• Nenhum resultado encontrado

TRABALHO: A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL: LIMITES E IMPASSES DOS PROCESSOS DE CIDADANIZAÇÃO E SINGULARIZAÇÃO NO ATENDIMENTO ÀS CLASSES POPULARES

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "TRABALHO: A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL: LIMITES E IMPASSES DOS PROCESSOS DE CIDADANIZAÇÃO E SINGULARIZAÇÃO NO ATENDIMENTO ÀS CLASSES POPULARES"

Copied!
30
0
0

Texto

(1)

TRABALHO:

A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL: LIMITES E IMPASSES DOS PROCESSOS DE CIDADANIZAÇÃO E SINGULARIZAÇÃO NO ATENDIMENTO ÀS CLASSES

POPULARES

SEMINÁRIO TEMÁTICO “CULTURA, POLÍTICAS E ATENDIMENTO DE SAÚDE”

(2)

A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL: LIMITES E IMPASSES DOS PROCESSOS DE CIDADANIZAÇÃO E SINGULARIZAÇÃO NO ATENDIMENTO ÀS CLASSES POPULARES1

Emílio Nolasco de Carvalho

Doutorando em Antropologia Social – Museu Nacional / UFRJ

A psiquiatria brasileira vem sendo atravessada por linhas de tensão que, desde meados deste século, têm problematizado as instituições manicomiais e trazido novas propostas terapêuticas. Estas novas linhas de tensão vêm se contrapor às instituições asilares e aos saberes fisicalistas de construção da “doença mental”, enfatizando os aspectos da cidadania, da singularidade e da produção de novos jogos sociais que possam assimilar a diferença que é própria à loucura. Porém, longe de se restringir à segunda metade do século XX, as tensões existentes entre as esferas da biologia, da cidadania e da singularidade participam de todo um conjunto de transformações sócio-históricas que vem compondo, pelo menos nos últimos quatro séculos, o individualismo moderno.

A partir da década de 1980, diversos estudos antropológicos de influência dumontiana vêm mostrando, por um lado, um novo enfoque acerca da Psiquiatria tradicional e da dita “Nova Psiquiatria”, tomando-as como englobadas indissociavelmente no conjunto das configurações individualistas. Por outro lado, observa-se também nestes estudos o quanto os ideais modernos vêm se entrelaçando historicamente com as configurações holistas/relacionais (não-modernas) profundamente enraizadas nas práticas cotidianas.

No presente trabalho pretendo analisar as relações existentes entre os universos simbólicos modernos próprios à reforma psiquiátrica e os universos simbólicos que permaneceram historicamente à margem dos processos de modernização. Que tipo de relação o Estado manteve, e mantém, com as configurações hierárquicas de valor, seja no complexo campo da cidadania brasileira, seja nas concepções de corpo, doença, família, rua, etc., que compõem as configurações físico-morais? Como se dão os entrelaçamentos e as incompatibilidades? Que tipo de mecanismos e estratégias de englobamento, captura e

1 Parte deste trabalho constitui uma reelaboração de algumas análises elaboradas em minha dissertação de

mestrado, intitulada “A reforma, as formas e outras formas: um estudo sobre construções sociais da pessoa e da perturbação em um serviço de saúde mental” e apresentada em agosto de 2001 ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ.

(3)

resistência se constróem? E mais especificamente de que forma as construções relacionais participam ou não do cotidiano dos novos serviços de saúde mental?

Nas décadas de 1980 e 1990, o movimento crescente da reforma psiquiátrica trouxe consigo a ênfase nas questões em torno da cidadania, da inserção social e da singularidade, temas que passaram a ocupar um lugar de destaque nos discursos e práticas psiquiátricos. Trata-se, com certeza, de grandes avanços, por parte dos profissionais de saúde, em direção à desconstrução do pedestal sobre o qual se apoiava o saber médico-psiquiátrico biologicista (ainda dominante) e à maior abertura da psiquiatria em relação às produções sociais em torno da loucura. No entanto, como mostram Venancio (1997) e Leal (2000), trata-se também da re-inscrição, sob novas formas, das noções modernas de “liberdade”, “igualdade”, e “diferença” pertencentes às tradições universalistas e românticas de construção social da pessoa, do corpo e da doença.

Inserida num contexto sócio-histórico de urbanização crescente e atravessada por todo um conjunto de embates políticos, econômicos e culturais, a reforma psiquiátrica veio consolidar vertentes como as da psiquiatria democrática italiana e as da psicanálise, direcionando seus esforços justamente para os espaços sociais onde os valores da cidadania e da singularidade “psi” não ocupam um lugar central na organização da vida social. As tensões que se constituem a partir daí parecem entrelaçar-se, como tentarei mostrar mais adiante, em todos os espaços e atividades oferecidas pelos novos serviços de saúde mental. Tensões que devem ser consideradas em seu aspecto mais amplo de composição do tecido social urbano e de sua diversidade cultural e que não podem ser compreendidas mediante análises mais amplas (e pretenciosas) da globalização e da massificação midiática, tal como nos apontam as análises de Gilberto Velho.

De fato, está se afirmando que os indivíduos não são folhas de papel em branco onde são impressas as imagens e mensagens da televisão, particularmente de suas novelas. (...) Não só a “matéria-prima” de fatos e informações, mas modelos, juízos, valores são acionados a partir de significados, experiências e vivências culturalmente construídos, elaborados e articulados. Portanto, as telenovelas fazem parte da sociedade e cultura brasileiras, com suas virtudes, dificuldades e problemas. Isso não significa, obviamente, que os veículos de comunicação não atuem e afetem a vida das pessoas. Mas, além das mensagens e influências não serem homogêneas e unidirecionais, os indivíduos e grupos movem-se em uma rede de papéis e significados que faz com que a recepção seja diferenciada, e as

(4)

interpretações, heterogêneas. (...) Assim, um indivíduo de classe trabalhadora, frequentador de um terreiro de umbanda, torcedor do Flamengo e músico de pagode, vive no seu cotidiano a experiência de estar sempre passando de uma esfera de significados para outra, em fluxo contínuo, acionando aspectos diferentes de sua experiência e personalidade social. Os diversos papéis que vive e os diferentes códigos que aciona lhe fornecem um repertório simbólico e cultural que invalida a idéia de que, pelo fato de ver tevê regularmente, possa se tornar um “mero joguete” da cultura de massas. (VELHO, 1994, p. 68-69)

Um outro exemplo destas tensões pode ser visualizado através dos estudos de Luiz Fernando Dias Duarte. Em seu estudo com classes trabalhadoras num bairro de periferia da cidade do Rio de Janeiro, Duarte (1986) observa que, de certa forma, as noções classificatórias hipocráticas e galênicas do tipo “quente-frio”, “úmido-seco” ou “nervo-sangue” e outras participam ainda hoje do universo semântico do “nervoso” constituindo configurações de valor hierárquicas e físico-morais que persistem em meio aos processos históricos de consolidação dos valores modernos.

Os saberes antigos dos nervos nunca constituíram a base de uma teoria da pessoa. Eles contribuíram para as especulações correntes sobre a constituição humana, tais como as teorias sobre a relação entre o coração e o cérebro (e os pneuma), mas mantiveram-se subordinados às teorias da alma e à configuração dos humores e temperamentos até o século XVIII.

É só então, no bojo das grandes transformações culturais e sociais que dão à versão dita “moderna” da cultura ocidental que os nervos são reapropriados em um sistema mecanicista integrado (justamente o “sistema nervoso”), servindo de suporte para um novo sujeito representado como imanente, autônomo e universalmente idêntico, capaz de suportar os nascentes ideais da “liberdade” e da “igualdade”. (...) As classes populares, em geral no Ocidente, e eventualmente os segmentos periféricos ou “atrasados” das elites, continuaram, porém — e continuam até hoje —, a dispor de um modelo de pessoa condizente ou solidário com suas próprias resistências à individualização (no sentido de conversão à ideologia “culta” do individualismo). (DUARTE, 1993, p. 68-69)

Recusando-se a trabalhar esta questão apenas nos termos de um “déficit” ou “atraso” dos grupos populares em relação aos saberes modernos, Duarte propõe compreender a presença de tais noções como integradas a um sistema hierárquico de idéias-valores, indissociavelmente físico-moral, que está na base constitutiva da construção holista da pessoa, do corpo e da doença.

(5)

Uma implicação muito importante dessa qualidade eminentemente relacional dos nervos é a de compor uma teoria não-psicologizada do humano. Os nervos são pensados como um meio físico de experiências tanto físicas quanto morais — em perfeita oposição à idéia do psiquismo, concebido para se substituir ao antigo nível moral e estabelecer sobre o físico uma nova hegemonia. Os nervos são uma típica representação relacional da pessoa, enquanto o psiquismo é uma representação individualizada, associável às marcas ideológicas mais amplas da modernidade ocidental.(...) O fenômeno dos nervos (enquanto modo cultural de reconhecer perturbações físico-morais) é privilegiado para compreender as questões centrais da definição da cultura ocidental moderna e seus limites e descontinuidades. (DUARTE, 1994, p. 85)

Estes e outros estudos antropológicos trazem, assim, a possibilidade de se compreender o tecido social da atualidade como um entrelaçamento complexo de configurações de valor heterogêneas, com suas construções sociais modernas e não modernas da pessoa, do corpo e da doença.

No que se refere ao estudo dos saberes e práticas da psiquiatria, da psicologia e da psicanálise no Brasil, inúmeros trabalhos históricos e antropológicos têm sido feitos nas últimas décadas2. Estes trabalhos vêm lançando novas formas de compreensão, tanto em relação aos jogos políticos de consolidação dos saberes e práticas “psi”, quanto em relação às descontinuidades e limitações destes jogos frente a uma sociedade que, em grande parte, permanece historicamente à margem dos processos de transformação e consolidação das políticas oficiais de saúde.

No caso específico da reforma psiquiátrica, a busca pela constituição de um espaço democrático, com participação ativa de usuários, familiares e comunidade, trouxe para os profissionais de saúde novos desafios, tanto em relação à desconstrução das práticas discriminatórias, de exclusão social e de seus efeitos, quanto no que se refere à construção de novas práticas que se direcionem, simultaneamente, pelas noções de cidadania e de singularidade. A questão fica ainda mais complexa quando se considera que, não raras vezes, o público atendido pelos novos serviços de saúde mental participa de espaços sociais e universos de valor (modos de construir o mundo, a pessoa, o corpo e a doença) que

2 Confira, por exemplo, AMARANTE (1994), CORRÊA (1998), DUARTE (2001), LEAL (2000), NICÁCIO

(6)

permaneceram relativamente à margem dos processos de consolidação do Estado moderno e do individualismo.

Mais do que um conjunto de “crenças” ou “representações” contingenciais, tais configurações de valor são indissociáveis da produção concreta da realidade social. Neste sentido, é preciso compreender não apenas o modo como as construções modernas da pessoa atravessam os discursos da reforma psiquiátrica, mas também o modo como elas são operacionalizadas cotidianamente nos novos “serviços de atenção psicossocial”  os tipos de embate cotidianos, os dispositivos criados de sustentação deste ou daquele universo simbólico, as estratégias de englobamento, inversão e mistura, as incompatibilidades e as tensões daí resultantes etc. Além disso, é preciso analisar que tipo de relação estes novos serviços vêm mantendo com as formações relacionais/hierárquicas, seja no complexo campo da cidadania brasileira, seja nas concepções de corpo, doença, gênero, família, rua etc., que compõem as configurações não-modernas (e não-psicológicas, como nos mostra Duarte) em torno das perturbações físico-morais.

Pensar de forma mais detida as relações existentes entre os diferentes universos de valor, presentes no cotidiano dos novos serviços de saúde mental, ganha ainda maior relevância ao se considerar que o convívio diário e a participação ativa da comunidade são aspectos imprescindíveis à constituição destes serviços. Como se dão os entrelaçamentos, as capturas e resistências? De que forma as construções relacionais participam ou não do cotidiano destas novas instituições? Estas são as questões que tomei como diretrizes na busca por uma melhor compreensão das formas de construção da pessoa e da perturbação que se fazem presentes, cotidianamente, no CAPS Simão Bacamarte, em Santa Cruz, bairro periférico da cidade do Rio de Janeiro.

A Região de Santa Cruz e o Surgimento do CAPS Simão Bacamarte

Em 1997, ano de implantação do CAPS Simão Bacamarte, havia na região de Santa Cruz apenas um psiquiatra em atividade em toda a rede pública de saúde, sendo que em meados do mesmo ano chegam aos postos de saúde quatro profissionais psicólogos. Neste sentido, o CAPS Simão Bacamarte  com um supervisor, quatro psiquiatras, quatro

(7)

psicólogos, dois terapeutas ocupacionais, um musicoterapeuta, dois assistentes sociais, dois enfermeiros, dois auxiliares de enfermagem, além de oficineiros e estagiários e um administrador  parecia marcar uma discrepância, na sua estrutura de funcionamento, em relação aos demais serviços da região. Isto, por sua vez, parece estar intimamente relacionado a um tipo de ocupação implementado pelo município, marcado por um investimento maior na implantação de serviços de saúde mental, sem que isto tenha sido acompanhado de um igual investimento na saúde como um todo.

A região, denominada pela Secretaria Municipal de Saúde “Área Programática 5.3” (AP 5.3), é composta pelos bairros de Santa Cruz, Paciência e Sepetiba. Conforme o Relatório Técnico IFB/SMS de 1997, esta região teve um grande crescimento demográfico na segunda metade deste século, acompanhando o processo de urbanização do país.3 Se em 1960 a região tinha cerca de 55 mil habitantes, vinte anos depois esta população já havia crescido para 147 mil e, em 1999 já chegava a 291 mil habitantes. Apesar disto, a região possui a menor densidade demográfica do município, com cerca de 16 hab/ha.4 Trata-se de uma população predominantemente de baixa renda, onde 65,5 % da mesma possui apenas o ensino elementar (1ª a 4ª série).5

Conforme relata um profissional da Coordenação de Saúde Mental do Município do Rio de Janeiro, a consolidação dos CAPS municipais ocorreu mediante uma “ocupação de guerra” a partir da qual buscou-se aproveitar lugares disponíveis os mais variados, visando sempre as regiões menos assistidas pelo Estado. Assim, o CAPS de Campo Grande ocupa um antigo depósito do PAM (Posto de Atendimento Médico) do local, o CAPS de Irajá ocupa um prédio antes pertencente à LBA, o de Bangú ocupa uma ex-agência do Banco do Brasil, situada no PAM local e o CAPS de Santa Cruz inicia seu funcionamento em parte de um antigo e pequeno posto de saúde da região.

3 Refiro-me ao Relatório Técnico de 1997, intitulado Rede, Território e Atenção Psicossocial: Informações Demográficas e Sócio-econômicas sobre as Regiões Atendidas pelos CAPS de Campo Grande e Santa Cruz, referente ao convênio Instituto Franco Basaglia / Secretaria Municipal de Saúde. Sobre o aspectos sócio-demográficos da região, confira as páginas 25-28. Os dados estatísticos pertinentes a este relatório foram gerados em 1993, pelo instituto de pesquisa IPLANRIO.

4 Em suas 14 favelas, entretanto, a média é de 162,8 hab/ha. Para uma análise comparativa, o bairro de

Copacabana possui 350,7 hab/ha.

(8)

Ao apontar para as discrepâncias na equipe de profissionais em relação aos demais serviços, não se pode deixar de considerar também que os serviços do tipo CAPS enfrentam sérios problemas estruturais na atenção aos usuários. Tampouco se pode inferir daí que estes serviços sejam mais atenciosamente assistidos pela SMS. No cotidiano do CAPS de Santa Cruz, as dificuldades gritantes de obtenção de recursos materiais e humanos para resolução de problemas urgentes (como, por exemplo, a obtenção de ambulância para procedimento de internação; de material para as oficinas; de reformas inadiáveis no prédio; etc.) impõem contínuos desafios e sobre-esforços da equipe no sentido de operar minimamente o serviço.

Algumas Questões sobre Cidadania, Singularidade e outras Formas

Ao longo de minha pesquisa de campo, pude perceber o quanto a configuração do nervoso, entrelaçada ou não às formações religiosas, está na base das compreensões que os usuários, familiares e funcionários elaboram acerca das atividades da medicalização, da assembléia, do atendimento individual e das atividades terapêuticas coletivas. Compreensões, por sua vez, indissociáveis das expectativas acerca não só das atividades, mas dos profissionais de saúde e da instituição como um todo. Longe de serem incapazes de interpretar as atividades do CAPS, os usuários, os familiares e os funcionários mostraram uma enorme habilidade de interpretá-las conforme suas próprias lógicas relacionais e físico-morais.

Certamente as formas de entrelaçamento, de inclusão e combinação do par médico/medicamento possuem uma história muito mais longa em comparação com as práticas da assembléia, da oficina terapêutica ou da psicoterapia. Nestes últimos casos, o que se pôde observar é que outras formas institucionalizadas acabavam servindo de referência, como a identificação da instituição como “escola” e das oficinas terapêuticas como “aulas”.

Quer dizer, o CAPS, esse lugar que dá esse ensino a esse povo... é um povo que Deus tá ajudando eles porque eles tão fazendo um benefício... é pros pobres mesmo! Aquilo é um benefício pros pobres, irmão! (...) O “J” ficando lá dentro, aquilo ali ele tá sendo doutrinado. É uma doutrina que tá ali dentro. Um ensino. É igual uma igreja aquilo ali, sabia? É igual uma igreja! Ali é um ensino. Uma doutrina que tem ali dentro. E o sujeito sai... entra torto, tem que sair o quê? Tem que sair direito. Falam assim: o pau torto morre torto, não é? Não. Mas tem um lugar que dá torto e eles endireita ele. (José – Pai de Usuário)

(9)

Mas não se trata aqui da mesma escola que uma visão pedagógico-acadêmica poderia pensar. Para entender a forma como o ensino/aprendizagem é construído entre os funcionários, familiares e usuários do CAPS, é necessário entender também como esta questão é construída nas classes populares. Neste sentido, o trabalho de GUEDES (1997) pode ser de grande valia. Em seu estudo sobre classes trabalhadoras em São Gonçalo-RJ, Guedes mostra o quanto o “estudo” e a “escola” são definidos não em termos do conteúdo da aprendizagem, mas sim em termos das possibilidades de obtenção de trabalho e de melhor remuneração, assim como em termos de um recurso de disciplinarização das crianças:

Mas, de uma maneira geral, não há grande expectativa com relação ao que os filhos aprenderão e, conseqüentemente, algumas reprovações anuais são perfeitamente suportadas e mesmo, esperadas. O saber que lhes cabe, de fato, não vem desta escola, da qual se espera apenas que forneça a capacidade de decifração mínima do código da língua e os ensinamentos básicos de matemática. Por que, então, torna-se tão importante continuar indo à escola? Claro que, em primeiro lugar, porque a posse do diploma de primeiro grau, que pode ou não ocorrer, representará uma relativa diferença no mercado de trabalho, como já disse. Mas, fundamentalmente, porque é o modo de ensinar “as crianças” a não serem preguiçosas, a terem obrigação. Trata-se, antes de tudo, de não deixá-las à toa, brincando todo o tempo, comportando-se como vagabundos. O filho do trabalhador estuda e trabalha e distingue-se, claramente, dos menores largados por aí que não são controlados e dispõem do seu próprio tempo. A escola primária comum cumpre, assim, uma função outra, diferente daquela a que primordialmente se destina. Com exceção dos que têm um grau intelectual fraco, um

desenvolvimento muito prolongado, muito demorado ou que tem uma memória mínima, todos os outros têm como obrigação ir à escola até uma

certa idade, não importando muito o que aprenderam lá, mas sim o estar lá nos horários combinados. Por isso, a falta é punida com mais rigor que a reprovação, recebida com relativa condescendência e, em geral, atribuída mais ou menos explicitamente à fraqueza da escola. A função de disciplinarização esperada da escola situa-se, portanto, mais no modo como ela é usada pela família para ensinar os seus valores, vistos como diferentes daqueles da instituição. (GUEDES, 1997, p. 182-183)

Entre usuários, familiares e funcionários de nível médio do CAPS, a questão da disciplina assume aqui um lugar importante tanto para a construção social da pessoa quanto para a visualização das terapêuticas mais eficazes. Ela está intrinsecamente ligada à idéia do

(10)

enfraquecimento ou fortalecimento dos nervos  ou ainda àquilo que Duarte (1986) denominou núcleo semântico forte/fraco da configuração do nervoso.

É preciso ressaltar a complexidade desta temática. Nas classes populares a questão do controle e da disciplina não pode ser compreendida unicamente a partir da lógica do indivíduo moderno sob o risco de reforçar algumas armadilhas históricas de análise. Partir exclusivamente da ótica não relativizada do indivíduo reduz enormemente a questão à forma de uma limitação e alienação do sujeito (de sua visão de mundo e de sua liberdade) que reforçaria os processos sociais de dominação e submissão. Não se trata, obviamente, de desconsiderar os mecanismos sociais de dominação e de estratificação social e o complexo entrelaçamento destes com as configurações de valor das classes populares. Ocorre que as formas utilizadas historicamente para abordar esta questão omitem freqüentemente as formas de organização das classes populares em função de uma lógica universal. Desconsidera-se assim toda uma construção outra do mundo, da pessoa e da perturbação que resiste historicamente aos mais diversos investimentos de modernização da sociedade e que não se encontra centrada numa racionalidade abstrata e universalista ou num indivíduo/cidadão moderno. Individualizar a questão do controle e da disciplina é impor uma lógica que define um todo em função de suas partes, para lidar com um universo social que, no percurso lógico inverso, define as partes em função de seu todo. Compreender um discurso sem que se leve em conta minimamente o universo simbólico que lhe serve de base tem sido historicamente o principal tempero dos pensamentos etnocêntricos e evolucionistas. É preciso, portanto, complexificar a questão da relação entre poder e política, por um lado, e valor e cultura, por outro  uma discussão que parece ser ponto de pauta freqüente nas discussões antropológicas contemporâneas.

Se não se trata, portanto, de uma dimensão a questão da disciplina, da correção e da educação, tampouco se trata do mesmo tipo de “pensar”. Idéias-valor hierárquicas imbricadas historicamente a formas de institucionalização de um Estado e uma sociedade modernos redirecionam-se agora num esforço por compreender atividades extremamente recentes para a maior parte dos usuários, familiares e funcionários de nível médio. Tais esforços mostram uma capacidade indiscutível de realocar as atividades do CAPS de tal forma que estas permanecem, em última instância, englobadas no plano moral.

(11)

Neste movimento, são as bases mesmas de uma construção moderna da pessoa que parecem ser realocadas. Aqui, o indivíduo-cidadão livre, racional e responsável pelos seus atos é englobado, em cada um de seus termos  individualidade, liberdade, racionalidade e responsabilidade  num universo relacional e físico-moral.

Pode-se dizer que a grande maioria dos usuários e familiares com os quais tive contato preocupam-se em problematizar a si e aos seus lugares na sociedade. Mas este empreendimento não ocorre tal como nos moldes de uma psicoterapia. Os usuários, em sua grande maioria, não demandam das terapêuticas, por exemplo, “sustentar-se enquanto sujeito singular em meio a uma coletividade”6. E se o fazem, é por percursos lógicos completamente diferentes daquelas de uma psicoterapia. A problematização de si não é a problematização da interioridade singular ou da autonomia em suas relações cotidianas. Ela se operacionaliza em função dos jogos relacionais, dos conflitos cotidianos intrafamiliares e locais, da possibilidade de ocupar lugares menos desprivilegiados, de compor ou ser merecedor de atos de solidariedade, de obter algum respeito e prestígio ou de não perder o resto que ainda tem, quando tem. A construção identitária em torno do trabalho (do caráter temporário da doença, de uma demanda por mais oficinas profissionalizantes, etc.) é estratégica neste sentido, oferecendo uma expectativa de reconquista da identidade de trabalhador(a).

A compreensão da prática do psicólogo como sendo de “conselho”, de “correção” ou de “transmissão de uma palavra de paz” parece ser uma estratégia importante que permite aos usuários, familiares e funcionários englobar a problematização de si num movimento relacional/hierárquico. O “conselho” e a “correção” são quase sempre entendidos em articulação com os conflitos relacionais. Além disso, dar “conselho” e “corrigir” já são em si práticas educativas/disciplinadoras, de tal forma que, para usuários, familiares, e funcionários, um espaço privativo de psicoterapia é entendido antes como um espaço de aprender com o outro e não de olhar para si mesmo.7 A “palavra de paz” ou “de conforto” direciona-se para

6 Para lembrar mais uma vez Duarte: É possível que encontremos, em outras culturas, algo aproximável à nossa idéia de verdade, algo equiparável à nossa idéia de vontade, ou mesmo algo evocativo de nossa idéia de interioridade. Mas é exclusivamente em nossa cultura que vemos a demanda de coexistência desses três valores; ou seja, que a relação do homem consigo deva estar permanentemente regida por certa tensão constitutiva entre verdade de si, vontade de si e interioridade (lugar onde verdade e vontade se articulam se movem, se tensionam reciprocamente). (DUARTE, 2001, p. 35)

7 É sempre bom lembrar que há movimentos de combinação e/ou liminaridades que não puderam ser enfatizados

(12)

uma ênfase privilegiada no plano físico-moral e religioso, na forma de “pensar coisas boas”, de “transmitir bons pensamentos” e evitar os “maus”. A própria compreensão do “pensar”, como já foi dito, é englobada num plano físico-moral. Assim, por exemplo, a grande maioria dos usuários, familiares e funcionários do CAPS de Santa Cruz que participam de igrejas evangélicas pentecostais deixam claro em seus discursos a indissociabilidade entre a configuração do nervoso e as formações religiosas na definição da perturbação, de seu tratamento e de sua cura. Nestes casos, poder-se-ia sem dificuldades acrescentar à máxima de Descartes um trecho complementar: “penso em coisas boas ou más, logo existo voltado para Deus ou para o diabo”.

A forma como a noção de liberdade aparece no esquema lógico dos fiéis pentecostais também é um exemplo claro do quanto os valores fundamentais do individualismo moderno podem ser englobados por configurações hierárquicas. Pode-se facilmente imaginar, na sociedade moderna (e da mesma forma entre os profissionais de saúde do CAPS de Santa Cruz), que a enunciação “todos somos livres” tenha como seqüência lógica a idéia de que “é preciso responsabilizar-se pelas escolhas feitas”, assim como a idéia de que “é preciso respeitar a igual liberdade do outro”, de tal forma que as noções básicas de liberdade, igualdade e responsabilidade sejam ao mesmo tempo constituídas por uma construção moderna da pessoa (o indivíduo universalmente livre, igual e responsável por seus atos), e constituintes das regras jurídicas (direitos e deveres) de organização social. Não parece haver dissensos, nos discursos dos profissionais de saúde, acerca da utilização desta seqüência lógica como uma diretriz na organização do serviço, na resolução dos conflitos cotidianos e no direcionamento de intervenções.

Entretanto, entre os fiéis pentecostais a noção de liberdade remete antes a uma lógica holista de construção da pessoa. Nesta lógica, pode-se facilmente imaginar que as enunciações “todos somos iguais” e “todos somos livres”, tenham as respectivas seqüências: “todos somos filhos de Deus” e “todos somos livres, livres para seguir a Deus ou ao Diabo”. Somos livres, livres “para seguir”. A dimensão da liberdade e da igualdade permanece englobada pelo holismo religioso, indissociável da dimensão moral.

entrelaçada a uma dimensão relacional e religiosa, de tal forma a compor imbricações complexas que certamente mereceriam uma análise mais detida.

(13)

Existe um determinado programa na televisão, no canal quatro, “Você Decide”, é na Globo. Você decide! Está percebendo? Quem decide o nosso destino, o nosso caminho são nós mesmos! Decisão nenhuma Deus deixou no mundo que não fosse pra nós mesmos tomar essa medida. Deus abriu o caminho pra todos. Se quiser! Se for obediente, viverá. Obedecer ao quê? Aos mandamentos. (Gilberto – Funcionário)

Tal como no caso moderno, a liberdade, a igualdade e a responsabilidade são ao mesmo tempo imbricadas a uma forma de construção social da pessoa (mas uma forma holista/relacional) e constituintes das regras “jurídicas” de organização social (definidas agora em relação à boa ou má conduta, à “obediência” ou “desobediência” em relação aos códigos morais estabelecidos). Ser responsável é não deixar de cumprir suas obrigações morais; é ser forte para não ceder às tentações e às doenças trazidas pelo diabo. Indissociavelmente holista, relacional e físico-moral, a ética pentecostal brasileira diferencia-se nitidamente seja da ética da cidadania (universalista e dissociada do plano religioso), seja da ética do protestantismo ascético8. Próprios a uma construção relacional e físico-moral da pessoa, a desobediência e o descontrole (não se controlar frente às tentações) entrelaçam-se aqui na compreensão da perturbação.

Mas Deus não queria que isso fosse... acontecesse. Queria que todos fossem... respeitadores das leis... e que todos fossem curados! Que não houvesse nenhum só enfermo! Essa é a vontade de Deus. Mas pela nossa desobediência... Nossa desobediência! Nós pagamos caro. E custa a saúde. Vem a repercutir na saúde. (Gilberto – Funcionário)

Para além do âmbito das religiões pentecostais, nas classes populares “respeitar” e “ser respeitado” está intrinsecamente ligado a assumir certas responsabilidades em relação à casa e

8 Conforme mostra Jessé Souza, a ética do protestante ascético “advém de um impulso “de dentro pra fora”, a partir de um imperativo ético imposto à consciência individual” (SOUZA, 1999, p. 34). Alguns pensadores, como Luís Eduardo Soares (1993), afirmam que a difusão do pentecostalismo no Brasil seria um fator de difusão dos valores modernos nas classes subalternas. Conforme o autor, um “igualitarismo segmentar” próprio a esta religião viria substituir as formações hierárquicas até então vigentes e difundir “de baixo” os valores do individualismo. A discussão é por demais complexa para ser abordada aqui de forma mais detida. Limito-me a dizer que, a meu ver, o autor parece desconsiderar a capacidade de inclusão/combinação das formações de valor hierárquicas, por vezes confundindo o conceito dumontiano de “hierarquia” com as análises weberianas em torno do “patrimonialismo”, o que parece redirecionar inadequadamente a definição de “hierarquia” e de “valor” os quais, por sua vez, ficam reduzidos em sua riqueza conceitual. Nas análises que aqui propus, pode-se visualizar o quanto as formações hierárquicas são capazes de incluir/combinar os discursos e práticas modernos em sua próprias lógicas constitutivas.

(14)

ao trabalho. Ser um cidadão de respeito é também ser um bom provedor do lar, um bom marido e um bom pai; é não ser um preguiçoso, um malandro ou um bandido; ser um cidadão de respeito é também ser um trabalhador de responsa.

É assim que expressões tão caras à modernidade como individualidade, racionalidade, liberdade, igualdade e responsabilidade são reinterpretadas entre os usuários, familiares e funcionários conforme o universo de valor que lhes é hegemônico. Ocorre que é justamente aí que se instalam as tensões inevitáveis em torno da construção e compreensão do que vem a ser o CAPS, suas atividades e o papel dos profissionais de saúde. Como democratizar o serviço sob tais circunstâncias? Como “dar voz e vez” a todos, quando esta voz vem falar algo que vai de encontro aos próprios princípios modernos da liberdade, da igualdade e da autonomia que estão na base da cidadania e dos projetos democráticos dos quais o próprio CAPS faz parte? Como as formas de sociabilidade postas em cena na instituição podem se entrelaçar àquelas trazidas pelos usuários e familiares? E, neste sentido, que tipo de inserção social é proposta? Que noção de social está em jogo?

Os profissionais de saúde discutem continuamente entre si as dificuldades acerca do engajamento dos usuários, dos familiares e dos funcionários no CAPS e em suas atividades. Contudo, as formas vigentes de compreensão da questão não parecem escapar aos reducionismos próprios às diferenças de grau. Mesmo os discursos mais abertos para noções como diferença e multiplicidade não parecem levar em conta dois aspectos imprescindíveis a esta questão: que tais diferenças nas classes populares participam de universos de valor distintos e históricos; que a própria noção de cidadania e de singularidade também são produções específicas do universo moderno de valor.

Entre os profissionais de saúde, pode-se perceber movimentos distintos para lidar com estes embates entre universos de valor. Por um lado, há um movimento em que se compreende as formas de sociabilidade trazidas pelos usuários, familiares e funcionários como marcadas por “limitações” ou “carências” intelectuais e sociais. Pensa-se basicamente em termos de “falta de”: falta de uma cultura de auto-cuidado; falta de uma consciência política; falta de recursos para a compreensão do projeto de saúde mental do CAPS; falta de capacidade de coletivização; etc. Limitados em suas condições de sobrevivência, os usuários e familiares encontrariam dificuldades em assumir um movimento mais ativo na construção de suas

(15)

próprias histórias. Encontrar-se-iam, portanto, limitados em sua autonomia, assim como em sua capacidade de conscientização política e de organização coletiva.

Neste movimento, dois conjuntos de estratégias puderam ser observados, que não coincidem necessariamente com este ou aquele profissional de saúde e parecem ser direcionados muito mais por aspectos situacionais referentes aos temas e problemas em questão. Num primeiro conjunto, os discursos e práticas trazidos pelos usuários e familiares são vistos majoritariamente como obstáculos à construção de uma organização social pautada na cidadania e na democracia, assim como na produção de um sujeito autônomo. Neste sentido, o objetivo das atividades da instituição seria justamente oferecer novas formas de sociabilidade que possam, por vias diretas ou indiretas, influenciar a vida social dos usuários e familiares. É claro que, na maior parte das vezes, os profissionais de saúde não estão desconsiderando o que os usuários e familiares trazem em seus discursos e práticas. Apenas procuram centrar as atividades em outros parâmetros.

Um segundo conjunto de estratégias, muito mais comum, é aquele em que se busca potencializar a participação dos usuários e familiares no CAPS, num esforço por redirecionar seus critérios e construir junto a eles novas formas de coletivização mais condizentes com a cidadania e a democracia. Nestes casos, reconhece-se a necessidade das formas de organização trazidas e busca-se entrelaça-las às atividades ao mesmo tempo em que se busca promover uma autonomia do usuário em relação às mesmas.

Para além das duas estratégias acima citadas de compreensão deficitária da vida social dos usuários e familiares, há também uma terceira estratégia ligada a um esforço de valorização daquilo que eles trazem de seu cotidiano extra-CAPS. Neste movimento, são as atividades que devem se adequar, na medida do possível, aos discursos e práticas trazidos. Ocorre que, como já foi visto, este movimento desconsidera justamente as tensões lógicas próprias às construções da pessoa e da perturbação em jogo. Tomando a multiplicidade enquanto conjuntos diversos de crenças que se relacionariam por oposições distintivas  próprias à racionalidade moderna , os profissionais de saúde deparam-se freqüentemente com o desafio de sustentar tal projeto em meio às oposições englobantes/hierárquicas, como aquelas que marcam a relação entre as religiões pentecostais e as afro-brasileiras. Frente às dificuldades de assegurar, na prática, uma tal visão de multiplicidade, os profissionais de

(16)

saúde acabam por reafirmar, nos momentos de conflito, os princípios da cidadania e da democracia enquanto diretrizes de organização do serviço, reforçando-os enquanto pano de fundo unificador de toda e qualquer diferença humana. Neste movimento, as diferenças de grau  e, com elas, a idéia de que “falta algo” nas formas trazidas pelos usuários e familiares  acabam sendo reafirmadas novamente como recurso alternativo às tensões geradas nos embates cotidianos.

No conjunto das três estratégias aqui apontadas, pode-se perceber de uma forma ou de outra um esforço dos profissionais de saúde em sustentar regras de convivência que garantam a cidadania como princípio de organização do serviço, mas que enfrentam sérios desafios quando se trata de operacionalizar uma democratização do mesmo. Há, desta forma, uma tentativa de organizar a instituição por valores que, na prática cotidiana, não são compartilhados da mesma forma por todos e de construir atividades que visem, justamente, difundir e consolidar tais valores. Mais do que fazer valer um princípio da cidadania para organizar o serviço, trata-se de compor as atividades como projetos de cidadanização.

Estilos de Gestão e Configurações de Valor: Limites e Impasses da Cidadania e da Singularidade no Cotidiano do CAPS

Em conformidade com a política municipal (e, em grande parte, com a política nacional) de saúde mental, o CAPS de Santa Cruz oferece aos usuários e familiares várias atividades integradas aos atendimentos psiquiátricos e psicológicos, dentre as quais orientações e encaminhamentos de questões jurídicas (como direitos dos usuários e familiares, pensões e outros benefícios); intermediação junto aos demais serviços públicos de saúde; visitas domiciliares em casos de crise do usuário; intermediação nos processos de internação hospitalar; e outros. Trata-se, portanto, de um serviço que, além de um tratamento multidirecionado (com psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais), busca oferecer aos usuários e familiares um acesso mais facilitado aos demais serviços públicos municipais e estaduais, além de um acompanhamento de suas reações sociais.

(17)

Fortemente influenciados pela “psiquiatria democrática” italiana, os profissionais de saúde mental preocupam-se constantemente em construir os novos serviços de saúde mental como espaços organizados “democraticamente”, esforçando-se por apresentar espaços instituídos e estratégias de relação que viabilizem a participação de todos. Assim, o cotidiano do serviço deve ser direcionado conforme as deliberações das constantes assembléias e reuniões das associações de familiares de amigos do CAPS.

Além disso, cabe ao profissional de saúde mental posicionar-se “contra os ditos vícios manicomiais históricos” em torno do determinismo biológico da construção da doença e do lugar de poder do médico e dos demais especialistas. Neste sentido, cabe aos mesmos desmantelar as relações hierárquicas relacionadas a seus lugares de especialistas, principalmente no que se refere à organização da instituição, na busca de uma participação de todos da forma mais equânime possível.

No CAPS de Santa Cruz os profissionais investiram desde o início na realização semanal de assembléias e na construção, junto aos usuários e familiares, de uma associação dos amigos do CAPS, além da postura insistente de não ocupar um lugar autoritário na organização do serviço e de suas atividades. Todo um conjunto de publicações acadêmicas em torno da “cidadania” e da “singularidade” do usuário e da dimensão “bio-psico-social” de seu problema foi constantemente citado e comentado pelos profissionais de saúde ao longo de minha pesquisa de campo.

No cotidiano do serviço uma boa parte das atividades passa por discussões constantes junto aos usuários acerca de seus direcionamentos. A realização das assembléias, a criação da “Associação dos Amigos do CAPS Simão Bacamarte”, assim como a busca pela “desconstrução dos especialismos”, pela livre circulação dos usuários e familiares, pela “re-inserção social dos mesmos” e pela construção de uma rede de referência e contra-referência junto aos demais serviços da região, dentre outros, foram esforços insistentemente empreendidos pelos profissionais de saúde. Entretanto, tais esforços não parecem excluir toda uma variedade de outros empreendimentos simultâneos na instituição.

Para uma melhor compreensão de alguns destes outros empreendimentos, gostaria de expor sucintamente as práticas de gestão do serviço veiculadas por uma das personagens

(18)

responsáveis pela administração: Marlene9. Tendo, como relatou, nascido e crescido em Santa Cruz, Marlene trabalhava há mais de vinte anos como administradora nos serviços públicos da região. Sua influência junto aos demais serviços possibilitou ao CAPS manter uma ampla rede de apoio na região, suprindo as necessidades mais diversas da instituição. Assim, por exemplo, por cerca de dois anos e meio o fornecimento de comida para almoço e lanches diários  que não estava mais sendo repassado para a instituição por falta de um profissional-nutricionista na região  foi garantido graças à ação de um “conhecido” de Marlene que trabalhava no setor responsável pelo estoque e redistribuição dos alimentos escolares da região. Por várias vezes a utilização de uma ambulância para internação hospitalar urgente  que pelas vias burocráticas mais comuns só poderia ocorrer após horas ou até no dia seguinte, o que era completamente inviável nos casos de crises dos usuários  só era possível de forma imediata após a mediação de Marlene junto ao Hospital local. Ao longo de minha pesquisa de campo, Marlene relatou várias histórias onde, mediante sua influência, processos burocráticos os mais variados  como aqueles que viabilizam reformas elétricas e hidráulicas, aquisição de documentos e avaliações que dependiam de outras instituições da rede pública  eram conseguidos de forma muito mais rápida que a habitual.

A influência de Marlene na rede local conferia a ela um grande prestígio junto aos profissionais de saúde da instituição. Mediante este prestígio Marlene conseguia também manter uma outra mediação, interna, entre profissionais de saúde e funcionários, principalmente nas questões referentes ao funcionamento da instituição. Assim, era uma reivindicação de muitos funcionários que os espaços da cozinha e da administração permanecessem interditados aos usuários e familiares. Tal reivindicação ia de encontro com aquela dos profissionais de saúde de que todos os espaços da instituição tivessem livre acesso. Entretanto, ainda no primeiro ano de funcionamento a reivindicação dos funcionários foi atendida.

É importante dizer que os funcionários do CAPS de Santa Cruz evitavam ao máximo participar das assembléias, o que era tido, por parte dos profissionais de saúde, como uma grande frustração e como algo que deve ser mudado o mais rápido possível. Era um consenso entre os profissionais de saúde que o espaço da assembléia tem por principal função a

(19)

democratização do serviço, isto é, a participação de todos nas questões cotidianas as mais diversas, na construção e transformação das atividades e dos projetos ou planos de ação que devem direcionar a construção mesma do CAPS. Tal consenso, entretanto, foi acompanhado nos relatos cotidianos de um descontentamento generalizado acerca das condições de organização da assembléia, e de seu progressivo esvaziamento.

Eu aprendi no livro do Jairo10 que as assembléias era um momento em que toda

a equipe estaria junta. Os usuários, os técnicos, os cozinheiros, os guardas, todo mundo tinha que tá na assembléia. E isso nunca aconteceu nesse CAPS. Nunca aconteceu! Então... isso no início me incomodava muito! Eu dizia: Como é que pode? É uma assembléia! Num tá todo mundo! Né? E é uma coisa que sempre é recorrente. Mas assim... tanto que um dos temas da assembléia de hoje foi o esvaziamento. E ela está ficando cada vez mais esvaziada. (...) Então eu acho que isso não é uma assembléia. É uma outra coisa. (Edinete – Psicóloga)

Eu acho que a proposta inicial da assembléia era de passar pelo trânsito da casa, pela reorganização da casa. E eu acho que isso é fundamental. Ver o que que tá dando certo. O que que não tá dando certo. Entre os vários... segmentos né?... do CAPS. Tanto funcionários... e aí num tinha funcionários. Só de nível superior, né? A gente tinha o pessoal da equipe de apoio aí. Chamada equipe de apoio. Faxineiros... vigilantes... que não participavam dessa atividade e a assembléia paradoxalmente tinha uma proposta inicial de aglutinar todas as pessoas que passavam pela casa. Né? E isso eu acho que nunca aconteceu. (Adriano – Enfermeiro)

Os profissionais de saúde atribuíam esta não participação dos funcionários mais freqüentemente ao medo que aqueles têm de se expor e também ao pouco investimento em participar do projeto do CAPS  seja por desconhecerem tal projeto de democratização e suas vantagens, seja por um desinteresse pessoal no serviço, o que foi definido algumas vezes como “má vontade”. Além disso, o medo e o pouco investimento foram também relacionados aos vícios institucionais que os mesmos adquiriram em outras instituições.

Houve uma tentativa deles participarem das nossas reuniões, ou pelo menos da primeira parte das reuniões de equipe, mas eles não deram conta disso. Eles iam pra primeira parte mas não falavam nada. E era solicitado que eles falassem, eles não falavam. Enfim, o negócio não funcionou de jeito nenhum! Muito curioso! Aí eles pediram pra não participar mais dessas reuniões, né?(...) Bom eu acho

10 O livro a que a profissional de saúde se refere acima é o de Jairo Goldberg, Clínica da psicose: um projeto na rede pública. Rio de Janeiro: Te Corá, 1994.

(20)

que essas pessoas têm que estudar mais, ler textos da reforma e escutar as pessoas falando da reforma. Isto até aparece nas supervisões. Acho que o “V” [ex-supervisor] era uma pessoa que o tempo todo ele trazia nas supervisões a experiência de vida dele, que é riquíssima, né?, na luta pela reforma. Mas é o seguinte. Eu acho que pra mudar essa lógica é preciso um certo esforço pessoal, entendeu Emílio? Tem que partir da pessoa a vontade de querer aprender o que que é a reforma, como é que se vive a reforma... E aí trocar a questão disciplinar pela escuta da psicose. (Edinete - psicóloga)

O medo de se expor num embate com os “doutores” foi explicitamente relatado pelos funcionários, assim como suas críticas em relação àqueles foram não raras vezes acompanhadas de comparações contrastantes com outros serviços onde já haviam trabalhado.

Porque, na maioria das vezes eu... os colega aqui que trabalha na copa... na limpeza... a gente não gosta de... assistir reunião... que nem já tentaram fazer isso com a gente lá com a reunião deles... de terça-feira, por causa disso. (...) Lá no posto menor, já tentaram botar a gente pra assistir... falam que a gente tem que falar... (...) Mas a gente, oh, ficava de bico fechado. Quietinho! A gente... tem coisa que a gente... quer falar... tem vontade de falar mas não fala, sabe porque? Porque se a gente abrir o bico pra falar, tá arriscado eles puxar o nosso tapete. Que nosso tapete não é muita coisa não! Não é muita coisa além... além do que eles ganham, né? Mas de repente tá arriscado a puxar. Que a gente tem exemplo disso, certo? A gente tem exemplo disso então a gente... é mais é de não participar da reunião e também é mais de ficar de bico fechado! Que boca fechada, como eu já disse, não entra mosca. (Alberto – Funcionário)

É importante ter claro aqui que as compreensões do CAPS e das assembléias relatadas pelos funcionários eram semelhantes em vários pontos àquelas relatadas por uma grande parte dos familiares, parecendo estarem intrinsecamente ligadas ao lugar e à autoridade dos “doutores”. A isto se soma o fato de que as organizações de grupos de debate temático, de assembléias ou de atividades institucionais de discussão coletiva (com as quais nos tornamos bem familiarizados no mundo acadêmico) não são eventos freqüentes na vida social da grande maioria destes participantes.

Vários funcionários relatavam exemplos onde colegas que “disseram o que não deviam” foram por isso repreendidos pelos profissionais de saúde. É preciso considerar aqui, dentre outras coisas, que, geralmente, as representações dos funcionários sobre o que vem a ser a função dos “doutores” na instituição eram justamente aquilo a que os profissionais de saúde procuravam se opor e desconstruir. Exclusões e desqualificações de ambos os lados

(21)

acerca dos discursos e práticas do outro eram relatados com freqüência. Entre boa parte dos profissionais de saúde, a visão dos funcionários aparecia como resultante e reprodutora dos vícios e preconceitos sociais e manicomiais herdados pelos jogos sócio-históricos de construção da loucura. Entre os funcionários, por outro lado, a não utilização e/ou demarcação clara do lugar de poder dos doutores era definida freqüentemente como sinônimo do não cumprimento dos papéis a eles atribuídos, o que colocava em dúvida a competência dos mesmos.

Não se trata aqui, porém, de um embate rígido, com fronteiras nítidas. Pelo contrário, na maior parte dos encontros cotidianos, os profissionais de saúde e os funcionários pareciam compor mais alianças do que conflitos explícitos. É preciso ter claro também que o fato dos funcionários não participarem da assembléia não quer dizer que eles estivessem desinteressados pelas questões mais diversas relativas às atividades e acontecimentos cotidianos, às histórias de vida dos usuários e ao serviço como um todo. Ao contrário do que pensavam alguns profissionais de saúde, os funcionários procuravam estar atentos aos acontecimentos cotidianos do CAPS; circulavam continuamente as informações entre si; conheciam os casos e histórias de vida de vários usuários e familiares (seja por meio de conversas com os mesmos, seja por escutarem as conversas dos profissionais de saúde); e consolidavam entre si interpretações mais ou menos comuns para estes casos, avaliando as intervenções dos profissionais de saúde e mesmo intervindo em algumas situações.

Neste sentido, alguns espaços do estabelecimento  os “fundos”, onde fica a cozinha, o refeitório e a sala em que os funcionários deixam seus pertences  eram privilegiados na circulação de informações e na coletivização de avaliações, sendo estas constituídas não em termos de uma “discussão” ou uma “reflexão coletiva”, tal como nos moldes formais de uma assembléia, mas sim em termos da construção de alianças e cumplicidades consensuais.

No confronto direto com os profissionais de saúde, os funcionários geralmente recuavam em suas posições, evitando as discordâncias e conflitos. Ao longo de minha pesquisa, entretanto, os mesmos funcionários faziam constantes reclamações a respeito tanto do modo como os profissionais de saúde dirigiam o serviço, quando das intervenções destes junto aos usuários e familiares. Ocorreram cotidianamente no CAPS inúmeros conflitos na relação dos usuários entre si e destes com os funcionários, frente aos quais os profissionais de

(22)

saúde procuravam resolver considerando ora as questões “clínicas” dos usuários envolvidos, ora as diretrizes da cidadania ou da democratização do serviço. Assim, por exemplo, nas freqüentes situações onde um usuário impõe sua vontade a outros, os profissionais de saúde intervém no sentido de garantir “o respeito à igual liberdade de expressão do outro”, buscando promover o diálogo entre as diferenças. Era justamente esta postura interventiva que os funcionários criticavam. Para estes, as intervenções deveriam “ensinar” e “corrigir” os usuários, mostrando-lhes com clareza o certo e o errado. Tratava-se antes de demarcar com clareza as normas e os limites e de usar a autoridade para tanto. As reclamações freqüentes dos funcionários, portanto, dirigiam-se ao fato de que os profissionais de saúde não eram claros quanto às regras de convívio e que não usavam a autoridade quando era necessário.

A mesma argumentação dos funcionários em suas reclamações foi também relatada a mim por um grande número de familiares  principalmente os que acompanhavam mais de perto o tratamento  para os quais a terapia do CAPS era ainda “muito fraca” e poderia melhorar muito mais. Para todos estes a compreensão de que se tratava de um “problema de nervos” associava-se intimamente às reclamações. Sendo ao mesmo tempo um problema físico e moral11, os nervos fracos deviam ser tratados com remédios fortes e também com intervenções igualmente fortes no sentido de “corrigir” e “ensinar”, mostrando claramente o certo e o errado e, para tanto, usando a autoridade que lhes cabe como “doutores” que são. Ocupando o lugar central de suas lógicas argumentativas, a dimensão moral do indivíduo difere nitidamente do indivíduo-cidadão proposto pelos profissionais de saúde. Neste sentido, a idéia mesma de “cidadão” veiculada pelos familiares e funcionários remete muito mais ao cumprimento das obrigações morais do lar e do trabalho do que aos princípios abstratos de liberdade, igualdade e responsabilidade.

Um cidadão é uma pessoa que, por exemplo, trabalha, corre atrás, quer ganhar o seu dinheiro, entendeu? Quer construir uma família, quer casar, ser pai, no caso... ou a menina que tem um problema mental quer ser mãe, certo? Então um cidadão é isso! Um cidadão tem que correr atrás. Fazer curso disso, fazer curso daquilo... ser uma pessoa respeitada. (Alberto – Funcionário)

(23)

Frente aos profissionais de saúde, entretanto, vale dizer que raramente pude presenciar qualquer reclamação dos familiares. Pelo contrário, os familiares pareciam buscar uma relação de proximidade com aqueles, dos quais recebem, eles também, alguns benefícios. Assim, os profissionais de saúde freqüentemente davam assistências aos familiares e também a alguns funcionários como medir a pressão, opinar sobre sintomas, ler e esclarecer receitas médicas, encaminhar a postos de saúde e outros serviços assistenciais, etc. Para muitos a proximidade com os “doutores”, por si só, era tida como um benefício.

Ao abordar as relações sociais presentes que compõem as principais atividades do CAPS (a medicalização, o atendimento individual, assembléias, as oficinas e demais atividades coletivas) foi possível perceber o quanto estas relações são acompanhadas por critérios díspares e mesmo divergentes do que vem a ser tais atividades. Inúmeros conflitos parecem surgir daí, mas também inúmeras combinações e alianças.

Assim, por exemplo, o fato de que boa parte dos profissionais de saúde procuravam manter (até certo ponto) uma relação de proximidade com os funcionários e com os familiares é freqüentemente visto por estes últimos como um fator positivo na avaliação do serviço e na avaliação da própria competência daqueles.

Há aqui um entrelaçamento interessante: enquanto, por um lado, os profissionais de saúde justificavam tal investimento a partir de propostas de desconstrução do pedestal dos especialistas e de “dar voz e vez” aos demais participantes do serviço, por outro lado, este investimento era percebido e valorizado pelos funcionários e familiares justamente como um vínculo privilegiado com os “doutores”. A instituição era definida pelos familiares e funcionários não em termos deste ou daquele “projeto de saúde mental”, mas sim em termos da autoridade e competência dos “doutores” e esta, por sua vez, era avaliada em grande parte pela “atenção” ou o tempo de que dispõem para ouvir as partes envolvidas. Ocorre que era este mesmo investimento dos profissionais de saúde em “desconstruir os lugares de poder” e “democratizar o serviço” que, nas situações de intervenção junto aos usuários, acabava por ser avaliado de forma negativa entre os funcionários e familiares, justamente por não definir o lugar de “autoridade” compreendido como imprescindível ao processo terapêutico.

Nos embates cotidianos os conflitos e alianças pareciam ser constituídos diferentemente entre usuários, familiares e funcionários na relação com os profissionais de saúde. Para os usuários que, por exemplo, já haviam consolidado um vínculo com a

(24)

instituição, a relação privilegiada com este ou aquele “doutor” era bastante ressaltada e lhes permitiam freqüentemente ocupar um lugar menos inferior ou desprivilegiado na relação com os familiares e funcionários, assim como com os demais usuários. Este movimento era certamente reforçado pelos profissionais de saúde, que em sua maioria entendiam que o serviço devia ser organizado em função dos usuários.

Entre os familiares que já convivem há um longo tempo com a perturbação, as crises e os processos terapêuticos, não só havia uma maior valorização das alianças, mas também parecia haver uma maior habilidade de compô-las junto ao serviço e fora dele. Já entre os casos mais recentes, os conflitos no convívio intra-familiar e local pareciam mais explícitos e intensos, assim como os conflitos, desencontros e até a não participação na terapêutica oferecida no CAPS. Geralmente, o acontecimento-crise parecia compor um momento intenso e confuso para os que estavam próximos e acabava constituindo uma maior aproximação (mesmo que momentânea) entre os familiares e o CAPS.

Entre os funcionários, a maior ou menor proximidade com este ou aquele profissional de saúde permitia compor jogos pessoais de alianças e conflitos de tal forma a privilegiar sempre que possível este ou aquele profissional de saúde, mas também boicotar, opor-se e insubordinar-se a outros. As tensões relacionais nestes casos geravam discursos e ações de oposição que se mostravam mais claros nos espaços intersticiais do CAPS, sendo o confronto direto quase sempre evitado.

Durante a pesquisa de campo, os conflitos entre funcionários e profissionais de saúde pareceram mais explícitos  mas raramente assumindo a forma de um confronto direto  nos momentos de “crise” de algum usuário, principalmente os que são caracterizados pela agressividade verbal ou física. A busca pela resolução urgente de problemas  em meio aos diversos problemas enfrentados cotidianamente  trazia à tona estratégias que ora reforçavam os lugares instituídos de poder dos “doutores”, ora explicitavam a insubordinação dos funcionários. Em muitos casos, o profissional de saúde acabava por ressaltar seu lugar de poder justamente para “impor” os critérios que julgava corretos na construção do serviço  a cidadania e/ou o respeito ao usuário, à sua autonomia, seus direitos e sua diferença , visando evitar ou repreender as estratégias disciplinadoras dos funcionários.

(25)

Neste sentido, retornamos aqui ao lugar ocupado por Marlene, que com suas intervenções taxativas e suas demonstrações claras de autoridade, repreendendo atitudes e demarcando claramente as normas de conduta, ocupava um lugar de destaque em várias situações de tensão. Usando de seu lugar de prestígio junto aos profissionais de saúde, Marlene estabelecia com estes um confronto mais ou menos explícito, negociando as demandas em jogo. Para muitos funcionários e familiares, ela era definida como um “general”, isto é, alguém que colocava “ordem na casa”.

Os profissionais de saúde, na busca por uma impessoalidade (termo bastante usado por eles) na organização do serviço, tinham em relação a Marlene posturas simultâneas de aliança e oposição, uma ou outra mais enfatizada conforme se considerava seu papel primordial nas relações interinstitucionais ou seu estilo de intervenção e resolução dos problemas cotidianos do CAPS. Marlene, por sua vez, procurava amenizar as tensões conseguindo benefícios ligados à distribuição da carga horária dos profissionais, abonando suas eventuais faltas e financiando com dinheiro próprio pequenas reformas e eventos.

Ao longo de minha pesquisa de campo, os profissionais de saúde pareceram dividir-se de forma cada vez mais nítida entre os que mantinham alianças com Marlene e os que se opunham ao seu estilo de trabalho. Este processo gerou relações cada vez mais hostis que culminaram numa intervenção institucional  promovida pela Coordenação Municipal de Saúde Mental  e no afastamento de Marlene, juntamente com o coordenador e o supervisor da instituição.

O momento específico da intervenção, em seus primeiros dias, mobilizou os funcionários em uma campanha “não-dita” contra as novas regras. No primeiro dia de intervenção houve uma reunião com os funcionários do CAPS onde a interventora informou, dentre outras coisas, que a partir daquele dia nenhum espaço do CAPS deveria ser fechado aos usuários e que é em função destes que o serviço deve funcionar. Espaços como a cozinha e a administração, antes fechados aos usuários, passaram a ficar abertos. No cotidiano do CAPS, os espaços da cozinha, do refeitório, da saleta dos fundos e da área externa próxima a estes foram compondo uma região mais ou menos instituída “dos” funcionários. A postura da interventora foi clara neste sentido: não havia mais espaço “de ninguém”, todos os espaços deveriam estar abertos aos usuários e existir em função do tratamento.

(26)

A notícia foi recebida com grande apreensão entre os funcionários que  pautados numa lógica onde a disciplina, a autoridade, a demonstração clara de limites são imprescindíveis não apenas para o funcionamento da instituição, mas também do próprio tratamento desejável aos usuários  mostraram-se nos dias seguintes completamente desacreditados no serviço. Para a maior parte dos funcionários, os profissionais de saúde já “passavam a mão na cabeça dos usuários” por demais e, nas discordâncias cotidianas, sempre davam razão aos usuários. Nesta lógica, o que já estava errado iria piorar e o que estava certo iria desaparecer. Alguns chegavam a mim repetidas vezes para dizer que aquele lugar “não tinha mais jeito”. Outros falavam em pedir transferência o mais rápido possível.

Com o passar dos dias, entretanto, os funcionários perceberam que as mudanças não seriam tão drásticas quanto anunciadas de início e o clima de tensão foi se dissipando aos poucos. De fato, levando-se em conta que as estratégias de ação por eles utilizadas são direcionadas aos espaços intersticiais da instituição, longe da presença dos profissionais de saúde, e que a intervenção não atingiu, na prática, estes espaços, pouca coisa mudou em relação ao que já vinha sendo feito  pelo menos durante os cinco meses seguintes de minha pesquisa de campo.

Uma análise mais detida do processo de intervenção é por si só um empreendimento complexo demais para ser incluído no presente trabalho. Gostaria apenas de demarcar que o afastamento de Marlene trouxe várias conseqüências para o funcionamento da instituição, dentre elas uma dificuldade ainda maior de compor relações entre funcionários e profissionais de saúde, ou entre o CAPS e as demais instituições públicas da região. Vale dizer que as relações interinstitucionais foram drasticamente reduzidas (incluindo aí o corte no fornecimento de comida e a dificuldade no uso de ambulâncias para emergências). Após a saída de Marlene, tornou-se freqüente o recurso à Coordenação Municipal de Saúde Mental para mediar a relação do CAPS com os demais serviços da região e viabilizar o funcionamento do serviço.

(27)

Certamente as estratégias apontadas aqui não resumem as possibilidades de construção da questão do poder e do valor no CAPS de Santa Cruz. Mas elas parecem compor um conjunto bastante considerável de estratégias cotidianas e precisam ser também analisadas em seus traços mais amplos. Na tentativa de fazer valer a organização do CAPS a partir dos princípios da cidadania e da democracia, as tensões geradas resultam justamente do fato de que tais princípios, se não são completamente estranhos aos usuários, familiares e funcionários, tampouco constituem formas centrais de compreensão e organização de suas vidas.

Em outras palavras, o CAPS de Santa Cruz é constituído como um projeto que vem “de fora”, com atividades terapêuticas pouco conhecidas, com valores e formas de organização social que não ocupam um lugar central nas construções sociais da grande maioria dos usuários, familiares e funcionários com quem tive contato. Enquanto, por um lado, um conjunto considerável de estratégias dos profissionais de saúde visa cidadanizar os espaços, seus participantes e amenizar as “faltas” características de suas vidas sociais, por outro lado, os usuários, familiares e funcionários lançam mão continuamente de seus recursos analíticos para englobar as novas práticas e discursos, explorando com habilidade os espaços intersticiais da instituição para fazer valer suas visões de mundo e suas expectativas em relação à perturbação e a um tratamento mais apropriado.

É certo que o CAPS de Santa Cruz tem suas especificidades constitutivas e que outros CAPS veiculem práticas e histórias diferentes em suas atividades terapêuticas e na organização do serviço. Entretanto, acredito que, longe de se restringirem ao CAPS de Santa Cruz, as questões aqui apontadas remetem à própria consolidação da reforma psiquiátrica, inserida que está numa realidade social que a supera em amplitude e a envolve em meio aos processos históricos de consolidação dos valores modernos na sociedade brasileira. A consideração da realidade deficitária das classes populares, por exemplo, mesmo que por formas bastante diferenciadas, não é um movimento novo nos discursos históricos sobre a sociedade brasileira. Como mostraram SADER e PAOLI (1986), este movimento persiste em meio a diversas situações históricas de modernização do país.

Definindo as classes populares a partir de critérios que lhes são externos, os discursos vigentes ao longo da história acabam por justificar e corroborar os processos de extratificação

Referências

Documentos relacionados

Neste estudo sobre a história do ensino do Cálculo Diferencial e Integral, que tomou como recorte o Departamento de Matemática da Universidade Federal de Juiz de Fora

Considerando esses pressupostos, este artigo intenta analisar o modo de circulação e apropriação do Movimento da Matemática Moderna (MMM) no âmbito do ensino

submetidos a procedimentos obstétricos na clínica cirúrgica de cães e gatos do Hospital Veterinário da Universidade Federal de Viçosa, no período de 11 de maio a 11 de novembro de

Por outro lado, os dados também apontaram relação entre o fato das professoras A e B acreditarem que seus respectivos alunos não vão terminar bem em produção de textos,

Costa (2001) aduz que o Balanced Scorecard pode ser sumariado como um relatório único, contendo medidas de desempenho financeiro e não- financeiro nas quatro perspectivas de

Conclusão: a mor- dida aberta anterior (MAA) foi a alteração oclusal mais prevalente nas crianças, havendo associação estatisticamente signifi cante entre hábitos orais

nesta nossa modesta obra O sonho e os sonhos analisa- mos o sono e sua importância para o corpo e sobretudo para a alma que, nas horas de repouso da matéria, liberta-se parcialmente

2.1. Disposições em matéria de acompanhamento e prestação de informações Especificar a periodicidade e as condições. A presente decisão será aplicada pela Comissão e