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Ciência & Saúde Coletiva ISSN: Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva.

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Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

Brasil

Laranjeira, Ronaldo

Legalização de drogas e a saúde pública

Ciência & Saúde Coletiva, vol. 15, núm. 3, mayo, 2010, pp. 621-631 Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63028839002

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Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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DEB A TE DEBA T E 1 Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo. Rua Borges Lagoa 564/cj 44, Vila Clementino. 04038-000 São Paulo SP. laranjeira@uniad.org.br

Legalização de drogas e a saúde pública

Drugs legalization and public health

Resumo O objetivo deste artigo para debate é: (1) avaliar a racionalidade e a oportunidade des-se debate; (2) tentar estabelecer pontes com dro-gas lícitas; (3) avaliar os dados disponíveis sobre o efeito da legalização de uma droga; (4) propor uma alternativa de política de drogas baseada em objetivos claros a serem alcançados; e (5) descre-ver como a Suécia está lidando com o tema de restrição às drogas como cuidado social. Metodo-logicamente, o texto constitui uma síntese das lei-turas e elaborações do próprio autor, colocada de forma a provocar discussão. Conclui-se que qua-tro aspectos precisam ser levados em conta quan-do se analisa a política de drogas de um país: (1) fatores externos influenciam a política: tratados internacionais, políticas de saúde e de assistência social, direitos individuais, autoridade e autono-mia dos médicos e outros profissionais; (2) os ob-jetivos estabelecidos influenciam as políticas for-mais e sua implementação; (3) a influência sim-bólica que transcende à implementação - pessoas influentes fazem declarações que atingem forte-mente a legitimidade e a adesão às ações; (4) as políticas formais e sua implementação recebem influência direta dos danos percebidos socialmente pelo uso de drogas, o que pode ser independente do nível real do seu uso em determinada sociedade. Palavras-chave Drogas e saúde pública, Drogas e sociedade, Políticas sobre drogas

Abstract The objective of this article is to: (1) evaluate the rationality and opportunity of this debate; (2) try to establish links with legal drugs; (3) evaluate the available data on the effect of legalization of a drug; and (4) propose an alter-native drug police based on clear objectives to be reached; (5) describe how Sweden is dealing with the theme of drugs restriction as a social care. Methodologically the text constitutes in a sum-mary of readings and elaborations of the author, placed to incite a discussion. It is concluded that four aspects need to be taken into consideration when a drug police of a country is analyzed, they are: (1) external factors influence the police: in-ternational agreements, health and social assis-tance police, individual rights, authority and autonomy of physicians and other professionals; (2) the objective established influence formal po-lices and its implementation; (3) the symbolic influence that excels the implementation. Influ-ent people make declarations that strongly reach the legitimacy and adhesion to actions; (4) for-mal polices and their implementation receive di-rect influence to socially perceived damages by the drugs use, which could be independent of the real level of its use in a determined society. Key words Drugs and public health, Drugs and society, Drugs police

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Laranjeira R

Introdução

A intensidade do debate sobre legalização de dro-gas no Brasil mostra que o assunto “drodro-gas” pro-duz efeitos nas pessoas, que se sentem levadas a ter muitas certezas e a ficar de um lado ou de outro da questão. Mostra também que o debate é profundamente ideológico e que após ouvir-mos o lado favorável à legalização e o lado da proibição pura e simples, não ficamos mais es-clarecidos a respeito da melhor política a ser se-guida. Quando somente um dos aspectos de uma política de drogas, como a que discute apenas o status legal de uma delas, se torna o assunto prin-cipal do debate, é como se o rabo estivesse aba-nando o cachorro e não o contrário.

O objetivo deste artigo para debate é: (1) ava-liar a racionalidade e a oportunidade desse deba-te; (2) tentar estabelecer pontes com drogas líci-tas; (3) avaliar os dados disponíveis sobre o efei-to da legalização; (4) propor uma alternativa de política de drogas que seja baseada em objetivos claros a serem alcançados; (5) descrever o exem-plo da Suécia: restrição às drogas como cuidado social; e (6) algumas conclusões.

Racionalidade da legalização de uma droga Com a intensidade que o debate sobre as drogas gera, poderíamos imaginar que a sociedade sem-pre tenha reagido de forma eficiente ao tema, ao longo do tempo. Entretanto, historicamente, a sociedade não tem avaliado muito bem os riscos do uso de uma nova droga ou uma nova forma de uso de uma velha droga. Por exemplo, a partir do começo do século XX, inovações tecnológicas tornaram a produção de cigarros mais fácil, tor-nando a absorção da nicotina muito mais eficaz do que ocorria anteriormente. Além disso, o pre-ço do cigarro caiu dramaticamente. Progressiva-mente, houve aumento no número de fumantes em todo o mundo e, por muitos anos, os danos físicos associados ao cigarro não foram identifi-cados. Muitos governos chegaram a estimular o consumo, pelos ganhos com impostos. Levou-se mais de quarenta anos para que os paíLevou-ses de-senvolvidos identificassem os males causados pelo fumo e outros vinte anos para que imple-mentassem políticas de reversão da situação. Essa lentidão em reconhecer danos em algumas situa-ções sociais faz que mudanças no status de qual-quer droga, e principalmente quando um aumen-to de consumo é uma das possibilidades, sejam encaradas com cuidado.

Um dos motivos que dificulta a ação da socie-dade é o excesso de retórica sobre o problema: cada droga produz sua própria retórica. Por exem-plo, no caso recente da maconha, no Brasil tem sido comum utilizar-se uma retórica na qual o uso da substância estaria relacionado com a li-berdade e os direitos do cidadão. Já o cigarro inspira outro tipo de retórica, que busca estimu-lar uma ação estatal para controestimu-lar o abuso das companhias produtoras. A retórica pode mudar de país para país, de acordo com o momento histórico.

Tanto a intensidade do debate quanto o cli-ma ideológico sobre as drogas advém do fato de quase não haver informação objetiva para avali-ar as políticas que tratam da questão. Nesse sen-tido, é importante ter alguns referenciais teóricos que ajudem na tomada de decisões. A Figura 1 mostra os três modelos que, de forma explícita ou não, acabam prevalecendo. Os que defendem a proibição total do uso de drogas acreditam que a curva a-b representa o controle ideal, signifi-cando que a proibição total é a melhor opção, pois não causa nenhum dano social. Ao contrá-rio, os que estão do lado b da curva, ou seja, da legalização das drogas, consideram que, com a proibição, o dano social aumenta. O argumento geralmente usado é a histórica Lei Seca america-na, que produziu aumento considerável da vio-lência promovida pelo crime organizado. Muito tem sido escrito sobre este período e os autores, em geral, enfatizam seu custo social. No entanto, do ponto de vista do consumo de álcool, a lei foi um sucesso, pois diminuiu consideravelmente o consumo global. Entretanto, houve aumento do consumo de álcool de péssima qualidade e um número considerável de pessoas teve problemas sérios de saúde. De qualquer forma, uma sim-ples análise de custo-benefício mostra que essa foi uma experiência que nenhum país ocidental quer repetir, embora os islâmicos ainda adotem tal controle rígido.

Há pessoas que defendem a legalização total das drogas. A curva c-d ilustra este modelo, em que a proibição total levaria a elevado nível de dano, principalmente pelo crime que estaria as-sociado com seu uso ilegal, maior corrupção so-cial, nível mais impuro da substância no merca-do negro e dificuldade das pessoas buscarem aju-da para se tratar aju-da adicção. O argumento é que a proibição total causa mais dano do que a lega-lização total. A grande fraqueza desse tipo de ra-ciocínio é que não leva em consideração que a legalização produz maior oferta e, portanto, ex-põe um número maior de pessoas ao consumo e

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a suas complicações. Esses defensores enfatizam em demasia o comportamento individual e não consideram o nível agregado do dano. Por exem-plo, se legalizássemos completamente a maco-nha, uma das possibilidades seria maior consu-mo global da droga e, possivelmente, maior con-sumo na população mais jovem, pois é isto que ocorre com o álcool e o cigarro. Portanto, com a legalização, teríamos talvez menor número de crimes violentos, mas a população mais jovem teria maiores complicações na escola e até pode-ria aumentar um tipo de criminalidade menos violenta por parte dos usuários a fim de conse-guirem dinheiro para consumo.

O terceiro modelo, intermediário, baseia-se na curva c-e, que tem recebido grande suporte em termos de pesquisa. Nessa curva, podemos perceber que a proibição total de uma droga pro-duz dano e, à medida que ela progride na escala de legalidade, aumentam sua disponibilidade social, o número de usuários e o nível global do dano. As drogas lícitas oferecem evidências para esse modelo. No caso do álcool, centenas de pes-quisas mostram que quanto menor o preço e maior a disponibilidade, maior é o número de pessoas com problemas relacionados ao uso. A consequência de adotar a curva c-e como mode-lo de política de drogas é, em primeiro lugar, di-minuir o consumo global de todas as drogas. A estratégia para atingir essa diminuição pode

va-riar de droga para droga e depende do momento histórico.

A tendência mundial é, por exemplo, tornar progressivamente o álcool e o fumo mais próxi-mos da proibição ou de controles sociais rígidos, através de leis e restrições ao uso. No caso da maconha, não existe uma tendência mundial ní-tida. Alguns países adotam penas leves ou um grau maior de tolerância com os usuários, mas em nenhum lugar existe a legalização aberta. No caso das drogas mais pesadas, como heroína e cocaína, a tendência é marcante em relação à proi-bição. O fato de existir políticas diferentes para drogas diferentes é muitas vezes apontado como hipocrisia social. Na realidade, essa deveria ser uma atitude pragmática numa sociedade que busque responder ao problema com foco em re-sultados e não em retórica e debate ideológico. Tal proposta deveria ser julgada pelo seu efeito na diminuição do custo social de todas as drogas e não somente de uma droga específica.

As drogas lícitas podem nos ensinar algo? O álcool é a substância com maior potencial para ensinar como estabelecer uma verdadeira políti-ca de drogas baseada em resultados. Em 2003, a Organização Mundial de Saúde produziu um li-vro1 em que os maiores especialistas do mundo

Legalização S b e Proibição a S Nível de dano c d

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propuseram medidas a ser implementadas em todos os países, buscando diminuir o custo soci-al relacionado a essa substância. A conclusão ge-ral é que todos os países deveriam diminuir o consumo global de álcool. A Figura 2 ilustra o modelo a ser seguido. O consumo de álcool de qualquer população segue uma curva normal, que nesta figura seria a curva X onde, para me-lhor visualização, foi excluída a população que não bebe. Temos, portanto, uma parte da popu-lação que bebe um pouco, grande parte que bebe dentro da média e uma parte de bebedores pesa-dos. Inicialmente, se pensa que o foco seria dimi-nuir o número de bebedores pesados, mantdo-se a média de ingestão da população. No en-tanto, essa diretriz poderia, quando muito, pro-duzir um pequeno efeito quando implementada, como mostra a curva Y. Quando as orientações são no sentido de diminuir o consumo global, como na curva Z, decrescendo a média de con-sumo populacional, existe um impacto muito maior, pois um número menor de pessoas bebe-rá, um número menor ficará dependente e, por-tanto, haverá menor custo social global. Esse efei-to tem sido chamado do “paradoxo preventivo”, pois se orienta para diminuir substancialmente a quantidade de pessoas dependentes e o consumo global de toda a população.

São várias as diretrizes políticas que visam a diminuir o consumo global de álcool:

(1) Políticas de preço e taxação são ações com maior impacto social imediato. Estudos mostram

que o preço do álcool segue o padrão de qual-quer mercadoria e, quanto maior, menor o con-sumo. Existe uma elasticidade no consumo, que no caso do álcool é diferente de outras mercado-rias. Mas para cada aumento de 100% do preço, existe cerca de 30% de queda de consumo global. Mesmo os bebedores pesados diminuem o con-sumo nesse caso. Este tipo de política pode ser muito útil no Brasil, onde o preço do álcool é um dos mais baixos do mundo ocidental, cerca de U$ 1,5 por um litro de pinga.

(2) Políticas que diminuam o acesso físico ao álcool. Está demonstrado que, quanto menor o número de locais vendendo álcool, maior o res-peito ao limite de idade. Maior a consistência das leis do beber e dirigir, menor é o consumo global de uma população.

(3) Políticas de proibição da propaganda nos meios de comunicação. O objetivo da propagan-da do álcool não é só buscar preferência por de-terminada bebida, mas criar um clima social de tolerância e estímulo ao álcool, visando nitida-mente a aumentar o consumo global. A proibi-ção da propaganda tem sido consistentemente mostrada em pesquisas como fator importante na diminuição do consumo.

(4) Campanhas na mídia e nas escolas visan-do a informar melhor os efeitos de álcool. O efei-to das campanhas quando feitas desacompanha-das desacompanha-das demais diretrizes é muito pequeno. De nada adianta a professora informar ao aluno sobre álcool e outras drogas, se a televisão conti-nua mostrando a alegria e a descontração asso-ciada à bebida e, sobretudo, essa droga transfor-mada em “paixão nacional”.

Em resumo, o álcool apresenta as formas de controles sociais mais estudados e de políticas eficazes para diminuir seu uso global. Os princí-pios citados podem muito bem ser usados em relação às demais drogas, visando a diminuir o acesso e o consumo.

As leis influenciam o consumo das drogas? Uma pergunta importante é: se os controles so-ciais são efetivos, por que tornar ilegais somente algumas das drogas? Como já salientado, estra-tégias diferentes deveriam ser usadas para o con-trole dos vários tipos de drogas e as evidências mostram que muito pouco benefício traz trans-formar drogas ilegais em legais, pois há forte ten-dência no aumento do consumo. Há uma ques-tão que permanece: as leis efetivamente influen-ciam o comportamento de consumo de drogas?

Figura 2. O paradoxo preventivo do uso de drogas.

Número de pessoas

0

Z Y

X

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No caso do álcool, tem sido demonstrado por inúmeros trabalhos que a proibição da ven-da para menores diminui significantemente o consumo. Em vários estados americanos, quan-do foram colocadas em prática leis proibinquan-do a venda de bebidas, houve diminuição substancial no número de acidentes de carro entre menores. O grande problema, ao responder o quanto as leis impedem o consumo é que não existem mui-tos dados sobre as drogas que sempre foram ilegais. Em artigo recente, MacCoun2 analisou a

escassa literatura baseando-se também no efeito das leis em deter outros comportamentos antis-sociais. Esse autor mostrou que leis e controles informais têm o poder de conter o consumo de drogas através de vários mecanismos: disponi-bilidade da substância, estigmatização do uso, medo das consequências de praticar atividades ilegais, efeito do fruto proibido e efeito simbólico geral da proibição. A abolição das leis proibindo o consumo teria um efeito dramático em vários desses citados fatores, diminuindo, portanto, uma série de impedimentos para o consumo.

O mais importante nesse estudo são as evidên-cias de que a abolição das leis teria um efeito maior nas pessoas que comumente não consomem dro-gas, potencialmente levando um maior número a experimentar e a se tornar usuário regular ou es-porádico. Por isso, MacCoun2 ressalta que

qual-quer efeito dramático no status legal de uma dro-ga é desaconselhável, pois as consequências são imprevisíveis em relação ao aumento do consu-mo, por falta de controles sociais disponíveis e ausência de leis claras. Outros estudos mostram que, quanto maior o envolvimento com drogas, menor é o impacto das leis em deter o consumo.

Como construir uma política de resultados em relação às drogas?

O desafio de formular e por em prática uma po-lítica de drogas é buscar o balanço para cada uma, sempre visando a uma diminuição global do con-sumo. A melhor atitude social seria de uma tole-rância contrariada, sem fervor ideológico, mas com pragmatismo afiado e persistente. No Bra-sil, por exemplo, corremos o risco de que o deba-te sobre a legalização oculdeba-te as reais questões que devem pautar uma política baseada em exem-plos e experiências eficazes. O risco é ficar num debate ideológico improdutivo a favor ou con-tra, com grande paixão e pouca informação, como é o caso do debate ideológico sobre drogas inje-táveis e a infecção pelo HIV. Passamos todos

es-ses anos discutindo se seria válido trocar serin-gas e agulhas dos usuários de droserin-gas injetáveis e se isto seria ou não um estímulo ao consumo. Chegamos em 1996 com mais de 50% dos usuá-rios de drogas contaminados pelo HIV e milha-res de usuários, suas esposas e filhos mortos. A Inglaterra, por exemplo, começou a discutir esse assunto em 1984 e implementou, rapidamente, políticas realistas, apresentando somente 1% dos usuários contaminados. Os ingleses buscaram uma política de resultados, em que a prioridade fosse manter vivos os usuários.

O desafio do debate das drogas no Brasil não é se devemos afrouxar as leis da maconha, mas apresentar dados e informações e produzir uma política passível de ser avaliada constantemente. A implementação dessa política não ocorre es-pontaneamente, mas como uma ação determi-nada de governo. Talvez seja inútil esperar por uma grande política nacional de drogas. Os esta-dos e municípios poderiam se envolver nessas ações com a ajuda comunitária. A sociedade civil já está bastante mobilizada sobre o assunto álco-ol e drogas. É necessário que os governos demo-craticamente eleitos mostrem a sua capacidade de organizar uma resposta adequada a esse pro-blema, que afeta milhões de brasileiros.

Cada vez mais o custo social, econômico e emocional das drogas aumenta e na sua propor-ção existe a tendência de buscar soluções mági-cas e simples como a de legalização de todas. Os proponentes dessa solução não apresentam uma clara operacionalização de como isso deveria ocorrer, mas aportam argumentos a favor. Pri-meiro, dizem que a quantidade de crimes associ-ados ao uso de drogas diminuiria na medida em que fosse retirado o lucro dos traficantes. O se-gundo argumento é que, tornando as drogas dis-poníveis legalmente, haveria uma série de benefí-cios para a saúde pública. A disponibilidade de drogas mais puras e seringas e agulhas limpas poderiam prevenir doenças como hepatite e aids, por exemplo. Tais argumentos têm apelo somente no nível superficial. Quando olhados em deta-lhes, eles desabam. A ação direta de qualquer droga com potencial de criar dependência refor-ça a chance de que ela venha a ser usada nova-mente. As drogas que produzem dependência ativam os circuitos cerebrais que são normal-mente acionados por reforçadores naturais como fome e sexo. A ativação desses circuitos está na raiz do aprendizado, que ocorre no começo do processo de dependência química.

A idéia de que a legalização diminuiria o cri-me não tem sido discutida com o devido rigor,

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mesmo quando o argumento caminha para os eventuais benefícios de aumento da arrecadação do governo com a venda das drogas e que isso poderia ser revertido para a sociedade na forma de tratamento ou prevenção. Essa análise de cus-to/benefício ignora pelo menos dois fatores. Pri-meiro, subestima o custo da dependência para os indivíduos e suas famílias. A menos que as drogas sejam fornecidas de graça, os usuários deveriam pagar por ela. Como a maioria dos usuários de drogas não tem empregos fixos e estáveis, existe razão para acreditar que muitos continuariam roubando para sustentar o con-sumo. Além disso, muitos dos criminosos co-meçaram a sua carreira no crime muito antes de usar qualquer droga. Uma suposta fonte legal de suprimento, eventualmente coordenada pelo go-verno, é muito improvável que não mude os de-terminantes comportamentais e sociais das pes-soas envolvidas no crime. Portanto, qualquer análise de custo/benefício é complexa e exige que muitas variáveis sejam levadas em conta.

Ainda sobre a legalização, mesmo que o cus-to/benefício pudesse ser demonstrado, ninguém até hoje apresentou um plano operacional para isso. Um aspecto fundamental dessa operacio-nalização é: quem receberia essas drogas legais? Deveríamos restringir o acesso aos dependentes químicos? Assumindo que tivéssemos uma boa definição de quem seja um dependente, restrin-gir a essa população o acesso significa que o mer-cado negro das drogas continuaria, pois boa parte dos usuários não preenche os critérios de depen-dência. Na realidade, com a oferta pública de drogas, ainda teríamos o risco de que parcela dessas fosse criminalmente desviada para o mer-cado negro.

Consideremos a venda de drogas apenas para adultos. Como já mencionado, essa facilitação do acesso levaria a um aumento de consumo, mesmo entre eles. Mas examinemos um pouco mais fundo essa possibilidade. Se alguém que comprou a droga de uma fonte pública machu-car outra pessoa sob o efeito dela, quem seria o responsável? Como garantir que uma fração das drogas não seja repassada para crianças? Uma parte dos adultos não-dependentes poderia ter como motivação comprá-las para revender a cri-anças, tornando o acesso a esse grupo ainda mais fácil do que já é nos dias de hoje.

Existe também o problema da dose. Quanto deixar as pessoas comprar? Se o objetivo é suprir o dependente químico da sua necessidade para eliminar o mercado negro, teríamos que forne-cer a quantidade solicitada, o que, em muitas

si-tuações, é uma grande dose, pois vários depen-dentes desenvolvem tolerância e usam uma quan-tidade que para outras pessoas significaria risco certo de overdose. Mas se devêssemos fornecer a todos os adultos qualquer dose, o risco de desvio de boa parte das drogas aumentaria ainda mais. Se fornecêssemos uma dose pequena, não elimi-naríamos o mercado negro. A experiência ingle-sa, que durante muito tempo prescreveu a hero-ína para os dependentes, mostrou que além do uso regular, os usuários buscam-na também em fonte ilegal.

Esses argumentos são distantes de uma pers-pectiva puramente moral. O que argumentamos é que também do ponto de vista da saúde públi-ca é errado legalizar as drogas. A solução é pro-mover a prevenção e o tratamento baseados em evidências e não em ideologia. Novas pesquisas com suficiente financiamento deveriam buscar o que realmente funciona na área de prevenção. Ainda sabemos pouco sobre os reais fatores de risco e proteção nesse particular. Na área de tra-tamento, as pesquisas já avançaram muito nos últimos anos e temos condições de fornecer um sistema efetivo e eficaz para a doença chamada dependência química. No entanto, o acesso a um tratamento de qualidade para a maioria da po-pulação ainda é um sonho de consumo distante. Existem muitas dificuldades práticas para uma política adequada em relação às drogas. A humanidade ingere substâncias psicoativas por mais de dez mil anos. E somente nos últimos duzentos anos temos tentado controlar a pro-dução, a distribuição e o uso dessas substâncias. Poucas ações tiveram sucesso. É bem possível que tenhamos igual número de sucessos do que de insucessos. No século XVII, após os europeus levarem o tabaco da América Latina, vários paí-ses tentaram proibir o seu uso, mas em seguida desistiram. Entre 1920 e 1933, o álcool foi proibi-do nos Estaproibi-dos Uniproibi-dos, mas em seguida tam-bém a lei foi revogada.

Para algumas questões, a ciência tem respos-tas claras e válidas. Na farmacologia, sabemos muito bem os mecanismos de ação da maioria das drogas. Para cada droga, podemos prever a ação imediata e de uso crônico. Os epidemiolo-gistas já são capazes de mostrar o impacto do uso, do abuso, da dependência e o custo social de cada uma das drogas.

No entanto, vários assuntos relacionados à política das drogas permanecem controvertidos. Como controlar as substâncias que afetam a mente? A posse e a venda deveriam ser controla-das por lei criminal? A qual droga o acesso

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deve-ria ser permitido? As leis produzem mais danos do que benefícios? Como medir uma política em relação às outras? As penalidades por uso deve-riam ser mais duras ou mais leves? Todo mundo tem a sua opinião, muitas vezes simplistas para um problema tão complexo. Somente teremos uma boa política quando houver estratégias tão complexas quanto o tamanho do problema.

Teoricamente, é possível criar um tipo de re-gulação que possa evitar os danos da proibição às drogas ilícitas, mas a experiência sugere que existem grandes dificuldades em se manter esse tipo de controle. Se não somos capazes de evitar a promoção de álcool para menores de idade, como seríamos capazes de evitá-la em relação à maconha, por exemplo?

A experiência holandesa serve para alguma coisa? Houve duas fases nesse país na forma de tratar a questão das drogas. Inicialmente, na dé-cada de setenta, houve uma decisão de tolerar a posse de pequenas quantidades de maconha, com o argumento de priorizar a repressão às drogas mais pesadas. Durante esse período, não ocor-reu aumento significativo do consumo de maco-nha. Entretanto, de 1980 a 1988 - numa segunda fase -, houve tolerância em relação à venda de maconha nos coffee shops, e um aumento de mais de dez vezes no número desses estabelecimentos, com o correspondente aumento no consumo da droga. Se, em 1984, 15% dos jovens holandeses consumiam maconha, em 1992 esse número do-brou para 30% e se mantém nesse nível até os dias de hoje. No entanto, a experiência holandesa e de outros lugares como Austrália e do próprio Esta-dos UniEsta-dos mostra que remover penalidades cri-minais em relação ao uso de maconha não au-menta necessariamente o consumo. Isso porque remover somente a penalidade do uso sem a pro-moção comercial não produz grande estímulo ao consumo. Vale ressaltar, porém, que a descrimi-nalização, ou a despedescrimi-nalização, não oferece gran-des vantagens, pois deixa intacto o submundo do tráfico e todas as condições para a permanência dos problemas relacionados ao uso.

Escolher a melhor política não é tarefa fácil. Com uma eventual legalização, podemos até ter uma diminuição da violência individual, o que é uma coisa boa. No entanto, se houver um au-mento geral no consumo, a violência global pode aumentar. O dano total à sociedade é o resultado da média de dano nos indivíduos pela quantida-de quantida-de drogas consumida. Com uma política que resulte em muito mais usuários e talvez até mes-mo de usuários mais pesados, o dano total à sociedade deve aumentar.

Existe uma grande dificuldade em transfor-mar boas intenções em benefício social. As políti-cas não deveriam ser consistentes apenas do pon-to de vista ideológico, mas também do ponpon-to de vista prático; ou seja, diminuir o uso global das drogas. Quanto a isso, há uma briga de discur-sos, ou melhor, uma briga de significados que alguns sociólogos chamam de mensagem sim-bólica. Independente do que possa ocorrer na política de drogas, as pessoas, inicialmente, se preocupam em apresentar a mensagem correta. Uma definição legalista define que algumas drogas são ilícitas. Por exemplo, no Brasil, a Po-lítica Nacional sobre Drogas abrange somente as drogas ilícitas, deixando de lado o álcool e o ci-garro. Os legalistas aparentemente estão dizendo que o problema das drogas diz respeito à infra-ção legal e não a um dano à sociedade. Assim, o uso de drogas proibidas é considerado um ato de rebelião à autoridade, o que ameaça à socie-dade constituída.

Como disse o pesquisador americano Mark Kleiman, “qualquer política de drogas que omita o “álcool” (será que não se deveria incluir ‘taba-co’?) será como uma estratégia naval que omita o Oceano Atlântico e Pacífico”3.

Por sua vez, o debate político partidário não oferece mais confiança, pois apresenta visões traditórias. Por exemplo, alguns políticos con-servadores são contra a legalização de drogas. No entanto, conservadores extremos, como Mil-ton Friedman, defendem sua total legalização. Erich Goode, no seu livro “Between Politics and Reason: The drug legalization debate”4, propõe a

seguinte classificação dos políticos em relação à política de drogas:

(1) conservadores culturais: acreditam nos valores tradicionais e denunciam que as pessoas se afastaram dos valores tradicionais, que deve-ríamos voltar aos valores religiosos e familiares, às práticas sexuais convencionais, à educação básica, aos laços comunitários, à moderação no consumo de álcool e à completa abstenção de drogas ilícitas. Esse grupo acredita que todos são responsáveis por suas ações que, em última ins-tância, são escolhas morais. Traçam clara distin-ção entre álcool e drogas ilícitas. Sob essa ideolo-gia, o abuso de drogas é imoral e degrada a vida humana.

(2) libertários do mercado livre: também

es-tão no lado conservador no espectro político, mas discordam completamente em relação à le-galização. Diferente dos conservadores, esse gru-po considera que a distinção entre as drogas é artificial e deveria ser abandonada. Defendem que

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o governo deve ficar de fora e permitir o

lais-sez-faire.Ninguém seria obrigado a usar

dro-gas e nem forçado a parar de usá-las. As leis deveriam proteger apenas os menores de ida-de. Portanto, defendem a descriminalização completa. Thomas Szasz, no seu livro: “Our

Right to Drugs. The Case for a Free Market5,

faz a defesa da legalização de drogas, baseada em considerações político-filosóficas.

(3) construcionistas radicais: acreditam que a realidade é socialmente construída, que não existe um problema de drogas e sim os gover-nos deixam parecer que existe para criar uma causa conveniente e desviar a atenção dos cida-dãos de questões mais importantes. O pânico moral dispersaria o foco de outros problemas. As drogas são tratadas como efeito e não cau-sas de problemas sociais. Nessa linha, conside-ram que só resolveremos o problema com a solução da pobreza e das injustiças sociais.

(4) legalizadores progressivos: defendem acabar com a distinção entre drogas licitas e ilí-citas, que o Estado dispense as drogas para os dependentes e que as leis sobre drogas sejam problemas a serem solucionados pelo desapare-cimento dessas próprias leis. Vêem o debate so-bre drogas como problema de Direitos Huma-nos. Ou seja, a sociedade deveria parar de de-monizar os usuários e de criminalizar a posse e uso das drogas ilícitas por ser injusto, opressivo e desumano, um tipo de caça às bruxas que pe-naliza o desafortunado. Defendem a redução de danos como uma forma de cuidado com o usu-ário. A chave desse pensamento é a crença de que o uso de drogas deveria ser regido como qualquer outro comportamento, pois os usuá-rios não são nem mais nem menos racionais em suas escolhas do que qualquer outra pessoa.

A chamada “redução de danos” representa uma mala eclética cheia de propostas políticas. No nível mais geral, defende a idéia de que, se não podemos eliminar as drogas, pelo menos podemos diminuir os danos. A reforma legal, portanto, não seria prioridade, mas sim a prá-tica concreta. Os que estão a favor ressaltam abertamente a tolerância com os usuários, o que se transforma numa descriminalização de fato. Existem dilemas teóricos e práticos nessa abordagem. Algumas questões permanecem sem resposta: como medir a diminuição de um dano em relação a outro? Ao diminuirmos o dano para alguns, não facilitamos o uso de muitos, aumentando o numero de usuários? Nessa perspectiva, teremos menos crime e mais usuários? E se essa política melhorar a vida dos

usuários dependentes e piorar a vida de outros, como fica a família dos próprios usuários? Se qui-sermos diminuir os danos, por que não enfatizar a diminuição das drogas legais, pois isso acarretaria maiores benefícios para a sociedade?

Ninguém pode ser contra a diminuição de da-nos provocados pelas drogas, pois é exatamente isso que as políticas sobre o assunto buscam. Como objetivo geral, a proposta é indiscutível. No entan-to, não acreditamos que a eventual diminuição do dano a alguns indivíduos possa produzir uma di-minuição global do dano.

É preciso tornar muito claro que o objetivo ge-ral de uma política de redução de danos deveria ser a redução total do uso de drogas. Para isso, preci-samos distinguir entre os planos micro e macro. De forma esquemática, temos a equação: dano total das drogas = média de dano por usuário x uso total. Em relação ao uso total, temos o numero de usuários e a quantidade que cada um usa. A média de dano por usuário tem dois vetores, o dano cau-sado a si próprio e o dano caucau-sado a outros.

O exemplo da Suécia:

restrição às drogas como cuidado social O sistema de controle de drogas de um país é uma construção complexa e na maioria das vezes con-trovertida. Desenvolve-se ao interior da própria cultura, em dado momento histórico e é influenci-ado por políticas sociais e legais. Esse controle se faz somente em parte através de leis e está mais relacionado a sua aplicação que a sua letra. Além disso, a política de saúde, de segurança social, de formas de manejo do desvio social e os aparatos judiciários são todos intimamente conectados ao sistema de controle.

O sistema de controle de drogas sueco é um dos mais debatidos nos anos recentes porque dife-re em muito do que ocordife-re no mundo e na Europa, em particular. Ele é muito mais restritivo e o uso de drogas não é tolerado. Na realidade, em 1977 foi declarado que um dos objetivos do sistema seria criar uma sociedade livre das drogas. Para a imple-mentação desse objetivo, quantidade substancial de dinheiro foi alocada na prevenção e informa-ção, na política de controle e no tratamento, os três pilares do sistema. Os indicadores disponíveis mostram que o número de dependentes químicos nesse país é relativamente muito mais baixo quan-do comparaquan-do com os da Europa.

Para entendermos o modelo sueco, é essencial discutir suas bases ideológicas e científicas. Um autor influente nesse sentido foi Nils Bejerot6, que

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fez distinção entre vários tipos de dependência, em especial do que denominou “dependência epi-dêmica”. Nesse conceito, ressaltava que pessoas psicológica e socialmente instáveis, após influên-cia direta de outro dependente, começam a usar drogas que não são aceitas socialmente, para obter euforia. Um ponto importante é o significado do termo “epidêmico”, que mostra o caráter de do-ença com incomum alta incidência no tempo, no lugar e no envolvimento de pessoas. Além disso, Berejot7 inclui o caráter de contágio, ou seja, o

fato de um usuário influenciar o outro. Ele con-sidera que a epidemia do uso de substâncias tem alto grau de contágio psicossocial em que a dis-ponibilidade da substância é o fator mais im-portante no desenvolvimento das formas de abu-so. Uma vez que se organiza um grupo de usuá-rios, cria-se uma subcultura da droga, o que con-tamina a sociedade. Isso explica o termo “contá-gio psicossocial” ou “pressão grupal”. Esse con-tágio pode mesmo ser colocado numa fórmula “C=SxE, ou seja, o contágio é função das susce-tibilidades individuais e da exposição.

Para Bejerot7, a suscetibilidade individual é

difícil de ser influenciada, mas a exposição tem um papel importante nesse sentido. No seu pon-to de vista, a sociedade deveria restringir o acesso às drogas e isso fará efeito no número de pessoas usando substâncias tóxicas. A política, portanto, deveria olhar para o usuário, que é a parte cen-tral da “corrente das drogas”, pela sua influência direta em outros usuários. Os traficantes sempre serão trocados por novos traficantes dispostos a correr os riscos do dinheiro fácil. Os usuários, por outro lado, não deveriam ser repostos e sim ser considerados como o motor do sistema de prevenção: “Nós temos que aceitar o fato dolo-roso de que não faremos avanços decisivos a menos que o abuso de substâncias, os usuários e a posse pessoal de drogas sejam colocados no centro da nossa estratégia”3. Bejerot7

posiciona-se contra a repressão pelo sistema legal, mas acre-dita que os usuários deveriam ser responsabili-zados por seu comportamento.

Outro aspecto conceitual importante é o da hipótese de “porta de entrada”, significando que a maconha levaria à experimentação de drogas mais perigosas. Embora esse conceito seja objeto de gran-de gran-debate científico, o fato é que o uso da maconha pode ser considerado, no mínimo, como fator de risco para a experimentação. Na realidade, um gran-de foco da política sueca é a maconha e em como desestimular o seu consumo.

Vale a pena olhar historicamente para outro fator que influenciou a política restritiva de

dro-gas na Suécia: o desenvolvimento, por mais de um século, de ações relacionadas ao uso de ál-cool. Desde o século XIX, a Suécia adotou uma política repressiva, tendo como base a limitação de disponibilidade de bebidas alcoólicas. Esse é um modelo de sucesso, levando a que os suecos sejam o povo que menos consome álcool na Eu-ropa. O modelo baseia-se no fato de que o con-sumo total do álcool influencia o total de dano social causado pela substância. E sugere que, quan-to mais indivíduos bebem numa sociedade, mais haverá bebedores pesados. Portanto, do ponto de vista da saúde pública, a melhor opção é man-ter o número menor possível de bebedores.

Esse modelo que mostra evidências de eficá-cia em relação ao álcool é usado para as drogas. Como resultado, a política de drogas foca em limitar o consumo total, começando com qual-quer forma de experimentação. Portanto, uma grande parte da prevenção nesse país baseia-se em prevenir a experimentação da maconha. Um grande debate nacional criou uma percepção de risco bastante alto na população em relação a essa substância, tendo como consequência um baixo uso quando comparado com os outros países europeus.

Embora o uso de drogas seja considerado socialmente inaceitável, o objetivo da política não é punir os indivíduos. Ao receber cuidado e tra-tamento, o usuário deveria se tornar livre das drogas e ficar reabilitado e reintegrado à socie-dade. Por exemplo, se um indivíduo usa drogas em público, será encaminhado por uma assis-tente social para tratamento, se necessário, de forma compulsória. O país investe muito no tra-tamento para dependentes.

Nos anos oitenta, houve uma mudança con-ceitual importante do sistema, que passou a bus-car reduzir a demanda de drogas na Suécia. O objetivo não mais seria mais atacar os trafican-tes, mas os usuários, considerados como a en-grenagem do tráfico. O uso de drogas tornou-se criminalizado. Essa abordagem potencialmente permitiu identificar novos usuários e oferecer tra-tamento, o que, quando necessário, conta com ações do aparato policial. Na Suécia, existe uma boa relação dos policiais com a população e 12% do tempo deles são gastos com problemas de usuários e uso de substâncias. A força policial está focada no objetivo de ter uma sociedade sem drogas. Em 1988, o uso de drogas tornou-se cri-me nesse país, mas a penalidade para o uso não é a prisão, e sim, uma multa. Mais recentemente, a pena aumentou para prisão de até seis meses e a polícia tem vários meios a seu dispor para

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de-Laranjeira R

tectar o uso de drogas, mesmo que o indivíduo não tenha cometido nenhum delito. Os exames de urina para detecção do usuário são muito comuns e não parecem encontrar grande resis-tência por parte da população. Um bom número de usuários, especialmente de adolescentes, aca-ba indo para o sistema de tratamento dessa for-ma, não sem antes pagar uma multa.

O sistema legal sueco tem três categorias de punição à infração em relação às drogas: menor, normal e maior. Depende da droga e da quanti-dade apreendida. Quando alguém é identificado pelo teste de urina, recebe uma multa. Quando, além do teste, a pessoa tem posse de pequenas quantidades, a prisão até de até seis meses é uma opção, mas isso raramente ocorre, pois a multa é a penalidade mais comum na primeira ou se-gunda vez em que uma pessoa é flagrada. Um usuário apreendido várias vezes provavelmente será condenado a um mês de prisão. Quando alguém é apanhado vendendo drogas, será preso em todos os casos. Embora a lei não faça grande distinção entre usuários e traficantes, na prática a diferença existe. As infrações consideradas mai-ores recebem pelo menos dois anos de reclusão. A sentença máxima é de dez anos quando há posse de mais de um quilo de heroína ou de dois quilos de cocaína. A quantidade de drogas apreendidas por tráfico é relativamente baixa. A geografia do país dificulta o acesso, mas, com certeza, a fisca-lização também é outro fator importante. Vale a pena salientar que existe uma grande pressão por parte da opinião pública em reivindicar maior controle social e legal em relação às drogas.

Como já citado, o objetivo da política sueca não é punir os usuários, mas oferecer reabilita-ção. O tratamento é um dos três pilares do siste-ma. Um conceito importante é o de “corrente de cuidado”, que significa articulação dos elementos no sistema de tratamento: atividades de outrea-ch (busca ativa de usuários), desintoxicação, cui-dados ambulatoriais e internação. Os assistentes sociais são muito importantes nesse processo, pois são eles que fazem a busca ativa dos usuári-os e determinam quem deve se submeter ao tra-tamento. Dois tipos de assistência são disponibi-lizados: voluntário e involuntário, com grande diversidade de técnicas. O sistema de comunida-de terapêutica domina e não é incomum um usu-ário ficar dois anos internado. No sistema com-pulsório, que é raramente utilizado, a pessoa pode passar até seis meses e o principal objetivo é motivá-la a se tornar voluntária no seu trata-mento. A maioria do tratamento involuntário ocorre com adolescentes recalcitrantes.

Uma grande mudança ocorreu no sistema de tratamento nos anos oitenta, com o advento da aids. Diferente dos demais países europeus, a Suécia não adotou a política de redução de da-nos. O governo decidiu que, com o risco da aids, o melhor seria identificar rapidamente os usuá-rios e oferecer desintoxicação e tratamento ime-diato. Houve uma grande expansão do setor de tratamento. A temida epidemia nessa população de usuários não ocorreu.

Algumas considerações finais

Um dos aspectos a destacar nesse debate é que a utilização contínua de qualquer substância psi-coativa produz uma doença cerebral em decor-rência do uso inicialmente voluntário. A conse-quência é que, a partir do momento que a pessoa desenvolve uma doença chamada “dependência”, o uso passa a ser compulsivo e acaba destruindo as melhores qualidades da própria pessoa, con-tribuindo para a desestabilização da sua relação com a família e com a sociedade.

O uso de substancias altera mecanismos ce-rebrais responsáveis pelo humor, pela memória, pela percepção, pelos estados emocionais e pelos controles finos de vários comportamentos. O uso de drogas regular modifica a estrutura cere-bral e pode demorar anos para voltar ao nor-mal. Essas modificações de vários circuitos cere-brais são responsáveis pelas distorções cogniti-vas e emocionais que caracterizam as pessoas dependentes. É como se o uso de drogas modifi-casse os circuitos de controle da motivação natu-ral, tornando esse uso quase como a única prio-ridade do indivíduo. A maioria da comunidade de especialistas considera a dependência de dro-gas uma doença cerebral com persistentes mu-danças na estrutura e função do cérebro.

A visão da dependência gera controvérsias principalmente entre as pessoas com tendência a apresentar uma visão unidimensional para pro-blemas complexos. Essas pessoas colocam a bio-logia como oposição à mente do dependente, quando na realidade existe uma grande conexão entre o cérebro e o comportamento. Isso não sig-nifica que o dependente seja uma vítima indefesa e sem responsabilidade por seus atos. Na realida-de, o uso de substâncias começa com um ato vo-luntário e a pessoa tem grande responsabilidade pelo seu comportamento e também pela sua re-cuperação. Portanto, ter uma doença cerebral com essas características não exime de responsabilida-de o responsabilida-depenresponsabilida-dente. No entanto, o fato responsabilida-de ter uma

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doença cerebral implica que muitas vezes é neces-sário tratamento médico para se produzir uma mudança sólida de comportamento.

Há grande dificuldade na análise dos resulta-dos das políticas relacionadas às drogas. Anos de debate internacional produziram poucas cer-tezas sobre a eficácia das políticas. Uma das pou-cas avaliações mais bem organizadas é proposta

por MacCoun e Reuter7. Esses autores

susten-tam que precisamos olhar as políticas de forma bem mais analítica e levando em consideração a complexidade da situação, pois várias áreas se relacionam de forma causal, como é o caso da cultura, da ação dos governos, das diretrizes para confrontar o problema, da vontade dos indiví-duos e do impacto do uso.

Quatro aspectos precisam ser levados em conta quando analisamos a política de drogas de um país: (1) vários fatores externos influenciam a política: os tratados internacionais, as políticas de saúde e de assistencial social, os direitos indi-viduais, a autoridade e a autonomia dos médicos e outros; (2) os objetivos estabelecidos influenci-am não somente as políticas formais, mas tinfluenci-am- tam-bém, sua implementação; (3) as políticas rece-bem influência simbólica que transcende à sua implementação –pessoas influentes fazem decla-rações que atingem fortemente a legitimidade e a aderência das ações; (4) as políticas formais e

sua implementação recebem influência direta dos danos percebidos socialmente pelo uso de dro-gas que podem ser independentes do nível real do uso em determinada sociedade.

Avaliar a extensão do problema das drogas, portanto, vai além de saber o número de usuári-os de cada tipo. As drogas diferem em termusuári-os de danos ao indivíduo e a sociedade. Também é ne-cessário saber como são consumidas; por exem-plo, a cocaína cheirada produz um dano diferen-te do que a fumada na forma de crack.

Existem duas visões claras na forma de lidar com as drogas: uma proveniente da saúde pública e outra da justiça criminal. Devido ao fenômeno da violência relacionado ao tráfico de drogas nos Estados Unidos, o país escolheu o lado da justiça criminal para lidar com o problema, com todas as implicações que isso acarreta. A Europa escolheu o lado da saúde pública, muito embora haja gran-des diferenças de abordagem entre os países. Por exemplo, a Suíça convive com experimentos soci-ais alternativos para usuários de heroína e uma das maiores taxas de encarceramento da Europa. A Suécia tem clara retórica antidrogas e leis consi-deradas duras, com investimento muito maior do que qualquer outro país, inclusive que a Holanda, na área de prevenção e tratamento. As escolhas são sempre influenciadas por valores políticos e por definições do que constitui o problema.

Referências

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Referências

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