(As raízes da globalização )
Nota do Autor... 1
INTRODUÇÃO: O TERCEIRO MUNDO...2
A ECONOMIA POLÍTICA DO DESENVOLVIMENTO...4
POLARIZAÇÃO NORTE-SUL: OS DADOS BÁSICOS...6
A REVOLUÇÃO COMERCIAL (SÉC. XVI)...13
A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL (SÉC. XVIII E XIX)...17
A EXPANSÃO IMPERIALISTA (FINS SÉC. XIX E INÍCIO SEC. XX)...22
A RESTRUTURAÇÃO DO CAPITALISMO DOMINANTE:1913-1948...26
A EXPANSÃO DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS: 1948-1974...28
A CRISE E A INDUSTRIALIZAÇÃO DO TERCEIRO MUNDO...32
ASPECTOS FINANCEIROS DA CRISE...42
O TERCEIRO MUNDO FRENTE À GLOBALIZAÇÃO...48
INDICAÇõES PARA LEITURA...53
SOBRE O AUTOR...54
Nota do Autor
O presente livro, originalmente escrito ainda nos anos 1980, teve 15 edições, e circulou amplamente no Brasil como introdução aos desequilíbrios econômicos internacionais, e indiretamente aos nossos próprios dramas brasileiros. Desde a última revisão, ainda nos anos 1990, as coisas se precipitaram, e o processo de internacionalização se aprofundou, gerando o fenômeno que hoje chamamos de globalização. De certa forma, entender a dimensão mundial dos processos econômicos e sociais tornou-se ainda mais relevante.
Neste sentido, a própria formação do terceiro mundo, constitui uma dimensão essencial do
processo de globalização que hoje vivemos. A presente edição, revista em profundidade,
atualiza os dados e oferece uma extensão do campo de estudo, ao tornar mais transparente
o processo que leva à globalização e às polarizações do século XXI.
INTRODUÇÃO: O TERCEIRO MUNDO
Em 1776, antes ainda da Revolução Francesa, o economista inglês Adam Smith já dividia o mundo de forma simples em "nações prósperas e civilizadas", e "nações selvagens". A Inglaterra, é claro, estava entre as primeiras. E nós, entre as selvagens. Como também estavam entre as selvagens nações de riqueza cultural e de tradições históricas como a China, o Egito e tantas outras.
Como foi que esta linha divisória entre selvagens e civilizados se formou, englobando
praticamente num mesmo grupo a América Latina, a Ásia e a África, e criando o que hoje
se chama o Terceiro Mundo?
Hoje, é claro, já não somos selvagens: fomos promovidos a colônias e, mais tarde, a nações. Nações subdesenvolvidas e, depois de muitos protestos na ONU, nações "em vias de desenvolvimento", o que podia significar que, apesar de nações de segunda categoria, estávamos em vias de atingir a primeira. Hoje, mais delicadamente, somos o "Sul", participantes de um diálogo Norte-Sul cada vez mais entravado.
Na realidade, ninguém se ilude: todos sabemos, neste mundo de 190 países que encolheu prodigiosamente nos últimos anos – com a internacionalização da economia e o progresso dos transportes e das comunicações – quem está por cima e quem está por baixo, quem dita as regras e quem a elas obedece, quem é o "primeiro" mundo, e quem é o Terceiro.
O mundo do século XX se viu atravessado por duas correntes fundamentais: por um lado, enquanto um grupo de 24 países, o chamado "Norte", atingiu níveis de prosperidade historicamente sem precedentes, o resto do mundo viu-se precipitado numa desorganização econômica e em contradições crescentes que o paralisam e deformam o seu desenvolvimento. Por outro lado, um conjunto de países, atingindo um terço da população mundial, rompeu com o processo de polarização Norte-Sul, buscando no socialismo a solução das contradições criadas. Fruto da busca do compromisso necessário entre a eficiência do lucro e a justiça social, este universo ruiu como alternativa global ao sistema capitalista, deslocando as contradições centrais do planeta para novas dimensões.
A desarticulação dos sistemas estatistas e burocráticos que constituíram o comunismo
“realmente existente”, mudou profundamente o contexto do desenvolvimento dos países pobres. A Guerra Fria, em nome da luta contra o comunismo, permitiu que se bloqueasse qualquer tentativa de modernização social e de distribuição de renda nos países pobres, com o generoso protexto de defender a liberdade. Herdeiros involuntários de uma briga que não era nossa, fomos chamados a uma submissão disciplinada que tornou inviável a geração de propostas nacionais. Fomos assim globalizados antes do tempo.
É bastante impressionante constatar a coerência profunda entre os processos de dominação mais grosseiros da era dos conquistadores, ainda no Século XVI, e os processos modernos de globalização, onde uma África do Sul se debate para decidir se deve optar por respeitar as patentes da indústria farmacêutica transnacional, ou por salvar 4 milhões dos seus habitantes que estão morrendo de Aids. Entre as caravelas carregadas de escravos, e as imposições da Organização Mundial do Comércio, pode-se traçar um fio condutor que mantém intacta a relação de dominação e de subordinação, ainda que as formas se tornem cada vez mais complexas.
A sofisticação dos processos não reduz a dimensão da tragédia. O mecanismo que nos interessa aqui é justamente esta polarização, esta divisão do mundo em "civilizados" e
"selvagens", em desenvolvidos e subdesenvolvidos, em Norte e Sul. Ou seja, interessa-nos
a formação do Terceiro Mundo.
Visamos assim trazer elementos de resposta a um problema-chave: por que temos, neste mundo capitalista, estas diferenças tão profundamente marcadas, entre o grupo das democracias, por um lado, e o caos político do outro; a prosperidade relativamente ampla e a prosperidade concentrada em minorias arrogantes; desenvolvimento equilibrado e desenvolvimento desintegrado. E por que, nestes últimos 100 anos de crescimento industrial, de progressos tecnológicos e científicos sem precedentes, as diferenças se aprofundam.
Não é por acaso que as revoluções socialistas e a ruptura com o sistema capitalista mundial ocorreram nos países que tiveram que suportar o ônus negativo da "riqueza das nações" e não, como o previa Marx, em países do Norte. E o próprio socialismo viu-se profundamente marcado por este seu parto em sociedades deformadas pelo capitalismo mundial, com proletariados limitados, com massas camponesas miseráveis.
O nosso destino, no Brasil, está estreitamente vinculado ao conjunto do Terceiro Mundo, e sofremos, como os outros, os efeitos de um crescimento econômico que não se traduz em modernização social, da presença das multinacionais cuja modernidade agrava o desemprego, de estruturas políticas corruptas que nos afundam numa dívida impagável, de uma massa de miseráveis e de esfomeados num dos países mais bem dotados de terra e de água. Como se foram tecendo os nós que nos foram amarrando a um processo de modernização que junta tecnologias avançadas e barbárie social?
Existem hoje milhares de estudos detalhados sobre o problema. Muitas vezes, no entanto, de tanto analisar as árvores e as folhas, perdemos de vista a floresta, os fatos essenciais.
Estes nos parecem bem focados na declaração simples de Luis Echeverria: "Não pode existir uma comunidade de homens livres que possa basear-se indefinidamente na exploração, na miséria e na ignorância da maioria. A história, mestra e mãe, revelou-o com sangue, com dor e com lágrimas."
A ECONOMIA POLÍTICA DO DESENVOLVIMENTO
Até uma fase relativamente recente, o estudo da economia dos países em desenvolvimento não existia como ciência. A fraqueza da pesquisa científica explica em grande parte esta não existência, ou manifestação tardia da ciência econômica dos países subdesenvolvidos, e pode-se dizer que, na realidade, o estudo da economia do desenvolvimento e das suas manifestações específicas data desta segunda metade do século XX. Os prêmios Nobel de economia foram sistematicamente atribuídos a especialistas em simulações matemáticas e especulação financeira. Hoje, com o agravamento dramático da situação dos dois terços mais pobres da população mundial, finalmente é premiado Amartya Sen, um economista que se volta para o problema dos excluídos da terra.
Além de nascer tardiamente, a economia do desenvolvimento nasce deformada. Com efeito, na falta de um aparelho conceitual específico e adequado à realidade do Terceiro Mundo, os economistas recorreram de maneira geral a uma transposição da ciência econômica existente, criada em função da problemática dos países industrializados, para explicar problemas de subdesenvolvimento.
Esta tendência à transposição teórica notou-se nos estudos marxistas, levando, por exemplo, durante uma longa fase, ao estudo da realidade do Brasil através da busca de segmentos de realidade européia, como o feudalismo, ou de uma sucessão de modos de produção conforme à que foi estudada por Marx na Europa.
Mas nota-se, também, nas absurdas visões liberais que esperam que a liberdade econômica dos que dominam, funcione da mesma maneira para os dominados. Busca-se a estabilidade econômica, estabilidade que significa que um punhado de ricos está confortavelmente instalado sobre as costas de massas miseráveis. O que é a “estabilidade” conjuntural de uma sociedade desequilibrada? A não aplicabilidade dos modelos da economia desenvolvida ao Terceiro Mundo resulta essencialmente de se tratar, num campo, de problemas de conjuntura, de funcionamento de economias maduras, enquanto se trata, no outro campo, de resolver problemas de estrutura, ou seja, de construção de economias novas.
Uma forma de transposição de teorias econômicas a uma realidade diferente é a busca de identificação do subsdesenvolvimento econômico com a situação que prevalecia nas economias do Norte, como é chamado hoje o mundo industrializado, numa época anterior.
É característica deste estilo a proposta de reorientação económica dos paises pobres no
sentido da privatização e liberalismo generalizado: constatando-se que a pujança do
capitalismo desenvolvido deveu-se em grande parte ao capitalismo concorrencial que
caracterizou o século XIX, propõe-se hoje para os países subdesenvolvidos a aplicação da
mesma fórmula: deixar agir sem controle os interesses econômicos articulados pelos
grandes grupos, liberdade total de acumulação e transferência de lucro, eliminação da
proteção aos setores econômicos em formação, redução do espaço de intervenção e
planejamento do Estado.
O problema, no entanto, é que os países subdesenvolvidos que hoje buscam o caminho do seu arranque econômico real estão num mundo em que já existem o Norte e as potentes transnacionais que controlam o essencial da economia mundial. No tempo em que a Inglaterra se desenvolvia, a sua indústria era precária segundo os critérios de hoje, mas era a mais potente do mundo, e não havia outros paises mais fortes contra os quais a Inglaterra precisasse de proteção. Hoje, os subdesenvolvidos tentam ocupar um lugar já tomado por grandes potências cuja maturidade econômica não é comparável. E o liberalismo aproveita, como é óbvio, ao mais forte.
Assim, o mundo subdesenvolvido enfrenta problemas econômicos específicos. Esta problemática nova pode ser caracterizada pelo fato de se tratar de um processo de estruturação das economias, de um lado, e, de outro, desta estruturação dar-se frente a um mundo já desenvolvido e em meio a um espaço econômico já ocupado. A economia se mundializa, mas não há governo mundial. Com isto, a força do mais forte não encontra limites, e as tentativas de responder no espaço nacional aos dramas reais vividos pela população são simplesmente condenadas.
É este o campo específico da economia do desenvolvimento, ciência que cobre, ao mesmo tempo, a problemática da economia mundial que está na raiz do subdesenvolvimento moderno, e a problemática da luta por um desenvolvimento mais equilibrado de cada país.
Os problemas do Terceiro Mundo se agravam em boa parte como resultado de uma globalização que reduz o já precário espaço de decisão nacional, de construção de políticas econômicas e sociais adequadas a situações específicas. Na era das transnacionais, o Terceiro Mundo é hoje um arquipélago de sociedades desarticuladas à procura de uma elementar governabilidade.
POLARIZAÇÃO NORTE-SUL: OS DADOS BÁSICOS
A inserção desigual nos processos modernizados e globalizados de produção gerou o maior drama social que o planeta já enfrentou na sua história. “Hoje, enquanto ficamos falando da crise financeira, em todo o mundo 1,3 bilhão de pessoas subsistem com menos de um dólar por dia; 3 bilhões vivem com menos de dois dólares por dia; 1,3 bilhão não tem água potável; 3 bilhões carecem de serviços de saneamento, e 2 bilhões não têm eletricidade”.
Discurso no Fórum Social Mundial em Porto Alegre? Não, discurso do presidente do Banco Mundial, J. Wolfensohn, frente à Junta de Governadores da entidade, em Washington. Esta “fratura social mundial” que nos desarticula não só em termos econômicos, mas também em termos políticos e sociais, está se tornando o problema central do planeta. “Devemos, diz o presidente do Banco Mundial, ir além da estabilização financeira. Devemos abordar os problemas do crescimento com equidade no longo prazo, base da prosperidade e do progresso humano. Devemos prestar especial atenção às mudanças institucionais e estruturais necessárias para a recuperação econômica e o desenvolvimento sustentável. Devemos tratar dos problemas sociais.”
1Não é uma visão
1
James de D. Wolfensohn, La otra crisis, discurso ante a Junta dos Governadores do
Grupo do Banco Mundial, 6 de outubro 1998.
nova para nós, que clamamos há décadas pela humanização dos processos econômicos. O interessante aqui, é a amplitude das esferas que começam a tomar consciência de que não se deixa impunemente mais da metade da população mundial na privação e no desespero.
Assim, mal silenciaram as comemorações pela queda dos regimes do Leste Europeu, o capitalismo se vê obrigado a olhar para a sua própria imagem, e para os efeitos indiretos da Guerra Fria: uma guerra silenciosa que travou qualquer tentativa de modernização social, de distribuição da renda, de reforma agrária, de controle dos desmandos das empresas mineradoras e das madeireiras internacionais. Guerra silenciosa que manteve no poder ditaduras corruptas e sangrentas de Suharto na Indonésia, de Mobutu no Congo, de Somoza na Nicarágua, de Duvalier no Haiti, de Reza Pahlevi no Irã, do regime racista na África do Sul, e tantas outras, conquanto fossem anti-comunistas. Guerra que criou uma geração de ditaduras militares na América Latina, derrubou Sihanouk na Cambodgia, iniciando décadas de tragédias para este país. Ou que armou as forças mais retrógradas no Afeganistão, conquanto a luta fosse contra o comunismo. O liberalismo, na sua versão pura e ideológica, ou versão “taleban”, como hoje se costuma dizer, é tão extremista e desastroso como o extremismo comunista.
O resultado prático, a nossa herança do século XX, é simplesmente trágica. O mundo tem atualmente um pouco mais de 6 bilhões de habitantes, e a cada ano que passa aumenta em cerca de 90 milhões. Uma grande nova nação por ano. O processo de subdesenvolvimento manifesta-se antes de tudo na polarização crescente entre um grupo de países, o chamado Norte, que compreende 24 países e uma população de pouco mais de 800 milhões de habitantes em 2000, e o grupo de países do chamado Sul, que compreende cerca de 140 países (o número varia ligeiramente segundo as classificações) e uma população de aproximadamente 4,8 bilhões de pessoas, incluindo a china hoje com 1,2 bilhões. Estamos falando de quatro quintos da população mundial. Os demais 400 milhões de pessoas compõem os paises do antigo Leste europeu, hoje chamados de “economias em transição”, que buscam confusamente a sua reorganização política, econômica e social.
A polarização entre ricos e pobres é relativamente recente, em termos históricos. Paul Bairoch, ao estudar o processo de diferenciação entre 1770 e 2000, chega ao quadro comparativo seguinte:
2EVOLUÇÃO DO PRODUTO INTERNO BRUTO POR HABITANTE - 1770-1970 - EM DÓLARES E PREÇOS
DOS ESTADOS UNIDOS DE 1970 ---
Países 1770 1870 1970 --- Países desenvolvidos ocidentais 210 550a 3 300 Europa 220 560 2 500 Estados Unidos 550 4 900 Países subdesenvolvidos 170 160 340
2
Paul Bairoch, "Les écarts de niveaux de développement économique entre pays développés et pays sous-
développés de 1770 à 2000", Revue Tiers-Monde, Paris, 1971, p. 503 (n. 47). Paul Bairoch é um dos
América Latina 750 Ásia 260 África 270 ---
(a) Japão não incluído; com o Japão a cifra seria 510 dólares.
Dois fenômenos aparecem neste quadro: primeiro, vemos que praticamente até o limiar do século XX havia diferenças de PIB por habitante, mas globalmente o nível de vida era comparável. Enquanto isto, em 1970 já notamos uma diferenciação prodigiosa, e a diferença prevista por Bairoch para o ano 2000 era de 1:25, ou seja, uma produção por habitante 25 vezes maior no grupo de países ricos, relativamente aos países em desenvolvimento.
Como se apresenta a evolução mais recente do fenômeno? Partindo dos dados apresentados pelo relatório do Banco Mundial para 1999/2000, constatamos que estamos virando o século com 6 bilhões de habitantes, e um produto mundial da ordem de 30 trilhões de dólares, o que significa que o mundo produz 5 mil dólares de bens e serviços por pessoa e por ano, amplamente o suficiente para assegurar uma vida digna para todos, se o produto fosse distribuído com um mínimo de racionalide. Este ponto é importante, pois mostra um ponto que hoje está se tornando evidente para todos, de que o capitalismo é um bom sistema produtivo, mas não sabe distribuir: é estruturalmente incompleto.
É evidente que o próprio Terceiro Mundo apresenta uma grande diversidade interna, compreendendo exportadores de petróleo que atravessaram uma fase de grande disponibilidade de recursos, países semi-industrializados muito dinâmicos como os quatro
"tigres" asiáticos, gigantes de economia profundamente desequilibrada como o Brasil ou a Índia, e economias extremamente pobres como a maioria dos países asiáticos e africanos, além da China que segue em boa parte um caminho próprio, e ostenta há 12 anos um crescimento impressionante de mais de 10% ao ano.
Mas, no essencial, constatamos que a polarização se agravou muito rapidamente, sendo hoje da ordem de 1 para 30, mais do que Bairoch havia previsto. E é preciso lembrar que no próprio grupo de subdesenvolvidos há um conjunto de países, os menos desenvolvidos (Least Developed Countries) que sobrevivem com um produto nacional bruto médio de aproximadamente 300 a 500 dólares por ano e por pessoa, o que torna extremamente difícil qualquer esforço realista de desenvolvimento.
No conjunto, os países desenvolvidos são responsáveis por 23 trilhões, ou 80% do produto
mundial, apesar de representarem apenas 15% da população. O seu nível médio de renda
per capita é de 26 mil dólares de 1998. Os países de baixa renda, nos critérios do Banco
Mundial, representam 3,5 bilhões de pessoas, com um produto de 1,8 trilhões, e uma renda
per capita de 520 dólares. Os países de renda média, com 1,5 bilhões de habitantes, têm um
produto de 4,5 trilhões de dólares, e uma renda per capita de 3 mil dólares. Somando os
países de renda baixa e de renda média, chegamos a 5 bilhões de habitantes, com um
produto de 6,3 trilhões, e uma renda per capita de 1.250 dólares. Se compararmos a renda
por habitante dos países ricos, de 26 mil, com a dos países de renda baixa, 520, a relação é
de 1 para 50.
Pior ainda que a situação, são as tendências. As taxas anuais de crescimento dos diversos paises são bastante semelhantes, com exceção da China que, conforme vimos, tem um crescimento muito acelerado. No geral o mundo tem um crescimento anual por habitante situado entre 2 e 2,5%. Mas os pontos de partida sendo muito diferentes, estas porcentagens escondem uma polarização muito grande em termos absolutos. Assim é que 2% de aumento para os paises ricos representam um aumento absoluto de 500 dólares por pesssoa e por ano, enquanto 2,5% para os paises em desenvolvimento representariam um aumento anual de apenas 30 dólares. A porcentagem neste exemplo seria maior para os paises de renda baixa e média, mas a distância entre ricos e pobres aumentaria em 470 dólares. Na realidade, como é óbvio, os países pobres teriam de crescer a uma taxa incomparavelmente superior para a situação parar de se deteriorar, que dirá para alcançar os desenvolvidos.
Visto pelo lado das causas, não há muito mistério. Para desenvolver-se, um país precisa investir. Mas um país pode dedicar apenas uma parte dos seus fatores de produção ao investimento, pois precisa também produzir bens de consumo. Uma taxa de investimentos razoável situa-se, historicamente, entre 20 e 25% do produto. Isto significa que a Suíça, por exemplo, que ostenta uma renda per capita de 40 mil dólares, ao dedicar 20% ao investimento, poderá gastar 8 mil dólares por habitante e por ano em novas máquinas, universidades, tecnologia. Em contrapartida, nos países do terceiro mundo, com esta mesma taxa de investimentos, e partindo de um per capita de 1250 dólares, teremos um investimento de 250 dólares. Ou seja, os que deveriam investir mais, por estarem mais atrasados, investem 32 vezes menos, porque são mais pobres. O resultado é que, em termos relativos, os mais ricos vão ficando mais ricos, e os mais pobres relativamente mais pobres.
Um economista americano genial resumia a questão: os pobres são pobres, porque são pobres.
A dimensão do drama que se agrava é amplamente conhecida. Há duas décadas, o Clube de Roma resumia esta situação como segue: entre 1970 e 1975, o produto por habitante teria progredido de 180 dólares por ano nos países do Norte, de 80 dólares no Leste, e de 1 dólar no Sul. Em 1992, o Banco mundial estimava que em 1990, a renda per capita dos pobres teria aumentado de 2,4%, ou seja de 8 dólares, enquanto a dos ricos teria aumentado de 1,6%, ou seja de 338 dólares.
3Era a chamada década perdida.
O Banco Mundial, por sua vez, nos informava que "o nível de vida de milhões de pessoas na América Latina está agora mais baixo do que no início dos anos 1970. Na maioria dos paises da Africa sub-sahariana os niveis de vida cairam abaixo do que eram nos anos 1960.
(...) Para grande parte dos pobres do mundo, a década dos anos 1980 foi uma "década perdida" - realmente um desastre."
4"Entre 1980 e 1987", nos informava o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 1990 das Nações Unidas, "a parte dos paises em desenvolvimento no produto mundial caiu quase de 2 pontos, de 18,6% para 16,8% (...). Em 17 paises latinoamericanos e do Caribe a renda per capita caiu nos anos 1980. A renda média per capita na região sofreu um declínio de
3
- Banco Mundial - Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1992 - Washington 1992, p. 196, Tabela A.1.
4
7% entre 1980 e 1988, e de 16% se levarmos em conta a deterioração dos termos de troca e a saida de recursos."
5Dez anos mais tarde, o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano 2000 faz o balanço seguinte: “As desigualdades de renda aumentaram no século 20 numa ordem de magnitude sem comparação com qualquer coisa que já tivéssemos conhecido. A distância entre a renda dos paises mais ricos e mais pobres, era de cerca de 3 para 1 em 1820, 35 para um em 1950, 44 para 1 em 1973 e 72 para 1 em 1992...Enquanto isto, o crescimento econômico estagnou em muitos países em desenvolvimento. A taxa média de crescimento per capita em 1990-98 foi negativo ou estagnou em 50 países”.
6A amplitude do "desastre" está hoje atingindo a dimensão de uma tragédia planetária. Uma em cada seis pessoas do "Sul" sofre diariamente de fome. Cerca de 150 milhões de crianças de menos de 5 anos sofrem de desnutrição grave, ou seja, uma em cada três crianças.
Destas crianças morrem anualmente cerca de 11 milhões, a esmagadora maioria de subnutrição ou de doenças já dominadas nos paises desenvolvidos. As pessoas que não têm acesso a cuidados primarios de saúde ainda são mais de 1,5 bilhão. Quase 3 bilhões de pessoas, conforme vimos, não têm acesso a saneamento adequado. A mortalidade materna é doze vezes mais elevada nos nossos paises do que no "Norte". Cerca de 100 milhões de crianças em idade escolar estão fora da escola primária. Quase 900 milhões de adultos são analfabetos. Em média vivemos 12 anos a menos do que os habitantes do Norte. Mais de um bilhão de pessoas vivem em estado de pobreza absoluta.
Frente à dimensão da tragédia, a última década do século XX foi uma sucessão de
“balanços” mundiais: a constatação da destruição ambiental do planeta, na Eco-92; a tragédia dos direitos humanos no mundo, Viena-93; o drama da pressão demográfica, na conferência do Cairo-94; a situação da pobreza e a fratura social do planeta, em Copenhague-95; o balanço da explosão das cidades no mundo, em Istanbul-96. Ninguém mais desconhece a dimensão dos dramas que vivemos. No entanto, olhamos para o palco, e ficamos sentados, individualmente impotentes. É o que já é chamado de slow motion catastrophy, ou “catástrofe em câmara lenta”.
Como o Sul pode se sair com uma situação destas? A realidade é que o Norte dispõe de dezenas de milhares de dólares por habitante para comprar máquinas, realizar novos investimentos, aumentar ainda mais o seu per capita, e fazer de conta que não sabem o que acontece no planeta. Enquanto o Sul...
Hoje esta situação leva a uma crise internacional generalizada. Não é mais possível equilibrar o desenvolvimento de uma economia que se mundializou, quando os proveitos do desenvolvimento estão indo sempre para o mesmo lado, gerando processos cumulativos de enriquecimento e de empobrecimento relativo de cada lado da balança.
O mundo tem hoje, grosso modo, 1/5 de habitantes numa zona rica, o Norte, e 4/5 de habitantes na zona pobre. Em termos comparativos, a polarização atingida ultrapassa oque já se conheceu de polarização em qualquer país, e há limites às injustiças em qualquer sistema. As cifras aqui apresentadas são subestimadas, na medida em que trabalhamos com
5
- Human Development Report 1990 - United Nations - páginas 25 e 34.
6