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Mulheres e memórias : uma análise da historiografia sobre a ditadura militar brasileira

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS. PRÍSCILA PAULA DE SOUSA. MULHERES E MEMÓRIAS: UMA ANÁLISE DA HISTORIOGRAFIA SOBRE A DITADURA MILITAR BRASILEIRA. CAMPINAS 2016.

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(4) UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS. A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 01 de fevereiro de 2016, considerou a candidata Príscila Paula de Sousa aprovada.. Profa. Dra. Aline Vieira de Carvalho Profa. Dra. Susel Oliveira da Rosa Profa. Dra. Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel. A ata de defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna..

(5) Dedico a minha mãe, Rosimar e ao meu pai, Paulo.

(6) AGRADECIMENTOS A todos os funcionários e corpo docente do departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, em especial aos bibliotecários, muito obrigada! Agradeço também a Capes, pois sem o fomento esse trabalho não teria sido possível. À todo o carinho e doçura de Susel Rosa e Carô Murgel que me deram o privilégio de participar da minha banca de Qualificação, ler meu trabalho e fazer suas considerações com tanto carinho. À minha orientadora, professora Aline Vieira de Carvalho, por todas as sugestões e considerações tão pertinentes, as discussões e o auxílio no encontro desse tema e na construção desse trabalho. Agradeço aos professores com os quais tive o prazer de conviver e aprender. Além de minha orientadora, tive o prazer de ter como professora a Aline Carvalho. Agradeço também ao professor Pedro Paulo Abreu Funari. Especialmente à professora Margareth Rago, cujas aulas me proporcionaram leituras e diálogos que tanto me fizeram refletir sobre o ser no mundo, a liberdade e a condição feminina com todas as suas implicações, inclusive na historiografia. Agradeço primeiramente aos meus pais, Rosimar e Paulo, que desde o princípio de minha vida, sacrificaram seus sonhos pelos meus. Por todo o apoio incondicional nos momentos de tensão e de decisões a tomar. Pela compreensão nos muitos finais de semana em que não voltei para nossa casa, explicando: “não posso, tenho muita coisa para estudar e estou atrasada.” Meu amor por vocês é inexplicável. Aos meus irmãos, pelos quais tenho um sentimento meio misturado de mãe e irmã, obrigada! Bianca e Paulo Felipe, apesar de separados pelo Mestrado/Faculdade, todos os nossos encontros são maravilhosos e me ajudaram a esquecer um pouco a pressão. Devo agradecer a toda a minha família. Meus avós Dário e Celi, Amadeus e Irondina, que com suas palavras carinhosas e alguns mimos, demonstraram sempre seu carinho e apoio a essa jornada, muitas vezes incompreendida por eles. Também a todos os meus primos e tios que me apoiaram e ajudaram sempre, cada um a sua maneira, mas como são muitos, não citarei todos os nomes. Em especial, a minha prima Poliany, que partilhou de perto cada passo dessa caminhada, ouvindo, ponderando, aconselhando, vibrando com as conquistas. Sou muito grata por ter podido partilhar esse tempo com você..

(7) Ao meu namorado Vinícius, por todo o apoio, dedicação e paciência com que me acompanhou durante esses anos. Muito obrigada por ter sempre uma palavra que acalma ou um gesto acolhedor quando as coisas pareceram insuportáveis ou irremediáveis. Agradeço imensamente às amizades que construí ao longo do Mestrado. Pelo grande conhecimento e ponderações precisas da Marilea Almeida. Pela doçura da Ester Sartori. Por todo o companheirismo da amada Jocyane Bareta. Pelo auxílio e apoio do querido Varlei Couto. Saibam que vocês foram peças fundamentais desse trabalho e do crescimento pessoal que adquiri nesses anos..

(8) Não se trata, então, de voltar o olhar atrás, ao passado da ditadura, para gravar a imagem contemplativa do padecido e do resistido em um presente, onde tal imagem se incruste miticamente como lembrança, mas de abrir fissuras nos blocos de sentido que a história encerra, como passados e finitos, para quebrar suas verdades unilaterais, com as pregas e as dobras da interrogação crítica.” Nelly Richard.

(9) RESUMO A proposta neste trabalho é analisar a forma como a historiografia sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) tem abordado as mulheres que viveram o período e suas memórias. Para a escolha da bibliografia foi adotado um critério de seleção baseado na avaliação realizada pela Capes dos Programas de Pós Graduação, a fim de determinar quais seriam as instituições cujas bibliografias básicas dos cursos de graduação em História o trabalho se debruçaria. A partir disso, foi possível elencar três das obras que são mais exploradas nesses cursos, a saber: O combate nas Trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, de Jacob Gorender; Estado e Oposição no Brasil (1964 – 1984), de Maria Helena Moreira Alves; O Brasil Republicano, vol. 4: O tempo da ditadura, de Lucilia Almeida Neves e Jorge Ferreira. Diante disso, podemos inferir que são livros de conteúdo bastante relevante para a formação de historiadores, uma vez que foram considerados básicos pelos professores universitários para tratar o período. Nesses livros, encontramos poucas referências às mulheres no período ditatorial, em sua maioria, simplesmente referenciadas por sua vinculação a figuras masculinas. Diante dessas estruturas, optamos por escrever um breve histórico da vida militante de algumas delas, colocando-as assim em uma espécie de protagonismo narrativo. As análises das obras tiveram como pano de fundo as seguintes discussões teóricas: questões de gênero e como as diferenças de gênero se apresentaram às mulheres militantes em sua vida familiar, social, política e no trato recebido pela repressão; Memória coletiva, de períodos de trauma e memória feminina; Configurações da história das mulheres; As especificidades de uma escrita feminina e de uma história feminista.. Palavras-Chave:. Memórias;. História. Historiografia sobre Ditadura no Brasil.. das. mulheres;. Ditadura. Militar. brasileira;.

(10) ABSTRACT This work proposes to analyze how the historiography of the Brazilian military dictatorship (1964-1985) has talked about women who lived through this period and their memories. The bibliography selected to be discussed in this work pertains basic bibliographies in History undergraduate courses in institutions which were chosen based on Capes’s evaluation of graduate programs. Among them, it was possible to select three works which are further explored in these courses, namely: Fighting in the Darkness - The Brazilian Left: the illusions lost to armed struggle (O combate nas Trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada) by Jacob Gorender; State and Opposition in Military Brazil by Maria Helena Moreira Alves, The Republican Brazil, vol. 4: The dictatorship time (O Brasil Republicano, vol. 4: O tempo da ditadura) by Lucilia Almeida Neves and Jorge Ferreira. Therefore, one can infer that these are books with very relevant content for the education of historians, since they were considered essential by academics to discuss the dictatorial period. However, we find few references to women in these books, in which they are mostly referenced only by their connection to male figures. Given these structures, we decided to write a brief history of some of these women’s militant life, thereby granting them some kind of narrative protagonism. The analyses of the works had the following theoretical discussions as background: gender and how gender differences manifested in these militant women’s family, social, and political life, as well as in the treatment they received from the regime’s repression; Collective memory of periods of trauma and feminine memory; Settings of Women’s history ; The specifics of women's writing and feminist history.. Keywords:. Memories; Women’s history; Brazilian Military dictatorship; Historiography of dictatorship in Brazil..

(11) Sumário APRESENTAÇÃO........................................................................................................... 12 As obras escolhidas. 17. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984) ................................................................ 23 O combate nas Trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada 26 O Brasil Republicano, v.4: o tempo da ditadura ...................................................... 29 1.. CAPÍTULO 1 – A CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS E DA HISTÓRIA ................... 32 1.1.. Memórias Coletivas: algumas ponderações ............................................................. 32. 1.2.. As muitas manifestações das Memórias ................................................................... 39 1.2.1.. Memórias femininas .................................................................................... 51. 2. CAPÍTULO 2 – AS MEMÓRIAS DAS EXPERIÊNCIAS DAS MULHERES NA DITADURA MILITAR BRASILEIRA ................................................................................... 57 2.1.. Oprimidas e revolucionárias ..................................................................................... 60. 2.2.. Relações de gênero durante o período ditatorial ...................................................... 66. 2.3. 3.. 2.2.1.. Repressões ................................................................................................... 67. 2.2.2.. Esquerdas .................................................................................................... 75. Escrita feminina na história das mulheres ................................................................ 80. CAPÍTULO 3 – ANÁLISES DAS OBRAS ..................................................................... 89 3.1.. As memórias nas obras ............................................................................................. 89 3.1.1.. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984)................................................... 89. 3.1.2. O combate nas Trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada 97 3.1.3. 3.2.. O Brasil republicano, v. 4: o tempo da ditadura........................................ 101. As mulheres nas Obras ........................................................................................... 106 3.2.1.. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984)................................................. 107. 3.2.2. Combate nas Trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada 111 3.2.3.. O Brasil republicano, v. 4: o tempo da ditadura........................................ 133. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 150 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 162 ANEXOS ........................................................................................................................ 178.

(12) 12. APRESENTAÇÃO Esse trabalho pretende tocar na ferida aberta pela ditadura. As feridas das vítimas do Regime, sendo ex-presos, exilados, torturados, familiares de vítimas que sobreviveram e estiveram em seu convívio, as famílias daqueles que desapareceram, bem como todos os brasileiros que perderam o direito a manifestar abertamente sua opinião política, escrever, ler ou produzir arte com cunho questionador ao governo, enfim, toda a população brasileira que se viu assolada pela repressão de extrema amplitude que se abateu sobre suas vidas. Por todas essas chagas – e a presença constante dos defensores da ditadura em nossa contemporaneidade – é que se acredita de extrema importância que, mais uma vez, se fale, discuta e problematize a ditadura militar brasileira, suas representações e heranças à sociedade. Nesse sentido, esse trabalho aborda o período ditatorial a partir da forma como alguns autores escolheram apresentá-lo em suas produções historiográficas e, mais que isso, qual enfoque as Universidades tem dado sobre o assunto. A historiografia que trata do período ditatorial no Brasil é produzida por diversos autores sob diferentes perspectivas. As obras, frutos dessas pesquisas, são bases para a formação dos historiadores nas universidades. Alguns livros, porém, são amplamente utilizados pelas instituições, outros, pouco lembrados. Essa predileção por alguns trabalhos em detrimento de outros nos fornece informações importantes sobre os temas, abordagens e fontes que têm sido consideradas indispensáveis ao se tratar o período no Brasil. Afinal, se uma obra aparece como parte da bibliografia básica de muitos cursos de História pelo país, entende-se que ela atende às demandas da maioria dos historiadores, professores responsáveis pela elaboração dessas mesmas bibliografias. Além disso, ela se torna a base dos conhecimentos dos graduandos, futuros pesquisadores e, portanto, poderão ter influência nas obras vindouras sobre o assunto. Com isso, podemos perceber que a indicação de um livro nessas relações bibliográficas não é um ato simples, esvaziado de sentido, e que tem um alcance longo nas pesquisas acadêmicas do país. Pontuados os motivos pelos quais essas obras predominantes são consideradas importantes e de grande impacto para a historiografia, esse trabalho parte das bibliografias básicas das disciplinas que tratam o período ditatorial nas graduações em História de todo o país, a fim de identificar quais são essas obras. Para isso, foram exploradas as bibliografias básicas de diferentes disciplinas, responsáveis pelos estudos dos anos 1964 a 1985, a fim de identificar e.

(13) 13. elencar o número de vezes que esses livros aparecem nos programas. Ao todo, foram analisadas as bibliografias de quatorze universidades públicas brasileiras. Após esse levantamento, o objetivo neste trabalho é debruçar-se sobre a análise da forma como tais obras contemplam as memórias dos indivíduos, principalmente as mulheres, que atuaram no período, como fontes de estudo, e se tais mulheres têm sido abordadas e encaradas enquanto personagens importantes da história desse período. A escolha dessas duas temáticas: memórias e mulheres, parte do entendimento de que uma ampla abordagem da história da ditadura militar no Brasil, não pode ser feita sem considerar as histórias de cada uma das pessoas, relatadas através de suas memórias individuais uma vez que a construção de uma memória coletiva dos grupos que atuaram no período passa pela aglutinação de memórias individuais, que podem ser convergentes ou divergentes. Seja como for, entendemos as diversas manifestações da memória como a maneira de acessar pontos de vista particulares, diferenciados e únicos, motivos pelos quais os testemunhos nos são tão caros. Foi crucial para esse trabalho, olhar mais atentamente para essas questões relacionadas às memórias, a fim de analisar a abordagem que a historiografia faz delas e, portanto, o capítulo um, intitulado A construção das memórias e da história, se dedica a elas e suas diferentes manifestações. Isso, pois, acreditamos na premissa que: Pequenos relatos que podemos escutar [...] tanto no silêncio da escritura como na voz trêmula do testemunho que dá conta de uma memória traumática, compartilhada; na história de vida que se oferece ao pesquisador como característica emblemática do social; no ‘documental subjetivo’ [...], na instalação de artes visuais composta por objetos íntimos, pessoais, no teatro como ‘biodrama’ ou nas imagens – frequentemente sem voz – da catástrofe e o sofrimento, que os meios converteram em um dos registros paradigmáticos da época. (ARFUCH, 2009, p. 2).1. A estudiosa dos discursos biográficos, Leonor Arfuch, ainda aponta para a ineficácia e dispensabilidade de se fazer juízos de valor sobre qual desses tipos de manifestação da memória teria maior ou menor valia, sendo todos discursos que buscam a reconfiguração da subjetividade e afirmação de identidades (ARFUCH, 2009). Assim, quando se busca as memórias na composição das obras historiográficas, procuram-se todos esses tipos de manifestação do que os 1. Trecho original: “Pequeños relatos que podemos escuchar [...] tanto en el silencio de la escritura como en la voz trémula del testimonio que da cuenta de una memoria traumática, compartida; en la historia de vida que se ofrece al investigador como rasgo emblemático de lo social; en el ‘documental subjetivo’ [...], en la instalación de artes visuales compuesta por objetos íntimos, personales, en el teatro como ‘biodrama’ o en las imágenes – a menudo sin voz – de la catástrofe y el sufrimento, que los médios han convertido en uno de los registros paradigmáticos de la época.”.

(14) 14. indivíduos que viveram o período de trauma, que foi a ditadura militar, quiseram relatar sobre o mesmo. As lembranças e recordações, enfim, as memórias, têm função matricial para a escrita feminina que, como aponta a teórica literária Lúcia Helena Vianna (2004), é subversiva. Como foram também subversivas e contestadoras as mulheres que se opuseram à ditadura militar e resistiram a ela. Por esse vínculo entre memórias femininas e escrita feminina, é importante discutir as formas de manifestação das memórias das mulheres, como faremos ao final do capítulo um, o que nos leva as questões sobre suas trajetórias durante a ditadura militar e as características dessa escrita, o que será apresentado no capítulo dois. Tal capítulo abarca também as questões relacionadas ao gênero, a participação das mulheres na ditadura militar e as especificidades da história das mulheres. Tais memórias femininas sobre o período da ditadura militar não nos são apresentadas em grande escala, seja porque as produções biográficas ou autobiográficas não são tão numerosas, seja porque ainda hoje é preciso lutar pelos espaços de representação dessas memórias. Não é demais lembrar, mais uma vez, como as mulheres estiveram presentes nas lutas de resistência às ditaduras militares implantadas na América Latina, nos anos setenta e, paradoxalmente, como têm estado ausentes, com algumas exceções, nos textos históricos e nas produções biográficas e autobiográficas, em que se narram os trágicos acontecimentos que marcam dolorosamente esse período. Não é demais insistir sobre a importância de ouvir suas vozes e de escutar atentamente os seus depoimentos e testemunhos, especialmente quando desfazem as mentiras oficiais, revelam episódios que muitos gostariam de calar e expõem a nu a violência física exercida sobre seus corpos, nas prisões, em sessões de interrogatório e tortura, ou ainda, a violência simbólica em suas inúmeras dimensões. (RAGO, 2009 [s.f]).. Diante disso, pode-se esperar que a história do período venha contemplando as mulheres e sendo produzida também a partir delas e não somente sobre os homens e para eles e é por isso que nesse trabalho se busca a inserção das mulheres na historiografia e a forma como vem sendo abordada. Bem como, espera-se que a bibliografia considerada básica para uma compreensão do período contemple também as memórias e as mulheres. Isso porque se propõe que a “pluralidade da história não seja obliterada pelas narrativas pretensamente universais, sempre excludentes e estigmatizadoras, criando-se espaços para a expressão diferenciada da memória de todos os setores sociais.” (RAGO, 2009 [s.f]). Em tempo, a afirmação de Margareth Rago de que o trabalho historiográfico sobre as mulheres na ditadura é escasso, não implica em total ausência. Algumas obras autobiográficas e.

(15) 15. outras historiográficas baseadas em memórias de mulheres militantes foram produzidas no país e, embora não seja nosso propósito elencar tais publicações, ao longo desse trabalho aparecerão algumas delas e se discutirá melhor a prática da escrita pelas mulheres. Essas considerações, feitas até o momento sobre as mulheres no período ditatorial, serão ampliadas no segundo capítulo. Ainda sobre essa opção pela análise das mulheres na historiografia, assume-se o papel da busca por uma história das mulheres que não se pretende imparcial, mas consciente de que “A análise do poder das mulheres também é um jogo de poder” (PERROT, 1992, p.172). É, portanto, uma posição assumida em busca de uma escrita da história que não apague as mulheres, mas abra espaço para que se demonstrem suas múltiplas formas de resistência, desde a resistência ao machismo cotidiano até ao regime ditatorial. Afinal, como frisou a historiadora francesa Michelle Perrot, As mulheres não são passivas nem submissas. A miséria, a opressão, a dominação, por reais que sejam, não bastam para contar a sua história. Elas estão presentes aqui e além. Elas são diferentes. Elas se afirmam por outras palavras, outros gestos. Na cidade, na própria fábrica, elas têm outras práticas cotidianas, formas concretas de resistência – à hierarquia, à disciplina – que derrotam a racionalidade do poder, enxertadas sobre seu uso próprio do tempo e do espaço. Elas traçam um caminho que é preciso reencontrar. Uma outra história. Uma outra história. (PERROT, 1992, p. 212).. Importa pontuar, antes de prosseguirmos, algumas considerações sobre termos que serão utilizados ao longo desse trabalho. Primeiramente, ao afirmar que este trabalho busca analisar como as ‘mulheres’ foram representadas na historiografia sobre a ditadura, não se ignora que o termo ‘mulheres’ não abrange um grupo homogêneo e que, longe de encarar tal termo como uma distinção biológica binária que opõe homens e mulheres, entende que a constituição do gênero feminino é mais complexa no sentido da abrangência cultural e social do que implica esse termo. Essa problemática da terminologia será explorada no capítulo dois desse trabalho, mas por hora, vale esclarecer que, o termo ‘mulheres’ será mantido aqui como definição de um grupo sabidamente heterogêneo. O termo utilizado para denominar a ditadura militar no Brasil e o período aqui considerado como tendo sido sua duração tem sido temas de discussões na historiografia. Muitos historiadores, como por exemplo Carlos Fico (2014), defendem que o golpe foi civil-militar, tendo em vista que não foram somente os militares que o proporcionaram, mas também parte da população civil – membros da Igreja Católica e do empresariado – estiveram de acordo e tiveram.

(16) 16. significativa participação no mesmo. Isso fica claro quando lembramos que, embora variados setores das Forças Armadas estivessem se mobilizando para efetivar o Golpe (GORENDER, 1987), foram civis no Congresso Nacional que depuseram o presidente João Goulart de seu cargo, declarando vaga a Presidência da República em Sessão Extraordinária de 02 de abril de 1964 (ALVES, 2005). Nesse sentido, o Golpe não foi somente Militar. Apesar disso, Maria Helena Moreira Alves (2005) demonstra que uma parcela da sociedade civil que apoiou o golpe, logo na implantação do primeiro dos Atos Institucionais, deixou de apoiar o regime. Tendo ciência dessas questões, nesse trabalho, utilizaremos o termo ‘ditadura militar’, ao qual o próprio Carlos Fico, citado acima, não é contrário (FICO, 2014) para referenciar os anos de poder instituído. Isso porque, se adotamos o termo ‘civil-militar’, incluímos toda a sociedade brasileira como participante do poder ditatorial, afinal, por definição, o que não é civil é, automaticamente, militar e sendo assim, poderíamos então falar em ‘ditadura’ somente, visto que os outros dois termos se anulariam. Outro motivo para manter o termo ‘ditadura/regime militar’ é entender que, apesar de os militares terem recebido o apoio de diversas camadas da sociedade civil, foram majoritariamente os oficiais do exército que mantiveram a ditadura através de seu aparato repressivo e da opressão – inclui-se aqui prisão, tortura e desaparecimento – aos ‘subversivos’, aos militares que não apoiaram o golpe ou o regime e aos civis. Muito importante também é esclarecer que não se nega, de forma alguma, que o Exército tenha tido a conivência de boa parte da população nos anos ditatoriais e que o golpe teve participação ativa de civis. Não foram tais civis, porém, que se mantiveram no poder central durante esses 21 anos e encabeçaram os principais serviços de inteligência e órgãos repressivos. Conforme apontamos há pouco, outra discussão que perpassa a historiografia sobre a ditadura, versa sobre seu tempo de duração. Manteremos como princípio o golpe de março de 1964 e o fim com o início do mandato do primeiro presidente civil, depois dos sucessivos ditadores militares, em 1985. Sabe-se, porém, que a abertura democrática foi gradual, como qualquer acontecimento na história e, portanto, as datas de início e fim são aqui vistas como recortes temporais do estudo e não como marcos definidores de grandes feitos isolados que mudaram o país. Dito isso, pretende-se demonstrar que a terminologia e a cronologia foram questionadas e consideradas nesse trabalho, bem como definir os motivos para sua adoção em detrimento de outros..

(17) 17. Apresentadas então as questões principais sobre as quais esse trabalho vem discutir e feitas as considerações teóricas e discussões necessárias, no capítulo três estão dispostas as análises das três obras, quanto ao tratamento dado por elas às memórias e às questões ligadas às mulheres. Antes, viu-se a necessidade de demonstrar os caminhos percorridos para se chegar a eles, bem como uma breve apresentação dos mesmos, como será feito a seguir.. As obras escolhidas Visto que este trabalho analisará como as memórias e as mulheres que vivenciaram o período ditatorial estão sendo abordadas nas obras historiográficas, foi preciso, primeiramente, selecionar quais seriam essas obras. Para isso, foram pesquisadas as bibliografias básicas dos cursos brasileiros de graduação em História, pois entende-se que se uma obra foi escolhida como básica para o conhecimento de um assunto ou período por historiadores especialistas no tema – que elaboraram essa relação de livros – ela é tida pelos mesmos como essencial para a compreensão desse assunto. Uma vez que as obras elencadas são trabalhadas em sala de aula nos cursos de graduação, sabe-se que embasarão o conhecimento de muitos estudantes que podem vir a produzir novas pesquisas a respeito do tema. Por esses motivos, acredita-se que essas bibliografias básicas são bons indicadores de quais obras historiográficas devem ser consultadas. Sabe-se que as bibliografias básicas que constam nos Programas das disciplinas que tratam o Regime ditatorial, nem sempre reproduzem exatamente as obras utilizadas pelos professores cotidianamente, podendo divergir de seus Cronogramas semestrais ou anuais. Esses, por sua vez, são modificados sempre que o professor sente a necessidade de fazê-lo e que, portanto, respondem aos interesses do professor responsável pela disciplina no momento da elaboração desse Cronograma. De qualquer forma, conste em Cronogramas semestrais ou bibliografias básicas, as relações de livros indicados pelos professores como bases para conhecer determinado assunto são indicadores dos discursos construídos dentro das Universidades, uma vez que não é o aluno quem escolhe essa bibliografia, ela é apresentada a ele pelo professor, segundo os temas, abordagens e fontes que lhes são mais caras, indicando sempre as obras que melhor atendem às suas questões e interesses. Dessa forma, os professores são responsáveis pela construção de alguns referenciais temáticos (assim como os cânones para a leitura) sobre determinado período histórico e a exclusão de outros. Nesse sentido, aponta o filósofo francês Michel Foucault que há um conjunto.

(18) 18. de regras criadas em uma dada época e sociedade que definem os limites e as formas do que é dizível. Entre elas, o filósofo aponta quais são as questões norteadoras, que limitam e dão forma ao que será conservado em cada sociedade: [...] quais são os enunciados destinados a não deixar traço? Quais são, ao contrário, destinados a entrar na memória dos homens (pela recitação ritual, a pedagogia, o ensino, a distração ou a festa, a publicidade)? Quais são anotados para poder ser reutilizados e com que fins? Quais são colocados em circulação e em quais grupos? Quais são aqueles que são reprimidos e censurados? (FOUCAULT, 1954-1969, p. 681-682, tradução nossa).2. Refletindo sobre isso, a filósofa feminista Judith Butler aponta para o poder autorizador que permite escolher o que chama de “posição” e que aqui podemos atribuir à escolha dessas obras por parte dos professores. A autora nota, porém, que por mais que se faça opções a partir de um determinado poder – nesse caso, o de ser professor – o ser é também constituído por suas opções (BUTLER, 1998, p. 23). Mais uma vez, vemos que o professor faz suas escolhas teóricas e é composto por elas, em outras palavras, suas opções refletem o que lhe interessa sobre determinado assunto e, no caso das bibliografias básicas que são base de pesquisa nesse trabalho, essa tomada de posição influencia diretamente a formação de outros pesquisadores. Obviamente, não se exclui aqui a autonomia dos alunos e sua opção de buscar outras bibliografias que melhor contemplem seus interesses e, nesse caso, tomar contato com obras outras que não as indicadas pelos seus docentes. Esta, porém, será uma busca individual e nas salas de aula prevalecerão como referências os livros escolhidos pelo professor. Ou seja, ainda que não se ignore a independência de pesquisa de cada aluno, a bibliografia básica continua sendo fundamental em sua formação e um referencial para aqueles que iniciam uma pesquisa sobre a temática. Pois bem, sabendo-se que não seria possível trabalhar aqui todas as obras que compõem os Programas Pedagógicos dos inúmeros cursos superiores de História, por ser um número muito volumoso, optou-se por alguns critérios de seleção das Universidades cujas bibliografias dos cursos seriam analisadas e, deste modo, construiu-se uma metodologia de pesquisa: 1. Universidades que possuem curso de Bacharelado em História, pois este trabalho. 2. Trecho original: “les limites et les formes de la conservation: quels sont les énoncés destinés à passer sans traces? Les quels sontdestinés au contraire à entre dans la mémoire dês hommes (par la récitation rituelle, la pédagogie et l’enseignement, ladistraction ou la fête, l apublicité)? Et quels sont notes pour pouvoir être réutilisés, et à quelle fins? Les quels sont mis en circulation et dans quels groupes? Quels sont ceux qui sontré primés et censurés?”.

(19) 19. visa analisar a historiografia abordada na formação de historiadores pesquisadores3; 2. Universidades nas quais os Programas de Pós-Graduação (PPGs) em História possuem nota igual ou superior a cinco na avaliação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoas de Nível Superior). Pode parecer contraditório utilizar o conceito Capes das pós-graduações enquanto esse trabalho parte das bibliografias dos cursos de graduação. Isso, porém, se explica porque os graduandos dessas instituições de ensino contam com os mesmos professores da Pós, responsáveis pela maioria dos pontos recebidos nas avaliações, afinal são pivôs do desenvolvimento teórico dos cursos. Igualmente, os graduandos podem usufruir dos núcleos de pesquisa e centros documentais oferecidos pelas Universidades, que também são itens somadores de pontos. Além disso, durante a avaliação o PPG deve apresentar um histórico da Graduação no curso, que também será levado em conta na pontuação (CAPES, 2014). A avaliação afere notas finais de um a sete e seu resultado é utilizado pelo Conselho Nacional de Educação/Ministério da Educação (CNE/MEC) como critério para a renovação de reconhecimento dos cursos de Pós-Graduação que obtiveram nota maior ou igual a três. Válido pelos três anos seguintes à divulgação dos resultados, o programa conta com acompanhamento anual através de seminários realizados na própria Capes, aos quais comparecem todos os coordenadores dos Programas (CAPES, 2013b). O processo de avaliação habilita os Programas reconhecidos a expedirem diplomas de Mestrado e Doutorado válidos em todo o país (CAPES, 2014). Analisando, pois, os critérios de avaliação da Capes4, pode-se perceber que a Universidade que recebe uma boa avaliação do seu Programa de Pós-Graduação pela Capes, conta com: infraestrutura, pesquisadores qualificados e produções de trabalhos que refletem, inevitavelmente, nos seus cursos de Graduação, seja na constituição de seus Programas Políticos Pedagógicos, seja no andamento das disciplinas. Por esse motivo, as ementas dos cursos de Graduação das Universidades cujos PPGs são avaliadas entre cinco e sete pontos nos quesitos Mestrado Acadêmico e Doutorado, foram escolhidas como critério de seleção das obras a serem analisadas por esse trabalho. 3. Por esse motivo, os cursos que possuem nota igual ou superior a 5 e dedicam-se exclusivamente a Licenciatura, portanto, voltados ao ensino da disciplina, não foram contemplados. 4 Para mais informações consultar ‘Ficha de Avaliação’ em Relatório de Avaliação Trienal. Disponível em: <https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=Y2FwZXMuZ292LmJyfHRyaWVuYWwtMjAxM3xneDoy YzI0MDkwZTBlNWRjM2M0 >. Acesso em 20 abr. 2014..

(20) 20. Pois bem, dos cursos de Pós-Graduação analisados pela Avaliação Trienal 2013, entre 2010 a 2012, temos quinze cujas notas são iguais ou superiores a cinco. Das quais, apenas dois dos Programas de Pós-Graduação avaliados foram especificamente os de História Social, USP e UFRJ5. Os demais são todos programas de História, sem subdivisões (CAPES, 2013a). Abaixo, segue tabela ilustrativa desses dados, bem como a disciplina6 cuja bibliografia básica foi utilizada para seleção das obras, além da data de sua elaboração (quando constava), uma vez que podem ter sido modificadas, visto que o levantamento foi realizado entre os meados dos anos 2013 e 2014:. Nota Capes 7 7. Universidades UFF UNICAMP. PPG avaliado pela Capes História História. 6. USP. História Social. 6 6 6 5 5 5. UFRJ UFRGS UFMG UNESP/Fr UFSC UFPR. História Social História História História História História. 5 5 5 5 5 5. UFPA UFJF UFG UFES UERJ PUC/RS. História História História História História História. Data da Disciplina (Graduação) Bibliografia 2º semestre/2013 História do Brasil IV 2º semestre/2013 História do Brasil IV História do Brasil Independente Janeiro/2011 II História do Brasil -----Contemporâneo 1º semestre/2011 História do Brasil IV -----História do Brasil IV Março/2013 História do Brasil VI Junho/2006 História do Brasil Republicano II Novembro/2012 História do Brasil IV Outubro/2011 História do Brasil Republicano (1945 - tempo presente) História do Brasil Republica III História do Brasil IV História do Brasil República História do Brasil V História do Brasil Republicano. -----Fevereiro/2013 -----1º semestre/2006 2º semestre/2014. Notas atribuídas pela Capes a cada um dos PPG; Disciplinas cujas Bibliografias foram analisadas e data de elaboração/vigência das mesmas.. Tendo sido esmiuçados os cursos de graduação selecionados e como se chegou a eles, passemos às obras encontradas em suas bibliografias básicas que tratam da ditadura Militar no Brasil, nas quinze Universidades selecionadas. Ao todo, foram encontrados 121 livros que abordam o período de 1964 a 1985, sendo cada um deles citados por uma ou mais Universidades. 5. Ver tabela 1em Anexos, p. 178. Visto que o trabalho visa analisar o que tem sido considerado básico nos cursos, não foram consideradas as disciplinas eletivas. 6.

(21) 21. Dentre todas essas obras, nesse trabalho serão analisadas três das que compõem pelo menos seis das bibliografias, ou seja, que estão presentes em seis ou mais cursos de História analisados nesse trabalho7. Isso por entender que, se esse número de especialistas no período acreditou que essas obras eram essenciais para o conhecimento do mesmo, incluindo-os nas bibliografias que elaboraram, tais livros expressam os interesses de boa parte dos pesquisadores e suas abordagens e temas foram estudados por muitos alunos e futuros historiadores. A tabela a seguir ilustra quais são essas obras, citadas ao menos seis vezes, a data da primeira publicação das mesmas e quais são as universidades nas quais têm sido abordadas:. 7. Ver tabela 2, em Anexos, p. 182..

(22) x. 7. 6. 5. 5. 5. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. x. PUC/RS. x. UERJ. UFJF. x. UFES. UFPA. x. UFG. UFPR. x. UFSC. x. x. UNESP. 8. UFMG. x. UFRGS. x. UFRJ. 10. USP. UNICAMP. DELGADO, Lucilia A. N.; FERREIRA, Jorge (org.). O Brasil Republicano, vol. 4. O tempo da ditadura. 2003. DREIFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado - Ação política, poder e golpe de classe. 1981. ALVES, Maria H. M. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 1985. FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel A. As esquerdas no Brasil, vol. 3: Revolução e Democracia. 2007. FICO, Carlos. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. 2004. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: A esquerda brasileira - Das ilusões perdidas à luta armada. 1987. TOLEDO, Caio N. 1964: visões críticas do golpe - Democracia e reformas no populismo. 1997.. N º de citações. UFF. LIVROS CITADOS. x. Número de vezes em que cada uma das três obras (em destaque) a serem analisadas foram citadas nas bibliografias básicas dos cursos e as respectivas instituições que o fizeram, constando data da primeira publicação.. 22 22.

(23) 23. Destas, optou-se por se debruçar sobre três: uma obra escrita por uma mulher, Estado e Oposição no Brasil (1964-1984), Maria Helena Moreira Alves, 1984; uma que tenha sido escrita por um homem: O combate nas trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, de Jacob Gorender, 1987; o terceiro livro selecionado foi organizado por uma mulher, Lucilia de Almeida Neves Delgado e um homem, Jorge Ferreira, sendo: O Brasil Republicano, v. 4: O tempo da ditadura, 2003. Foram escolhidos pois, visto que esse trabalho analisa o tratamento dado às memórias e às mulheres na historiografia e discute questões como a história das mulheres e a escrita feminina, acreditou-se mais ajustado apresentar uma abordagem historiográfica feminina e uma masculina sobre os temas e o período, bem como uma onde as duas se complementassem. Apontados os motivos, apresentamos brevemente as obras e seus autores.. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984) O livro Estado e oposição no Brasil (1964-1984) é usado pela UFRGS, UFMG, UNESP, UFSC, UFPR, UFJF e PUC/RS, totalizando sete universidades. Maria Helena Moreira Alves foi professora, atualmente aposentada, de Ciência Política e Economia da UERJ, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estado onde nasceu (NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA [s.d]). Filha de Branca de Mello Franco Alves, uma mulher ativa no meio católico, coordenadora do Movimento de Ação Católica dos Meios Independentes e membro da Comissão do Apostolado Leigo do Vaticano (ABREU, 2001). Seu pai e irmão exerceram cargos políticos durante a ditadura. O pai, Marcio de Mello Franco Alves, foi secretário de finanças do Estado da Guanabara durante os anos de 1965 e 1971 e o irmão foi o deputado do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), Marcio Moreira Alves (SOUZA [s.d]). Sobre a filiação e maiores detalhes da vida não profissional da autora, as informações são bastante escassas, diferente do que ocorre com seu irmão, o que é significativo e vem de encontro com as lacunas que encontraremos sobre as mulheres na historiografia. A carreira acadêmica de Maria Helena Moreira Alves, da Graduação ao Doutorado, foi trilhada nos Estados Unidos. Em 1975, graduou-se na University of Massachusetts. Fez mestrado e doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT),.

(24) 24. concluídos em 1977 e 1982, respectivamente. No mesmo país, lecionou “Estudos Latinoamericanos” na Amherst College e “Política dos Estados Unidos” e “Relações Internacionais” na University of Manchester (ALVES, 2006). Sua tese de doutorado foi precursora do livro, que teve sua primeira edição brasileira em 1984 e em inglês, pela Texas University Express (ALVES, 2005), em 1985, intitulado Stateand Opposition in Military Brazil. Questionada em entrevista sobre as motivações que a levaram à pesquisa durante o Doutorado, Maria Helena Moreira Alves enfatiza que queria entender melhor como os militares pensaram e efetivaram a ditadura no Brasil e como a sociedade civil se organizou enquanto oposição, bem como a formação partidária que gerou frutos tardios como o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Segundo ela, A motivação foi acadêmica e política, no sentido de que era necessário compreender melhor os conceitos básicos do Estado formado pelos militares e sua relação com a sociedade civil que nunca deixou de questionar e se organizar contra o golpe nas diferentes correntes políticas e classes sociais (ALVES apud. SOUZA [s.d]).. Maria Helena Moreira Alves inicia o livro revelando parte de suas memórias, o que ela diz claramente, informando elementos de sua vida pessoal, como, por exemplo, as atividades políticas do marido chileno exilado no Brasil durante a ditadura do general Pinochet. Após o “Plebiscito del No”, no qual a população chilena votou para que Pinochet não continuasse no poder, em 1989, o marido decide voltar ao país de origem e ela o acompanha. Retomando a vida política, o ex-sindicalista chileno é eleito vereador nos anos de 1996 e 2000 e, apesar da deposição do general Pinochet, ainda em 2002 a casa do casal foi cercada e ambos levados presos. Maria Helena Alves passou dois dias algemada a um banco nas dependências da Polícia de Investigações, na cidade de Los Andes, onde residiam. Seu enteado foi preso na mesma ação, tendo passado cinco dias numa solitária e depois transferido para a prisão municipal. O marido ficou preso até 2003, por seis meses e, até a data da publicação do livro, estava impedido de sair do país, “mas sem processo e ainda sem uma acusação formal” (ALVES, 2005, p. 19). Justamente por ter estado no Chile e acompanhado o processo de redemocratização desse país, a autora traça um paralelo entre Brasil e Chile, percebendo as.

(25) 25. permanências dos regimes autoritários, evidenciadas pelas intervenções violentas das polícias nos dois países, tendo como alvo, principalmente, populações carentes, o que ela chama de “violência de exclusão criminal” (ALVES, 2005, p.7). Segundo a autora, o estudo da ditadura militar brasileira não tem um fim em si mesmo, é necessário refletir sobre Até que ponto nossas instituições, como o Judiciário e as polícias, ainda estão contaminadas pelos vícios do poder totalitário. E até que ponto nossos governantes democráticos ainda aceitam isso. [...] O que relatei sobre o Chile também ocorre no Brasil. Não é por acaso que nossas prisões estão superlotadas de pobres. São os que não têm acesso a advogados e não podem realmente obter justiça (ALVES, 2005, p.19-20).. Em 2005, ano de publicação da segunda edição do livro, Maria Helena Alves. trabalhava com consultoria a movimentos populares e ONGs no Brasil (ALVES, 2005). Em 2013, lança o livro Vivendo no Fogo Cruzado, juntamente com o brasilianista estadunidense Philip Evanson, no qual analisam a realidade dos moradores de favelas cariocas e a violência estatal por eles enfrentada desde que a polícia, a mando do Estado, invadiu o Complexo de favelas do Alemão, no Rio de Janeiro. O marido, José Valentim Palácios, ajudou nas pesquisas e entrevistas que integram o livro e duraram três anos (ALVES, 2013). No decorrer da obra, a autora analisa a implementação da ditadura no país e acompanha o desenrolar dos acontecimentos de forma cronológica. Passando por todos os Atos Institucionais e Emendas Constitucionais elaboradas pelo Estado, numa análise política e econômica. Demonstra também como as promessas de liberalização da coerção civil por parte do Estado era entrecortada por medidas autoritárias de ações violentas, de censura, de intervenção em sindicatos, prisões e alterações na legislação, sempre que os militares se viam ameaçados por seus muitos inimigos internos, a maioria deles, integrante de algum dos grupos de oposição. Esse inimigo interno que o Estado precisa combater parece ser hoje as populações marginalizadas e foi outrora o subversivo, segundo a ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento proposta pelo general Golbery do Couto e Silva. Segundo Maria Helena M. Alves, essa teoria foi norteadora da maioria das ações implementadas pelo Estado, uma vez que “prevê que o Estado conquistará certo grau de.

(26) 26. legitimidade graças a um constante desenvolvimento capitalista e a seu desempenho como defensor da nação contra a ameaça dos “inimigos internos” (ALVES, 2005, p. 31). Dos grupos de oposição, o partido oficial oposicionista, o MDB, e também algumas concepções do partido da situação, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) que confluíam com os interesses dos MDB, são bastante esmiuçadas no decorrer do livro. Já os muitos partidos clandestinos que havia no período pouquíssimo aparecem. O mesmo não se pode dizer dos sindicatos e de agentes ligados à Igreja Católica, que tem considerável espaço no livro e, em menor escala, o Movimento Estudantil. Apesar disso, a autora afirma muitas vezes que as medidas tomadas pelos militares eram precauções ou respostas ante aos atos da oposição. Ou seja, a presença e as atitudes dos grupos da oposição são encaradas como definidores dos rumos que o período ditatorial tomou no país. Dito isso, pode-se supor que, para a autora, a grande força da oposição estava no MDB e seus membros.. O combate nas Trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada Presente em cinco bibliografias, temos a obra de Jacob Gorender, Combate nas Trevas – A Esquerda Brasileira: Das ilusões perdidas à luta armada, citada pela USP, UFRGS, UFMG, UFPR e UFJF. Falecido recentemente, aos 13 de junho de 2013, Jacob Gorender nasceu em Salvador, no ano de 1923. Ingressa na Faculdade de Direito em 1941 e em 1942 já integra a Célula Universitária do Partido Comunista Brasileiro (PCB), juntamente com Mário Alves, seu companheiro de toda a vida militante e ao qual dedica seu principal livro que será aqui analisado. Por orientação do Partido, torna-se membro da Força Aérea Brasileira (FEB) e vai para a Itália, lutar na Segunda Grande Guerra. Voltando da batalha, entrega-se à vida militante sem dar continuidade ao curso de Direito (JOSÉ, 2013). Descende de uma família judia, muito pobre, seu pai foi Nathan Gorender, um ucraniano que veio para Salvador onde anos depois conheceu sua mãe, Anna, natural da Bessarábia (FREIRE; VENCESLAU, 1990). Foi repórter nos jornais baianos O Imparcial e O Estado da Bahia, na década de 1940 e integrava a redação do semanário comunista A Classe Operária, em 1946, no Rio de.

(27) 27. Janeiro. Entre 1951 e 1953 ministra os ‘Cursos Stálin’ para militantes e escreve para o diário comunista Imprensa Popular (JOSÉ, 2013). Em 1955 conhece Idealina da Silva Fernandes, também militante, sobre a qual não há qualquer menção em seu livro. Apesar de citar no livro algumas das mulheres que tiveram relações amorosas com outros militantes, sua própria companheira é apagada. Em 1960, torna-se membro do Comitê Central do PCB, o que também não fica claro no livro, embora seja fácil perceber seu envolvimento e influência no Partido. Por discordâncias com outros membros, principalmente Prestes, o que fica muito evidente em seus escritos, funda com Mário Alves e Apolônio de Carvalho, em 1968, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) (JOSÉ, 2013). A prisão chegou para Gorender em 20 de janeiro de 1970, na cidade de São Paulo, tendo passado pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP) e Presídio Tiradentes (GORENDER, 1987, p. 216). Segundo o autor, sua ‘queda’ e a de outros companheiros se deram pelas informações fornecidas sob tortura pelo companheiro Salatiel Teixeira, preso em 16 de janeiro do mesmo ano (GORENDER, 1987, p. 181). Durante o cárcere, Gorender atuou secretamente como tradutor e consultor das coleções da Editora Abril Cultural Os Pensadores e Os Economistas, para a qual traduzia textos do francês e do alemão. As traduções saiam da prisão pelas mãos de Idealina, sua esposa. Dessas traduções e consultorias, somente é oficialmente atribuído a ele, provavelmente devido à clandestinidade do trabalho, a introdução que escreveu para a edição de O Capital, publicado pela mesma editora (BUCCI, 2013). Em seu livro, faz uma análise dos muitos movimentos de esquerda brasileiros desde o governo Vargas até a ditadura militar. Descreve de maneira crítica o surgimento, composição e mudanças de diversos partidos, assim como seu quase desaparecimento. Sobre o partido que ajudou a fundar, o PCBR, também tece críticas dizendo, inclusive, que o partido começou fadado à cisão (GORENDER, 1987, p. 102). Durante sua prisão do Tiradentes, lia livros trazidos por Idealina e dava palestras sobre história do Brasil aos companheiros de cela (MAISONNAVE, 2014). Nesse período começou a escrever O escravismo colonial, importante obra para se compreender a.

(28) 28. escravidão no país, lançado em 1978. O autor possui obra muito extensa sobre a questão do escravismo, teoria marxista e as esquerdas brasileiras. Dentre elas, seu livro mais conhecido é O Combate nas Trevas: A esquerda brasileira - das ilusões perdidas à luta armada (JOSÉ, 2013), que será analisado nesse trabalho. Nesse seu livro de 1987, o autor faz uma análise crítica das intenções da esquerda e dos ideais de luta armada nos partidos. Para Gorender, a esquerda deveria ter pegado em armas quando da instituição do Golpe, depois disso, em 1965 quando começou a se militarizar, o aparato repressivo das Forças Armadas já estava bem estruturado e a dificuldade de derrubar o poder por luta armada era bem maior que em 1964. Para o autor, se houvesse vontade e mobilização, seria fácil barrar o movimento golpista em 31 de março. Nesse período, afirma, a esquerda tinha mobilização suficiente para a revolução, sendo errôneo que se afirme o contrário, esvaziando o papel da esquerda no contexto prégolpe. Tanto assim, que o golpe teria acontecido justamente por medo dessa revolução (GORENDER, 1987, p. 66). Ainda sobre atos armados como expropriações, sequestros e justiçamentos – de representantes do Regime ou militantes de esquerda que passaram para o lado da direita – escreve que não acreditava em sua eficiência e, olhando em retrospecto, confirma sua tese, por isso nunca participou de nenhum desses atos. O autor faz uma interessante análise sobre as atividades armadas da Esquerda e a violência do oprimido frente à violência do opressor. Segundo ele, a violência do oprimido é sempre uma resposta à violência do opressor. Se quiser compreendê-la na perspectiva de sua história, a esquerda deve assumir a violência que praticou. O que em absoluto fundamenta a conclusão enganosa e vulgar de que houve violência de parte a parte e, uns pelos outros, as culpas se compensam [...] A violência original é a do opressor, porque inexiste opressão sem violência cotidiana incessante. A ditadura militar deu forma extremada à violência do opressor. A violência do oprimido veio como resposta. (GORENDER, 1987, p. 235).. Claramente, sendo um livro escrito por um militante, suas paixões estão presentes em sua narrativa. Em alguns momentos faz referências diretas a seus juízos de valor e atribui adjetivos como ‘pelego’ aos sujeitos sobre os quais escreve. O livro não contém citações de referências bibliográficas específicas. Em alguns casos, no corpo do texto o autor diz que o que vai escrever é fruto de alguma.

(29) 29. entrevista, mas são poucos esses momentos. Ao final de cada capítulo estão relacionadas as ‘Fontes informativas e referências bibliográficas’, que vão de documentos como prontuários policiais, manifestos e programas dos partidos até entrevistas – não fica especificado se são feitas pelo próprio autor ou consultadas por ele –, periódicos e obras bibliográficas. Com isso, fica difícil identificar na escrita que fonte de informação está sendo usada pelo autor quando faz determinadas afirmações. Isso pode ser uma característica da falta de formação acadêmica, ou, por outro lado, pode ser uma opção do autor, já que tal recurso estilístico responde bem a uma obra autobiográfica, pois, para ele, suas memórias e os estudos que fez de alguns documentos bastam para justificar seus argumentos, não sentindo necessidade de deixar claro de onde vêm suas informações e afirmações. Por fim, embora o autor não tenha definido o livro como autobiográfico e o mesmo não figure no rol de obras com essa definição nos textos da crítica literária, tem um forte cunho biográfico. O livro é escrito em primeira pessoa e as impressões e vivências do autor à época dos acontecimentos ganham espaço na escrita, através de suas memórias, dando O testemunho na dupla dimensão daquele que ‘esteve lá, viu e ouviu’, ao mesmo tempo em que, não obstante seja parte interessada e incluída na história, dela se afasta, em parte, a fim de, como um terceiro, erigir sobre a experiência – a própria e a alheia – os juízos de uma razão distanciada (ELMIR, 2010, p. 192).. O Brasil Republicano, v.4: o tempo da ditadura Organizado por Jorge Luiz Ferreira e Lucilia de Almeida Delgado Neves e citado em dez bibliografias, temos O Brasil Republicando, vol. 4: O tempo da ditadura. Os cursos são os da UFF, UNICAMP, UFRGS, UFMG, UFSC, UFPR, UFPA, UFJF, PUC/RS e UERJ. O livro é o último volume da coleção O Brasil republicano, publicada em 2003, que conta com quatro volumes, sendo os anteriores: 1) O tempo do liberalismo excludente; 2) O tempo do nacionalismo; 3) O tempo da experiência democrática. Todos os volumes foram organizados pelos historiadores Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Delgado Neves,.

(30) 30. que serão brevemente apresentados. Por não terem sido localizadas as biografias do autor e da autora, as informações listadas aqui são somente as profissionais/acadêmicas. O carioca Jorge Luiz Ferreira é professor titular do Departamento de História na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde se sua graduou em 1982 e fez Mestrado, 1989 e seu Doutorado em História Social foi concluído em 1996 na Universidade de São Paulo (USP). Seus Pós-Doutorados findaram em 2005 na USP e em 2011 na UFMG. É autor de inúmeros artigos, capítulos de livros, coautor e organizador de outros tantos, possuindo também obras somente de sua autoria (FERREIRA, 2015). Lucilia de Almeida Delgado Neves graduou-se em 1974 pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e fez Mestrado e Doutorado em Ciência Política, em 1979 na UFMG e em 1989 na USP, respectivamente. Atualmente é pesquisadora colaboradora sênior na Universidade de Brasília (UNB) e professora titular da Universidade do Distrito Federal (UDF). Como Ferreira, é coautora e organizadora de muitas obras, possui diversos capítulos em livros, artigos e escreveu alguns livros nos quais não teve parcerias (DELGADO, 2015). Como pudemos perceber, Lucilia Delgado e Jorge Ferreira viveram o período ditatorial enquanto graduandos e, excepcionalmente no caso dela, durante sua pósgraduação no Mestrado e por dois anos do Doutorado, iniciado em 1983. Assim, embora tendo pouco menos idade, especialmente no caso de Ferreira, os dois autores formam, com Maria Helena Alves e Jacob Gorender, um conjunto de quatro pesquisadores/escritores que escrevem, ou organizam, obras sobre uma ditadura militar vivenciada pelos mesmos. Dentre os quatro, o único sobre o qual a pesquisa sobre a vida pessoal deu resultados foi Jacob Gorender. O motivo talvez seja o fato de ser o único militante dentre eles e, também, seu falecimento, uma vez que ao noticiar a morte, muitos jornalistas retomam a vida do individuo. Segundo Delgado e Ferreira, o tema que perpassa os quatro volumes é a democracia, tanto as tentativas de cerceamento que a mesma vem sofrendo no país, quanto os grupos resistentes que buscaram impedir as limitações à prática democrática. A opção por enfatizar a democracia como eixo do livro organizado dá-se, segundo os autores, porque “A democracia e a plena realização da cidadania no Brasil apresentam-se como um.

(31) 31. dilema histórico ainda a ser decifrado e um desafio a ser enfrentado” (DELGADO; FERREIRA, 2007, p. 7). No volume quatro, O tempo da ditadura, dez artigos, todos com autores diferentes, apresentam múltiplas questões em torno das práticas ditatoriais – Doutrina de Segurança Nacional, as mudanças econômicas e o chamado ‘milagre econômico’ e os diversos aparelhos repressivos usados pelo Estado ditatorial – e de alguns grupos sociais que buscaram de várias maneiras lutar contra o regime – as esquerdas, órgãos e membros da Igreja Católica e artistas, através de manifestações culturais, movimentos sindicais e as diferentes lutas de trabalhadores no campo. O processo de abertura política também é tratado, numa reflexão sobre as reivindicações do protagonismo do processo por parte da esquerda e dos militares e uma discussão sobre a política latino-americana também se encontram entre os artigos (DELGADO; FERREIRA, 2007). No terceiro capítulo deste trabalho, veremos quais as formas com que os autores dos artigos trabalharam, quando trabalharam, a questão feminina e como utilizaram, quando o fizeram, as memórias como fontes..

(32) 32. 1. CAPÍTULO 1 – A CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS E DA HISTÓRIA Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado. (POLLAK, 1989, p. 8).. Antes de detalhar as análises do uso da memória como fonte nas obras selecionadas para esse trabalho, no capítulo três, faz-se importante refletir sobre as especificidades do trabalho com as memórias, especialmente em períodos de conflito como foi o ditatorial, e como esse estudo pode auxiliar na construção da história e memória da sociedade brasileira sobre a ditadura militar à qual foi submetida.. 1.1.. Memórias Coletivas: algumas ponderações Falar em história e memórias coletivas não implica a referência a uma memória. homogeneizante, capaz de contemplar igualmente todos os grupos sociais do país. O historiador francês Jacques Le Goff utiliza o termo ‘memória social histórica’ (LE GOFF, 2013, p. 196) para definir as memórias que são coletivas em uma sociedade, pertencentes a todos os membros da mesma. Segundo ele, embora cada indivíduo seja apresentado a essa ‘memória social histórica’ pelo ensino e a tradição, também é capaz de formar desde a infância, sua própria memória individual. Isso explica que cada um incorpore na própria história coisas que se passaram muito antes de sua existência, com seus pais, grupos sociais e no mundo inteiro. Essa manipulação da história e da memória, no sentido de direcionar e coordenar a memória de toda uma sociedade está presente nos interesses de grupos dominantes: Tornarem-se senhoras da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 2013, p.390).. É valido refletir e pontuar algumas questões quanto à ‘memória coletiva’ e ‘memória individual’, termos usados há pouco e aos quais recorreremos durante todo o texto. Essas duas facetas da memória, na proposta do sociólogo Maurice Halbwachs, estão.

(33) 33. interligadas. Segundo o autor, embora pertença a algum momento vivido por uma única pessoa, ou seja, considerada individual, a memória não deixa de ser coletiva, uma vez que nossas lembranças são condicionadas por fatores advindos de nossas vidas sociais e, portanto, Só temos capacidade de nos lembrar quando nos colocamos no ponto de vista de um ou mais grupos e de nos situar novamente em uma ou mais correntes do pensamento coletivo [...] Quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado de alguém, sem dúvida, durante algum tempo ‘esteve só’, segundo a linguagem comum. Mas lá não esteve só senão na aparência, posto que, mesmo nesse intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam pela natureza do ser social, e que em nenhum instante deixou de estar confinado dentro de alguma sociedade (HALBWACHS, 1990. p. 36-37).. Sobre tal afirmação, de que a memória, nesse sentido, só é possível no coletivo, o filósofo Paul Ricoeur apresenta algumas reservas que podem ser justificadas em reflexões apresentadas pelo próprio Halbwachs, uma vez que, para que possam ser consideradas parte de um grupo, as lembranças têm como ponto de partida o individual. Além disso, afirma o Ricoeur: O próprio ato de ‘se recolocar’ num grupo e de se ‘deslocar’ de grupo em grupo, e mais geralmente, de adotar o ‘ponto de partida’ do grupo, não supõe uma espontaneidade capaz de dar sequência a si mesma? Caso contrário, a sociedade não teria atores sociais (RICOEUR, 2007, p. 132).. Feitas tais considerações, deve-se salientar que é considerada, neste trabalho, a memória coletiva nos termos propostos por Halbwachs, enquanto memória formada por diferentes memórias individuais das pessoas que compõem um grupo, mas tendo em conta a ressalva de Ricoeur de que esses são atores sociais e, portanto, portadores e, consequentemente, formadores de memórias. Por isso, as memórias individuais nos interessam também, mesmo que destoem daquelas de qualquer grupo, uma vez que consideramos as impressões particulares sobre a ditadura militar importantes, especialmente as das mulheres. Bem como essa ‘memória coletiva’, a ‘história coletiva’ – uma história considerada comum a todos os habitantes de uma comunidade – não é capaz de impedir que.

(34) 34. cada membro de um grupo social forme suas próprias memórias, considerando especificidades de sua vida, pelas quais os outros não passaram. Assim, tais história e memória coletivas serão tratadas neste trabalho com estreitas relações, mas não são encaradas como coisas sinônimas. Antes, como campos que se interpenetram ao tratar das relações entre o passado e o presente. Além disso, a memória exerce, como bem demonstra Paul Ricoeur, uma função matricial para a história. A “memória coletiva [...] constitui o solo de enraizamento da historiografia [...] é enquanto exercida que a memória cai sob esse ponto de vista” (RICOEUR, 2007, p. 83). Nesse âmbito da memória coletiva, àquela apresentada aos indivíduos, que não foram por eles diretamente vivenciadas, Leroi-Gourhan, antropólogo francês, denomina ‘memória pré-construída’. No trecho a seguir o autor demonstra que a partir do fim do século XVIII: Em alguns decênios a memória social absorve nos livros toda a Antiguidade, a história dos grandes povos [...] O fluxo amplifica-se, incessantemente até nossos dias, mas, guardadas as devidas proporções nenhum outro momento da história humana conheceu uma tão rápida dilatação da memória coletiva. Assim, já no século XVIII deparamos com todas as fórmulas a que é possível recorrer para fornecer ao leitor uma memória pré-constituída (LEROI-GOURHAN, 1965, p. 62-63).. Essa ‘memória pré-construída’ é incutida na sociedade de diferentes maneiras, formando o que Leroi-Gourhan chama de ‘memória total’. Dentre elas estão os dicionários e enciclopédias que, em ordem alfabética, trazem fragmentos da memória ampla. Além dos já citados, duas outras modalidades da memória coletiva que tiveram início no século XIX e XX são a construção de monumentos aos mortos na Primeira Guerra Mundial e a fotografia (LE GOFF, 2013). Detenhamo-nos um pouco na questão dos monumentos e o patrimônio histórico, tanto os dedicados aos mortos em guerra, mencionados por Le Goff, quanto todos os outros, que são espaços dedicados a detenção e produção de memória. A historiadora francesa Françoise Choay, em A Alegoria do Patrimônio, problematiza o patrimônio histórico e traça os diferentes olhares que atribuíram variados tipos de valor aos monumentos ao longo dos anos na Europa. Especificamente, nos interessa a análise da autora sobre como o crítico social e de arte John Ruskin “atribuiu à memória uma.

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