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Cláusulas restritivas (inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade) apostas à legítima: uma análise civil-constitucional sobre as possibilidades de flexibilização

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DEPARTAMENTO DE DIREITO

LEONARDO MARCIO LAUREANO

CLÁUSULAS RESTRITIVAS (INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE) APOSTAS À LEGÍTIMA: UMA ANÁLISE

CIVIL-CONSTITUCIONAL SOBRE AS POSSIBILIDADES DE FLEXIBILIZAÇÃO

FLORIANÓPOLIS - SC 2013

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CLÁUSULAS RESTRITIVAS (INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE) APOSTAS À LEGÍTIMA: UMA ANÁLISE

CIVIL-CONSTITUCIONAL SOBRE AS POSSIBILIDADES DE FLEXIBILIZAÇÃO

Trabalho de Conclusão apresentado ao Curso de Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Fe-deral de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacha-rel em Direito.

Orientadora: Professora Renata Raupp Gomes, Msc.

FLORIANÓPOLIS - SC 2013

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AGRADECIMENTOS

A Deus, em primeiro lugar, pela força e pela coragem durante toda esta longa cami-nhada. Registro que a religiosidade, ainda que vista por alguns como fraqueza e por outros como irrealismo, em minha vivência alçou-se a um refúgio, um porto seguro tanto para mo-mentos de tristeza quanto de alegria, com um conforto incondicional.

Aos meus pais, Cleusa e Marcio, por absolutamente tudo, nunca tendo medido esfor-ços para que eu chegasse até esta etapa de minha vida. Consigno meu agradecimento pelos sentimentos expressados pelas noites mal dormidas, seja de preocupação com minhas angús-tias e meus anseios, seja por se solidarizarem com minhas comuns madrugadas de estudo; também pelo apoio constante e a flexibilidade nos planos e nos horários para atenderem à minha agitada rotina e a minhas exigentes vontades; ainda, pelo irrestrito dispêndio financeiro em meus projetos profissionais e pessoais, sempre na certeza de que faziam bons investimen-tos, e não meros gastos. Mamãe e papai, cada um de seus atos foi uma oportunidade que tive para crescer e me tornar o que sou.

A meu irmão, Vitor, pelo apoio constante e pela estima incondicional, o que, felizmen-te, posso dizer ser recíproco. Todos os momentos que compartilhamos, bons ou ruins, em es-pecial aqueles em que divergimos, sempre me fazem perceber, ainda que paradoxalmente, como somos parecidos e como nos preocupamos um com o outro.

A toda minha família, pela confiança, pelo apoio, pelo incentivo, pela força e, princi-palmente, pelo carinho.

À professora Renata Raupp Gomes, pela paciência na orientação e no incentivo que tornaram possível a conclusão deste trabalho. Registro a gratidão e a honra de ter sido aluno e orientando de tão especial pessoa, pela qual nutro inarredáveis respeito e admiração, seja pelo singular conhecimento, seja pelo jeito ímpar de ser e de lidar com o próximo.

Aos demais professores do curso, os quais foram tão importantes em minha vida aca-dêmica e no desenvolvimento desta monografia. Destaco especial agradecimento à professora Leilane Mendonça Zavarizi da Rosa, por quem tive a honra de ser introduzido ao fascinante mundo do Direito Civil; ao professor Alexandre Morais da Rosa, o qual me mostrou que o Processo Penal sob o olhar garantista não é tão impraticável quanto pregam as vertentes con-servadoras; e ao professor Ubaldo Cesar Balthazar, que me apresentou importantes lições acerca do Direito Tributário, trazendo, com cada uma de suas contextualizações, a visão de

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que o Direito caminha com a história, devendo-se sempre buscar em sua origem a melhor compreensão de sua razão de ser.

Às amizades de graduação: Luísa, dupla constante desde os primeiros dias de aula, com quem dividi não apenas aulas, estudos, trabalhos e provas, mas também angústias pesso-ais e profissionpesso-ais, especialmente estas, porquanto partilhados entre nós os mesmos questio-namentos e dúvidas quanto à carreira e ao futuro; Beatriz, pessoa de energia e felicidade con-tagiantes, além do surpreendente comum excesso de energia, que sempre muito me alegrou em nossas conversas e brincadeiras, seja com filosóficas frases, seja com cômicas figuras, com mútuo incentivo a que objetivos e anseios, tanto pessoais quanto profissionais – ainda que altos –, sejam sempre perseguidos e, possivelmente, alcançados; Ana Sofia, com quem partilhei risadas e cujo carinho inigualável e a sinceridade sempre presente trouxeram um rea-lístico conforto, além de ter me mostrado que nossos sonhos nem sempre estão onde estamos e junto do que fazemos, devendo-se buscá-los não importa onde e não importa como; Aline, pelas teses balizadas em posicionamentos doutrinários ou jurisprudenciais isolados que apor-tava em minutos pré-prova para um coletivo desespero, e também pelos inesperados – mas sempre agradáveis – carinhos; Adriana, por me mostrar, com seus sempre criativos trocadi-lhos jurídicos, que a vida, após a entrada num curso de Direito, nunca mais é a mesma, mas que não precisa ser sempre tão séria; Luiza, cuja sinceridade e franqueza sempre me permiti-ram aprender e olhar as situações com olhos mais práticos e racionais; Joana, por ter me mos-trado que o convívio com o próximo é uma árdua tarefa, mas moralmente recompensadora; e Camila, cujas risadas e histórias sempre engraçadas muito me divertiram, mas sempre me surpreendendo com seu maduro senso de responsabilidade.

Às amizades do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina: Mariah, cujo jeitinho especial fez com que em pouco tempo de convívio nos tornássemos antigos amigos, sendo daquelas pessoas com as quais se pode ficar sem falar por meses, mas toda vez que se encon-tra vê-se que a amizade permaneceu intacta, cabendo regisencon-trar, ainda, o imenso prazer que tive em recebê-la e o bem que me fez a sua visita quando residi em terras além-mar; e Marina, com carinha de menina, mas sabedoria de mulher, sempre me dando bons conselhos e bem me orientando em minhas incertezas profissionais.

Aos amigos aqui não listados, mas cuja importância e gratidão não por isso são dimi-nutas, e aos colegas, pelo incentivo e apoio constantes.

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“De Anás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrom-pida pelas facções, pelos demagogos e pelos go-vernos.

A sua fraqueza, a sua inocência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repú-blicas, de cada vez que um tribunal sofisma, ter-giversa, recua, abdica.

Foi como agitador do povo e subversor das insti-tuições que se imolou Jesus.

E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de ideias ge-nerosas, um confessor da lei, um educador do po-vo, é esse, a ordem pública, o pretexto, que re-nasce, para exculpar as transações dos juízes tí-bios com os interesses do poder.

Todos esses acreditam, como Pôncio, salvar-se, lavando as mãos do sangue, que vão derramar, do atentado, que vão cometer.

Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pes-soal, subserviência, espírito conservador, inter-pretação restritiva, razão de estado, interesse su-premo, como quer te chames, prevaricação judi-ciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos!

O bom ladrão salvou-se.

Mas não há salvação para o juiz covarde”.

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RESUMO

LAUREANO, Leonardo Marcio. Cláusulas restritivas (inalienabilidade, incomunicabili-dade e impenhorabiliincomunicabili-dade) apostas à legítima: uma análise civil-constitucional sobre as possibilidades de flexibilização. 2013. 173 f. Monografia (Graduação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Curso de Graduação em Direito, Florianópo-lis, 2013.

A Constituição da República Federativa do Brasil consubstanciou importante conjunto de princípios aptos a regerem, de plano, todo o sistema jurídico nacional, nascendo com papel de depositante primeiro do seio legislativo e consagrando disposições normativas aptas à unifica-ção do ordenamento, em especial por serem parâmetros de exame e interpretaunifica-ção dos demais regramentos. Assim, o presente estudo objetivou, a partir de um exame civil-constitucional, identificar os permissivos de flexibilização das cláusulas testamentárias restritivas de inalie-nabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade incidentes sobre os bens da legítima para além das situações legalmente previstas. O tema se apresenta atual, pois, apesar de vigente há mais de uma década, as discussões sobre as mudanças trazidas pelo Novo Código Civil acerca das cláusulas testamentárias e suas possibilidades de incidência persistem, e têm levado, nos últimos anos, contendas ao Poder Judiciário, mas ainda sem um posicionamento definido. A partir de um exame de princípios fundamentais, como direito à herança, dignidade da pessoa humana e função social da propriedade, e do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, demonstra-se a predominância dos princípios constitucionais e da própria vontade do testador, no sentido de sua intenção, em complemento às previsões legais. Conclui-se, então, pela possibilidade de flexibilização das cláusulas, na medida em que, decorrendo da vontade do testador de não deixar desprotegidos os seus herdeiros, devem ser relativizadas para permi-tir-lhes sobrevivência e bem-estar, o que se consubstancia na prevalência da dignidade da pessoa humana, e, também, para uma melhor adequação do patrimônio à sua função social, atendendo às necessidades do seu proprietário.

Palavras-chave: Monografia, Cláusulas testamentárias, Inalienabilidade, Incomunicabilidade, Impenhorabilidade, Legítima, Flexibilização, Constitucionalização do Direito Civil, Função social da propriedade, Dignidade da pessoa humana.

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ABSTRACT

LAUREANO, Leonardo Marcio. Restrictive clauses (inalienability, incommunicability and unseizability) apposed to the legitimate: a civil-constitucional analysis of the possibili-ties of flexibilization. 2013. 173 p. Monograph (Graduation) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Curso de Graduação em Direito, Florianópolis, 2013. The Constitution of the Federative Republic of Brazil embodies an important set of principles that lead the entire national legal system, playing the role of the first legislative depositor and consecrating normative instructions capable of unifying the normative system, especially for serving as a parameter to the examination and interpretation of other regulations. Thus, from a civil-constitutional view, the present study aims to identify the possibility of easing the testa-mentary restrictive clauses of inalienability, non-transferability and unseizability on the goods of the legitimate beyond the legally established situations. Although it exists for over a dec-ade, this issue is still up to date, once the discussions of changes brought up by the New Civil Code on testamentary clauses and their incidence possibilities persist, and have led, in the last years, to disputes in the Judiciary, still with no definite positioning. From an examination of fundamental principles, such as inheritance rights, human dignity and social function of prop-erty, and the constitutionalization of the Civil Law phenomenon, the predominance of consti-tutional principles and the own will of the testator is demonstrated, in the sense of his inten-tion, in addition to the legal provisions. The conclusion, then, is for the possibility of easing the clauses. Once the will of the testator is not to leave his heirs unprotected, these clauses must be relativized in order to allow them the survival and the well-being, which is embodied in the principle of the human dignity, and also for a better adequacy of the heritage to its so-cial function, meeting the needs of its owner.

Key-words: Monograph, Testamentary clauses, Inalienability, Incommunicability, Unseiza-bility, Legitimate, Flexibilization, Constitutionalization of civil law, Social function of prop-erty, Dignity of the human being.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1 DOS HERDEIROS NECESSÁRIOS E DA LEGÍTIMA ... 12

1.1 Direito de herança como direito fundamental ... 12

1.2 Proteção à legítima no Código Civil ... 21

1.3 Caráter do direito à legítima ... 38

2 DO TESTAMENTO E DE SUAS CLÁUSULAS RESTRITIVAS ... 59

2.1 Testamento como expressão máxima da vontade do testador ... 59

2.2 Cláusulas restritivas e suas possibilidades de incidência ... 74

2.3 Hipóteses legalmente previstas de relativização das cláusulas ... 95

3 DAS POSSIBILIDADES DE FLEXIBILIZAÇÃO ... 111

3.1 Constitucionalização do Direito Civil ... 111

3.2 Necessidade de adequação do patrimônio à sua função social ... 119

3.3 Dignidade do herdeiro e suas garantias de sobrevivência e bem-estar... 148

CONCLUSÃO ... 166

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INTRODUÇÃO

As disposições consagradas pela Constituição da República Federativa do Brasil, num contexto de redemocratização, após longo período ditatorial, consubstanciaram importante conjunto de princípios aptos a regerem, de plano, todo o sistema jurídico nacional. Passou-se de um ordenamento em que prevalentes os preceitos da ordem liberal – centrando-se no pa-trimônio e no indivíduo como fonte econômica – para um sistema dotado de dominância cole-tiva – regido pelo predomínio social e do interesse de todos em desfavor do patrimonialismo absoluto.

O estabelecimento de princípios maestros de toda a ordem jurídica, numa acepção úl-tima e inegável, demanda interpretação da legislação inferior à luz de tais preceitos. Outros-sim, também em seio constitucional restaram inseridas disposições com caráter de regra, al-cançando-se ao contexto fundamental arranjos até então vinculados apenas ao interesse priva-do e à legalidade infraconstitucional. A Carta Cidadã nasce, então, com papel de depositante primeiro do seio legislativo, consagrando disposições normativas aptas à unificação do orde-namento, em especial por serem parâmetros de exame e interpretação dos demais regramen-tos.

Nesse sentir, não se abstrai da regra o Direito Civil, tradicional ramo regente dos inte-resses particulares e, até então, centro do sistema normativo. A consagração constitucional de disposições antes a ele inerentes, bem como a sua submissão a uma leitura a partir da ótica do texto fundamental, modifica-lhe a essencialidade privada e concede-lhe uma feição social, de sorte a relativizar compreensões reverberantes de seus mais antigos institutos. Nesse esteio, como ramo componente do Direito Civil, o direito das sucessões também se submete aos pre-ceitos elementares da Carta Fundamental, orientando-se pelos princípios nela contidos.

Sob tais premissas, o testamento, um dos institutos sucessórios de mais longínqua ori-gem na história da humanidade e que se consubstancia na expressão máxima da vontade últi-ma do testador, tem suas disposições, em especial as restritivas, submetidas ao exame consti-tucional. Se, por um lado, concede-se ao testador a possibilidade de que aponha cláusulas res-tritivas – inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade – sobre os bens da legíti-ma, ainda que exija o legislador infraconstitucional estrito cumprimento de requisitos rigoro-samente previstos, de outro, por vezes, apresenta-se a manutenção dos gravames como

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proce-der aparentemente incompatível com os preceitos constitucionais, não se mostrando suficien-tes as hipósuficien-teses legalmente previstas de relativização com consequente sub-rogação.

Diante de tal cenário, o presente estudo enfoca-se num exame dos institutos envolvi-dos na temática, tanto de ordem civil quanto constitucional, de modo a perquirir seus mean-dros e constatar suas extensões. Assim, envereda-se pela identificação de permissivos de fle-xibilização das cláusulas testamentárias restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade incidentes sobre os bens da legítima para além das situações legalmente previstas. A hipótese prefacial é pela possibilidade, na medida em que, decorrendo tais cláu-sulas da vontade do testador de não deixar desprotegidos os seus herdeiros, devem ser relati-vizadas para permitir-lhes sobrevivência e bem-estar e, também, para uma melhor adequação do patrimônio à sua função social, atendendo às necessidades do seu proprietário.

Com tal intuito, desenvolve-se o trabalho com lastro no método dedutivo, por meio do procedimento de análise bibliográfica e de configuração dos preceitos teóricos em casos con-cretos.

Acerca da atualidade do tema, verifica-se que, apesar de vigente há mais de uma déca-da, as discussões sobre as mudanças trazidas pelo Novo Código Civil acerca das cláusulas testamentárias e suas possibilidades de incidência persistem, e têm levado, nos últimos anos, contendas ao Poder Judiciário. Analisada a questão em enfoque recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, mas ainda sem um posicionamento definido, em consideração à força conferida aos direitos e garantias fundamentais pela Constituição da República Federativa do Brasil, novas hipóteses de flexibilização das cláusulas testamentárias têm sido conferidas pe-las instâncias ordinárias para além daquepe-las legalmente previstas.

Outrossim, a discussão acerca das cláusulas restritivas incidentes sobre os bens da le-gítima e suas hipóteses de abrandamento se mostra relevante por envolver uma reflexão a respeito de corolários fundamentais, como direito à herança, dignidade da pessoa humana e função social da propriedade, de forma a demonstrar a predominância dos princípios constitu-cionais e da própria vontade do testador, no sentido de sua intenção, em complemento às pre-visões legais.

Ainda que o tema já comporte discussões na doutrina e na jurisprudência, tal tem ocor-rido de forma perfunctória, restando dispersas as manifestações quanto às hipóteses de abran-damento. Nesse sentido, visualizando-se a relevância do tema por envolver valores fundamen-tais e a dispersão jurisprudencial quanto às hipóteses de flexibilização, um estudo unificado na academia se apresenta inovador. Além disso, tendo-se em conta que o testamento se consti-tui em instituto com origem histórica longínqua, apresentando-se como manifestação máxima

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da vontade do testador, e, nesse norte, também, as cláusulas restritivas, além de se visualiza-rem as discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema, controversa resta a questão, instigando-se o interesse pela pesquisa e por uma análise mais completa da temática.

O estudo se divide, para fins didáticos, em três capítulos, subdividindo-se, cada um, em três tópicos. O primeiro capítulo, sob a denominação “Dos Herdeiros Necessários e da Legítima”, discorre, inicialmente, acerca do direito à herança alçado à garantia de direito fun-damental, em seus desdobramentos e características à luz da doutrina e da legislação. Caracte-riza, também, o direito à legítima, constatando os preceitos filosóficos, sociais e jurídicos que lhe conferem sustentáculo, descrevendo as hipóteses de sua proteção específica no Código Civil, expondo de que forma se apresentam como limitações ao testador na disposição de seus bens. Analisa, ainda, o efetivo caráter do direito à legítima, individualizando as possibilidades de indignidade, deserdação e imposição de cláusulas restritivas.

No prosseguir, o segundo capítulo, intitulado “Do Testamento e de suas Cláusulas Restritivas”, destina-se a expor a evolução do instituto do testamento, verificando o posicio-namento histórico e doutrinário acerca de sua concepção essencial como expressão máxima da vontade do testador. Em seguida, conceitua as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabi-lidade e impenhorabiincomunicabi-lidade incidentes sobre os bens da legítima, constatando as possibilida-des e os requisitos legais para sua imposição. Enfim, constata as situações legalmente previs-tas de relativização das cláusulas restritivas, com suas causas e efeitos.

O terceiro e último capítulo, denominado “Das Possibilidades de Flexibilização”, dis-corre, num primeiro momento, sobre o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, tanto na feição de inclusão de disposições de caráter tradicionalmente civilista no seio consti-tucional quanto na força normativa de seus princípios, compelindo um exame de todo o re-gramento infraconstitucional sobre sua prevalente ótica. Empós, incursiona-se sobre o princí-pio fundamental da função social da propriedade e suas consequências como possibilidade de flexibilização das cláusulas restritivas, com constatação de precedentes dos tribunais nacio-nais sobre a temática. Por fim, examina-se o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e suas imbricações como possibilidade de abrandamento das cláusulas restritivas in-cidentes sobre os bens da legítima para que o herdeiro tenha assegurados a sua sobrevivência e o seu bem-estar, em cotejo final com o acervo jurisprudencial pátrio.

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1 DOS HERDEIROS NECESSÁRIOS E DA LEGÍTIMA

“O direito sucessório remonta a mais alta antigui-dade. Perde-se sua origem na noite dos tempos [...]”.

(WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO)

1.1 Direito de herança como direito fundamental

Os direitos fundamentais do homem encontram sua origem mais longínqua na antigui-dade, já preceituados, ainda que numa compreensão primitiva, pelos filósofos gregos. Assu-miram maior relevo, porém, quando iniciada a concepção democrática ocidental, com o Esta-do governaEsta-do pelo povo, mediante representantes eleitos, os quais, atuanEsta-do como mandatá-rios, passaram a decidir o rumo da nação. Não obstante fossem democraticamente escolhidos, o poder a eles delegado não possuía feição absoluta, conhecendo diversas limitações, como a previsão de direitos e garantias individuais e coletivas, dos cidadãos quanto a seus pares e, também, relativamente ao Estado (MORAES, 2012, p . 28).

Dessa forma, consoante lição de José Joaquim Gomes Canotilho (1993, p. 541), com-portam os direitos fundamentais

[...] a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) cons-tituem, num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os pode-res públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positiva-mente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade nega-tiva).

Por tais razões, com o surgimento das constituições escritas, fundamentadas estas nas precursoras declarações dos direitos do homem, teve início a positivação de aludidos direitos, no intuito primevo de estabelecer limites ao poder público, incorporando-se direitos subjeti-vos do homem em normas fundamentalmente básicas, o que retirou seus reconhecimento e garantia da atribuição do legislador ordinário (MORAES, 2012, p. 28).

A evolução dos direitos fundamentais do homem no evolver histórico, com suas am-pliação e transformação, conforme pontua José Afonso da Silva (2010, p. 175), porém, ense-jou dificuldade na construção de um conceito sintético e preciso que bem lhes representasse. Nesse sentido, prossegue o autor – no que é acompanhado por Ingo Wolfgang Sarlet (2003, p. 31) –, sobreleva-se a problemática com a multiplicidade de expressões adotadas para designá-los, dentre as quais se faz possível destacar: direitos naturais, direitos do homem, direitos

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hu-manos, direitos públicos subjetivos, direitos individuais, liberdades públicas, liberdades fun-damentais e direitos funfun-damentais do homem.

A confusão conceitual, como se colhe das ensinanças de Cleyson de Moraes Mello (2013, p. 195), alcançou o texto constitucional brasileiro, aparecendo os direitos fundamentais sob variadas denominações, tais como: direitos humanos (artigo 4º, inciso II), direitos e ga-rantias fundamentais (Título II e artigo 5º, § 1º), direitos e liberdades constitucionais (artigo 5º, inciso LXXI) e direitos e garantias individuais (artigo 60, § 4º, inciso IV).

Sob esse prisma, de relevo a conclusão de José Afonso da Silva (2010, p. 178), o qual elege direitos fundamentais do homem como a mais adequada expressão,

[...] porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para desig-nar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concre-tiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do

homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana.

Os direitos fundamentais, no seio do pergaminho republicano, dada sua alta relevân-cia, mereceram especial garantia: a da imutabilidade, o que lhes conferiu a denominação dou-trinária – respaldada pela jurisprudência – de cláusulas pétreas (TAVARES, 2007, p. 103). Esta é a interpretação que se retira da Carta Federal quando dispõe, em seu artigo 60, § 4º, inciso IV, que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir [...] os direitos e garantias individuais”. Isto propicia, conforme ensina Raúl Canosa Usera (1988

apud TAVARES, 2007, p. 103), “uma proteção agregada em benefício de certas partes da

Carta que o constituinte considerou credoras de um plus de segurança. [...]. Quer isto dizer que implicitamente se reconhece a estes uma certa importância, a suficiente para endurecer seus mecanismos de garantia”.

O catálogo de direitos fundamentais consagrados na Constituição da República, em que pese concentrado em seu Título II (artigos 5º a 17), especialmente no artigo 5º do papiro basilar, do qual se retiram as mais preciosas garantias, a tal parte do texto não se limita: a uma, por não haver o legislador constituinte registrado qualquer taxatividade; a duas, pela cláusula de abertura contida no artigo 5º, § 2º, da Cártula Federal, que consagra não excluírem os direitos e garantias nela expressos outros provenientes do regime e dos princípios por ela adotados, bem como aqueles provenientes de tratados internacionais dos quais o País seja parte; e, a três, em especial exegese à disposição anterior, por decorrerem todos os direitos fundamentais, duma forma ou doutra, de uma concretização do princípio da dignidade da

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pes-soa humana (artigo 1º, inciso III, da Carta do Povo), o qual se constitui num preceito herme-nêutico aberto e que urge seja harmonizado com a diversidade de valores manifestados por sociedades complexas e plurais, demandando a ampliação da fundamentabilidade a direitos outros que não os sob esta denominação expressamente previstos (MELLO, 2013, p. 195-196).

Nesse contexto, tem-se inserido no Capítulo I, “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, do Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, mais especificamente es-culpido no artigo 5º, inciso XXX, da Magna Carta, ser garantido o direito à herança. A

heran-ça consiste, como bem doutrina José Afonso da Silva (2009, p. 126), tanto num modo de

transmissão da propriedade em razão da morte de seu titular (transmissão causa mortis) quan-to num dos modos de aquisição da propriedade.

Ainda, na lição de José da Silva Pacheco (2008, p. 279), “ao patrimônio que, ao fale-cer, alguém deixa, testado ou intestado, denomina-se herança, que se transmite, com a abertu-ra da sucessão, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Nesse norte, acresce Sílvio de Salvo Venosa (2009, p. 7), herança é o patrimônio do de cujus – expressão que designa o morto, provindo da expressão latina de cujus sucessione agitur –, sendo o conjunto de direitos de ordem real e obrigacional, ativos e passivos, pertencentes ao autor da herança – denominação também conferida ao falecido. Contém, como transmissíveis, bens materiais ou imateriais, porém, sempre coisas passíveis de avaliação econômica. Os direitos e deveres meramente de ordem pessoal – como tutela, curatela, cargos públicos –, noutro vértice, extinguem-se com a morte, bem como os direitos personalíssimos.

Conforme José Afonso da Silva (2009, p. 126), herança quer significar a universalida-de universalida-de bens – compreenuniversalida-dendo coisas, direitos, créditos e débitos – transmitidas pelo finado para seus sucessores, conforme a ordem de vocações hereditárias. Sob tal prisma, prossegue o autor, direito de herança consiste no direito reconhecido a alguém de receber os bens do de-funto tão somente em consequência de sua morte – do brocardo latino hereditas hihil aliud

est, quam sucessio in universum ius quod defunctus habuerit.

O doutrinador continua com a exploração conceitual, alertando acerca de sua dupla utilização: tanto em sentido estrito quanto em sentido lato. No primeiro, restringe-se à trans-missão do espólio – conjunto dos bens do morto –, de forma direta, aos herdeiros necessários – descendentes, ascendentes e cônjuge sobrevivente – somente pela ocorrência fática da morte do titular do patrimônio, o que se convencionou chamar de sucessão legítima. No segundo, abarca tanto esta sucessão quanto a sucessão testamentária universal, mas não a legatária, dado que legado e herança não se confundem. Questiona-se o mestre, por conseguinte, qual

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teria sido o sentido adotado pelo constituinte originário, ao que responde, de plano: os dois, esclarecendo que

No sentido estrito, especialmente, porque o que a norma quer, em primeiro lugar, é assegurar a sucessão legítima, sempre que existam descendentes ou, na falta, ascen-dentes. [...]. A Constituição garante o direito de herança, mas não configura sua ex-tensão, de sorte que a reserva da legítima está agora constitucionalizada – o que ape-nas significa que a lei ordinária não pode eliminá-la. No sentido lato, secundaria-mente, porque fica também garantida a possibilidade de instituir herdeiros testamen-tários de todos os bens, sempre que não houver herdeiros necessários. Nesse aspec-to, garante-se também a herança testamentária – o que é relevante, porque impede que a lei ordinária disponha que, na falta de herdeiros necessários, os bens se trans-mitam, ope legis, para o Estado.

O fundamento do direito à herança, por sua vez, como preleciona Washington de Bar-ros Monteiro (2009, p. 2), “remonta a mais alta antiguidade. Perde-se sua origem na noite dos tempos, parecendo que se prende à comunidade da família, de que se constituiria prolonga-mento natural”. Sob esse prisma, pontua Sílvio de Salvo Venosa (2009, p. 4) que “o homem, pouco importando a época ou sua crença, sempre acreditou, ou ao menos esperou, poder transcender o acanhado lapso de vida”, pelo o que, no âmbito sucessório, “não se pode aplicar o brocardo mors omnia solvit, uma vez que as relações jurídicas permanecem após a morte do titular”.

A primeira concepção de tal direito, narra Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 25), foi de ordem religiosa. Na origem das civilizações, a propriedade era familiar e chefiada pelo varão mais velho, o qual tomava o lugar do de cujus, tendo a si transferida a soberania famili-ar e a continuação do culto doméstico.

Dessa forma, argumenta Washington de Barros Monteiro (2009, p. 2), deixando o fi-nado filhos e filhas, estas não herdariam, sendo porque assim era ditado, disposto em lei ou em virtude de imposta renúncia, restringindo-se sua participação no patrimônio à aceitação de simples dote. Exemplo clássico oriundo de tal tradição foi a Lei Sálica, a qual apenas incluía os varões na distribuição da propriedade imobiliária, bem como excluía do trono francês as mulheres e seus descendentes. O diploma foi introduzido na Espanha pela dinastia dos Bour-bons, vindo a ser revogado apenas em 1830. Também na Alemanha foi implantada a dita lei, limitando-se o direito de herança à linha varonil. Sob as mesmas premissas, tivemos a Lei Vocônica, a qual, por certo período, buscou colocar um freio à dissipação e à independência das mulheres no direito romano, privando-as de capacidade testamentária passiva. O diploma, porém, contrário à equidade e à própria natureza, foi logo revogado. Atualmente, vê-se persis-tir a desigualdade de sexos em matéria sucessória apenas na Escócia, na Sérvia e no mundo islâmico – neste, particularmente, o varão recebe o dobro da porção correspondente às mulhe-res.

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No prosseguir da história, dita Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2003 apud GONÇALVES, 2012, p. 25), com a individualização da propriedade, deslocou-se o funda-mento da herança para a necessidade de que fosse conservado o patrimônio dentro de um mesmo grupo, mantendo-se o poder da família e impedindo-se a divisão da fortuna entre a – não incomum – numerosa prole. Nesse contexto, no período medieval, fortaleceu-se a antiga, mas ainda dissipada na acepção sociológica, progenitura.

O princípio, da mais remota origem, inclusive bíblica – como se retira do episódio de Esaú e Jacó –, consoante Washington de Barros Monteiro (2009, p. 2-3), encontrou sua mais forte expressão no direito feudal, no qual predominava o desejo de manter a propriedade nas mãos de um único ramo familiar. Assim, mantinha-se o primogênito com a totalidade da he-rança, ficando na opulência, enquanto jaziam os demais na pobreza, subordinados, tanto soci-al quanto economicamente, à autoridade daquele. Contemporaneamente, expurgado dos orde-namentos, persevera o direito em comento apenas na Escócia, em contraponto, inclusive, com outros costumes de certas regiões da Inglaterra, ora revogados, segundo os quais se recolhiam os bens em favor do caçula – ao que se denominava de tenures of socage.

Malgrado antigas regras, as ordens jurídicas modernas, conforme narra Sílvio Rodri-gues (2003, p. 5), imbuídas de um sentimento de equidade, passaram a instituir um tratamento mais igualitário aos herdeiros, conferindo, ao menos no que concerne à sucessão legítima, partes iguais aos herdeiros em iguais condições – em mesma classe e grau.

Para alguns autores, consoante lição de Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 25-26), funda-se o direito à herança na própria continuidade da vida humana, através das gerações. Haveria, portanto, no direito hereditário, “uma sequência de hereditariedade biopsicológica entre ascendentes e descendentes, não só das características genéticas como também das ca-racterísticas psicológicas”. Assim, ao prever a lei a transmissão patrimonial causa mortis, faz-se em atenção à aludida continuidade biopsíquica, como também em razão da afeição e da unidade familiar.

A tese, porém, recebe severa crítica de Washington de Barros Monteiro (2009, p. 7), segundo o qual peca tal fundamento de manifesta fragilidade, dado que “a sequência da vida humana não depende da sucessão, ela subsiste sem esse instituto, porque se subordina preci-puamente ao instituto sexual”. Ademais, pondera o autor, tal doutrina tem a aptidão apenas de explicar a transmissão da herança entre ascendentes e descendentes, mas não a sucessão entre cônjuges, colaterais e do de cujus para com o Estado.

Por conseguinte, “o verdadeiro ponto de vista é aquele que, sem perder a visão de seu aspecto econômico, descortina no direito das sucessões natural complemento do direito de

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propriedade, projetando-se além da morte do autor da herança conjugado ou não com o direito de família”. Arremata, então, o doutrinador, afirmando que a propriedade que se extingue com a morte do respectivo titular e não se transmite a um sucessor não é propriedade, senão mero usufruto. Sob esse prisma, conclui que “a propriedade não existiria se não fosse perpétua, e a perpetuidade do domínio descansa precisamente na sua transmissibilidade post mortem”.

O entendimento vem respaldado pelo constitucionalista José Afonso da Silva (2010, p. 277), o qual aduz ser o direito à propriedade caracterizado, tradicionalmente, como absoluto,

exclusivo e perpétuo, descrevendo-o como

Absoluto, porque assegura ao proprietário a liberdade de dispor da coisa do modo

que melhor lhe aprouver; exclusivo, porque imputado ao proprietário, e só a ele, em princípio, cabe; perpétuo, porque não desaparece com a vida do proprietário, por-quanto passa a seus sucessores, significando que tem duração ilimitada (CC, art. 1.231), e não se perde pelo não uso simplesmente.

Em paralelo à concepção mais patrimonial, tem-se a feição social, apontando Wa-shington de Barros Monteiro (2009, p. 8) não poder persistir como coletividade nuclear, célu-la do Estado, a família desprovida do direito de recolher patrimônio deixado por um de seus membros. Nessa seara, relata o autor, houve quem afirmasse ser o direito sucessório, em es-sência, uma lei de família. Esta foi a compreensão proclamada por Savigny, o qual, nas pala-vras daquele jurista, entendeu “que o direito das sucessões se tornaria ininteligível se não lhe fosse dada por base exposição pormenorizada e completa da família”.

Prossegue o autor ressaltando que o direito de herança tem seu fundamento na impor-tante função social que exerce, pois que conserva unidades econômicas a serviço do bem co-mum. Um improdutivo dispêndio de energia ocorreria, por evidente, caso devessem tais uni-dades desaparecer com o falecimento das pessoas que as criaram e mantiveram, com a impos-ta resimpos-tauração por outros indivíduos. Desimpos-ta feiimpos-ta, possui a sociedade “o maior interesse na subsistência da herança, porque, com a sucessão, sobrevivem tais unidades, sem solução de continuidade, em benefício geral”, pelo o que registra o aclamado mestre ter agido com acerto o constituinte originário ao inserir no seio da Aquarela do Povo a garantia de herança.

A ideia é proclamada pela doutrina portuguesa, aduzindo José de Oliveira Ascensão (2000, p. 13) ser a exigência de continuidade da pessoa humana, efetivamente, um dos fun-damentos da sucessão causa mortis, ou seja, o direito à herança consubstancia “a finalidade institucional de dar continuidade possível ao descontínuo causado pela morte”, manifestando-se tanto numa concepção individual quanto coletiva.

Na primeira expressão – individual –, busca assegurar finalidades próprias do falecido, ainda que para além de seu desaparecimento físico – para tanto, suficiente é a importante

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fei-ção conferida ao testamento. No segundo contexto – coletivo –, tem-se a continuidade na vida social, porquanto desta o de cujus participou, celebrando contratos, contraindo dívidas, pelo o que desarrazoado seria quebrar tais vínculos com a morte, frustrando justas expectativas, tanto de fato quanto de direito. Assim, dita o mestre lusitano, faz-se “necessário, para evitar sobres-saltos na vida social, assegurar que os centros de interesses criados à volta do autor da suces-são prossigam quanto possível sem fraturas para além da morte deste”.

Complementa Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2007 apud TARTUCE 2013, p. 1271), por sua vez, em compreensão mais sociológica, que o fundamento da herança não reside apenas na necessidade de continuidade patrimonial, isto é, na mantença pura e simples dos bens no seio familiar como forma de acumular capital e estimular a poupança, o trabalho e a economia, mas também e principalmente no “fator de proteção, coesão e de per-petuidade da família”.

Desta feita, consoante Flávio Tartuce (2013, p. 1271),

[...] conclui-se que o Direito Sucessório está baseado no direito de propriedade e na sua função social (art. 5º, XXII e XXIII, da CRFB). Porém, mais do que isso, a su-cessão mortis causa tem esteio na valorização constante da dignidade humana, seja do ponto de vista individual ou coletivo, conforme o art. 1º, III, e o art. 3º, I, da Constituição Federal.

Ao longo dos tempos, historia Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 26), o direito su-cessório tem sofrido severas impugnações, em especial, de jusnaturalistas e escritores da esco-la de Montesquieu e Rousseau, sustentando-se que a propriedade e a sucessão, como puras criações do direito positivo, podem ser por este a qualquer tempo eliminadas, tão logo isso passe a interessar às conveniências sociais.

Sob a mesma premissa crítica, podem ser mencionados os socialistas, para os quais é a herança contrária aos princípios da justiça e do interesse social, destacando-se que tanto a sucessão quanto a escravidão foram produtos, em verdade, da preguiça do ser humano. Com a herança, acumulam-se riquezas nas mãos de poucos indivíduos, o que proporciona maior de-sigualdade entre os homens (MONTEIRO, 2009, p. 5). No ponto, completa Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 7), acreditam os socialistas que a herança gera desestímulo, entregan-do-se a afortunadas mãos bens de cuja acumulação não participaram, ensejando facilidades que dispensam luta e produção, em desfavor da riqueza da coletividade.

Na medida em que entendem os socialistas pertencerem os bens ao Estado, recusando validade ao direito de propriedade privada, dizem que, com a morte, devem os bens ao seu proprietário – o Estado – retornar, em benefício de toda a comunidade, com o que negam legi-timidade à transmissão causa mortis de bens de produção e consumo, porquanto, se admitida

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esta fosse, estar-se-ia conferindo força às desigualdades sociais existentes e proporcionando a aquisição da propriedade por forma diversa do trabalho – o único modo socialmente aceito como apto a legitimar o uso dos bens pertencentes à sociedade como um todo (HIRONAKA, 2003 apud GONÇALVES, 2012, p. 27).

Defendem, portanto, os socialistas, consoante Washington de Barros Monteiro (2009, p. 5), que a única fonte de aquisição de bens deve ser o próprio trabalho, pelo o que não se deve receber, mediante herança, frutos do trabalho alheio, cabendo o retorno da fortuna do de

cujus à coletividade, que lhe conferirá aplicação mais adequada e útil aos interesses sociais.

Num contraponto, a tese daqueles que defendem a transmissão de bens por via heredi-tária funda-se no assento da riqueza da nação sobre a riqueza individual ou, ainda, como for-ma de desenvolver a poupança e de garantir, por meio da descendência, a continuidade do acumulado, em estímulo ao trabalho e à economia (PEREIRA, 2004, p. 7-8).

Luís da Cunha Gonçalves (1956, p. 467) já ensinava que, com a abolição da herança, a proposição socialista ensejaria a supressão de um dos mais fortes estímulos da atividade hu-mana, qual seja, o desejo de repassar à prole os meios aptos aos seus conforto e bem-estar. Além disso, exterminar-se-ia o espírito de poupança e capitalização, com elevação do desper-dício e fomento do comportamento pródigo – esvaece-se o interesse pela economia, sem pre-ocupação com o acúmulo patrimonial, porquanto relegados os bens, post mortem, à coletivi-dade.

Também, pontua o autor, haveria barreira a uma das fontes de renda estatal das mais apreciáveis: o imposto de transmissão causa mortis. Outrossim, na seara mais sociológica, retiraria uma das bases da coesão familiar, ficando seus membros fadados ao individualismo, à dissipação de forças e ao egoísmo personalista. No mesmo contexto, em favor da coletivi-dade, espoliar-se-ia a família – núcleo fundamental, a mais sólida base –, na qual se arquiteta toda a organização social, merecendo, em verdade, máximos resguardo e amparo.

Ainda, dita o jurista, não prospera o argumento de que o Estado faria uma melhor apli-cação do patrimônio, dado que repetitivos os casos de malversação de valores públicos. Por fim, assenta o doutrinador, de fácil burla seria a abolição da herança, na medida em que o indivíduo, em vida, poderia, exemplificativamente: fazer doação a seus pretensos herdeiros, ainda que com reserva de usufruto; simular ou confessar dívidas estrondosas, absorvedoras de seus bens, favorecendo aqueles que pretender aquinhoar.

O cotejo crítico entre as opiniões daqueles que são contrários e dos favoráveis ao direi-to de herança, na lição de Washingdirei-ton de Barros Monteiro (2009, p. 6), faz exsurgir um saldo de vantagens de se conservar o direito sucessório, cujo fortalecimento deve ser objetivado,

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dado que, como anteriormente aludido, “sem herança, incompleto se tornaria, efetivamente, o direito de propriedade. Ora, inexistente a possibilidade de transmissão causa mortis deste, não passaria o proprietário, em última análise, de mero usufrutuário vitalício”.

Nesse contexto, referencia o autor paulista a experiência da extinta União das Repú-blicas Socialistas Soviéticas, em que, no outubro seguinte à abolição da herança – promovida por decreto de 27 de abril de 1918 –, voltou-se atrás, possibilitando, num primeiro momento, a transmissão de importes que não ultrapassassem dez mil rublos ouro, cabendo o excedente ao Estado. Então, menos de duas décadas depois, em 5 de dezembro de 1936, a Constituição reestabeleceu, sem restrições, o direito de suceder.

A experiência russa demonstra, anota Sílvio Rodrigues (2003, p. 6), senão a impossibi-lidade, pelo menos a inconveniência de se suprimir o direito de herança, vez que, abolido este e suspensa a atuação do interesse pessoal, não se perseverou por muito tempo na vigência do ato proibitivo, dado que a adoção de tal agir supressivo ocasionou diversas e arrebatadoras consequências à economia nacional, o que forçou o legislador russo a recuar, restabelecendo, em menos de seis meses, a possibilidade da transmissão causa mortis.

Para Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 28), “enquanto perdurar a organização do Estado capitalista, fundado no princípio da livre iniciativa, e admitindo a apropriação privada dos bens de consumo e de produção, a herança subsistirá, como consequência natural e neces-sária”, tema sobre o qual também comenta Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 9-10), para quem os excessos da economia capitalista, ao menos no tocante à herança, podem ser adequa-dos, na medida em que equilibrados os princípios da restrição na ordem de vocação hereditá-ria e da tributação progressiva. Nesse sentido, prossegue o jurista,

A transmissão aos descendentes e ao cônjuge é a consequência normal desta tendên-cia de filosofia política. A sucessão dos ascendentes já seria um favor do Estado, porque não obedece ao mesmo critério de conservação dos bens acumulados no gru-po familiar, e de segurança aos dependentes. A dos colaterais não se compadece com esses princípios econômicos, salvo entre irmãos. Fora deste âmbito, já constitui fa-vorecimento. Limitada que seja a vocação hereditária aos descendentes, cônjuge, as-cendentes e irmãos, completar-se-ia a correção dos excessos com a incidência de imposto progressivo, em face do distanciamento em graus como do volume transfe-rido. Desta sorte, o Estado, pela tributação, associa-se aos sucessores, na medida em que o valor da herança aumenta e que a necessidade de proteção arrefece.

Acerca da sucessão testamentária, acresce o autor que esta encontraria seu embasa-mento “na necessidade de prover o finado à manutenção ou segurança de dependentes, como de gratificar ou mesmo remunerar pessoas que lhe houvessem prestado serviços ou favores, ou ainda testemunhar o seu afeto, gratidão ou homenagem a quem lhes fosse caro”, ponderan-do, na linha da sucessão legítima, que o tributo “coibiria os excessos, em face de sua progres-sividade”.

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Assim, faz-se inquestionável o interesse social na preservação do direito hereditário como um pilar do direito de propriedade, cabendo ao Estado – através da figura do poder pú-blico – garantir ao indivíduo a possibilidade de transmitir seus bens aos seus herdeiros, por-quanto tal ato estimula-os a cada vez mais produzir, em consonância com os objetivos da co-letividade (GONÇALVES, 2012, p. 29).

Nesse vértice, acrescenta Euclides de Oliveira (2004, p. 58) que

Há uma espécie de imortalidade do titular dos bens, no aspecto de direcionar sua posse, de transmiti-la a certas pessoas e sob certas condições, e tal demonstra a im-portância do Direito sucessório. Quando se fala que o Código Civil rege a nossa vida desde o nascimento até a morte, é uma meia verdade, pois, mais que isso, a lei es-tende seus efeitos para depois da morte da pessoa, nas esferas patrimonial e da su-cessão hereditária.

A elevação promovida pelo Código Civil com relação ao cônjuge e ao companheiro, colocando-os em grau de concorrência com descendentes e ascendentes do autor da herança, com quota-parte a depender do preenchimento de determinadas condições, permite concluir, conforme lição de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2003 apud GONÇALVES, 2012, p. 25), que o legislador “parece ter-se enquadrado entre aqueles que veem como funda-mento do direito sucessório não apenas o direito de propriedade em sua inteireza como tam-bém o direito de família, com o intuito de protegê-la, uni-la e perpetuá-la”, elementos estes que demonstram a prevalência, no ordenamento jurídico pátrio, das ideias defendidas por aqueles que apoiam a conservação do direito à herança.

Portanto, sob tais premissas, de exame do artigo 5º, inciso XXX, da Carta Federal, re-tira-se tratar de um direito fundamental a previsão de que “é garantido o direito de herança”, não apenas por restar incluído no principal rol constitucional sobre o tema, mas também em razão de seu fundamento histórico e sua inerente relação com o essencial direito de proprie-dade. Assim, sendo cláusula pétrea, ainda que reste relegada sua ampla regulamentação ao legislador infraconstitucional, não poderá ser retirada a garantia do papiro basilar senão por um poder originário que altere todo o sistema constitucional vigente.

1.2 Proteção à legítima no Código Civil

A sucessão hereditária comporta sua disciplina no Livro V do Código Civil, pressu-pondo, intrínseca e invariavelmente, a morte da pessoa natural, seja real ou presumida. Por conseguinte, o patrimônio deixado pelo falecido terá seu destino alicerçado nas regras atinen-tes à sucessão previstas pelo direito civil (FRAGOSO, 2004, p. 52).

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Abre-se a sucessão, na acepção tradicional, com a morte real, fato este que demanda, segundo Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 17-18), indispensável apuração de sua autenti-cidade: no plano biológico, pelas técnicas de que se vale a medicina legal; no plano jurídico, através da certidão do Oficial do Registro Civil extraída do registro de óbito, conforme previ-são do artigo 77 da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973.

Excepcionalmente, prossegue o autor, admitiu o legislador a sucessão também com a superveniência da morte presumida – aplicada aos ausentes –, sendo uma sucessão, de início, provisória, mas que pode se tornar definitiva com o decurso do tempo. O fundamento desta especial forma de sucessão, na lição do autor em comento, exsurge do “inconveniente social e econômico da acefalia do patrimônio em razão do afastamento do domicílio”. Adverte o juris-ta, porém, não se qualificar como sucessão mortis causa, como também não serem os bens do ausente considerados herança, distinguindo-se este instituto daquele proveniente da morte real tanto na causa e na apuração dos requisitos quanto nos efeitos. Assemelham-se, noutro vérti-ce, pelas consequências, com a igual “convocação dos herdeiros sucessíveis, a que se habili-tem, e aos quais venham tocar os bens do ausente, como se houvesse falecido”.

Nesse contexto, no que concerne às suas fontes, duas eram as espécies de sucessão existentes na vigência do Código Civil de 1916 e que foram mantidas pelo atual Codex, o qual, em seu artigo 1.786 – correspondente ao artigo 1.573 da Lei de 1916 –, expressamente prevê que “a sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”. Em tal dispositivo restam contidas as duas formas de sucessão do nosso ordenamento jurídico: a legítima ou ab

intestato e a testamentária (GONÇALVES, 2012, p. 41-42).

Segundo Euclides de Oliveira (2004, p. 58), a primeira ocorre em virtude da lei, a qual estabelece a ordem da vocação hereditária (descendentes, ascendentes, cônjuge sobrevivente e colaterais até o quarto grau, como também o companheiro supérstite); a segunda se denomina “testamentária”, decorrendo da manifestação de última vontade deixada pelo testador, dispon-do este acerca de seus bens e de quem sejam os seus sucessores.

Em Roma, conforme Sílvio Rodrigues (2003, p. 16), a sucessão era legítima ou testa-mentária, uma excluindo a outra, sem convivência entre os institutos, prevalecendo o brocardo

nemo pro parte testatus et pro parte intestatus decedere potest – ninguém pode falecer em

parte com testamento e em parte intestado. Sob as premissas do direito romano, ensinava Gi-rard (1901 apud RODRIGUES, 2003, p. 16, tradução livre) que

Há incompatibilidade absoluta entre a sucessão legítima e a sucessão testamentária, não se podendo dispor de uma parte dos bens por testamento deixando à lei a resolu-ção do destino do resto. Esta é a famosa regra nemo partim testatus, partim

intesta-tus decedere potest, a qual alguns autores afirmam ter sido criada apenas

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com os modos de testar anteriores às Tábuas, mas que, a nosso ver, é, no mínimo, controlada pelo citado texto das XII Tábuas1.

No ordenamento romano, então, “se o testador instituísse alguém herdeiro de parte de seus bens, este recebia não só os efeitos expressamente mencionados pelo de cujus, como os demais bens omitidos, embora com exclusão dos herdeiros legítimos” (MONTEIRO, 2009, p. 11). No direito brasileiro, porém, faz-se possível a coexistência dos dois meios de transmissão

causa mortis numa única sucessão (RODRIGUES, 2003, p. 16).

Colhe-se das ensinanças de Washington de Barros Monteiro (2009, p. 11-12) que a excelência dos sistemas – sucessão legítima e sucessão testamentária – encontra críticas na tradicional doutrina, com defensores e críticos ora da primeira ora da segunda forma. Aqueles que admitem a segunda e criticam a primeira aduzem ser incontrastável corolário do direito de propriedade a disposição do patrimônio em vida por testamento, não se justificando o direito hereditário atribuído aos herdeiros legítimos em razão da sucessão ab intestato.

Em vértice oposto, continua o jurista, há quem defenda a abolição da sucessão testa-mentária, conferindo validade apenas à sucessão legítima. Alguns dos filiados a esta corrente a defendem dizendo que tal sucessão seria obra de Deus, o qual já determinaria os sucessores do de cujus. A sucessão testamentária, por sua vez, seria obra do homem, restando sujeita, assim, às suas fraquezas e imperfeições. Tal concepção foi combatida até mesmo pelo direito canônico, o qual impugnou o princípio segundo o qual Deus, non homo, heredem facit, por-quanto, desde os seus primórdios, buscou a Igreja favorecer os atos de última vontade, incen-tivando as liberalidades pro anima defuncti.

As críticas a um instituto ou a outro decorrem, em sua maioria, de suas origens, com adoção predominante em favor ora de um ora de outro ao longo da história, como também, em determinado conjugar evolutivo, simultaneamente de ambos.

Com efeito, segundo se retira do escólio de Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 78-79), enquanto prevalente a comunidade familiar, a sucessão não era cogitada, vindo a se de-senvolver apenas quando do fortalecimento do sentimento individualista. Dessa forma, na Cidade Antiga, primeiramente surgiu a sucessão ab intestato, com a morte do chefe impondo a transmissão dos bens. Isto se devia, em essência, ao fato de o culto se prender à propriedade, com a casa sendo o asilo inviolável em que se erigia o altar, sobre cuja pedra ocorriam os

1 “Il y a incompatibilité absolue entre l’hérédité ab intestat et l’hérédité testamentaire, on ne peut disposer d’une

partie de ses biens par testament en laissant à la loi le soin de régler le sort du reste. C’est la règle célèbre nemo

partim testatus, partim intestatus decedere potest, que certains auteurs prétendent avoir été inventée seulement

par la doctrine a une époque assez récente, que d’autres rattachent plus vraisemblablement aux modes de tester antérieurs aux Tables, mais qui, à notre sens, est tout au moins commandée par le texte précité des XII Tables”.

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crifícios e eram propiciados os deuses. O terreno no entorno era cercado, protegido de estra-nhos no culto não admitidos.

O falecimento do pater, prossegue o jurista, determinava a sucessão, a qual derivava das crenças e justificava a transmissão ao filho, não por consanguinidade, mas pela continui-dade do culto. A herança dava-se, pois, não pela vontade do pai, mas por determinações dos deuses e dos homens. Subordinando-se à potestas do chefe, sucedia o herdeiro sem a liberda-de liberda-de se subtrair, pelo o que era dito herliberda-deiro necessário – heres necessarius. Em tal contexto, naturalmente fluía a herança do pai falecido para o filho, o qual persistia no domínio dos mesmos bens, com uma presença indispensável à conservação do culto religioso, insinuando os textos legais da época, inclusive, que era instituído por direito próprio – ipso ius heres

ex-sistit –, bem como o qualificando como herdeiro de si mesmo – heres suus.

Adiciona o catedrático em referência, por conseguinte, que foi também pela necessi-dade de que continuassem os deveres religiosos que surgiu a sucessão testamentária. Na me-dida em que não poderia se interromper o culto, entendeu-se possível que o pater familias designasse alguém para lhe suceder nos bens e nas práticas religiosas. Assim, surgiu a figura do testamento, da qual, antes mesmo das XII Tábuas, já se conhecia vestígio, fortemente cul-tivado na vida civil romana. Caráter sacramental lhe foi conferido, conforme antigos escritos, quando de sua soleníssima aprovação pela assembleia das cúrias – comitia curiata. Sob as premissas de tal instituto poderia o testador, portanto, alterar a lei reguladora da sucessão, substituindo-a por sua declaração de vontade.

Consoante lição de Sílvio de Salvo Venosa (2009, p. 113), a compreensão majoritária é a de que o testamento já era conhecido nos primórdios da civilização romana, muito antes da Lei das XII Tábuas, que expressamente o admitiu e com a qual se generalizou a utilização do instituto.

Portanto, o entendimento prevalente, continua o autor, é o de que sobressaía em Roma o testamento sobre a ordem de vocação, o que se retira de exame do conjunto doutrinário da época, bem como da já referida regra característica romana que exclui a concorrência da vo-cação testamentária com a legítima sobre a mesma herança – nemo pro parte testatus pro

par-te inpar-testatus decedere popar-test –, o que fazia com que o sucessor, ainda que aquinhoado em par-

tes-tamento apenas com parte da herança, recebesse-a na íntegra, não se beneficiando o herdeiro legítimo.

Adiciona Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 79) que, com o tempo e o progresso da civilização romana, efetivamente, a sucessão testamentária tomou corpo e assumiu grande importância, tanto na vida civil quanto no seio da vida política, o que se retira de eventos

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his-tóricos registrados ao longo do período republicano e também da época imperial, conforme narrativas de Tácito e Suetônio. Sua dominância, porém, ocasionou deformidades, sendo usa-do como instrumento de cupidez, culminanusa-do com Calígula, o qual buscava se fazer nomear herdeiro e determinava, na sequência, a morte de seu testador. Dúvida não há, porém, con-forme fontes ricas em princípios e excertos, de que no período imperial romano foi frequente a prática testamentária.

Não obstante tal predomínio, anota Sílvio de Salvo Venosa (2009, p. 113-114), tem-se por exagerado dizer que era infamante aos romanos falecer ab intestato. Em verdade, “o que era mais desonroso era não deixar herdeiro nenhum. Como o herdeiro era principalmente um sucessor no culto familiar, os romanos cuidavam de não morrer sem sucessor”. Além disso, é de se observar a existência de regras no ancião sistema, ainda que isoladas, que atribuíam a herança do pai para o filho, ficando a chamada de estranhos à sucessão derrogação da regra geral. Assim, pondera o autor que

Muitas vezes a sucessão hereditária representava mais um ônus do que um benefí-cio, uma vez que o herdeiro, qualquer que fosse sua origem, não recebia apenas as coisas corpóreas da herança, mas também sucedia o de cujus em todas as relações jurídicas, ativa e passivamente, tanto em nível de relações jurídicas propriamente di-tas, como de relações religiosas; ambos os aspectos intimamente ligados na época. Destarte, o sucessor tornava-se responsável também perante os credores do espólio. A única forma que tinha o herdeiro para safar-se dessa responsabilidade era a renún-cia da herança. Tal renúnrenún-cia, porém, só era possível aos colaterais e aos estranhos instituídos herdeiros, não sendo admitida aos herdeiros descendentes e aos escravos do morto, investidos indissoluvelmente na herança desde o dia de sua morte.

Nesse rumo, o evoluir histórico fez com que predominasse no seio do ordenamento brasileiro a sucessão legítima, aquela “que, na falta de disposição testamentária do de cujus, a lei defere aos seus parentes, reforçando o vínculo familiar e atendendo à vontade presumida do defunto” (LEITE, 2004, p. 210). Em tal sistema, anota Sílvio Rodrigues (2004, p. 16), a transmissão da herança aos sucessores dá-se sem manifestação de última vontade do falecido, decorrendo da lei. Assim, prossegue o mestre, “quando alguém se conforma que seus bens, por sua morte, passem ao patrimônio das pessoas que a lei chama para recolhê-los, escusa de fazer testamento”.

Desta sorte, afere Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 42), com efeito, que

A sucessão legítima sempre foi a mais difundida no Brasil. A escassez de testamen-tos entre nós é devida a razões de ordem cultural ou costumeira, bem como ao fato de o legislador brasileiro ter disciplinado muito bem a sucessão ab intestato, cha-mando a suceder exatamente aquelas pessoas que o de cujus elencaria se, na ausên-cia de regras, tivesse de elaborar testamento.

Por tal razão já lecionava Demolombe (1875 apud RODRIGUES, 2004. p. 16, tradu-ção livre), em comentário à legislatradu-ção francesa, que a “nossa lei de sucessão ab intestato se

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apresenta, em verdade, como o testamento tácito e presumido daquele que não dispôs expres-samente sobre seus bens”2. No mesmo sentido, acrescenta Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2003 apud GONÇALVES, 2012, p. 42) que a legislação pátria acerca da sucessão legítima atua como se fosse um testamento tácito ou presumido, dispondo como faria o faleci-do se houvesse testafaleci-do.

Assim, não havendo testamento, ou seja, se o falecido não deixa qualquer ato de últi-ma vontade registrado, conforme dispõe a primeira parte do artigo 1.788 do Código Civil, a sucessão será a legítima, seguindo as regras dispostas em lei, deferindo-se todo o patrimônio do de cujus às pessoas expressamente determinadas, de acordo com a ordem de vocação pre-vista (MONTEIRO, 2009, p. 9).

Igualmente, “falecendo uma pessoa com testamento que não abranja todos os seus bens, a parte de seu patrimônio não referida no ato de última vontade passa a seus herdeiros legítimos” (RODRIGUES, 2003, p. 16), ou seja, se o testador “não se refere a todos os bens, mas apenas a alguns, claro se torna que, com relação aos omitidos, não objetivados no testa-mento, prevalecerá a sucessão legítima, deferindo-se aos herdeiros legítimos” (MONTEIRO, 2009, p. 11).

No mesmo sentido, prossegue o Desembargador paulista, quando apenas em parte dis-põe o testador acerca de sua parte disponível, entende-se por instituídos os herdeiros legítimos no remanescente, conforme interpretação da segunda parte do artigo 1.788 do Código Civil. Não existindo herdeiros legítimos, arremata o mestre, com espeque no artigo 1.819 do Código Civil, arrecada-se a fração da quota disponível não disposta no testamento como herança ja-cente. Portanto, conclui Sílvio Rodrigues (2003, p. 17), “a sucessão é simultaneamente legí-tima e testamentária quando o testamento do defunto não abrange todos os bens”.

Também haverá sucessão ab intestato caso o testamento caduque ou venha a ser jul-gado nulo, como dispõe a parte final do artigo 1.788 do Código Civil. Com efeito, “o testa-mento originariamente válido pode vir a caducar, isto é, a tornar-se ineficaz por causa ulterior, como a falta do beneficiário nomeado pelo testador ou dos bens deixados. Acrescente-se a essas hipóteses a revogação do testamento” (GONÇALVES, 2012, p. 43).

Não obstante acatada a hipótese pela jurisprudência e, inclusive, pela doutrina, a parte final do artigo 1.788 sofre pertinentes críticas. Nesse sentido, destaca Ricardo Fiuza (2004, p. 289) ter o Novel Diploma incorrido no mesmo equívoco do Codex de 1916, porquanto

2 “Notre loi des successions ab intestat se présente, en toute vérité, comme le testament tacite et présumé de celui

(28)

Analisando o art. 1.575 do Código Civil de 1916 – que equivale à parte final do art. 1.788 – Clóvis Beviláqua expõe que sua redação é censurável por discrepar da técni-ca juríditécni-ca, e por não dar ao pensamento da lei toda a extensão necessária. O petécni-cado técnico, diz Clóvis, está em usar o vocábulo nulo para significar nulo e anulado; a insuficiência da expressão consiste em reduzir a ineficácia do testamento aos casos de caducidade e nulidade, deixando de mencionar, como se estivessem contidas nes-tas palavras, as ideias de ruptura e anulação.

Nesse contexto, consoante Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 43), propõe-se no Pro-jeto de Lei n. 276/2007 que a parte final do dispositivo seja alterada para: “[...] e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, romper-se, ou for inválido”.

Com propriedade, Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 81-82) diz que a sucessão le-gítima ocorrerá “a) quando o de cujus morrer sem testamento; b) quando este for nulo ou ca-duco; c) quando o testador não dispuser da totalidade da herança; d) quando houver herdeiros necessários, obrigando a redução das deixas para respeitar a quota reservatária”. Assim, pon-tua o jurista, nas duas primeiras hipóteses a sucessão legítima absorverá a totalidade da heran-ça; nas duas últimas ficará restrita à parte não compreendida na disposição testamentária, ou seja, “na ausência de testamento válido, a sucessão aberta é só a legal; na ocorrência de testa-mento que não absorva a totalidade da herança, é concorrentemente legítima e testamentária (também ditas intestada e testada)”.

Por fim, em seu sempre preciso escólio, comentando o Código de 1916, mas com ple-na aplicabilidade no seio da vigente legislação, já assentava Luís da Cunha Gonçalves (1956, p. 1352) que

A sucessão diz-se legítima quando, por ter o dono dos bens falecido sem instituir seu sucessor, ou por ter sido anulada, revogada ou estar caduca a instituição, ou ter aquele disposto só de parte dos seus bens, a lei, baseando-se na presunção derivada das relações de família e da afeição natural que, no seio desta, une os seus membros, indica quais serão os sucessores desses bens, graduando-os conforme os graus e a natureza do parentesco.

No prosseguir, tem-se que os fundamentos da sucessão legítima são aprofundados pela doutrina, mas, como pondera Caio Mário da Silva Pereira (2004, p. 79-80), “ao procurarem justificar a sucessão legítima, os escritores perdem-se em considerações, ora lastreadas em fatos certos, ora um tanto imaginárias”. O mestre, então, objetiva em quatro as ordens e in-fluências da sucessão legítima: histórica, familiar, individual e social.

A primeira – histórica – exsurge da presença da sucessão ab intestato em todos os po-vos da Antiguidade, não apenas no seio da civilização mediterrânea, mas também no Oriente Próximo, no Médio e no Extremo Oriente. Ainda que seus critérios variassem de um povo para o outro, o instituto era, globalmente considerado, uma constante para romanos, gregos, egípcios, babilônios, hindus, chineses. Na atualidade, é cultivada tal modalidade de sucessão

Referências

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