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GDn 11 Filosofia da Educação Matemática

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Academic year: 2021

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Inter-Vales: um estudo etnomatemático dos conhecimentos e práticas de

uma comunidade de remanescentes quilombolas do Vale do Ribeira

segundo a Filosofia da Diferença

Diego de Matos Gondim1

GDn°11 – Filosofia da Educação Matemática

Este projeto de trabalho visa produzir junto aos movimentos de criação e produção de práticas culturais que não se pautam em categorias explicativas prévias e externas ao grupo de uma comunidade quilombola do Vale do Ribeira – SP. Essa produção se entrega a uma análise cartográfica que aspira operar o corpo quilombola com a Educação Matemática junto ao referencial teórico da Filosofia da Diferença. Um corpo que se devém desejo. Um corpo que afeta e é afetado por intensidades. Com essa produção, busco responder à pergunta: como e o que podemos operar (produzir) junto às práticas culturais que não se pautam em categorias explicativas prévias de uma comunidade quilombola e como essa produção se abre à etnomatemática. Responder a este questionamento direciona-me à constituição de um mapa deleuziano, ou seja, um contorno da produção desse corpo. Com essa produção, busco operar uma problematização junto às interfaces da Etnomatemática, isto é, lança-las nos movimentos de criação e produção de práticas culturais que não estão organizadas a um conjunto de categorias explicativas.

Palavras-chave: Etnomatemática. Filosofia da Diferença. Quilombolas. Cartografia.

Introdução: uma abertura

Ao pensar na Educação Matemática como região de inquérito, este projeto se abre a:

[Um canto; um povo, povo do canto do trabalhador; práticas culturais, acontecimentos; margens; margens de rios, do oceano; uma pesquisa inter-vales].

Ao pensar na etnomatemática como área de pesquisa, este projeto se abre a:

[Rua, entre-casas; fora; forças interativas; etno/matema/tica; inter-conexões; etno/matemática; ao casual, imprevisível; um instante-já; multiplicidades; acontecimentos inter-vales].

Uma problemática se abrindo a:

[Entre-categorias; um Corpo sem Órgãos; um plano de consistência; intensidades; uma experimentação do meio, entre-casas; uma experimentação que vibra, vibra um olho vibrátil, um corpo vibrátil; uma compreensão de matemática; uma constituição de mapas que pode se abrir às inter-faces etnomatemáticas inter-vales].

1 Universidade Estadual Paulista – Rio Claro, e-mail: gondiminit@hotmail.com, orientador: Dr. Roger

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2 Um projeto se abre (…)

Inter-Vales: quem co/habita o canto?

O povo que este projeto se abre são (des)conhecidos como um povo que outrora foram escravizados. (Des)conhecidos como herdeiros de Zumbi. Afro-brasileiros. Desse povo, como cantou Clara Nunes, “ninguém ouviu, um soluçar de dor no canto do Brasil”2.

Um canto cantado por um povo. Um canto habitado. Ou seja, um canto de soluço e/ou um canto habitado por quilombolas.

Quilombolas?! O que são ou quem são os quilombolas? Poderíamos dizer que quilombolas eram aqueles que co/habitavam o quilombo. Quilombo?! Quilombo é, grosso

modo, “refúgio de escravos”. Refúgio do povo que queria ser livre. Livre da opressão

escravagista. Escravos que, no século XVII, foram capturados – de várias regiões da costa ocidental e oriental da África – e enviados ao tráfico negreiro para o Brasil onde se misturaram, estabeleceram relações, compartilharam dores, trabalho e, sobretudo, compartilharam vida(s). Vida(s) compartilhada(s) nas senzalas. Vida(s) compartilhada(s) no trabalho. Vida(s) compartilhada(s) nas matas onde se refugiavam. Matas que se tornaram quilombos. Devido a isso, em 2011, o atual presidente da Fundação Cultural dos Palmares, Eloi Ferreira de Araujo, disse que quilombos são “comunidades habitadas por descendentes de escravos, que possuem trajetória histórica própria, dotados de relações

territoriais específicas, e, principalmente, são relacionados à resistência à escravidão.”.

Esse é o povo que este projeto pretende se ocupar. Povo do canto do Brasil. Das senzalas de ontem. Das aldeias de hoje.

Esse canto, está situado no canto do mapa. Nas margens oceânicas, isto é, localizado às margens de dois estados do Brasil – o sudeste do Estado de São Paulo e o leste do Paraná. Vale do Ribeira. Uma região comtemplada por bacias hidrográficas do Rio Ribeira do Iguape e do Oceano Atlântico. Nesse canto do mapa, às margens, estão localizados 31 municípios, sendo 22 no estado de São Paulo e 9 no Paraná. Nesses municípios, tornou real a existência de mais de 80 comunidades, dentre elas destaco as comunidades pertencentes aos municípios de Iporanga, Eldorado, Cananéia, Iguape e Itaóca, quais sejam: Abobral, Bombas, Cangume, Galvão, Ivaporunduva, Mandira, Maria Rosa, Morro Seco, Nhunguara,

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3 Pedro Cubas e Pedro Cubas de Cima, Pilões, Porto Velho, Praia Grande, São Pedro e Sapatu3.

Estas comunidades do Vale do Ribeira são cantos atravessados pelo Rio Ribeira de Iguape, que está localizado em uma região predominantemente montanhosa. Ou seja, vale = região entre montanhas. Um povo em um canto entre-montanhas. Comunidades que co/habitam um canto entre as montanhas. Entre os vales. Nas margens do rio. Comunidades quilombolas Inter-Vales. Um povo que – apesar de viver às margens da saúde, da educação, do trabalho e de outros direitos públicos – vive entre-montanhas produzindo práticas culturais.

Inter-Vales: o que acontece no canto?

Segundo o Inventário Cultural de Quilombos do Vale do Ribeira, publicado em 2013, foram identificadas 180 práticas culturais que relacionam os conhecimentos e práticas produzidas por estas comunidades. Práticas culturais podem ser entendidos como agenciamentos que dão corpo a uma comunidade de vida(s) compartilhada(s). Ou seja, vida(s) pelo que acontece. Acontecimentos que se dão na produção de práticas culturais. Essas 180 práticas culturais foram inventariadas seguindo a classificação das cinco categorias reconhecidas pelo Inventário Nacional de Referências Culturais do Iphan e pelo decreto n° 3.551, de 4 de agosto de 2000, quais sejam: Celebrações; Formas de

Expressão; Ofícios e Modos de Fazer; Lugares; Edificações. Isto é, práticas culturais

classificadas em categorias. Organizadas. Um corpo que foi organizado por cinco órgãos. Uma organização em categorias. Uma classificação de acontecimentos em categorias.

Segundo Andrade e Tatto (2013), estas práticas culturais revelam informações de como o canto se faz ‘Vale do Ribeira’ e de como esses povos se fazem quilombolas. Um corpo quilombola. No entanto, um corpo organizado e classificado por órgãos institucionais. Órgãos que organizam um corpo. Órgãos que decalcam acontecimentos. Decalque?! Sim, uma reprodução. Uma reprodução que

[...] é antes como uma foto, rádio que começaria por eleger ou isolar o que ele tem a intenção de reproduzir, com a ajuda de meios artificiais, com a ajuda de colorantes ou outros procedimentos de coação. [...]. Organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são os seus. (DELEUZE; GUATTARI, 2014b, p. 31, grifo meu).

3 Quero ressaltar que faço destaque a estas 16 comunidades por serem as participantes do Inventário Cultural

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4 Estes acontecimentos, dados por práticas culturais, foram organizados, capturados, decalcados, por cinco órgãos. Cinco categorias. Uma reprodução realizada para apresentar “[...] os impasses, os bloqueios, os germes de pivô ou os pontos de estruturação. ” (DELEUZE; GUATTARI, 2014b, p. 32, grifo meu). Uma estruturação que procura explicar, traduzir, interpretar as práticas culturais de um povo. Que organizam um corpo.

Mas como escapar dessa estruturação? Da organização que propõem as categorias? Dessa imagem? Do decalque? Parece-me que ouço os ecos de Clarice Lispector ressoando: lança-se no instante-já. O escape não é necessário. É preciso lançar-se no que (está) acontece(ndo). Um lançar no meio. Entre. Inter. Um lançar Inter-vales, nas multiplicidades que, como ressalta Deleuze e Guattari (2014a), se definem pelo fora, pelas linhas de fuga. É nesse fora que os organismos são desorganizados. Dilacerados. (Re) feitos. Pois o fora para Deleuze e Guattari não tem imagem, nem significação. Ou seja, a busca, aqui neste projeto, não é pelo escape, mas pela produção do fora quando escapa. Fora das categorias. Dos limites impostos por elas. Uma busca pelo entre, fora, meio. Pelo acontecimento no instante-já. Entre-categorias. Isto é, práticas culturais que não se pautam em categorias explicativas prévias e externas ao grupo quilombola.

A tentativa de refletir sobre as práticas entre-categorias, inter-vales, direciona-me a um estudo, grosso modo, de abordagem antropológica, filosófica e sociológica. Isso me faz pensar em Etnomatemática devido sua preocupação em temas que lidam com a cultura. Com cantos. Com povos. Portando, vou deixar de falar disso com você um pouco para conversarmos sobre o que tudo isso pode ter a ver com Etnomatemática.

Etnomatemática: uma possível reflexão inter-vales

Antes de falar de Etnomatemática, é bom que saiba que este projeto – ainda em construção – está imerso em um programa de Educação Matemática e é possível que, nesse momento, ocorra uma dúvida, qual seja: o que tem a ver Educação Matemática com esse canto, com esse povo e, sobretudo, com os acontecimentos entre-categorias? Responder esse questionamento se materializaria em um árduo trabalho de pesquisa de longos anos. No entanto, levando em consideração os estudos realizados, segundo Bicudo (1999), a Educação Matemática, sob o ponto de vista da Filosofia da Educação Matemática, é entendida como “[...] um todo que se mostra de diferentes modos: na rua, na escola, nas teorias, na cultura, no currículo, na legislação, na mídia, na multimídia. ” (BICUDO, 1999, p. 26, grifo meu). Ora, este projeto, então, se constitui na tentativa de imergir em um

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5 modo que a Educação Matemática se mostra: na rua. A questão, agora, talvez seja: como esse modo se abre aos outros? Como ele irradia outros e é irradiado por outros? Como ele se constitui com estes outros? Nesse se constituir com os outros, irradiar os/com outros vejo, como destacam Clareto e Miarka (2015), a Educação Matemática “se lançando como movimento”. Se lançando na rua, fora de casa. Se fazendo educações matemáticas entre-casas. Ruas habitadas por quilombolas. Pelo povo das aldeias de hoje.

Como destaco em linhas anteriores, refletir sobre a produção de práticas culturais abre esse trabalho a um estudo etnomatemático. Se lançando na rua. Entre-categorias. Entre-casas. Inter-vales. No entanto, ao assumi-la como área de pesquisa, preciso cuidar-me, pois estes estudos que visam a essa imersão cultural ou a essa compreensão do meio como lugar de produção dos conhecimentos e práticas de um grupo cultural podem ser compreendidos sob perspectivas distintas, ou seja, é preciso levar em consideração as peculiaridades do modo como pesquisadores desta área concebem a matemática (MIARKA, 2011). Por exemplo, Ubiratan D'Ambrosio concebe a matemática como uma construção na relação etno/matema/tica, considerando que:

Indivíduos e povos têm, ao longo de suas existências e ao longo da história, criado e desenvolvido instrumentos de reflexão, de observação, instrumentos materiais e intelectuais [que chamo ticas] para explicar, entender, conhecer, aprender para saber e fazer [que chamo matema] como resposta a necessidades de sobrevivência e transcendência [que chamo etnos]. (D’ AMBROSIO, 2005, p. 60).

Assim, realça Miarka (2012, p. 154), a etnomatemática entendida como etno/matema/tica visa “[...] compreender modos pelos quais o conhecimento é criado, organizado e difundido. ”, ou seja, a matemática, aqui, não é concebida “nuclear à etnomatemática”, interna.

Na entrevista de Bill Barton concedida a Roger Miarka, em sua tese de doutorado, puxei alguns fios. Fios que possibilitam, também, um pensar sob(re) a etnomatemática. Para o pesquisador – Bill Barton – quando se assumi a etnomatemática como área de estudo é possível

[...] expandir esse conceito [matemática] e dizer que há coisas fora daqueles currículos, fora do que é usualmente tomado como matemática, daquilo que é matemática legitimada em [...] algum tipo de critérios que você poderia querer usar e [...] para descrever matemática. (MIARKA, 2011, p. 415, grifo meu).

Pesquisar etnomatemática para Barton, então, é entendido como expansão do que se entende por matemática. É dilatar o conceito matemática para entender os modos como as pessoas se organizam e se constituem o que elas são, ou seja, expandir “[...] um horizonte de compreensão da matemática com maior abrangência e disparadores de

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6 produção importantes para os grupos estudados.” (MIARKA, 2011, p. 394). Uma expansão de horizontes. Da compreensão da matemática. Essa expansão me permite trazer novamente alguns dos questionamentos que faço logo acima, quais sejam: Como esse fora produz junto a essa expansão? O que essa expansão me possibilita produzir com a etnomatemática? Uma expansão que abre. Rasga. Rasga a Matemática. Movimentá-la junto ao instante-já. Na rua.

Inter-Vales: a escolha

Se chegou até aqui, após todas estas linhas escritas, falando de cantos, foras, ruas, inter-vales, corpo, órgãos, organismo, entre-categorias, imagino que já esteja inquieto(a) e a pensar. Ele tem um povo, os quilombolas. Ele tem um canto, o Vale do Ribeira. Já disse até o que quer fazer, um estudo etnomatemático. No entanto, o Vale do Ribeira possui tantas comunidades quilombolas. Não é exequível dessa maneira. E eu digo: você tem toda a razão. Entre tantas comunidades quilombolas. Preciso escolher. Uma difícil escolha. Uma escolha que me custou várias noites de estudos. Estudos que me diziam quem são e o que fazem os quilombolas do Vale do Ribeira. Uma angustia me batia por não ter ido conhecer uma a uma. Por não ter sentido uma a uma. E quanto mais leio, mais sou atravessado pelas vidas inter-vales. Vidas que se dão no meio. No fora. Preciso escolher. Os cantos. As histórias. Os lugares. Até mesmo os sentimentos que cada foto me faziam sentir. Tudo isso e o que eu não consigo escrever me fez escolher o Mandira.

O Mandira, uma comunidade quilombola na estância turística de Cananéia, é considerado um dos mais antigos quilombos do Vale do Ribeira. Situada rios, entre-montanhas e nas margens oceânicas, a comunidade é co/habitada por aproximadamente 108 pessoas, divididas em 25 famílias que vivem do plantio, venda de ostras, caranguejos, bananas etc.4

Esse canto surgiu em meados do século XIX, quando Francisco Mandira – filho de uma escrava com o fazendeiro Antônio Florêncio de Andrade – recebeu de sua meia irmã parte das terras que herdou de seu pai. Um século depois, a comunidade foi coagida a vender suas terras, contudo, alguns herdeiros se recusaram a vender e tiveram que desistir da metade de suas terras para pagar a regularização fundiária. Os que permaneceram foram

4 As informações sobre a comunidade foram obtidas junto aos documentos: Inventário Cultural de Quilombos

do Vale do Ribeira; Relatório Técnico-Científico sobre os remanescentes da comunidade de quilombo de Mandira/Cananéia – SP; Agenda Socioambiental de comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.

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7 realocados em outros lugares das terras e lá construíram suas residências. Viveram e vivem histórias. Se fazem quilombolas pescando, plantando, trabalhando, produzindo práticas culturais.

Essa escolha foi atravessada por esses acontecimentos escritos. Pelas fotos vistas. Pelas músicas ouvidas. Pelos poemas lidos. Pela história contada. Pela vida vivida. Vida no fora. No(ó)s entre(s). Na rua. Vidas que atravessam um projeto em Educação Matemática. Vidas estudada pela etnomatemática. Um estudo etnomatemático que desponta com o povo quilombola do Mandira, neste canto, na rua, no fora, entre-categorias, entre-casas, inter-vales. Um corpo que nega a primariedade da organização orgânica dos órgãos. Desorganização que se dá pelos acontecimentos entre/fora.

Inter-Vales: a questão que desponta

Pensar no Vale do Ribeira, no quilombo do Mandira, em Educação Matemática e em Etnomatemática e em tudo isso que anda me atravessando colocou-me sob o seguinte questionamento:

Como e o que podemos operar (produzir) junto às práticas culturais entre-categorias da comunidade dos quilombolas remanescentes do Mandira no Vale do Ribeira e como essa produção se abre à etnomatemática?

Este questionamento me abre para alguns objetivos, quais sejam:

a) Observar, participar e experimentar os movimentos de criação e produção das práticas culturais que acontecem entre-categorias, cartografando-os;

b) Discutir o que se pode produzir em matemática junto aos movimentos de criação e produção das práticas culturais cartografadas e como essa produção se abre para um estudo etnomatemático.

Uma metodologia Inter-Vales: como se dará a compreensão?

Em linhas anteriores, quando parei de falar com você de decalques, organização, corpo, procurei justificar o que seria pesquisar entre-categorias. Falei que, nesse entre/fora, os corpos são dilacerados, desorganizados etc. O que eu quis com isso? Que nesses acontecimentos no/do meio, para Deleuze e Guattari (2014b), se revela o Corpo sem Órgãos (CsO). Esse corpo é “[...] o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações. ” (DELEUZE; GUATTARI, 2014b, p. 14). O organismo. A organização das categorias. Segundo os

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8 filósofos, “Desfazer [esse] organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares [...]” (DELEUZE E GUATTARI (2014b, p. 25).

Estar no entre/fora, para Deleuze e Guattari (2014), é estar sobre plano de

consistência ou campo de imanência do desejo, isto é, onde o CsO se revela. É possível

que esteja a pensar que este plano de consistência ou esse campo de imanência seja exterior ou até mesmo interior ao CsO, pois ele se revela nesse lugar, quer dizer, nesse entre/fora. É preciso, então, ressaltar que ambos estão coengendrados, emaranhados. Ele, o CsO, é o próprio plano de consistência. Ou seja, esse “[...] plano de consistência seria, então, o conjunto de todos os CsO, pura multiplicidade de imanência, da qual um pedaço pode ser chinês, um outro americano, [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 2014b, p. 22). Ele é desejo. Ele aspira. Ele é um aspirante.

A dúvida agora talvez seja: como chegar a esse plano de consistência se ele é sempre contemporâneo? Deleuze e Guattari (2014) acreditam que uma possibilidade se dá fazendo mapa. Mapa? Sim, pois – segundo os filósofos – o mapa não reproduz, não imita como o faz o decalque. Não organiza. Pelo contrário, “ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. ”. (DELEUZE; GUATTARI, 2014a, p. 30). Além disso, Deleuze e Guattari (2014a) acreditam que o mapa é aberto, possui múltiplas entradas e, quando constituído, pode ser rasgado, desmontado, revertido, reconectado e desmontado novamente. Com ele, é possível sempre fazer conexões.

Uma possibilidade de entrada na constituição do CsO, pensada junto a Deleuze e Guattari (2014a), pode acontecer pelos decalques. Pelas categorias. Essa entrada pela via dos decalques oferece a oportunidade de produzir no(s) entre(s). Entre-categorias. Este é um movimento em que me imagino imerso no campo de pesquisa. Um movimento que me fez refletir no que Kastrup et. al (2010) chama de “atitude metodológica”. Uma atitude que aspira desfazer uma organização. Produzir junto ao(s) entre(s) para observar e experimentar os movimentos de criação e produção. A produção do CsO. Mas de que modo se observa? Se experimenta? Segundo Rolnik (2014), se observa com o olho vibrátil. Experimenta-se com o corpo vibrátil. Me parece que, novamente, ouço os ecos de Clarice Lispector dizendo: é como a música, não se compreende, ouve-se. Para ela, é na dinâmica

desse olho, desse corpo que se traça um mapa. Realiza cartografia.

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9 Então, “a cartografia como método de pesquisa é o traçado desse plano da experiência, compreendendo os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produção do conhecimento) do próprio percurso da investigação. ” (KASTRUP, 2010, p. 17). Um traçado que se dá na e pela experiência. Quer dizer, cartografar é acompanhar processos,

[...] nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornam-se obsoletos. (RONILK, 2014, p. 23).

O cartógrafo, então, segundo Rolnik (2014), tem a tarefa de dar língua para os afetos. Afetos que constitui um CsO. Um plano de consistência. Um campo de imanência do desejo.

Perceba o caráter “acompanha e se faz ao mesmo tempo” da cartografia. Ou seja, observar, experimentar, realizar o traçado do mapa, cartografar se faz ao mesmo tempo. Nesse caso, “o que define, portanto, o perfil do cartógrafo é exclusivamente um tipo

de sensibilidade, que ele se propõe a fazer prevalecer, na medida do possível, em seu

trabalho. ” (ROLNIK, 2014, p. 66, grifos da autora). Isto é, um corpo que vibra junto às vibrações dos acontecimentos. Um corpo vibrátil. Um olho vibrátil que acompanha e visualiza junto à experimentação. Um corpo que prova. Experimenta. Se lança no instante-já. Afeta e é afetado. O cartógrafo, então, quer apenas provar, experimentar? Não. O cartógrafo quer – além de mergulhar ou estar imerso nos afetos – “[...] inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem. ” (ROLNIK, 2014, p. 66). Ora, o que quero, então, além experimentar e mergulhar nos afetos é fazer pontes para que eu possa atravessar. Pontes na Educação Matemática. Pontes que podem se abrir para um estudo das inter-faces da etnomatemática. Um estudo que se lança ao movimento. Movimentos de encontros e desencontros de corpos.

Para dar língua aos afetos e inventar pontes de travessia, o cartógrafo assume procedimentos metodológicos que se constituem no instante-já. No deixar acontecer. Ou seja, o cartógrafo se vale, segundo Kastrup (2010), de anotações em cadernos de campo compostas junto a visitas aos importantes locais da comunidade. No entanto, não se trata apenas de anotar, de observar, participar e experimentar, mas de produzir junto à cartografia do meio. Do entre. Uma produção que me possibilita constituir narrativas, ou seja, juntar as capturas do olho vibrátil, do corpo vibrátil, como na hipomnemata de Foucault (1992).

A ida ao campo, então, se configura, segundo Kastrup (2010), em realizar conversas em grupos, conhecer os espaços e suas histórias, ser afetado por aquilo que as afetam, ou

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10 seja, “[...] fazer falar aquilo que não se encontrava na esfera do já sabido, acessar a experiência de cada um, fazer conexões, [...] elos e tudo que vive no cruzamento e nas franjas desses territórios existências. ” (KASTRUP, 2010, p. 61).

Acompanhar processos, para Kastrup (2010), se constitui, então, em produção dos

dados. Uma produção de captura do olho vibrátil. Das vibrações do corpo vibrátil. Relatos

do observado, do participado e do experimentado. Relatos que não se baseiam nas “[...] opiniões, interpretações ou análises objetivas, mas buscam, sobretudo, captar e descrever aquilo que se dá no plano intensivo das forças e dos afetos. ” (KASTRUP, 2010, p. 70). Relatos que se compõem por experimentações, conversas, fotos, vídeos, entrevistas (...) em que os momentos são cartografados. Momento de estar junto. Participar e experimentar do que acontece entre-categorias. Ao compor com esses relatos narrativas, pretendo ver como e o que nelas se abrem à Etnomatemática. A isso, dou o nome de análise dos dados.

Com isso, vejo uma etnomatemática lançando-se ao movimento. Ao movimento dos corpos. Corpos que se encontram e desencontram-se. Que vibram. Um estudo no fora. No(s) entre(s). Nós entre(s). Nós fora(s). No(s) entre/fora que fundiram. Que coengendraram. Nó(s) entre/fora. Um entre/fora. Um meio. Meio de intensidades. Produção de desejos. Um estudo que se abre a inter-conexões. Uma educação matemática que se movimenta, também, pelo fora. Pela rua. Pelos movimentos de criação e produção de um povo. De um canto. Às margens. Na beirada. Nas franjas. De um povo que livre quer cantar “Obá, obá, obá”. Inter-vales.

Um possível cronograma a cumprir

Atividades PLANO DE EEXECUÇÃO 2016 2017 JAN/ FEV MAR /ABR MAI/ JUN JUL/AGO

SET/ OUT NOV/ DEZ JAN/ FEV MAR /ABR MAI/ JUN JUL/AGO

SET/ OUT NOV/ DEZ Disciplinas Levantamento bibliográfico Projeto para aula inaugural Ida a campo

Produção dos dados Análise dos dados Seminário obrigatório Escrita da dissertação Exame de qualificação Defesa

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Inter-Vales: um projeto exequível?

A exequibilidade deste projeto se mostra primeiro, na formação do prof. Dr. Roger Miarka, que possui formação em Educação Matemática e pesquisas na área de Etnomatemática e Filosofia da Educação Matemática. Mostra, ao longo de seu trabalho, uma preocupação no modo como a matemática é concebida por pesquisadores de etnomatemática e o que esses modos produzem, no própria Etnomatemática, na Matemática e nos grupos culturais com que se trabalha.

Ademais, aponto minha participação no grupo de estudos dos “Mil Platôs” de Deleuze e Guattari, composto por alunos e professores do programa de pós-graduação, que oferece apoio teórico para a compreensão da cartografia como metodologia de pesquisa, e no Grupo de Estudo e Pesquisa em Etnomatemática (GEPEtno), que oferece apoio teórico para refletir sobre as perspectivas da etnomatemática.

Destaco também que fiz contato com os coordenadores da Associação Quilombo do Mandira e, após apresentar uma prévia da proposta de trabalho, os agentes envolvidos nesse processo se dispuseram a cooperar com a pesquisa para o que fosse preciso demonstrando satisfação por essa realização.

Por fim, dada a amplitude deste projeto e o referencial filosófico que mobiliza, ressalto que sua construção, assim como das relações que envolve, se iniciou cerca de um ano antes do de meu ingresso no Programa de Pós-graduação em Educação Matemática, de modo a torná-lo exequível.

Referências: com quem estou caminhando?

ANDRADE, Anna Maria; TATTO, Nilton. Inventário Cultural de Quilombos do Vale do

Ribeira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2013.

ARAUJO, Eloi Ferreira. Quilombo e Caviar. 2011. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?page_id=15034. Acesso em: 20 abr. 2015.

BICUDO, Maria. Aparecida Viggiani. Pesquisa em Educação matemática – Concepções e Perspectivas. In: BICUDO, M. A. V. Filosofia da Educação matemática: Um Enfoque Fenomenológico. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

CLARETO, S; MIARKA, R. eDucAçÃo MAteMátiCA AefeTIvA: nomes e movimentos em avessos. Submetido na revista BOLEMA. Uso exclusivo dos orientadores.

D’ AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: Elo entre as tradições e a modernidade. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

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12 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. v. 1. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 2014a.

________. Mil platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. v. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira e Suely Rolnik. São Paulo: Ed.34, 2014b.

FOUCALT, Michel. A Escrita de si: O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992. INSTITUTO DE TERRAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Relatório técnico-científico

sobre os remanescentes da comunidade de quilombo de quilombo de Mandira/ Cananéia-SP. São Paulo: Itesp, 2002.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo: Hamburg Ltda, 1976.

MIARKA, Roger. Etnomatemática: do ôntico ao ontológico. 2011. 427f. Tese de (Doutoramento em Educação Matemática) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro. 2011.

________. Matemática e/na/ou etnomatemática. In: Revista Latino Americana de Etnomatemática: Perspectivas Socioculturais de la educación matemática. Vol. 5, n° 1, 2012.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Laudo antropológico: comunidades negras de Ivaporunduva, São Pedro, Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara, André Lopes, Maria Rosa e Pilões. Vale do Ribeira de Iguape – SP. São Paulo: MPF, 1998.

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Lílian da. (orgs). Pistas do método

da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina,

2010.

QUILOMBOS DO RIBEIRA. Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira. [2011]. Disponível em: <http://www.quilombosdoribeira.org.br/>. Acesso em: 15 jan. 2015. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2 ed., Porto Alegre: Sulina, 2014.

Referências

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