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O Problema da Sexualidade em Corinto no Primeiro Século

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 315-320, 2008

O Problema da Sexualidade em Corinto no Primeiro Século

Talita Inácio dos Santos SILVA G – IFCH – UNICAMP

talitaiss@yahoo.com.br

Parece-me mais frutífero retornar ao sentido original do termo latino cultura, propriamente o ato de cultivar (colere) que, desde cedo, significou o cultivo de plantas, mas também a produção humana em geral, material e espiritual. Portanto,[...] cultura é tudo que resulta do trabalho e da elaboração humanos. Sob o

termo cultura, inclui-se o sistema de meios e mecanismos elaborados

extrabiologicamente, graças aos quais se motiva, orienta, coordena, realiza e garante a atividade do homem. (FUNARI, 1989, p.12-13).

O sentido do termo cultura, definido por Funari, aponta para uma abordagem histórica chamada história cultural. Segundo Roger Chartier, é necessário que nela se pense como “análise do trabalho de representação, isto é, das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceituais próprias de um tempo ou de um espaço” (1990, p. 27). Ele concebe as estruturas do mundo social não como categorias intelectuais e psicológicas, mas como sendo historicamente construídas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) construtoras de suas figuras. Essas demarcações constituem o objeto de uma história cultural levada a repensar completamente, segundo Chartier, a relação tradicionalmente postulada entre o social, identificado como um bem real, existindo por si próprio, e as representações, supostas como refletindo ou dele se desviando.

Chartier defende ainda que a história deva ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um sentido. Rompendo com a antiga idéia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único – o qual a crítica tinha a obrigação de identificar – dirige-se às práticas que, plural e contraditoriamente, dão significado ao mundo. Daí a caracterização das práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação, de distância, de divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação.

Os estudos culturais privilegiam as tão controvertidas “mentalidades”, as representações e análises de seus símbolos e imagens, além das identidades. Segundo Hall, as identidades são historicamente construídas. Para ele,

[...] a identidade é, na verdade, algo formado ao longo do tempo através de processos inconscientes, mais do que algo inato à consciência, desde o nascimento. Há sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre essa unidade. Ela permanece sempre incompleta, está

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sempre “em processo” , sempre “sendo formada”.[...] Assim, ao invés de falarmos da identidade como algo concluído, deveríamos falar em identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade já presente dentro de nós enquanto indivíduos, mas da insuficiência de totalidade, que é “preenchida” a partir do que nos é exterior, pelas formas como imaginamos sermos vistos por outros. Psicanaliticamente, a razão pela qual buscamos continuamente a “identidade”, construindo biografias que amarram as diferentes partes de nossos divididos “selves” em uma unidade, é a de recapturar esse prazer fantasioso de plenitude (2003, p. 30).

Tão importante quanto o conceito de identidade de Hall para esse trabalho é o de gênero desenvolvido por Joan Scott, sendo ele uma categoria útil para análise histórica. Após tecer considerações sobre como os sexos e a sexualidade foram trabalhados ou ignorados ao longo da historiografia, Scott traça sua própria definição de gênero. O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e o gênero e um primeiro modo de dar significação às relações de poder (SCOTT, 1990). Segundo a autora, os atores e as ações históricas não podem ser determinados senão concretamente, situados no tempo e no espaço, nem a história pode ser escrita sem o reconhecimento de que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes, pois quando aparecem fixadas recebem, apesar de tudo, definições alternadas, negadas ou reprimidas.

Por sua vez, a pesquisa embasa-se no método de inversão de pressupostos em História da Sexualidade, elaborado por Foucault, que não tinha uma teoria fixa ou uma posição imutável em relação às quais todas as coisas podiam ser medidas. Ao considerar a sexualidade como uma “experiência historicamente singular”, e não como uma constante, Foucault viu-se diante do desafio de reconstruir, por meio de sucessivos discursos, os vestígios de uma “longa tradição cristã” herdada nos séculos XIX e XX. Sua busca dos começos e das diferenças levou-o de volta aos gregos, que são, também, o ponto de partida da pesquisa. Foucault enfatizou que a sexualidade e a promessa de satisfação do “eu” não são liberações, mas, ao contrário, opressões de uma tradição cristã. O próprio sexo, distinto de sexualidade, tornou-se um produto do discurso, não “a coisa em si”. Essa análise é, segundo O’Brian (2001), uma assombrosa inversão que tem por objetivo realçar, por meio das diferenças, a transformação dos discursos.

O corpo e a sexualidade parecem estar no centro da preocupação da comunidade cristã de Corinto a quem Paulo dirige as cartas que constam no Novo Testamento. Assuntos a isso relacionados são tratados abertamente ao longo da carta, como no caso da repreensão ao homem que vivia com a mulher do seu pai (I Cor 5. 1), às recomendações contra a fornicação

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 315-320, 2008 317 (I Cor 6,12-18; I Cor 7,1 e I Cor 10,7), a respeito do casamento e deveres conjugais (I Cor 7) e, ainda, sobre as pessoas virgens (I Cor 7, 25-37).

A análise das Cartas Paulinas em questão encontra a dificuldade imposta pelo caráter ambíguo de Paulo com relação às orientações relativas ao casamento e ao papel da mulher: ao mesmo tempo em que sugere aos membros da comunidade cristã de Corinto que melhor seria não tocar em mulher, recomenda que cada homem tenha a sua mulher e cada mulher tenha o seu marido para evitar a fornicação (I Cor 7, 1-2), e ainda que um não se recuse ao outro para não ser tentado por Satanás por causa da abstinência (I Cor 7, 5). Mais adiante, Paulo orienta que os solteiros permaneçam solteiros, os casados permaneçam casados, as viúvas não tornem a casar (I Cor 7, 8-10): os remetentes parecem estar sendo direcionados à outra tarefa mais urgente que os relacionamentos. Uma pessoa casada estaria dividida entre as coisas do Senhor e as coisas deste mundo ao preocupar-se com seu cônjuge (I Cor 7,32-34), além de enfrentar tribulações, frutos do relacionamento conjugal, do qual Paulo gostaria que os membros da comunidade cristã de Corinto fossem poupados (I Cor 7, 28).

Ainda com relação às pessoas virgens: as palavras de Paulo vão ao sentido de um conselho, uma vez que não têm nenhuma orientação divina a respeito do assunto (I Cor 7, 25). Neste caso, como homem que se julga digno de confiança, considera essa condição boa por conta das angústias do seu presente. Porém, permanece a máxima: Irmãos, cada um permaneça diante de Deus na condição em que se encontravam quando foi chamado. (I Cor 7, 24). Com esta mensagem, Paulo parece querer colocar as questões sexuais em segundo plano em função de questões mais importantes que não ficam claras.

Desejam-se investigar as interações entre as diferentes culturas (judaica, helênica e a cristã nascente) da comunidade cristã de Corinto, umas das referências da antiguidade nos assuntos relacionados a corpo e sexualidade.

Por se tratar dessa comunidade, são de extrema importância o estudo de Paulo e suas cartas a ela encaminhadas. Paulo preocupa-se com o fato de que estejam bem definidos os limites de comportamento dos pertencentes de seu movimento. No caso de Corinto, uma cidade portuária grega, as diferenças entre ricos e pobres, senhores e escravos, homens e mulheres havia explodido sob a forma de antagonismos entreos vários lares que compunha a comunidade (BROWN, 1990, p. 54), que, segundo as palavras do autor, era uma mixórdia sociológica. As questões levadas a Paulo parecem trazer da parte dos membros da comunidade cristã de Corinto o desejo em diferenciar-se dos demais gregos não convertidos por meio das práticas sexuais, como podemos observar por Brown:

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Estavam dispostos a desfazer os esteios elementares da sociedade convencional. Renunciariam ao casamento. Alguns se separariam das esposas pagãs, outros se comprometeriam com a abstinência perpétua de relações sexuais. Os filhos em crescimento, por cujo casamento eles eram responsáveis, permaneceriam virgens (BROWN, 1990, p. 54).

A partir da leitura do trecho acima, pode-se afirmar que tanto Paulo quanto esses gregos de Corinto estavam interessados em marcar a identidade desse movimento pela negação. O importante seria não ser confundido com pagãos por meio das práticas sexuais, pelos banquetes com carnes sacrificiais (I Cor 10,18) ou pela procura de tribunal pagão para resolver assuntos entre crentes (I Cor 6,4): como comunidade, deveriam viver diferenciadamente dos gregos e do que representava sua religião. No campo sexual, a diferenciação ganha importância uma vez que uma das marcas da religião grega em Corinto eram a prostituição sagrada e a conglomeração de seitas mistéricas orientais (DUNN, 2003, p. 223-289), e os pertencentes à comunidade de Paulo não deveriam se misturar a tais práticas. A seguir, o trecho de I Corinto mostra como Paulo apropria-se de um trecho do Gênesis que trata da união entre homem e mulher para justificar a não união entre o crente de sua comunidade e a prostituta:

Não sabíeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei então os membros de Cristo para fazê-los membros de uma prostituta? Por certo, não! Não sabíeis que aquele que se une a uma prostituta constitui com ela um só corpo? Pois está dito: Serão os dois uma só carne (I Cor 6, 15-16).

Da mesma forma como a questão sexual foi importante na definição da identidade da comunidade paulina de Corinto, em algum momento da história a questão da virgindade, sobre a qual Paulo orientou a título de conselho, ganhou grande dimensão. Intenta-se estudar as questões políticas, religiosas, sociais e morais envolvidas nesse processo, assim como as implicações da cristalização da condição da virgindade como ideal à comunidade cristã.

A problemática surge da ausência de referências às questões relacionadas à sexualidade nas palavras atribuídas a Jesus nos evangelhos1, apontando para a irrelevância da questão, frente à importância que ganhou na história do Cristianismo. A partir disso, pretende-se investigar as bapretende-ses dos conpretende-selhos paulinos em relação ao corpo, à pretende-sexualidade e às relações de gênero, integrados às práticas sexuais das culturas que interagiam em Corinto.

Esta pesquisa, que se encontra no início de seu desenvolvimento, tem o intuito de discutir quais eram os tipos de interação cultural entre os primeiros cristãos da comunidade de

1 Sobre o tema cf.: CHEVITARESE, A. L., CORNELLI, G., SELVATICI, M. (2006), CROSSAN, J.D. (1994) e

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 315-320, 2008 319 Corinto no que diz respeito à sexualidade a ponto de atrair a atenção de Paulo em forma de uma carta específica, e como as questões de corpo, gênero e sexualidade relacionam-se com a formação da identidade do cristão primitivo. Reconhece-se que os termos e noções com o qual se pretende trabalhar estão carregados de sentidos modernos. Será, portanto, necessário o estudo atento das Cartas de Paulo aos Coríntios em seu original grego visando à desconstrução de preconceitos ou pré-noções que poderiam fazer de minha leitura apenas uma nova reapropriação do passado com os sentidos e intenções modernos.

Utilizar-se-ão trabalhos acadêmicos na linha histórica, antropológica, sociológica e teológica, além de fontes de cultura material sobre Corinto. Nesse sentido, o trabalho torna-se relevante por questionar a noção de identidades estanques do cristão primitivo, do judeu, do grego em função de uma interação e fluidez das identidades, além de buscar, de modo relacional, entender os papéis de masculino e feminino histórica e culturalmente definidos na comunidade de Corinto em relação à sexualidade, tanto por meio de fontes literárias quanto materiais.

A partir da problemática que envolve a sexualidade na comunidade de Corinto, esta pesquisa envolve-se na análise dos primórdios da Igreja, em especial, a comunidade Paulina de Corinto, durante o período do primeiro século, quando se orienta e posteriormente consolida-se uma legislação sexual cristã. Com isso, pretende-se discutir as apropriações do passado para legitimação de uma regra, dando seqüência à pesquisa, que conta com o apoio da FAPESP, como Iniciação Científica, desde junho deste ano. Partindo dessa premissa, a pesquisa centraliza-se em duas questões principais: primeiramente, a discussão acerca dos termos gregos presentes na Carta de Paulo às comunidades cristãs de Corinto e as relações e significados frente às práticas sexuais dos membros desta comunidade e às culturas judaica e grega em interação constante; em segundo, trata-se do estudo da cultura material referente a Corinto do primeiro século, buscando relações com as fontes literárias. Ademais, os contatos com o Prof. Pedro Paulo Funari e com a doutoranda e bolsista da FAPESP Roberta Alexandrina da Silva, assim como as aulas do pós-doutorando Paulo Nogueira, foram de suma importância no desenvolvimento e na reflexão epistemológica de pressupostos teóricos referentes à temática da pesquisa.

Referências Bibliográficas:

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 315-320, 2008 320 CHARTIER, R. A História Cultural entre práticas e representações. Rio de

Janeiro/Lisboa, Bertrand/Difel, 1990.

CHEVITARESE, A. L. & CORNELLI, G. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo: Ensaios sobre Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo. Itu: Editora Ottoni, 2003.

FUNARI, P. P. A. Cultura Popular na Antigüidade Clássica. São Paulo: Editora Contexto, 1989.

CROSSAN, J. D. O Jesus Histórico: a vida de um camponês judeu no mediterrâneo. Tradução de Ande Cardoso. Rio de Janeiro: Imago, 1994.

FUNARI, P. P. A., FEITOSA, L. C. & SILVA, G. J. (orgs). Amor, Desejo e Poder na Antigüidade: Relações de Gênero e Representações do Feminino. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2003.

HALL, S. A Questão da Identidade Cultural. 3ª ed. Campinas: IFCH/UNICAMP, nº18, 2003. Coleção Textos Didáticos.

JENKINS, K. A História Repensada. São Paulo: Contexto, 2001

O’BRIAN, P. A História da Cultura de Michel Foucault In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SCOTT, J. Gênero: Uma Categoria útil de Análise Histórica. In: Revista da Educação e Realidade. Porto Alegre, 15(2): 5-22, jul/dez, 1990.

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