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Memoriais das ditaduras: a memória em exposição em São Paulo e Buenos Aires

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Anais Eletrônicos do X Encontro Internacional da ANPHLAC São Paulo – 2012 ISBN 978-85-66056-00-6

Memoriais das ditaduras: a memória em exposição em São Paulo e Buenos Aires

Deborah Regina Leal Neves1

Memoriais são concebidos para remeter à memória, para rememorar algo ou alguém. O conceito de memorial entendido como instituição de categoria museológica é algo pouco definido e de difícil apreensão. A diferença entre esta instituição e um museu não é clara, embora diferentes em sua definição e objetivo, e não se podem confundir. Sobre o tema, são dois os textos que servirão de base para essa definição, neste artigo: “O memorial como instituição no sistema de museus: conceitos e praticas na busca de um conteúdo”, de Jorge Barcellos, e “Memoriales, Museos, Monumentos: la articulación de uma memória publica en la Argentina pos-dictatorial”, de Maria Silvina Persino.

Ambos os autores procuram distinguir o memorial do museu, e salientam que encontrar a definição e delimitação de atuação da instituição é primordial, sobretudo num cenário em que a memória é objeto de diversas iniciativas e o memorial é fruto de suas práticas. Apesar de se assemelhar ao museu – porque adquire acervo, comunica e expõe – não se trata de testemunhos em geral, mas testemunhos específicos sobre temas determinados, geralmente bem delimitados, atendendo a interesses particulares de divulgação, conservação e valorização de uma memória de uma instituição ou pessoa.2 Trata-se, portanto, de um tema bastante recortado, muitas vezes ligado a eventos excepcionais. Destarte, o memorial propõe uma relação simbólica e construída com o fragmento do passado, cuja memória pretende ativar, aliado a uma intenção pedagógica.3 Podemos ainda acrescentar a essas duas concepções a ideia de que o memorial é um lugar que reúne coleções ou seleções de imagens, fatos com uma referência temporal, remetendo o visitante àquele sentimento ou àquele lugar antes vivido. Trata-se de um conceito que ainda está em construção.

Paul Ricouer afirma que “as 'coisas' lembradas são intrinsecamente associadas a lugares. E não é por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lugar”4. Podemos afirmar que, tanto no caso do museu quanto do memorial, a permanência do passado no presente e a importância do lugar são destacadas. Sobre os lugares, Pierre Nora afirma que

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são marcos de outra época, restos de passado que só perduram no tempo porque são frutos da necessidade de guarda, porque existe risco de desaparecimento e, sobretudo, porque a história se apoderou deles e os transformou em lugares de memória.5 Mas esse processo não é natural, é fruto de uma resistência desse passado, acionado no presente por conta de questões específicas relativas a ele6 – neste caso, a necessidade de resolver casos de mortes e desaparecimentos, a necessidade de fazer justiça.

Para compreender adequadamente a função do memorial e a importância dos lugares, analisaremos como exemplo duas instituições bastante semelhantes no intuito, localizadas nas cidades de São Paulo e Buenos Aires (Argentina).

Memorial da Resistência e Espacio para la Memoria

O Memorial da Resistência de São Paulo ocupa pouco mais da metade do pavimento térreo daquele edifício de cinco andares que, entre 1942 e 1983, foi a sede do DEOPS/SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo). Originalmente, o prédio foi construído em 1914 para abrigar armazéns da Estrada de Ferro Sorocabana e serviu a este fim até 1939, quando um edifício maior e mais moderno foi construído no lote ao lado para abrigar os novos escritórios da ferrovia. Foi ocupado progressivamente por órgãos da Secretaria de Segurança Pública durante a década de 1940: primeiro a Delegacia de Explosivos, Armas e Munições; em 1941, a Chefatura de Polícia e a Superintendência de Segurança e Política Social; em 1942, o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS). Havia também a Diretoria de Pessoal da Polícia (1ª Seção) e a 5ª Divisão Policial. Em 1983, já com o fim anunciado da ditadura, o DEOPS é extinto e o prédio dá lugar à Delegacia do Consumidor (DECON). Em 1997, é repassado à Secretaria de Estado da Cultura.

O DEOPS foi um órgão criado em 1924 para monitorar imigrantes e indivíduos classificados como subversivos (em sua maioria anarquistas e comunistas); teve sua atuação ampliada pelo Estado Novo e “prestigiada” durante a Ditadura Civil Militar. Ali, pessoas eram presas temporariamente, interrogadas, torturadas e, depois, em caso de sobrevivência, liberadas ou encaminhadas ao Presídio Tiradentes. Presídio do qual hoje resta apenas o portal, tombado como Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo, como símbolo da repressão. Embora a simbologia entre os dois edifícios – DEOPS e Presídio Tiradentes – seja inexorável,

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não há qualquer sinalização ou indicação de cunho pedagógico que vincule os dois espaços como parte de uma política única de repressão, como há entre ESMA e Parque para la Memória (que será abordado adiante).

Criado em 2006, o Memorial da Resistência tem como proposta “lembrar para resistir” e a exposição permanente visa apresentar ao visitante um panorama da repressão exercida pelo estado, especialmente o órgão ocupante do edifício, ao longo do período chamado “República”, iniciado em 1889, até os dias atuais. Busca também representar o cotidiano dos detentos do DEOPS durante o período em que funcionou naquele local: quatro das dez celas pré-existentes estão abertas a visitação, embora descaracterizadas. A criação deste memorial é uma tentativa de exaltar o direito a resistir, às utopias, à revolução e às liberdades democráticas, além de repudiar o estado de exceção, a repressão e os crimes de lesa humanidade, a partir da visão das vítimas.

O Espacio para la Memoria ocupa o que foram as instalações da Marinha Argentina entre 1914 e 2004 na cidade de Buenos Aires, um terreno de 17 hectares e 35 edificações, que hoje abrigam diferentes organismos de direitos humanos governamentais e civis. O mais emblemático edifício da Escuela Superior de Mecánica de la Armada (ESMA), o “Edifício de las Cuatro Columnas”, apresenta exposições temporárias e ainda não há um projeto museográfico delimitado, como no Memorial da Resistência de São Paulo. Embora o “Edifício de las Cuatro Columnas” seja o edifício visualmente mais conhecido, toda a simbologia e significado do espaço está em outro prédio, o Casino de los Oficiales. Era nesse local que se instalou a detenção provisória, o centro de torturas e a oficina de trabalhos forçados. É possível visitar o local com guias designados pelo Instituto Espacio para la Memoria, que apresentam as instalações com um breve histórico sobre as funções de cada lugar, onde as percepções são muito mais subjetivas do que expositivas. Além destes espaços no interior do que era a ESMA, outro local é simbólico e guarda relação direta com aqueles: o Parque de la Memoria, à beira do Rio da Prata. Sua vinculação será explicada adiante.

A ESMA está em um terreno cedido pela cidade de Buenos Aires à Marinha em 1914 para sediar suas instalações, além de uma escola técnica para jovens, em que se ministravam cursos de artilharia, eletrônica, mecânica etc. O espaço serviu a este fim até 1976, quando passaram a conviver com os atos políticos das Forças Armadas, sem que as atividades de escola fossem paralisadas. As torturas e detenções efetuadas entre 1976 e 1983 eram realizadas no edifício conhecido como Casino de los Oficiales, onde passaram cerca de 5.000 pessoas, das quais se estima que apenas 200 sobreviveram. O Casino é considerado, na

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Argentina, como um Centro Clandestino de Detención y Tortura (CCDyT), e dali as pessoas eram transladadas aos “voos da morte”, denominação para a atividade que sedava os detidos para embarcá-los em aviões da aeronáutica e atirá-los, com vida, no Rio de la Plata.

Daí a ligação inexorável com o Parque de la Memoria. Ali, o parque funciona como um monumento-denúncia das mazelas geradas durante o período da ditadura civil-militar argentina. Não se trata apenas de um monumento em memória às vítimas (onde há, aos moldes do Memorial do Holocausto de New York e do Yad Varshem em Israel, uma lista contendo nomes de pessoas mortas e desaparecidas e o ano em que ocorreram), mas de uma experiência onde o visitante pode ter informações sobre questões ligadas ao cenário econômico, social e cultural do país e da cooperação (e/ou da omissão) entre sociedade e estado, que garantiu a permanência dos militares no poder.

A conexão entre ESMA e Parque da la Memória, portanto, oferece uma visão ampla e complexa que trata do terror individual sofrido por aqueles que ali permaneceram detidos por um tempo, bem como das consequências para a sociedade argentina, demonstrando que a atuação dos militares estava para além dos centros clandestinos na “guerra contra a subversão”. As informações exibidas no parque apontam a abrangência das atividades do regime, indicando facilitações a empresas colaboracionistas (por meio de concessão de benefícios, suspensão de dívidas, prioridade em contratos com o estado), censura aos meios de comunicação e às práticas culturais, redução dos direitos trabalhistas e civis etc. Ou seja, o Parque demonstra que a ditadura atingiu a toda a sociedade, e não somente aos presos, desaparecidos, mortos e seus pares, com os requintes de terrorismo de estado.

Figuras 1 e 2 – À esquerda o Casino de los Oficiales e à direita o Parque de La Memoria, com placas semelhantes às de trânsito, para denunciar as ilegalidades do regime. Fotos: Deborah Neves.

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locais pertencentes a algum órgão envolvido em repressão, eram lugares de tortura e detenção provisória e de passagem para outro destino – seja a morte, seja a prisão oficial. Transformar esses locais em espaços de memória e reflexão possui um caráter simbólico, já que a apropriação e conversão dos edifícios demonstram a importância de conhecer o passado, criticá-lo e impedir que ações como as que ali ocorreram se repitam. Esses são os argumentos principais para a musealização ou a patrimonialização desses locais, que rememoram, que devem provocar a reflexão.

Porém, as trajetórias para a apropriação pela sociedade foram bastante diversas. Na Argentina, com a concessão de uso para a Marinha revogada pela municipalidade de Buenos Aires em 2000, o complexo da ESMA começou a ser desocupado em 2004 por ordem do então Presidente Néstor Kirchner. O Presidente fez questão de salientar a quem as Forças Armadas estavam subordinadas no momento em que as fotos dos Generais Jorge Videla e Reynaldo Bignone foram retiradas das paredes do Colégio Militar sob sua ordem, utilizando-se do argumento que o edifício estava utilizando-sendo restituído à sociedade civil, porque a Marinha não utilizou o local em defesa do povo argentino, mas contra ele.7 Esse é o desfecho de uma história longa de lutas dos movimentos por direitos humanos argentinos, que por mais de 20 anos lutaram pela responsabilização de agentes e do próprio Estado, ora materializado na conversão da ESMA em equipamento cultural de memória, local esse que sofreu ameaça de demolição em 1999, quando Carlos Menem ainda era Presidente.8

Figura 3 – Néstor Kirchner ordena a retirada da foto de Jorge Videla, que havia sido retirada antes de sua chegada na ESMA, em 2004. Foto: Jornal Página 12.

No caso do edifício DEOPS essa apropriação ocorreu de forma lenta e controversa; apenas em 1999 iniciou-se a discussão para destinar o local à cultura, porém, o espaço seria

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destinado a abrigar a Universidade de Música, com um certo “Memorial do Cárcere”, ocupando pouco mais da metade do pavimento térreo. Questões orçamentárias e de projeto inviabilizaram a instalação da universidade, e imediatamente concebeu-se a ideia de ali instalar o “Museu do Imaginário do Povo Brasileiro” e em conjunto, o Memorial do Cárcere. A proposta não prosperou e, em janeiro de 2004, o Decreto 48.461, que instituiu a Estação Pinacoteca, revoga o Decreto de criação do Museu do Imaginário, transferindo a administração do local à Pinacoteca do Estado, administrada por uma Organização Social de Interesse Público (OSCIP), que resolveu ali implantar a Estação Pinacoteca. Em 2006, a gestão do agora Memorial da Liberdade também passou ao controle da Pinacoteca do Estado, ocupando o mesmo espaço destinado ao que seria o Memorial do Cárcere.

A celeuma não estava encerrada: a denominação “Memorial da Liberdade” gerou insatisfação por parte de movimentos ligados à defesa dos direitos humanos e a ex-presos políticos, que exigiram a reconstituição daquele lugar como marco de lutas contra as ditaduras, além da mudança de nome para “Memorial da Resistência”, já que havia um entendimento que ali havia Resistência e nenhuma Liberdade.

Não há como negar que o Memorial da Resistência é mérito das lutas insistentes do Fórum dos ex-Presos e Perseguidos Políticos e das várias entidades, que rejeitaram o estranho Memorial da Liberdade e defenderam o conceito de Memorial da Resistência. Mais lógico e mais sensato.9

Contudo, oficialmente, para o Estado, o local permanece como Memorial da Liberdade, já que o Decreto 46.900 – que criou este – não foi revogado nem sofreu qualquer alteração relativa ao nome do espaço e o Decreto 50.941/06 mantém esta denominação na classificação de equipamentos culturais pertencentes à Secretaria da Cultura. Como se percebe, há diferença de apropriação e devolução do prédio à sociedade, ocorridas de maneiras distintas e merecedoras de questionamentos acerca das políticas de memória.

Mudanças físicas

Outro ponto de convergência entre os locais foram as mudanças físicas pelas quais passaram, algumas durante a ocupação dos órgãos militares, outras posteriores.

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sobreviventes da ESMA que se refugiaram no exterior, mesmo de pessoas ainda residentes na Argentina, com contatos importantes em embaixadas, especialmente dos Estados Unidos.10 Para receber a visita da comissão que avaliaria a veracidade das denúncias, os militares empreenderam alterações significativas no edifício, a fim de contrariar as informações concedidas por ex-presos. Trataram de transferir os detidos, alterar arcos de janelas, retificando-os, fecharam acessos ao porão – onde ficava a “Oficina”, colocando em seu lugar um escudo, fecharam as escadas de acesso entre o subsolo e o pavimento térreo, alteraram as divisórias da “Oficina” (onde presos executavam trabalhos forçados, sob a denominação de “reeducação”).

Figuras 4 e 5 – O anúncio de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) visitaria a Argentina os oficiais promoveram uma série de alterações estruturais no edifício com o objetivo de ocultar a atividade repressiva que se realizava na ESMA. Enquanto realizavam estas reformas, o porão continuou funcionando, e as tarefas desenvolvidas pelos sequestrados deveriam ocorrer entre 7h e 17h. À esquerda, uma visão do local até dezembro de 1978, à direita, a planta do local após modificações em 1979, bem como a localização do porão no edifício. Fotos: Deborah Neves.

Hoje essas marcas das alterações são visíveis e identificadas como testemunho histórico que comprovam as informações prestadas pelos ex-presos. Durante a visita guiada,

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os locais são apontados e é informado que o edifício, além de importância histórica, é prova material nos processos que estão em andamento contra militares na Justiça argentina. Por esse motivo, não é permitido fotografar o local. As fotos deste trabalho foram tiradas com autorização dos funcionários do Archivo Nacional de la Memória, ou retiradas de sites, com os devidos créditos.

Figuras 6 e 7 – Fechamento com painéis de madeira do acesso à escada que levava do térreo ao porão (Foto: Argentina en fotos.com). Ao lado, imagem do porão, onde havia a escada de acesso ao térreo, fechada posteriormente com blocos. A ação do tempo denunciou esta alteração.

No Antigo DOPS, pouco se sabe – e talvez nunca se saiba – sobre a ocupação que o órgão empreendeu. O único remanescente da ocupação da polícia no edifício são quatro celas e um pequeno pátio para banho. Sabe-se que havia 10 celas, porém restaram apenas quatro íntegras (duas foram desmembradas para ser o salão principal do Memorial da Resistência e outras quatro, em anexo externo ao prédio, foram demolidas e hoje servem de estacionamento para a CPTM).

Essas celas não pertencem ao projeto original de 1914 e, portanto, foram construídas para atender às necessidades da Polícia Política. A reconstituição física e do cotidiano das celas, à semelhança com a ESMA, também foi feita com base no testemunho de pessoas que estiveram detidas ali.

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No atual Memorial da Liberdade, apenas quatro celas vazias guardam a clareza perversa em sua estrutura: quase sem luz, ocultam seus antigos desígnios deixando de mostrar o grotesco e a exclusão premeditada pelo Estado. Se recuperadas na sua aparência, as celas e o ‘corredor de tomar sol’ certamente poderão contribuir para a reconstituição do drama vivenciado pelos presos políticos, rotulados de subversivos da ordem. [...] Lapidadas pelo restauro, são fragmentos esgarçados de memória. […] Nos andares superiores, desapareceram as salas majestosas e o mobiliário talhado por mestres do ofício para servir às autoridades da ordem.11

O edifício, quando entregue pelo DECON à Secretaria da Justiça, mantinha a estrutura das celas em estado precário, mas mantinha inscrições nas paredes, a atmosfera da cela, do cárcere. Após as obras de “restauro” empreendidas pelo escritório do arquiteto Haron Cohen, as paredes foram cobertas por massa e tinta grafite, mutilando o testemunho material e histórico que o lugar representava. Até hoje corre um processo no Ministério Público de São Paulo contra a Secretaria da Cultura por danos ao patrimônio, já que as reformas iniciaram sem o aval dos órgãos de preservação (IPHAN, CONDEPHAAT e CONPRESP), mas ao longo da obra foram aprovadas “as built” (como construída) − algo bastante controverso e que possibilitou a extinção de testemunhos.

Enquanto o edifício da ESMA tem umidade e temperatura sistematicamente monitoradas, não é permitido fotografar e tocar nos ambientes por servir de prova material da tortura, o edifício do DOPS foi higienizado, “restaurado” por profissionais que não respeitaram a importância histórica do edifício.

Figura 8 - Maquete do Memorial da Resistência, com reprodução da estrutura do DOPS no pavimento térreo e prédio anexo com quatro celas, já demolido. Foto: Deborah Neves.

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Figuras 9, 10, 11 e 12 – Na coluna da esquerda (fotos 9 e 11), a cela e o corredor de banho de sol sem reforma. Na coluna da direita (fotos 10 e 12), os mesmos ambientes após o “restauro”. Fotos extraídas do livro Memorial da Resistência de São Paulo.

Além desses problemas em relação ao restauro, a limitação de ocupação daquele espaço físico é outro ponto que incomoda não somente o observador mais atento, mas também aqueles que idealizaram e conceberam o projeto do Memorial:

Restaurado, o prédio mantém hoje seu partido arquitetônico com novas funções muito mais direcionadas à cultura do que à memória política. De forma muito tímida e surda, o Memorial da Liberdade rende suas homenagens aos presos mortos e desaparecidos durante a Ditadura Militar.12

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Embora os caminhos que levaram à descaracterização do edifício e à destinação de espaço limitado ao Memorial da Resistência, o projeto museológico é digno de reconhecimento em sua excelência. Escolas são convidadas a realizar excursões e o fazem com bastante frequência, as exposições temporárias são de qualidade indiscutível e dialogam com outros países, especialmente da América do Sul (como a exposição Buena Memória, do argentino Marcelo Brodsky, e a exposição Arpilleras da resistência política chilena, de Roberta Bacic); desenvolve programa de formação de professores (ainda que pouco profundo, estimula o professor a discutir as questões em sala de aula com alunos do ensino fundamental e médio), e promove debates mensais chamados “Sábados Resistentes”, promovidos pelo Núcleo de Preservação da Memória Política do Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo, em parceria com o Memorial da Resistência de São Paulo. Trata-se de um espaço de discussão entre militantes de diversas causas, pesquisadores, estudantes e interessados em geral no debate sobre temas ligados às lutas contra a repressão, em especial à resistência ao regime civil-militar implantado com o golpe de Estado de 1964.

Contudo, percebe-se a “higienização” da memória, uma vez que pode ser incômoda ao Estado. Afinal, se o patrimônio representa a nação, sua coesão, não parece adequado preservar a memória da repressão que acolhe os “indesejáveis” da sociedade. O valor que se confere ao patrimônio é uma escolha, e talvez essa não seja a do Estado, especialmente quando se pensa que com a anistia imposta em 1979, o esquecimento foi institucionalizado, mas não compactuado com a sociedade. Será que não se pode aqui atribuir o que Ricoeur tratou de chamar de “estratégias do esquecimento”? Isso é,

uma forma ardilosa de esquecimento, resultante do desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a si mesmos. Mas esse desapossamento não existe sem uma cumplicidade secreta, que faz do esquecimento um comportamento semipassivo e semiativo, como se vê no esquecimento de fuga, expressão da má-fé, e sua estratégia de evitação motivada por uma obscura vontade de não se informar, de não investigar o mal cometido pelo meio que cerca o cidadão, em suma por um querer-não-saber.13

***

Devidamente apresentados, identificamos que ambos os memoriais remetem ao período das recentes ditaduras civil-militares que foram instauradas nestes países entre as décadas de 1960 e meados da década de 1980; e mais, ambos estão instalados nos locais que antes eram ocupados pelas forças de estado que contribuíram para o funcionamento do sofisticado

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aparato de repressão à população.

Essa observação é importante, porque a funcionalidade de um memorial depende de sua localidade, do lugar que ocupa; tanto Memorial da Resistência como Espacio para la Memoria estão constituídos no local geográfico a que remetem, possibilitando classificá-los como “museu-lugar” ou, nas palavras de Nora, um lugar de memória; para Ricoeur

os lugares permanecem como inscrições, monumentos, potencialmente como documentos, enquanto as lembranças transmitidas unicamente pela voz voam, como voam as palavras […]. Os mais memoráveis lugares não pareceriam capazes de exercer sua função de memorial se não fossem também sítios notáveis no ponto de interseção da paisagem e da geografia. Em resumo, os lugares de memória seriam os guardiões da memória pessoal e coletiva se não permanecessem “em seu lugar”, no duplo sentido do lugar e do sítio?14

Ora, o que os edifícios, por si só, nos contariam se não fossem ocupados, se não tivessem suas histórias reveladas pelos referidos memoriais? Não fosse a atividade humana ter se desenvolvido ali, ainda que esta seja intolerável, e se não houvesse o intuito de tornar públicas as experiências de indivíduos que vivenciaram as práticas daquele local, não haveria sentido social no lugar, não haveria a construção da memória coletiva acerca de um passado que se preferia esquecer ou mesmo ocultar. Não seriam, portanto, lugares de memória.

Mas de que maneira deve-se promover a recordação de um evento? Todorov lista duas formas de recordar, a fim de evitar os “abusos da memória”:

 memória literal: uma lembrança única e intransferível;

 memória exemplar: transforma a memória literal em um exemplo que evite a repetição dos atos.

É uma transmutação do individual ao sociopolítico que faz desse um “bom uso” do passado, ou seja, o uso útil. A isso, podemos somar a afirmação de Paul Ricouer, que atenta para esse alerta de Todorov, de que é necessário “extrair das lembranças traumatizantes o valor exemplar que apenas uma inversão da memória em projeto pode tornar pertinente. Enquanto o traumatismo remete ao passado, o valor exemplar orienta para o futuro”15.

Para se constituir, a memória precisa ser transmitida, e para isso é necessária sua atualização. Esse fato aproxima memória e preservação, já que a preservação é minimizar o risco de destruição e perda. O jogo entre ‘Preservação e destruição’ é semelhante ao da

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‘memória e esquecimento’. Assim,

[...] a adoção de procedimentos resultantes de deliberação de vontade individual ou coletiva, visando à preservação de bens tangíveis ou intangíveis, constitui-se o que se chama de “política de preservação”. Trata-se em verdade de prática social […] difundida na sociedade de um modo geral e, de modo particular, nos museus. Se aquilo que se preserva é concebido como suporte de informação e como alguma coisa passível de ser utilizada para transmitir (ou ensinar) algo a alguém, pode-se falar em documento e memória. Nesse caso, pode-se também falar em política de memória.16

Afinal, podemos falar em políticas de memória ou são apenas atos de memória? No Brasil, ainda há o embrião de uma política, que constitui ações constantes por parte do Estado e da sociedade; aqui há um conjunto de ações de memória, em grande parte, desarticuladas, uma vez que cada instituição, cidade e estado trata de maneira independente o tema da memória do período da ditadura civil militar brasileira, inexistindo ações coligadas e orquestradas dentro de um grande plano de elucidação dos fatos do passado. Ao passo que na Argentina, desde o final da década de 1990, e com mais força durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner, o assunto tem sido tratado como de responsabilidade também do Estado, desenvolvendo monumentos, programas educacionais escolares e não escolares, debates públicos etc. Porém, resta a mesma pergunta, em outro nível: trata-se de uma política de governo ou de uma política de Estado? Ou seja, é um compromisso dos Kirchner ou algo que estará permanentemente na agenda política argentina?

Conclusão

Segundo Paul Ricoeur, a memória, fragmentada e pluralizada, se aproxima da história pela sua “ambição de veracidade”, mas a memória não é história, e vice-versa. A memória é objeto da história, e só o é porque é passível de manipulações de ordem política e ideológica, tal qual o patrimônio que, enquanto materialização de uma memória, é igualmente um campo de disputas e tensões. Assim, como afirma Jacques Le Goff, “o patrimônio se situa entre a memória e a história”.

Conforme Pollak (1989) afirma, ao retomar Durkheim, os “pontos de referência”, entendidos como lugares de memória, são como indicadores empíricos da memória coletiva

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de um grupo, fundamentando e reforçando os sentimentos de pertencimento, coesão social pela adesão afetiva de um grupo a um local ou uma causa.

A memória é retrospectiva e prospectiva e pode fornecer uma perspectiva para a interpretação das nossas experiências no presente e para a previsão do que virá a seguir. A memória só tem sentido se atualizada. Como a memória não está nas coisas, mas na relação que com elas se pode manter, é sempre possível uma nova leitura, uma nova audição ou percepção. Portanto, Memorial da Resistência e o Espacio para la Memória constroem uma memória da ditadura, mas eles próprios serão objetos da memória no futuro, como parte de uma política de reparação dos erros do estado num tempo passado.

Na Argentina, a Justiça de Transição está em andamento desde o início da década de 2000, e já foram julgados mais de duas centenas de envolvidos direta ou indiretamente em ações ilegais promovidas pelo Estado. No Brasil, alguns passos para a Justiça Transicional estão sendo dados, apesar da Lei de Anistia limitar a ação do Judiciário. As ações ainda são pontuais e não mostraram resultados efetivos. O Estado recentemente implantou a Comissão da Verdade, sob protestos de alguns setores civis e militares, a fim de esclarecer os crimes políticos praticados entre 1946 e 1988, abrangendo inclusive um período além do golpe de 1964. Há intenção de criar o Memorial da Anistia como instituição de pesquisa sobre direitos humanos; há a realização sistemática de Caravanas da Anistia desde o ano de 200817; no plano individual, dois exemplos recentes mostram a tentativa de familiares de mortos por agentes do Estado durante o período de ditadura civil-militar de apontar estes agentes como torturadores18 e de reparação material pelo assassinato de seus pares.19 Até o momento em que este artigo foi produzido, os processos ainda estavam em andamento.

Observamos que, na Argentina, os memoriais fazem parte de um complexo processo de reparação do Estado, enquanto no Brasil, é um dos poucos mecanismos de reparação, aliado com as indenizações. Porém, a memória não pode ser substituta da justiça, esse sim um legado importante e que, de fato, impede repetições.

1

Bacharel e Licenciada em História pela Universidade de São Paulo (USP), Especialista em Gestão do Patrimônio e Cultura pelo Centro Universitário Assunção (UNIFAI), Mestranda em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). É historiadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico (UPPH) da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.

2

BARCELLOS, Jorge. O memorial como instituição no sistema de museus: conceitos e práticas na

busca de um conteúdo. Disponível em:

<http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/camarapoa/usu_doc/concmemor.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2011.

3

PERSINO, Maria Silvina. Memoriales, Museos, monumentos: la articulación de uma memória publica en la Argentina pos-dictatorial. Revista Iberoamericana, v. LXXIV, n. 222, enero-marzo 2008.

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4

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François [et al.]. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p.57.

5

NORA, Pierre. Entre a Memória e a História. A problemática dos lugares. Trad. Yara Aun Khoury. Revista Projeto História, v. 10. São Paulo: PUC, dez. 1993, p. 7-28.

6

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, América do

Norte, n. 2, jun. 1989. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417>. Acesso em: 13 nov. 2011. 7

Um breve relato do teor do discurso do presidente Kirchner aos comandantes das Forças Armadas pode ser visto em “Sacaron los cuadros de Videla y Bignone”. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/585683-sacaron-los-cuadros-de-videla-y-bignone>. As imagens do

Presidente mandando retirar os quadros pode ser vista em:

<http://www.youtube.com/watch?v=qfCzhkdIsdU>. 8

Sobre este episódio, cf. “Demolerán la ESMA y colocarán um monumento por la unión nacional”. Disponível em: <http://edant.clarin.com/diario/1998/01/08/t-00211d.htm>.

9

SEIXAS, Ivan Akselrud. Discurso de 24 jan. 2009. Disponível em: <http://www.nucleomemoria.org.br/textos/discurso-oficial>. Acesso em: 7 jun. 2011. Discurso proferido por Ivan Akselrud Seixas, Presidente do Fórum de ex-presos e desaparecidos políticos do Estado de São Paulo, quando da inauguração do Memorial da Resistência.

10

Para mais informações sobre o assunto, cf. BRUSCHTEIN, Luis. Cuando el telón comenzó a levantarse, Página 12, 29 ago. 1999. Disponível em: <http://www.pagina12.com.ar/1999/99-08/99-08-29/pag17.htm>. Também é possível ter acesso ao relatório elaborado pela Corte Interamericana de

Direitos Humanos (CIDH). Disponível em:

<http://www.cidh.oas.org/countryrep/Argentina80sp/indice.htm>. 11

AIDAR, Gabriela; BRUNO, Maria Cristina Oliveira; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O projeto Museológico de Ocupação. In: Memorial da Resistência de São Paulo. São Paulo, Pinacoteca do Estado, 2009, p. 42. 12 Ibid., p. 40. 13 RICOUER, op.cit. p. 455. 14 Ibid., p. 58-60. 15 Ibid., p. 99 16

CHAGAS, Mário. Memória e Política de memória. In: Memória e patrimônio. Ensaios contemporâneos. ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org.). Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p. 160. 17

A primeira Caravana ocorreu na Associação Brasileira de Imprensa, na cidade do Rio de Janeiro, em 4 de abril de 2008. As Caravanas consistem na realização de sessões públicas itinerantes de apreciação de requerimentos de anistia política acompanhadas por atividades pedagógicas e culturais. No ano de 2012, ocorreu a 61ª Caravana da Anistia, também no Rio de Janeiro.

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Tal ação, com ganho de causa para os reclamantes em segunda instância – até o momento – foi movida pela família Teles, que teve três membros torturados nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, quando este estava sob o comando do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/tj-sp-reconhece-ustra-como-torturador/>.

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Trata-se ação movida pela família do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, assassinado nas dependências do DOI-CODI de São Paulo. O Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra também é o réu nesse processo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,justica-condena-ustra-por-dano-moral-,892185,0.htm>.

Referências

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