbito da sentença quando se inclui no mandado a ordem de cumprimento das medidas que o requerente solicitara tendentes a concretizar a restituição da posse.
IV - O vício de inconstitucionalidade afecta unicamente as normas legislativas e não actos da actividade privada, ainda que estejam em causa direitos
fundamentais.
Texto Integral
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
Nos autos de providência cautelar que A, na Comarca de Coruche, moveu a
B,este recorre para este Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da Relação de Évora, alegando:
1 - as medidas que se pretende ver instauradas e estão peticionadas ultrapassam as permitidas pelo procedimento cautelar de restituição provisória de posse;
2 - foi assim violado o disposto no artigo 393 do Código de Processo Civil;
3 - face ao peticionado a providência própria seria a de embargo de obra nova;
4 - as medidas decretadas seriam além de ilegais, materialmente inconstitucional;
5 - existe nulidade resultante do mandado de notificação e da decisão decretada;
6 - o agravante é parte ilegítima;
7 - a decisão é nula, pois não é fundamentada nem de facto, nem de direito;
8 - o recorrido era apenas titular de um arrendamento de campanha, ou seja seareiro, o que apenas lhe confere poderes no decurso do prazo contratual.
Não houve contra-alegação.
Tudo visto:
A sentença da primeira instância determina que, em face dos depoimentos das testemunhas ouvidas, atentas as disposições legais que regulamentam a
restituição de posse - artigos 393 e 394 do Código de Processo Civil e 1279 do Código Civil - considera verificados os pressupostos de que depende a
concessão da providência ora requerida.
Consequentemente, ordenou a respectiva restituição de posse.
Os factos em que se baseou esta decisão foram os seguintes:
1 - há cerca de 40 anos que o requerido - ora recorrente - transferira para o requerente - ora recorrido - o uso, gozo e fruição, para fins de exploração agrícola, nas condições de mera regular utilização, contra pagamento de renda anual, numa parcela com 15 hectares de propriedade denominada Matalobinhos, em Coruche;
2 - em 1984, o requerente renunciou à exploração de 7,5 hectares dos 15 que lhe estavam arrendados, tendo feito entrega dos restantes 7,5 hectares da identificada propriedade ao requerido;
3 - passou, desse modo e a partir de então, a gozar, usar e fruir, para fins de exploração agrícola, nas condições de mera regular utilização e contra pagamento de renda anual, dos 7,5 hectares da propriedade referida em 1 - denominada Matalobinhos, em Coruche, junto à Vala Real;
4 - o requerente cultivou-os e colheu os frutos respectivos, todos os anos, sem violência, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e contra o
pagamento duma quantia (renda) anual, paga ao requerido;
5 - assim, em 1984 pagou ao requerido - 108750 escudos -documento 124; em
1985 pagou 108750 escudos - documento 2 e 4; em 1986 pagou 192750 escudos - documento 3 e 4; em 1987 pagou 179500 escudos - documento 5;
em 1988 pagou 285978 escudos; em 1989 pagou 219450 escudos - documento 6; em 1990 pagou 248500 escudos - documento 6; em 1991 pagou 248500 escudos - documento 7;
6 - chegada a altura de preparar a terra para a cultura de arroz de 1992;
7 - o requerente que vive com a filha e genro, com carácter de habitualidade, em comunhão de mesa e habitação, com economia doméstica conjunta;
8 - contratou o Sr. C que no dia 11-03-92 se deslocou com o seu tractor e alfaias agrícolas ao locado a que aos autos se reportam;
9 - deparou então, este, com o locado completamente invadido de
"caterpilares" e outras máquinas do mesmo género;
10 - num total de sete;
11 - que ocupavam o locado e nele estavam a trabalhar;
12 - tendo lá entrado através de uma abertura que fizeram num valado que dá para uns terrenos do requerido;
13 - destruindo naquela zona o valado, danificando-o;
14 - essas máquinas procediam ao rebaixamento do terreno e seu aplainamento;
15 - estando o terreno repleto de montes de terra levantados por essas máquinas;
16 - que ali se encontravam a mando e por conta do requerido;
17 - o qual ordenou aos seus empregados que efectuassem o anteriormente descrito;
18 - sem conhecimento do requerente e contra sua vontade;
19 - aqueles impediram o C de lá entrar e de executar o trabalho para que foi contratado pelo requerente;
20 - o C foi informar o requerente do que se passava;
21 - depois o requerente deslocou-se ao locado acompanhado de várias pessoas;
22 - foram recebidos pelo feitor do requerido o Sr. D que logo lhe disse que o requerido não estava;
23 - que com ele viria falar o filho do requerido em vez e em representação do pai - o aqui recorrente,
24 - este, então, na qualidade de representante do pai disse que não
consentiria que o requerente voltasse à terra (o locado) e que agora o pai era quem tomava conta da terra;
25 - o requerente ainda ordenou que o C avançasse com o seu tractor, mas;
26 - os trabalhadores do requerido colocaram as suas máquinas à frente do tractor de C impedindo-o de avançar e de cumprir as ordens do requerente;
27 - o filho do requerido ainda disse para o C que fosse para outro lado ou se quisesse trabalhar ali naquele local, o fizesse por conta dele (filho do
requerido) e a favor do requerido.
A relevância da restituição provisória de posse está sempre dependente de três requisitos - posse, esbulho e violência.
O artigo 1251 do Código Civil define o que seja posse.
Do seu conteúdo ressalta a verificação de dois elementos - um material (corpus) que se identifica com os actos materiais sobre a coisa, de harmonia com o exercício de certos poderes; o outro, de natureza psicológica (animus) que se insere na intenção de se comportar como titular do direito real
correspondente aos actos praticados.
Este conceito abrange aquela situação jurídica denominada posse em nome de outrem, já que sendo exercida por uma pessoa é juridicamente imputável a outra. Nesta óptica o n. 2 do artigo 1037 do Código Civil colocou o
arrendatário em posição paralela à do possuidor, facultando-lhe os mesmos meios de defesa até contra o senhorio. Assim o dispõe o artigo 1275 deste Código.
Quanto ao esbulho abarca a privação da posse, de forma que o possuidor seja colocada em condições de não poder continuar a exercer a posse. Daí o pedido de restituição, necessário à reposição da situação anterior.
Finalmente o esbulho terá que ser violento, a ser exercido tanto sobre as pessoas como sobre as coisas e revestir a natureza de física ou moral.
Conceitos demasiados conhecidos para que nos abstenhamos de outras considerações.
Sendo um dos requisitos o esbulho a restituição provisória de posse terá que ser proposta contra o esbulhador aquele que colocou o possuidor em
condições de não poder continuar a exercer a posse. Este facto resulta dos princípios gerais de direito, mas, também e especificamente do disposto no referido artigo 1279 ao expressar que a restituição, ainda que provisória, ocorre sem audiência do esbulhador.
Ora, dos autos resulta que o requerente - recorrido é arrendatário de 7,5 hectares de propriedade conhecida por Matalobinhos e, que, sempre teve a posse em nome alheio da parte locada. Como tal - documentos de folhas 20 e 21, por ninguém impugnados e matéria de facto discriminada sob os ns. 1, 2, 3 e 4. Só que tal posse foi violada por atitude violenta do requerido - recorrente que através de terceiros, mas sob o seu comando, colocaram o requerente em condições de não poder continuar a exercer a sua posse sobre o locado. O mesmo defendeu-se interpondo em tribunal acção de restituição provisória de posse já que detendo posse em nome alheio, dela foi violentamente esbulhado.
Preenchidos estavam os requisitos de tal procedimento pelo que o requerente
não errou a forma de processo.
O embargo de obra nova não é aquele que se adaptava às circunstâncias, já que os actos praticados pelo requerido ou a seu mando não produziram
apenas prejuízo ao requerente, antes o inibiram totalmente da posse em nome alheio que licitamente detinha.
Sendo o requerido o esbulhador - matéria de facto referido sob os ns. 9 e
seguintes - evidente é que a acção tinha que ser proposta contra ele. Daí a sua legitimidade e o seu directo interesse em contradizer.
Mas, será a decisão recorrida nula por ausência de fundamentação de facto e de direito?
Vem sendo entendido que a nulidade prevista no artigo 668, n. 1, alínea h) do Código de Processo Civil só se verifica quando houver falta absoluta de
especificação de fundamentos - entre outros, Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 22-07-81, in Boletim do Ministério da Justiça n. 309 - página 258. A decisão proferida, ainda que por remissão, especificou os factos em que se baseou e expressamente indicou os normativos que conduziram à decisão proferida - artigos 393 e 394 do Código de Processo Civil e 1279 do Código Civil. Não existe, assim, a arguida nulidade da sentença.
Foi o recorrente notificado de um certo número de medidas cujo procedimento se diz ser-lhe vedado efectuá-las. Discorda o mesmo, afirmando que se
excedeu a finalidade do processo instaurado.
Na sentença ordenou-se, pura e simplesmente que fosse restituída a posse.
Só que na alínea b) do pedido formulado na petição inicial constam medidas que se destinam a garantir aquela posse evitando-se a renovação do
procedimento ilícito adoptado pelo requerido. Estas medidas tem por única finalidade manter o requerido, como arrendatário que é, na posse em nome alheia que tal contrato de arrendamento lhe confere . Integram o conceito de posse cuja restituição foi ordenada, inserindo-se assim no âmbito do pedido formulado.
Daí ao inserir-se no mandado o conjunto de medidas que o requerente solicitava na petição inicial não se esteja a ir além do que na sentença foi ordenado. Aqui ordenou-se a restituição de posse e as medidas destinam-se, pura e simplesmente a concretizar tal restituição.
Como se refere ainda no Acórdão recorrido há que focar aqui a
intempestividade de arguição de nulidade, já que o recorrente não o fez, como, na primeira instância - artigos 676, n. 1 e 668 do Código de Processo Civil.
Por último, o recorrente argui tais medidas de inconstitucionais.
Ora o vício da inconstitucionalidade aplica-se unicamente a normas legislativas - artigo 277 da Constituição da República Portuguesa.
É certo que a doutrina, sobretudo, a alemã, tem procurado estender a eficácia do juízo de inconstitucionalidade a certos actos de actividades privadas,
nomeadamente quando estejam em causa direitos fundamentais. Só que a provisão não encontrou eco nos diplomas fundamentais, designadamente, no português.
Daí a ineficácia das conclusões do recurso.
Termos, em que, sem necessidade de outras considerações, não se provê o recurso.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 21 de Setembro de 1993.
Mário Sereno Cura Mariano.
Martins da Fonseca.
Dionísio Pinho.