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A pobreza: realidade e controvérsias

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HELOÍSAMENDONÇA DEMORAIS

A POBREZA: REALIDADE E CONTROVÉRSIAS1

Apresentação

Inicialmente, obrigada ao Centro Celso Furtado por esta oportunidade de trazer ao debate aspectos da política de saúde em sua acepção de política social, entendida enquanto processo e resultado de relações complexas e contraditórias que se estabelecem entre o Estado e a sociedade civil. Obrigada, ainda, pela oportunidade de dialogar com colegas de outras universidades pelos quais tenho cultivado respeito e admiração.

Ao receber o convite, meu primeiro sentimento foi o de que o mesmo havia chegado ao endereço errado. E por duas razões: a primeira, pelo fato de não estar profissionalmente situada no campo das ciências sociais, políticas ou econômicas, áreas afins do encontro, e, aparentemente, na circunstância deste seminário, guardando certa distância da saúde coletiva; a segunda, por se tratar de uma reunião de experts em seus campos de atuação, condição em que não me enquadro.

Quanto à primeira dúvida, fui esclarecida por alguns dos organizadores que haveria espaço para debater sobre a realidade da pobreza em distintas dimensões e pude depreender não ser estranho tratar de uma questão tão cara ao povo brasileiro: suas condições de saúde e controvérsias relativas à realidade assistencial. Quanto ao fato de não ser uma expert, restou-me escolher: desistir ou ousar.

Vou ousar, então, apresentar algumas questões para o debate.

Introdução

Quando, em 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído,

acreditou-se que o Brasil tinha dado um salto significativo no dilemático campo das políticas sociais. Construído em torno de um pacto cujos atores políticos gozavam de ampla representação junto aos movimentos sociais, emergiu no cenário nacional trazendo expectativas de mudança para a sociedade.

O projeto do SUS não se arrogava a condição de uma política voltada,

principalmente, para a diminuição da pobreza. Todavia, considerando as irrefutáveis relações entre condições de vida e de saúde, esperava-se que a materialização das propostas de atenção universal e integral contidas em sua formulação repercutisse positiva e cumulativamente sobre os péssimos indicadores sociais do País. 1Texto apresentado pela professora Heloisa Mendonça de Morais em 16.10.2009, durante Seminário

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Naquelas circunstâncias, entre outros ideais-limites, colocavam-se o desejo e o compromisso cívico de fazer frente a uma dívida médico-sanitária que, derivada da situação de extrema desigualdade social, havia muito ultrapassara a fronteira do humanamente suportável. Desde então, um novo sentido tem sido conferido às práticas de expansão de coberturas e introdução de modelos de atenção substitutivos, resultando em um alargamento visível e expressivo da presença do Estado na área da saúde, sobretudo no cotidiano dos pobres e dos indigentes.

O que o cenário de euforia não permitia vislumbrar naquele momento era a magnitude dos conflitos que se colocariam na cena nacional, tendo em vista o caráter distributivo da emergente política de saúde. Não faço essa constatação, contudo, sem antes requerer isenção para uma importante corrente de pensamento das ciências sociais que, desde as críticas a Marshall, tem alertado para o dissenso contido na formulação das políticas sociais. No contexto atual, é oportuno lembrar que “não deixa de ser curioso que se fale tanto de política social num contexto que lhe é ideológico e politicamente adverso ou que se recorra tanto a essa política quando mais sua função de concretizar direitos sociais pareça insustentável” (PEREIRA, 2008).

Desse modo, concomitantemente ao processo de construção/desconstrução do

SUS, em um cenário de transformações políticas e econômicas que ocorreram na

contramão da universalização das políticas sociais, foram se desvendando as potencialidades para a mercantilização das práticas de saúde, via empresas de planos e seguros privados, os quais apontavam para um universo nada desprezível de milhões de prováveis consumidores.

Rotas, em princípio com declarado potencial de oposição, poderiam configurar, na prática, um paradoxo, desdobramento esse que infelizmente não se pode atestar. De fato, convivemos hoje com um sistema de saúde contraditório, que, simultaneamente ao fomento de sua face pública, assegura claramente as estratégias expansionistas do mercado. Assim, não se deveria esperar outro resultado que não a retração pelo deslocamento para baixo das propostas de alargamento do setor público.

A esse propósito, alguns autores têm caracterizado o que denominam as duas tendências do modelo pós-fordista de organização do trabalho e da sociedade: a contenção ou retração da oferta de serviços públicos; e a segmentação do consumo privado, com dispersões na distribuição de renda, em conformidade com as regras do mercado. O desmonte do universalismo protetor – que vai

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cedendo espaço ao particularismo social e à mercantilização da política social, tendo em vista o exercício de efeitos disciplinadores sobre as demandas sociais – é a estratégia que vem orientando a ação estatal tanto nas economias do capitalismo central quanto nas periféricas (PEREIRA, 2008).

Portanto, ao tentar acomodar interesses opostos, o Estado brasileiro se afastaria progressivamente da imagem-objetivo formulada no contexto das lutas pela democracia, experiência histórica dos anos 1970 e 1980 e de tão cara memória. Por essa razão, Vianna (2007) insiste que seria o caso de preservar e não reformar a Constituição de 1988, enquanto Behring (1998 e 2008) sustenta que estaria em curso uma “contra-reforma do Estado”.

Entretanto, para outros analistas nada a opor, desde que a convivência de práticas mercadológicas e responsabilidades do Estado em áreas sociais expressariam tão somente vicissitudes inerentes às economias capitalistas. Porém, uma imbricação de tal ordem poderia conviver em harmonia, desprovida de tensões? Tentarei demonstrar que não, até porque estamos tratando de um campo de prática e de serviços que, por sua singularidade ao não prescindir de massiva incorporação tecnológica, promove uma desmedida competição entre agentes públicos e privados, tendo em vista as leis de mercado.

Na sequência, passarei a expor fatos e dados que atestam os movimentos de um e de outro subsistema de saúde – o público e o privado –, para indagar em que medida a progressividade do primeiro poderá ser obliterada pelo contínuo incremento do segundo, considerando que a possibilidade de convivência estará sempre balizada pelos horizontes da política.

Expansão, coberturas e algumas explicações relacionadas aos subsistemas público e privado da saúde

Iniciaria reafirmando que o Sistema Único de Saúde, formulado enquanto reforma social de cunho distributivo, é um patrimônio da sociedade, de ricos e de pobres, ao proteger a todos mediante ações de promoção e de proteção à saúde, ações estas que se realizam cotidianamente, mas são pouco percebidas pela sociedade.

No sentido da representação social predominante, o SUSse materializa pela

prestação da assistência no âmbito ambulatorial e hospitalar para, aproximadamente, 78% da população, ou seja, 148 milhões de pessoas, considerando que os planos e seguros são adquiridos por 42 milhões de usuários, contabilizados para o ano corrente pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (2009). Configura o que se denomina o subsistema público de saúde, operando uma

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rede de serviços próprios e privados, estes últimos, os ditos conveniados ao SUS.

Entretanto, tal cobertura deve ser vista com ressalvas, pois ela se amplia bastante quando considerados condutas e procedimentos de alta complexidade e de custo mais elevado, aqueles que a segmentação inerente ao mercado condiciona à capacidade de compra da clientela. Ou seja, há um movimento contínuo de entra-e-sai da população no raio de ação do subsistema público, considerando que as taxas de retorno se elevam sempre que essa mesma população percebe que não pode comprar o que desejava, quer dizer, determinados padrões de assistência hospitalar veiculados pela mídia tal como aparecem nas imagens de marketing. Desde a segunda metade dos anos 1990, a rede de atenção básica tem se expandido notavelmente e é a face do SUSconhecida da população pobre. Organiza

a assistência a partir dos perfis da demanda e são indiscutíveis os números relativos às magnitudes das coberturas alcançadas, conforme demonstram os gráficos 1

(PEREIRA, 2008), 2 (VIANNA, 2007) e 3 (BEHRING, 1998).

Gráfico 1. Evolução do número de municípios com equipes de saúde da família implantadas – Brasil, 1994 – agosto 2009

-5.565 1.113 2.226 3.339 4.452 1994 55 1995 150 1996 228 1997 567 1998 1.134 1999 1.647 2000 2.766 2001 3.684 2002 4.161 2003 4.488 2004 4.664 2005 4.986 2006 5.106 2007 5.125 2008 5.235 ago/09 5.241 Nº MUNICÍPIOS

FONTE: SIAB - Sistema de Informações de Atenção Básica SCNES - Sistema de Cadastro de Estabelecimentos em Saúde

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Por sua vez, os investimentos financeiros na Estratégia de Saúde da Família aumentaram 2,44 vezes entre 2003 e 2007. Assim, foram gastos, em bilhões:

(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009)

Gráfico 2. Evolução da população coberta por equipes de saúde da família implantadas – Brasil, 1994 – agosto 2009

0 21 42 63 84 105 126 147 168 189 1994 1,1 1995 2,5 1996 2,9 1997 5,6 1998 10,6 1999 14,7 2000 29,7 2001 45,4 2002 54,9 2003 59,7 2004 69,1 2005 78,6 2006 85,7 2007 87,7 2008 90,2 ago/09 95,1 Pop. Coberta

FONTE: SIAB - Sistema de Informações de Atenção Básica SCNES - Sistema de Cadastro de Estabelecimentos em Saúde

(x 1.000.000)

Gráfico 3. Evolução da cobertura populacional (%) de ACS, PSF e ESB*

– Brasil, 2001 – agosto 2009 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 (%) 2001 46,6 25,4 8,0 2002 52,6 31,9 15,2 2003 54,1 35,7 20,5 2004 55,5 39,0 26,6 2005 58,4 44,4 34,9 2006 59,1 46,2 39,8 2007 56,8 46,6 40,9 2008 60,4 49,5 45,3 agosto/2009 60,1 50,1 46,6 FONTE: SIAB - Sistema de Informações de Atenção Básica

SCNES - Sistema de Cadastro de Estabelecimentos em Saúde

* Agentes Comunitários de Saúde (ACS); Programa de Saúde Familiar (PSF) – hoje, Estratégia de Saúde da Família (ESF); Equipes de Saúde Bucal (ESB). ■ ACS

■PSF ■ESB

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Tabela 1. Recursos gastos na ESF– Brasil, 2009 Ano Recursos (R$) 2003 1.662,80 2004 2.191,04 2005 2.679,27 2006 3.248,50 2007 4.064,00 FONTE: M.S. – DAB

Os recursos despendidos em seu financiamento destinam-se, maiormente, ao pagamento de pessoal e à organização da estrutura física simplificada que a caracteriza, tendo em vista a reduzida incorporação tecnológica requerida pelas práticas nesse nível da atenção. Ressalte-se que as despesas com pessoal também têm custos menores, uma vez que grande parte dos contratos de trabalho é temporária, instável e não assegura benefícios sociais.

O que não entra no cálculo desses números é o grau de resolubilidade/qua -lidade das ações realizadas, o que tem sido avaliado por pesquisas pontuais efetuadas em várias áreas do País e cujos resultados, de um modo geral, são menos animadores que os dados relativos à expansão de cobertura dos serviços.

Ainda assim, é provável que a melhora de alguns indicadores relacionados a gru pos mais vulneráveis e especialmente sensíveis às ações dos serviços básicos de saú de tenha sido impactada por essa expansão. O caso emblemático seria a queda regis -trada na taxa de mortalidade infantil – que continua em declínio, embora o indi cador se mantenha elevado quando comparado com o de outros países, até da Amé rica Latina –, que variou de 33,56 % para 23,59 % entre 1998 e 2008, ou seja, uma redução de quase 30% em um período de dez anos, ainda que os dados apon tem para um diferencial importante quando se compara as regiões do País, man ten do-se a Região Nordeste no patamar mais elevado, com quase dez óbitos a mais que a média do Brasil, como se pode visualizar na Tabela 2 (BRASIL/IBGE, 2009).

É importante salientar que entre os estados o diferencial é dramático, variando de 13,10% no Rio Grande do Sul – o estado que registrou a menor taxa – para 48,20% em Alagoas, que apresentou a mais elevada!

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Tabela 2. Taxa de mortalidade infantil segundo as grandes regiões – Brasil, 2008 Grandes Regiões Taxa de MI(%)

Norte 24,20 Nordeste 34,40 Sudeste 17,10 Sul 15,60 Centro-Oeste 18,30 Brasil 23,59

FONTE: IBGE– Síntese de Indicadores Sociais, 2009.

À parte esses investimentos na ESF, as despesas do governo com saúde entre

2000 e 2005 corresponderam a 3,2% do PIB, enquanto as originadas de fontes

privadas atingiram aproximadamente 4,8% (BAHIA, 2009). Daí o

contingenciamento no acesso aos serviços públicos, em particular ao número de leitos hospitalares e a procedimentos diagnósticos e terapêuticos, os quais conformam o que se denomina atenção de média e alta complexidade.

Nesse sentido, há uma inquestionável disparidade quando se compara o número de equipamentos disponíveis nos subsistemas público e privado, como demonstrado na Tabela 3 (BRASIL/IBGE, 2005).

Tabela 3. Número de equipamentos de média e alta complexidade – Brasil, 2005 Equipamentos

(por 100.000 habitantes) SUS Privado

Mamográfo 0,912 4,461 Litotripsor 0,163 0,654 Ultrassonografia 3,891 20,170 Tomógrafo computadorizado 0,595 2,466 Ressonância magnética 0,131 0,87+ Radioterapia 0,168 0,270 Medicina nuclear 0,084 0,131

Raio-X para hemodinâmica 0,190 0,532

Hemodiálise 7,401 2,475

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Também no que diz respeito ao número de leitos, a oferta (superestimada) de leitos SUSseria de 1,81 leito para mil habitantes; já a oferta (subestimada) de

leitos para os clientes de planos e seguros seria de 2,9 leitos para mil habitantes

(BRASIL/IBGE, 2005). (Recomenda-se, como proporção aceitável, 2,5 a 3 leitos

para mil habitantes).

Em 2007, enquanto as empresas de planos e seguros reverteram 81% de seu faturamento para a remuneração de serviços médico-hospitalares, a proporção das despesas com atenção básica, ambulatorial e hospitalar representou 66% dos

recursos do orçamento do MS. Sabe-se também que os preços médios das

consultas e internações praticados pelas empresas de planos e seguros são três a seis vezes superiores aos das instituições públicas (BAHIA, 2009).

O conjunto dessas evidências aponta, paradoxalmente, para a expansão do setor público em cenário de desfinanciamento, o que termina por repercutir

negativamente na estruturação de uma rede de serviços própria do SUS –

tecnologicamente adequada para o desenvolvimento de práticas consentâneas com a complexidade dos agravos prevalecentes no perfil epidemiológico da sociedade – e nos resultados dessa intervenção. Aponta ainda para a expansão do subsistema privado, fato que está a requerer explicações de intricados e, por vezes, tortuosos processos que, ao promovê-la, retiram abrangência e capacidade resolutiva do subsistema público.

E aqui parece termos chegado ao ponto, porquanto essas questões se impõem com alta capacidade explicativa. De uma perspectiva macroestratégica elas reúnem elementos que, quando manifestos, possibilitam compreender os principais dilemas do SUS, considerando que os rearranjos observados no interior

do subsistema privado em direção à progressiva privatização do sistema de saúde podem ser explicados pelas restrições políticas e econômicas impostas ao necessário, urgente e socialmente justo financiamento do subsistema público.

A primeira grande questão: a ruptura com o ideário da seguridade social e o desfinancimento do SUS

Em relação à questão do desfinanciamento proponho que imediatamente nos acerquemos do componente ideo-político que embasou materialmente a proposição da universalização, qual seja a concepção constitucional de seguridade social, pela qual se pressupunha dois princípios: o da integração e o da universalidade.

A professora Lúcia W. Vianna, em importantes trabalhos, tem qualificado os argumentos que devem ser contrapostos àqueles provenientes dos sucessivos

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governos das últimas duas décadas e que justificam o encolhimento das políticas de seguridade. Conforme apontou recentemente, foi derrogado justamente o princípio da integração que assegurava o compartilhamento de receitas para o pagamento simultâneo de benefícios contributivos (os previdenciários por definição) e dos não contributivos (os assistenciais e, por exigência constitucional, os derivados do direito universal à saúde) (VIANNA, 2009). Ou seja,

processou-se uma ruptura no âmago do acordo cívico de 1988.

Na sequência e pela legislação complementar à Constituição, as áreas componentes da seguridade foram fatiadas e, obviamente, cada uma em seu ministério (a assistência social ganhou o seu em 2003, com a criação do Ministério da Assistência Social). Ocorreu, então, “um gradativo processo de desvinculação (da Seguridade) e revinculação (às áreas setoriais) das diversificadas fontes instituídas para financiar o conjunto das ações, o que completou a interpretação legal da institucionalidade constitucionalmente prevista para o sistema de proteção” (VIANNA, 2009).

Na mesma direção, pela Lei Orgânica da Previdência de 1991 (a despeito de tratar apenas da previdência, foi chamada de Lei Orgânica da Seguridade), apenas os recursos advindos das contribuições sobre salários e folhas passaram a ser arrecadados pelo INSS; todas as demais contribuições desde então seriam

arrecadadas pela Receita Federal, competindo ao Tesouro efetuar os repasses para a seguridade, conforme programação financeira. Além disso, desde 1994, a instituição da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que aloca 20% das

contribuições sociais para uso exclusivo do governo federal, também tem contribuído para a amputação do orçamento da seguridade.

No mesmo trabalho, a autora adverte que “sem uma coordenação geral, sem nenhuma instância de integração (o Conselho Nacional de Seguridade foi extinto em 1999) e sem orçamento próprio, concretamente a Seguridade deixou de existir!” (VIANNA, 2009).

É oportuno lembrar que, em 2005, o total das receitas que deveriam ser da seguridade foi de R$ 278 bilhões, enquanto todas as despesas de previdência, saúde e assistência reunidas somaram R$ 221 bilhões, restando um saldo positivo de R$ 57 bilhões, contando adicionalmente com a retenção via DRUda

ordem de aproximados R$ 32 bilhões. Dados de analistas da questão previdenciária apontavam, em 2006, para uma subtração de receitas maior que R$ 34,5 bilhões, afora um desvio de “programações estranhas” de R$ 49 bilhões

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Não é desconhecido, ademais, que os recursos que entram nos cofres públicos, e que deveriam compor o orçamento da seguridade social, se constituem em fonte recorrente de socorro para o orçamento fiscal, mediante sua transformação em recursos fiscais para a composição do superávit primário (MENDES; MARQUES,

2009). Daí porque devem ser veementemente refutados os números que são divulgados, sempre em tom alarmista, relativos a uma suposta insolvência da previdência social, assim como a uma impossível contabilidade financeira para conferir viabilidade ao sistema de saúde.

Por outro lado, as pressões de toda ordem na direção de o governo introduzir tributação adicional para cidadãos já contribuintes – discussão atual da Contribuição Social para a Saúde (CSS) –, com a finalidade de minimizar os danos

do desfinanciamento público na saúde, apenas contribuem para alimentar o não cumprimento do acordo cívico estabelecido por ocasião da Constituição de 1988. Nesse cenário, não é de admirar que emanem de grupos sociais os mais distintos, e que se apresentam como defensores do SUS– desde autoridades de

governo e técnicos de instâncias gestoras do sistema até representantes da sociedade civil, organizada ou não –, formulações voltadas ao entendimento de que “quando o cobertor é curto devem ser privilegiados os mais necessitados”. Ora, é a aceitação tácita dessa condição que tem assegurado espaços para estratégias de mercado tais como os fundos de previdência privada e os planos e seguros de saúde, os quais estão a dilapidar nosso patrimônio social. De quebra, o aceite passivo de proposições incrementais também atesta falta de informação!

A segunda grande questão: as bases materiais e políticas do subsistema privado e a apropriação dos fundos públicos.

Neste ponto, o argumento a ser comprovado é como incentivos governamentais alimentam a dinâmica econômica do subsistema privado prestador de assistência médico-hospitalar. Essa complementaridade é bem mais complexa do que via de regra se imagina à primeira vista. Nesse sentido, deve se considerar o alerta da professora Lígia Bahia ao mencionar que “não têm sido poucas, nem óbvias, as transformações na base física, na organização das demandas e volume e destino de recursos financeiros para o subsistema privado e tampouco na legislação que as tem legitimado” (VIANNA, 2009).

Talvez uma caracterização sumária desse subsistema e de alguns detalhes pertinentes à dinâmica de seu funcionamento ajude ao delineamento mais claro das questões selecionadas:

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- Formado por empresas operadoras de planos e seguros e por estabelecimentos médico-hospitalares e profissionais (os prestadores), se distribui muito desigualmente em todo o País, estando concentrado nas regiões Sul e Sudeste, em cidades maiores e naquelas que são polos econômicos regionais (Mapa e Tabela 4); - Nos últimos cinco anos vêm se expandindo as taxas de cobertura dos planos privados e de crescimento do número de beneficiários (Tabela 5);

- Para atender os tão desiguais padrões de renda e consumo do País promove uma segmentação na oferta de serviços que é lesiva à qualidade dos serviços prestados, além de formar uma demanda discutível para a prestação de serviços complexos para o SUS;

- Nos últimos anos tem demonstrado um visível crescimento de suas receitas, em contraste com as frequentes alegações de insolvência do subsistema, tão alardeadas nos anos 1990 (Tabela 6);

- Operam em distintas modalidades, ressaltando-se que a formação de fundos financeiros administrados por empresas e entidades privadas, alguns deles subsidiados por recursos públicos, configura iniquidades (caso dos planos de autogestão). O caso mais recente de subsídio público para segmentos diferenciados da sociedade, do qual os contracheques dos servidores públicos se constituem na prova material, é a contrapartida do governo federal correspondente a R$ 65,00, repassada para os servidores e seus dependentes, para subsidiar os gastos com planos privados de saúde. Por essa atenção a pressões corporativas e empresariais, o governo acaba de desautorizar os esforços para a consolidação do SUS!

- O gasto tributário – recursos que o Estado deixa de arrecadar mediante as desonerações fiscais – é o principal subsídio no âmbito da saúde. Atua como incentivo fiscal aos prestadores e operadoras de planos de saúde filantrópicos, e como indutores à compra de serviços e de planos privados, uma vez que o gasto deles proveniente é deduzido da base sobre a qual é calculado o imposto de renda devido por pessoas físicas e jurídicas. As instituições ditas filantrópicas são isentas de tributos federais, estaduais e municipais. Segundo a Receita Federal, a renúncia fiscal proveniente das desonerações tributárias federais usufruídas pelas entidades filantrópicas em 2006 teria sido da ordem de R$ 1,6 bilhão, devendo ainda ser acrescido o montante referente à renúncia fiscal nos estados e municípios. Desse modo, embora não se possa afirmar que a totalidade dos gastos privados em saúde seja financiada pelo Estado mediante a renúncia fiscal, uma boa parte o é, desde que da base sobre a qual é calculado o imposto de renda

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são deduzidos os gastos privados em serviços e planos de saúde. Em 2007, o total de isenções federais alcançou a cifra de R$ 4,1 bilhões (10,1% do gasto federal

em saúde) (SANTOS; UGÁ; PORTO, 2009). (Recentemente o MS retirou

condicionalidades à concessão de certificados de filantropia favorecendo a um subconjunto de hospitais filantrópicos considerados “de ponta”, para clientelas privilegiadas, o que tem estimulado conflitos entre os filantrópicos e atores sociais mobilizados pelo SUS) (BAHIA, 2009).

- O não cumprimento da lei do ressarcimento ao SUS (1998) dos serviços

prestados a pessoas com planos e seguros privados – os valores irrisórios pagos até hoje têm discreto significado quando comparados aos valores da renúncia fiscal; - Outros subsídios para o subsistema privado se realizam por concessões de créditos e empréstimos (caso do BNDESe do Banco do Nordeste) e por dedução

fiscal para importação de equipamentos;

- Seguindo a tendência de todos os outros ramos da produção, os novos arranjos na base material do trabalho estão configurando um mercado no qual predominam formas que não caracterizam relações de emprego; multiplicam-se os contratos temporários, instáveis e multiplicam-sem proteção social, muitas vezes nutridos por outro tipo de empresas, “as falsas cooperativas” (MATTOSO, 2000)

que proliferaram no Brasil desde os anos 1990, inclusive no setor saúde. É certo que o predomínio dos prestadores privados no sistema de saúde introduz importantes fluxos financeiros da esfera pública para a privada, além do que as relações são pouco claras entre o papel que um mesmo prestador privado exerce em segmentos diferentes (no SUSe na saúde suplementar).

Vários dos arranjos acima descritos e outros mais configuram o que Chico de Oliveira cunhou como o novo papel dos “fundos públicos” no capitalismo contemporâneo (OLIVEIRA, 1998). Explicita-se a gestão de fundos públicos por

empresas estatais servindo a finalidades tão abrangentes como o financiamento da acumulação de capital e a reprodução da força de trabalho. Como explica, o conceito contém em si a razão do Estado, entendida como pública, e a razão dos capitais, que é privada. Politiza a esfera econômica porque mobiliza o processo de luta de classes, quer dizer, traz o determinante da política para o movimento dialético da economia. Para Chauí (1999), nas democracias representativas as forças sociais agem num campo de lutas polarizado pela direção dada ao fundo público. Por isso é que nos países com democracia frágil corta-se o fundo público no polo de financiamento dos bens e serviços públicos para maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos exigidos pelo capital, cujos lucros não são suficientes

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para cobrir todas as possibilidades tecnológicas que ele mesmo abriu. Trata-se, portanto, de um processo contraditório e conflituoso.

No início desta década, em pesquisa realizada na cidade do Recife (MORAIS,

2002), foi possível verificar como o subsistema privado de saúde penetra os processos de planejamento e de decisão estatais. Seus interesses e pleitos se fazem presentes nos planos da tecnoburocracia, nos argumentos e proposituras das instâncias políticas de decisão, bem como nas deliberações de governo, para garantir seus objetivos no processo de acumulação. Ao final da década, não há indícios de mudanças.

Finalmente, creio ter reunido argumentos suficientes para reafirmar que interesses tão distintos – públicos e privados – não expressam “parcerias”, tampouco solidariedades. Na saúde, são oponentes. Nesse campo, a apropriação particular dos bens públicos se alastra epidemicamente com vistas a garantir a hegemonia do subsistema privado.

Taxas de cobertura dos planos de assistência médica por Unidades da Federação – Brasil, junho 2009

FONTES: Sistema de Informações de Beneficiários ANS/MS- 06/2009 e População – IBGE/Datasus 2009.

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Tabela 4. Taxas de cobertura (%) dos planos de assistência médico-hospitalar com número de beneficiários por Unidades da Federação – Brasil, junho 2009 Taxas de cobertura Unidades da Federação Nº de beneficiários

Até 5 % Roraima 8.853 Maranhão 285.839 Tocantins 56.943 De 5,1 a 10 % Acre 40.851 Amapá 59.260 Rondônia 101.387 Pará 653.209 Mato Grosso 294.395 Bahia 1.348.373 Piauí 169.881 Paraíba 309.452 Alagoas 270.806 10,1 a 20 % Amazonas 357.951 Distrito Federal 727.548 Goiás 639.721

Mato Grosso do Sul 335.160

Paraná 2.134.842

Rio Grande do Sul 2.153.310

Ceará 883.867

Rio Grande do Norte 438.625

Sergipe 223.259

Pernambuco 1.231.814

20,1 a 30 % Espírito Santo 938.497

Minas Gerais 4.230.228

Santa Catarina 1.330.233

Acima de 30 % Rio de Janeiro 5.388.435

São Paulo 16.882.372

Brasil ~ 41.495.000

FONTE: Sistema de Informações de Beneficiários ANS/MS06/2009 População – IBGE/Datasus 2009.

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Tabela 5. Evolução das taxas de cobertura (%) de planos privados e das taxas de crescimento do número de beneficiários (%) em relação a dezembro do ano anterior – Brasil, 2003-2009

Ano Taxas de cobertura Taxas de crescimento

de planos privados do número de beneficiários

2003 17,7 0,9 2004 18,1 6,3 2005 18,5 5,2 2006 19,2 5,3 2007 19,9 5,1 2008 21,0 5,7 2009 21,7 0,9

FONTE: Sistema de Informações de Beneficiários ANS/MS06/2009 População – IBGE/Datasus 2009.

Tabela 6. Receita de contraprestações das operadoras médico-hospitalares – Brasil 2003-2009

Ano Receita das operadoras médico-hospitalares (em R$)

2003 28.014.761.445 2004 31.619.718.183 2005 36.373.157.129 2006 41.111.274.498 2007 50.686.440.441 2008 59.180.046.949 2009 (jan-jun) 28.995.201.546

FONTE: Documento de Informações Periódicas das Operadoras de Planos de Saúde (DIOPS).

NOTA: as operadoras da modalidade autogestão passaram a informar suas receitas e despesas, obrigatoriamente, a partir de 2007.

Referências Livros

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