Homilia Dia Mundial da Paz 2009
Para uma nova primavera social:
Combater a pobreza para construir a paz
† António Marto
Catedral de Leiria 1 de Janeiro de 2009
No início do Ano Novo, a Palavra do Senhor, referida pela primeira leitura, vem ao nosso encontro como bênção ensinada por Deus a Moisés. É uma bênção que chega até nós, desde a noite dos tempos, alegrando e confortando o nosso coração, trazendo-‐nos esperança e consolação para os dias de hoje. Podemos, assim, resumir os votos de início de ano com esta oração: Olha propício para nós, Senhor; protege-‐nos e concede-‐nos a paz!
Esta paz tem um rosto, Jesus Cristo, Príncipe da paz, dado à luz e à nossa contemplação por Maria, cuja maternidade divina hoje celebramos.
E é precisamente neste primeiro dia do ano que estamos reunidos a rezar pela paz, a pedir que os homens se unam em projectos comuns de paz.
1. Os múltiplos rostos da pobreza, hoje
Para esta ocasião, o Santo Padre oferece-‐nos uma mensagem “combater a pobreza para construir a paz”, de que desejaria sublinhar alguns aspectos.
O Papa começa por nos advertir de que, se não há paz, é porque deixamos de nos preocupar, conscientemente, por aquela parte tão grande da humanidade (1/3) que é constituída pelos miseráveis, os indigentes, os mais pobres. E sublinha como as condições de extrema pobreza em que vivem hoje inumeráveis populações são uma séria ameaça à paz. “Trata-‐se de um problema que se impõe à consciência da humanidade” e a cada um de nós. Não podemos escamoteá-‐lo.
Não podemos esquecer que a paz está sempre unida à garantia de necessidades e condições mínimas de vida, isto é, a direitos sociais mínimos como o direito à educação, à saúde, ao trabalho, a uma casa
digna, etc. O que mostra bem como é possível falar de uma paz positiva, muito para além da simples ausência de conflitos.
O tema escolhido para este dia mundial da Paz inscreve-‐se na actualidade da crise económico-‐ financeira e das suas consequências, de que os mais pobres são as primeiras vítimas. O Papa analisa o fenómeno da pobreza no contexto da globalização e traça os múltiplos rostos de pobreza -‐ um retrato dos lugares da pobreza.
A questão da pobreza é, na verdade, um problema material de economia e fluxos financeiros. Mas é também e sobretudo um problema cultural, moral e espiritual porque está em causa a dignidade de cada pessoa humana. Por isso, Bento XVI convida-‐nos a uma ampla e articulada visão da pobreza: material, relacional, moral e espiritual.
A pobreza manifesta os seus diversos rostos, concretamente, nas vítimas de doenças e pandemias, às
quais faltam os cuidados básicos de saúde; na pobreza absoluta de 900 milhões de crianças no mundo, as vítimas mais vulneráveis; na corrida aos armamentos (que cresceu 6% em relação a 2006) desviando recursos económicos e humanos dos projectos de desenvolvimento dos países mais pobres; na amplidão da crise alimentar tanto mais escandalosa quanto não é provocada por uma insuficiência de recursos mas por uma especulação económica, pondo em cheque a satisfação das necessidades básicas; no aumento do fosso entre os ricos e os pobres.
Estes aspectos da pobreza são outros tantos desafios na promoção e construção da paz.
Original é, sem dúvida, o convite a considerar a pobreza do ponto de vista das crianças. Na pobreza das
crianças reflectem-‐se os vários rostos da pobreza e vêem-‐se, automaticamente, as prioridades. “Considerar a pobreza, pondo-‐se da parte das crianças, leva a considerar prioritários aqueles objectivos que lhes dizem mais directamente respeitos, por exemplo, os cuidados maternos, a educação, o acesso aos cuidados médicos e à água potável, a salvaguarda do ambiente, e sobretudo o empenho na defesa da família e da estabilidade das relações dentro dela” (n. 5)
Nesta linha, um Nobel da Paz, o bispo D. Tutu, adverte-‐nos: “Em cada 3,6 segundos, alguém morre de fome; e em três sobre quatro casos trata-‐se de crianças abaixo dos cinco anos. Se compreendêssemos que somos uma só família, não consentiríamos que uma coisa do género sucedesse a um nosso irmão ou irmã”.
2. Repensar o mundo a partir da solidariedade: para uma nova primavera social
O escândalo da pobreza manifesta a insuficiência dos actuais sistemas da convivência humana na promoção do bem comum. Isto torna necessária uma reflexão sobre as raízes profundas da pobreza material e também sobre a miséria espiritual que torna o homem indiferente aos sofrimentos do próximo. Vivemos, sem dúvida, um momento de crise global, a nível planetário, um momento propício para nos perguntarmos que tipo de sociedade e de mundo queremos construir. As crises são uma chamada de atenção ou um alarme para mudar o mundo e edificá-‐lo sobre outras bases.
Numa visão realista, o Papa oferece algumas dessas bases. No quadro da globalização, para combater a
pobreza é necessária uma solidariedade global. Numa frase de grande efeito e alcance afirma: “a
globalização, por si só, é incapaz de construir a paz. Só a loucura pode levar a construir uma casa
dourada (dos ricos), mas rodeada pelo deserto ou pela degradação (os pobres)”(n.14). É um grito de alarme e um chamamento à esperança activa para que possa nascer uma nova primavera social, uma nova, mais profunda e universal solidariedade. Sem a solidariedade global todos acabaremos por nos
afundar.
Descendo ao concreto especifica alguns aspectos desta solidariedade:
1) Uma nova sensibilidade e um novo olhar como atitude de fundo.
Neste sentido, o Papa interpela a responsabilidade e a consciência de cada um. Um mundo diverso só pode ser possível “se cada um se sentir pessoalmente ferido pelas injustiças existentes no mundo e pelas violações dos direitos humanos a elas ligadas” (n.8). “Sentir-‐se pessoalmente ferido” – é uma belíssima expressão porque traz também para o interior do horizonte de cada um, problemas que parecem ingovernáveis e procura tirar-‐nos da indiferença.
Não pensemos que a luta contra a pobreza e a fome se joga só nos tabuleiros do xadrez internacional. Joga-‐se também no plano das consciências individuais. Só homens “feridos” por este escândalo e apaixonados pelo destino dos outros podem construir uma civilização diversa.
2) Mobilização de todos os actores em campo numa sinergia de acção.
Numa perspectiva económico-‐cultural, Bento XVI lembra que o combate sistemático à pobreza requer a mobilização de três actores: o mercado, o estado e a sociedade civil: “Pôr os pobres em primeiro lugar comporta que se reserve um espaço adequado a uma correcta lógica económica da parte dos actores
do mercado internacional, a uma correcta lógica política por parte dos actores institucionais e a uma
correcta lógica participativa capaz de valorizar a sociedade civil, local e internacional” (n.12)
Trata-‐se de uma passagem relevante, porque vem revalorizar o papel da sociedade civil, com a sua capacidade de iniciativa gratuita e criadora de solidariedades que com a sua proximidade chega onde e como o Estado não é capaz.
A luta contra a pobreza, num contexto de globalização, requer um verdadeiro envolvimento das pessoas. Os problemas do desenvolvimento, das ajudas e da cooperação internacional são muitas vezes resolvidos como meras questões técnicas de predisposição de estruturas, de acordos tarifários, de disposição de financiamentos anónimos. Ora a luta contra a pobreza tem necessidade de homens e mulheres que vivam profundamente a fraternidade e sejam capazes de acompanhar pessoas, famílias e comunidades em percursos de desenvolvimento humano.
3) Promover a cultura da legalidade
Aquilo que a globalização tornou evidente, através da actual crise financeira, é que um mercado sem regras é um mercado sem alma que tornou mais miserável a condição dos pobres no mundo. Um mercado governado só pela avidez do lucro imediato, a qualquer preço, por parte dos mais fortes, está inevitavelmente destinado a corromper as nossas almas. É preciso ter em conta as razões da
solidariedade dentro do processo económico. Para isso ,o Papa aponta, mais uma vez, a necessidade de
um “código ético fundamental” a fim de conter a degeneração de comportamentos devida aos mecanismos do mercado, tais como a corrupção, a especulação, a criminalidade.
Mas, para além disso, é preciso também cultivar as virtudes: a moderação no alcance de enriquecimentos pessoais; a recusa de especulações exploradoras; a tutela da ocupação, hoje tão precária, bem como a dos aforradores. Sem ética e sem virtudes serão a mentira e a barbárie a triunfar sobre tudo e sobre todos.
3. O que posso fazer? O que podemos fazer?
Perante os vários rostos da pobreza, agravada pela crise mundial, a inquietação está aí. Lê-‐se nos rostos; diz-‐se nas conversas. Cada dia somos testemunhas de novas dificuldade económicas e sociais. Tomemos tempo para reflectir sobre aquilo a que esta crise nos convida.
Que posso fazer? Que podemos fazer? – São interrogações que nos inquietam como indivíduos e como comunidades. Nem um líder carismático, nem uma campanha política têm a solução mágica. Todos estamos em causa como parte da solução do problema.
Há um estilo de vida, construído sobre o consumismo, que todos somos convidados a mudar para voltar a uma saudável sobriedade, sinal de justiça antes ainda de ser sinal de virtude.
Há uma nova primavera social a fazer florescer nas nossas cidades e aldeias, feita de solidariedade para sair do anonimato e do isolamento, para que ninguém se sinta abandonado; feita de apoio mútuo, de cooperação em rede porque só juntos é possível enfrentar e superar as dificuldades que experimentamos e se perspectivam.
Peço a todas as comunidades cristãs e à Caritas diocesana que reflictam sobre as várias formas de pobreza, realizem um sério discernimento das necessidades, elaborem projectos criativos de ajuda, mobilizem as comunidades e decidam o melhor modo de actuar.
Alargando o nosso olhar à situação do país, parece-‐nos encontrar os traços de um país cansado, abatido e dividido. Uma das razões deste cansaço é o alto nível de crispação e de litigiosidade da política,
expressão de divisões profundas, enraizadas tantas vezes em lógicas de interesses partidários e incapazes de levantar o olhar para o horizonte mais amplo e profundo do bem comum. Seria de perguntar: os 18% de pessoas que vivem no limiar da pobreza e o desnível entre ricos e pobres, tão acentuado em Portugal, não valeriam a convergência num pacto social para erradicar ou diminuir a pobreza e as suas consequências?
Não queria terminar sem expressar o meu reconhecimento à Comissão Nacional Justiça e Paz, à Caritas nacional e diocesana, às IPSS, às Conferências vicentinas e a tantos voluntários, pelo testemunho cristão e cívico no seu esforço denodado de combate às tantas formas de pobreza.
Confiemos a Maria, Mãe de Jesus e Mãe nossa, a causa da paz no mundo, principalmente na terra de Jesus, ensanguentada pela guerra. Que Ela nos acompanhe e ilumine na descoberta de novos caminhos de paz social.
Leiria, 1 de Janeiro de 2009