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Rafael da Cunha Scheffer Doutorando em História na UNICAMP, bolsista FAPESP

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Escravos do Sul vendidos em Campinas: cativos, negociantes e o comércio interno de escravos entre as províncias do Sul do Brasil e um município

paulista (década de 1870)

Rafael da Cunha Scheffer Doutorando em História na UNICAMP, bolsista FAPESP

Após a abolição do tráfico atlântico de escravos no inicio da década de 1850, um crescente movimento de transferência de escravos entre as regiões brasileiras ganhou espaço. Concentrando cativos nas regiões com economias mais dinâmicas, que podiam pagar mais por essa mão de obra escravizada, o impacto dessas transferências foi sentido em todo o país. Nesse artigo, procuro identificar os envolvidos por essas transações saídos das províncias do Sul do Brasil para o município de Campinas na década de 1870, período apontado como o ápice dessas transferências.

A importância de Campinas no comércio interno de cativos pode ser verificada pela forte presença de escravos de outras regiões nesta região, sendo que cerca de 75% dos cativos negociados na região na década de 1870 eram provenientes de outras províncias brasileiras. Dessa forma, busco esboçar o impacto do mercado interprovincial de escravos na região Sul através da análise das compras de cativos oriundos dessas províncias na região de Campinas, levantando informações para entender quem eram os trabalhadores importados para a região e como essas transações se realizavam. Assim, procuramos identificar neste artigo o peso dessas transferências e o perfil dos escravos negociados, através dos registros do imposto de meia siza pagos nesta cidade do interior paulista, e parcialmente também nos livros de notas de compra e venda de cativos de um cartório de Campinas.

Através do registro de meia siza, podemos identificar locais de origem (sendo geralmente apontadas apenas as províncias de origem), o sexo e idade dos cativos negociados. Além disso, esse registro também nos permite identificar os negociantes que intermediavam a venda desses escravos do Sul em Campinas, e perceber assim quem eram e como desenvolviam seus negócios. Através das datas e grupos negociados, podemos perceber a existência ou não de épocas privilegiadas para este negócio, os grupos geralmente negociados em cada venda e sua origem (percebendo se os cativos negociados vinham ou não da mesma região). Podemos ainda verificar o uso das

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procurações para a realização deste negócio. E com a leitura ainda parcial das notas de compra e venda nos livros de um cartório local, podemos analisar com maior precisão os locais de saída, ter uma noção do tamanho do grupo do qual o cativo se originava, através do número de matrícula na relação indicado para cada escravo na propriedade de um senhor, e a própria rede de negociantes que pode ser vista através das procurações.

Dessa forma, podemos esboçar a presença de escravos nascidos ou oriundos do Sul do Brasil em um importante mercado de cativo do Sudeste, procurando identificar seu perfil e também a rede de negociantes responsável por essas transferências e sua operação.

Para a década de 1870, foram localizados seis livros de registros de impostos da coletoria de Campinas. Os anos fiscais iam de julho a junho, assim, meu foco foram os livros iniciados no ano de 1869-1870 e finalizando com 1879-1880. Entretanto, nesse período foram encontrados apenas 6 livros: Livro 49 (1872-73), Livro 51 (1873-74), Livro 52 (1874-75), Livro 53 (1875-76), Livro 54 (1877-78) e Livro 57 (1878-79)1. Dos 5678 escravos negociados pelos senhores residentes na região de Campinas, 848 apresentavam como naturalidade as três províncias do Sul do Brasil, representando 15% dos cativos negociados. Descontados aqueles nascidos na própria província paulista, a representatividade dos escravos sulistas negociados em Campinas sobe para 20% dos cativos comercializados. Cabe ressaltar, no entanto, que esses dados de origem apresentados por esta fonte tem alguns problemas. Até onde conseguimos entender, a referência a origem dos escravos negociados geralmente estava relacionada à naturalidade dos mesmos. Isso pôde ser observado na negociação do escravo Rodolpho, ocorrida no ano de 1878. No registro de meia siza observamos a transferência de um escravo nascido no Rio Grande do Sul. Segundo o livro de notas de compra e venda de escravos, no dia 23 de janeiro Carlos Rodrigues de Oliveira vendeu a Francisco Fernandes de Abreu, ambos residentes no termo de Campinas, o pardo Rodolpho, de 9 anos, natural do Rio Grande do Sul e com aptidão para o trabalho campeiro. Ao contrário do que poderíamos pensar em um primeiro momento, com essa informação da residência dos senhores presente nos livros de notas podemos perceber que essa venda do escravo gaúcho não se deu através do tráfico interprovincial, pelo menos não nesse

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momento.2 Enganos como esse poderiam estar sendo repetidos em cada transação local em que esses escravos de outras províncias estão envolvidos, o que poderia mascarar o comércio local como interprovincial, especialmente com a venda repetida de um mesmo indivíduo. Contudo, esses dados serão filtrados posteriormente com a utilização das notas de compra e venda de cativos, onde poderemos observar a residência de compradores e vendedores de escravos, e assim contornar essas dificuldades. De qualquer forma, esses dados apontam uma presença representativa de escravos do Sul na região de Campinas durante diversos anos da década de 1870, que em algum momento foram vendidos para esta região.

Através dos dados da meia siza observamos que entre os escravos vindos do Sul, a maioria era natural do Rio Grande do Sul (560 ou 66%), seguidos por Santa Catarina (217 ou 26%) e Paraná (67 ou 8%). De certa forma, isso reflete a maior presença escrava na província gaúcha. Os números dos censos de 1872 talvez possam nos ajudar a entender melhor o peso dessa presença em cada uma dessas províncias em um momento específico. Segundo esta fonte, em 1872 os escravos somavam 19560 indivíduos (ou 14%) da população paranaense, 14984 (ou 9% da população total) em Santa Catarina e 67791 no Rio Grande do Sul (representando 16% de todos os habitantes).

Partindo dessa identificação das transações com escravos naturais do Sul do Brasil, poderemos analisar as características desse negócio, o perfil da população escrava negociada, e a participação dos negociantes nessas transações.

Entre os escravos negociados 658 eram homens e 190 mulheres, uma proporção de 78% de cativos do sexo masculino que aponta claramente a preferência por este trabalhador. E essa opção torna-se ainda mais declarada quando levamos em conta a distribuição entre os sexos nas províncias de origem. Também segundo o censo de 1872, os homens representavam entre 52% e 54% dos escravos de cada uma dessas províncias neste ano. Mesmo observando que nessas províncias havia um certo equilíbrio entre homens e mulheres escravizados, a opção pela compra de trabalhadores masculinos se mostrou bastante clara, pelo menos no que tange ao mercado de Campinas.

2 Escritura de compra e venda de escravo, 23 de janeiro de 1878. Livro de notas n. 17, p. 16. 2º Cartório

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Outra questão importante na seleção operada pelo comércio de cativos é a opção por escravos de determinadas faixas etárias. Entre os escravos com origem no Sul do Brasil negociados em Campinas, a grande maioria deles eram jovens ou adultos em idade plenamente produtiva. A maior parte dos cativos comprados (34%) tinha idade entre 16 e 20 anos. Em seguida, chama a atenção que o segundo maior grupo etário estava concentrado entre 11 e 15 anos de idade, representando 24% dos escravos sulistas vendidos naquele município paulista. Por fim, outros grupos com grande representação era aqueles entre 21 a 25 anos, contabilizando 21% dos cativos, e de 26 a 30 anos, somando 9%. Temos assim um quadro de transferência de escravos jovens, nascidos nas províncias do Sul e separados de suas famílias através dessas vendas. Essa preferência por trabalhadores jovens também se insere no que tradicionalmente a historiografia aponta como a principal concentração do mercado de escravos.

A questão da seleção por determinados escravos, que é demonstrada na análise do comércio interno de cativos, pode obedecer também a outros critérios além da simples demanda dos senhores do Sudeste. Como Jonathan B. Prichett e Herman Freudenberguer apontam em um artigo sobre o comércio de escravos em Nova Orleans, o próprio negócio de transportar cativos de regiões distantes, mesmo por mar, acabava por provocar uma seleção que visava escravos mais caros3. Analisando as descrições dos escravos transportados, eles apontam uma presença desproporcional de escravos masculinos jovens em portos mais distantes, presença que diminuiria nos envios de regiões mais próximas ao destino. Segundo eles, a explicação para esse acontecimento seria que a preferência por cativos mais valiosos se daria como uma forma de compensar o custo de seu envio pelo maior preço cobrado, permitindo assim aos comerciantes ampliarem suas margens de lucro.

A transferência de escravos do Sul para a região de Campinas parece ter se expandido ao longo da década de 1870. Apesar de nossa informação derivada da meia siza de escravos ser muito fragmentada, podemos observar nessa uma maior comercialização de escravos do Sul nos últimos anos dessa década, especialmente em relação aos cativos naturais do Rio Grande do Sul, que representam a maioria dos trabalhadores negociados no fim da década.. O gráfico abaixo mostra essa expansão.

3 PRICHETT, Jonathan B.; FREUDENBERGUER, Herman. “A peculiar Sample: the selection of slaves

for the New Orleans market.” The Journal of Economic History, Vol. 52, No. 1, (Mar., 1992), pg. 109-127).

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Escravos negociados por ano 0 50 100 150 200 250 1872 1873 1874 1875 1876 1877 1878 1879 (vazio) Total

Fonte: Livros de registros de impostos, números 49, 51, 52, 53, 54 e 57. Fundo: Coletoria de Rendas de Campinas. Centro de Memória da Unicamp (CMU).

As razões que levam a esse incremento no envio de escravos gaúchos no fim da década de 1870 ainda permanecem nebulosas. Uma hipótese seria a decadência do emprego de escravos nas charqueadas, ou uma queda na compra de cativos pelas charqueadas. Com isso, os escravos locais que seriam absorvidos ou transferidos para a região das charqueadas acabaram sendo disponibilizados para o comércio com o Sudeste. Os pequenos proprietários locais ou de outras regiões da província, não tendo mais a opção de venderem seus trabalhadores para aquela atividade, poderiam ter sido atraídos pelos melhores preços e pela procura do mercado interprovincial. De certa forma, nesse contexto também podemos incluir um aumento de pressões contrárias à escravidão e a possibilidade de substituição e emprego de trabalhadores livres.

Quanto à periodicidade do comércio interprovincial de escravos, cabe a investigação sobre os períodos em que as vendas de escravos do Sul eram realizadas. Agrupando as vendas realizadas em cada mês durante os anos analisados, conseguimos observar através dos livros de registro de imposto dois períodos em que ocorreu o maior número de transferências.

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Escravos Negociados em cada Mês 0 20 40 60 80 100 120 140 Jan Fe v Ma r Ab r Ma i Ju n Jul Ago Set Out Nov Dez (v a zi o ) Total

Fonte: Livros de registros de impostos, números 49, 51, 52, 53, 54 e 57. Fundo: Coletoria de Rendas de Campinas. Centro de Memória da Unicamp (CMU).

Vemos no gráfico acima a configuração de pico de vendas de escravos do Sul no mês de março, seguido de um outro aumento de vendas em setembro e outro em dezembro. Antes de procurarmos o significado desses picos, tanto em sua procedência como no destino, cabe a pesquisa de sua precisa origem, para corrigir ocorrências como a do caso apontado, em que cativos sulistas eram negociados entre senhores de Campinas ou da província de São Paulo. Somente assim conseguiremos entender se o comércio interprovincial estava ligado a alguma dinâmica produtiva ou temporada específica.

Dos 848 cativos negociados, cerca de 53% deles tiveram suas vendas intermediadas por procuradores de seus senhores. Isso reforça a idéia levantada por Robert Slenes e defendida também por Sidney Chalhoub, de que o uso dessas procurações era bastante comum, geralmente aparecendo como uma forma de impedir a

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cobrança do imposto de transferências de escravos a cada mudança entre os intermediários do vendedor para o comprador final.4

Buscando identificar comerciantes ligados a essas transações, selecionei entre os vendedores pessoas que negociaram mais de quatro escravos através de procurações. Assim, dezessete nomes foram levantados entre os vendedores de escravos em Campinas. A maior parte deles aparece em levantamento semelhante, já realizado sobre o comércio total de escravos nessa cidade paulista.5 Abaixo vemos uma listagem dos vendedores e o número de cativos negociados através de procurações por cada um deles.

Vendedores de escravos do Sul através de procurações em Campinas, 1871-1880.

Vendedores Escravos

Angelino Soveral 18

Antonio de Araujo Almeida 8

Antonio Furtado de Mendonca 6

Antonio Jose de Mello 12

Aureliano de Souza Monteiro 4

Bento Jose Teixeira 9

Domingos Luiz Netto 7

João Carlos Hungria 56

João Egydio de Souza Aranha 4

João Manoel [ ] Rodrigues 7

João Mourthe 51

Jose Delfino Mendes 4

Manoel Antonio Victorino de Menezes 76

Manoel Ferras de Campos Salles 8

Manoel Jorge Graça 36

Manoel Thomaz Fragoso 25

Rodolpho Jose de Freitas Guimarães 18

Thomaz Gonçalves Gomide Sobrinho 16

Total 365

Fonte: Livros de registros de impostos, números 49, 51, 52, 53, 54 e 57. Fundo: Coletoria de Rendas de Campinas. Centro de Memória da Unicamp (CMU).

A participação desse grupo nas vendas totais dos escravos vindos do Sul é claramente visível, concentrando 40% de todas as vendas. Como apontado anteriormente, geralmente não conseguimos concluir que um grupo vendido veio diretamente do Sul ou se estes já eram mantidos em cativeiro no Sudeste. Contudo,

4 SLENES, Robert W. “The demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888”. Tese de

doutorado em História, Stanford, Sanford University, 1976., p. 150-158; e CHALHOUB, Sidney. Visões

da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990, p

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algumas pistas já levantadas sobre estes negociantes nos ajudam a compreender mais diretamente a participação de alguns deles no mercado interprovincial de escravos.

O caso mais claro de comerciante envolvido no comércio interprovincial, em minha perspectiva marcada por uma pesquisa anterior em Desterro, é o de Manoel Antonio Victorino de Menezes. E o caso dele nos ajuda a experimentar algumas idéias para a identificação de negociantes, do volume e modo de operação de suas atividades.

A identificação de Victorino de Menezes como negociante de escravos se deu primeiramente através da historiografia, de obras que citavam este negociante como o maior comerciante de escravos da região de Desterro6. Uma busca pelos jornais locais nos permite chegar a uma conclusão semelhante ao desses historiadores. Nestes, Victorino anunciou seus negócios durante vários anos, em trechos semelhantes ao colocado abaixo:

ESCRAVOS

O abaixo assignado compra escravos de ambos os sexos de 12 a 30 annos de idade, e está pagando preços mais altos do que qualquer outro.

LARGO DO PALACIO N. 16

Victorino de Menezes.7

Esses e outros anúncios, em que apontava mais diretamente sua intenção de revender esses escravos no Sudeste brasileiro, indicaram por muitos anos a pretensão deste negociante de agir como intermediário entre senhores de Desterro e os compradores de escravos do Sudeste.

Partindo dessas indicações do envolvimento de Victorino, procurei outras referências a suas atividades. Através disso, encontramos seu nome em registros de movimento do porto de Desterro, embarcando ou retornando do Sudeste e também em procurações e registros de compra e venda no cartório local. Nestes, verificamos mais uma vez sua participação como comprador, ou mais frequentemente como procurador de escravos que seriam negociados no Rio de Janeiro ou São Paulo. E seguidas vezes, nos registros do movimento do porto, observamos Victorino partir para o Sudeste acompanhado de escravos e retornar sozinho semanas depois. Configurava-se, dessa

6 CABRAL Oswaldo R. Nossa Senhora do Desterro. V 2 – Memória.Florianópolis: UFSC, 1972, p. 393;

e PIAZZA, Walter F. O escravo numa economia minifundiária. São Paulo: Resenha Universitária, 1975, p. 39.

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forma, um padrão de viagens de venda de escravos, com aquisição em Desterro e região, viagem com um grupo de 4 a 7 escravos geralmente, seguida da negociação no Sudeste.

Pesquisando fontes em Campinas, pude verificar a atuação de Victorino neste mercado ao procurar referências de sua atuação na cidade. Nos registros de meia siza, encontrei o que acredito ser um padrão de suas atividades. As vendas que Menezes realiza como procurador dos vendedores são realizadas sempre em poucos dias, com várias negociações de escravos sendo realizadas, seguidas por longos períodos sem atividades. Assim, parece ficar claro esse padrão de viagens de negócio, ainda mais quando observamos que a totalidade dos escravos negociados por ele tinha como origem as províncias do Sul, sendo a quase totalidade deles naturais de Santa Catarina e apenas três de outra província, o Rio Grande do Sul.

Dessa forma, observar o padrão de atividades de Victorino e seu registro nas fontes em diversas localidades nos ajuda a identificar outros negociantes. Seguindo um padrão de viagens e de grupos negociados semelhante ao de Victorino, encontramos Manoel Thomaz Fragoso, responsável como procurador por 25 transferências de cativos entre 1877 e 1879. Expandindo a observação sobre esse negociante para todas as negociações com escravos, vemos o nome dele ligado a 47 transações, quase todas seguindo um padrão semelhante ao de Victorino de Menezes. Seu nome aparece geralmente ligado a uma seqüência de vendas em dois ou três dias seguida de semanas de ausência, quebrada por nova seqüência de vendas quase diárias. Negociava geralmente de um a sete escravos, somente em um momento organizado uma transação maior. Somado a esse padrão de vendas, o desenvolvimento dos negócios com escravos vindos do Rio Grande do Sul nos anos do fim da década de 1870 reforça a idéia de viagens para a comercialização de cativos.

Uma mudança interessante ocorre com um comerciante já visto, João Carlos Hungria. Em meados da década de 1870, vemos em algumas escrituras de compra de escravos seu nome sendo apontado como o do procurador responsável pela venda, sendo residente em Sorocaba e negociando cativos daquela região. Entretanto, na segunda metade da década, a maior parte dos escravos negociados por ele tinha como origem a província do Rio Grande do Sul. Negociou sempre grupos de 1 a 7 cativos, sendo de três escravos o grupo predominantemente negociado por ele.

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Contudo um outro padrão de atividades também pode ser observado. Enquanto os três comerciantes acima estavam ligados a transferência de escravos de uma determinada área, outros indivíduos realizavam negócios envolvendo cativos de diversas regiões do país. Esse foi o caso de João Mourthé, residente em Campinas que esteve envolvido em transações com escravos durante todos os anos em que tivemos registro, chegando a negociar mais de cem escravos anualmente. Além dos 51 cativos com origem no Sul do Brasil, Mourthé negociou com escravos oriundos de diversas províncias brasileiras. Entre elas destacou-se a província do Maranhão, sendo a origem de 303 cativos negociados por ele, seguido da Bahia com 97, e Pernambuco, Piauí e Rio de Janeiro com aproximadamente 55 cada um. Dos escravos naturais da região sul, novamente o Rio Grande do Sul se destacou no final da década, sendo esse o período em que se acentuou a vinda dos 36 escravos dessa região registrados por esse negociante.

Essa fonte variada de escravos pode ser explicada pelo fato de Mourthé ser residente em Campinas e comprar escravos no próprio Sudeste para revede-los na região de Campinas. Em um libelo cível de devolução de escravo de 1877, o modo de operação deste negociante parece ficar claro. Nessa ação, João Mourthé foi acusado de vender um escravo doente em Rio Claro para o lavrador Francisco Aguiar de Barros, residente em São Paulo. Tendo percebido que o escravo sofria de reumatismo o comprador entrou na justiça procurando reaver o dinheiro da compra e da siza paga. No decorrer da disputa (que tem seu inicio atrasado pela dificuldade de citar Mourthé devido ao fato dele estar em viagem em cidades próximas a Campinas, o comerciante informa que comprou o escravo, que era sergipano, na cidade do Rio de Janeiro.8 A diversidade de origem dos cativos negociados por Mourthé parece reforçar essa idéia de compra no Sudeste e revenda na região de Campinas. Além disso, seu nome aparece ao longo de todo o ano, não sendo possível observar períodos significativos de maior ou menor atividade.

O mesmo padrão de residência em Campinas, com vendas distribuídas ao longo do ano e negociação de escravos com variadas origens, provavelmente no próprio Sudeste, pode ser observado em outros dois comerciantes listados. Thomaz Gonçalves Gomide Sobrinho negociou como procurador 16 cativos sulistas, sendo esses apenas um pequeno grupo dentro do conjunto comercializado por ele, que chegou a anunciar no

8 Libelo cível – 1877 – 2 oficio, caixa 352, processo 6752. Fundo: Tribunal de Justiça de Campinas

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inicio de 1876 a venda de excelentes escravos, entre eles carpinteiros, alfaiates e roceiros.9 O outro comerciante era Manoel Jorge Graça, responsável por 36 transferências de escravos vindos do Sul. Da mesma forma que Mourthé e Gomide, Graça negociou com escravos de diversas procedências ao longo dos anos. Mas o caso dele tem uma particularidade, uma parceria com Victorino de Menezes que se desenvolveu ao longo de alguns anos, com a transmissão de poderes para negociar cativos já sendo adiantada por Menezes em procurações lavradas em Santa Catarina.10E parcerias desse tipo podem ter sido mais freqüentes, mas ainda não temos condições de apontar isso.

Outro ponto importante para entende o cotidiano dessas transações são os grupo negociados em cada uma dessas transações. Tomando somente a origem dos escravos, podemos observar que a grande maioria desses cativos foi negociada individualmente, somando 189 dos 848 escravos sulistas negociados ou 22% deles. Em seguida, o grupo mais representativo foi o de cativos negociados em duplas, representando 114 ou 13% deles. As negociações de um ou dois cativos, dessa forma, representariam 35% das vendas realizadas no mercado de Campinas. Essa alta representatividade de negociações de pequenos grupos combina com os números gerais encontrados para o comércio total de escravos de Campinas, mas aponta uma presença maior de grupos. Nos números totais de Campinas, a grande maioria dos 5678 escravos negociados (1622 ou 29%) foi comercializada individualmente, sendo que 63% dos cativos foram negociados em grupos de até cinco pessoas.

Como se pode observar, a venda aos compradores finais de escravos geralmente se davam em pequenos grupos de escravos, na maioria das vezes até em casos individuais, e isso mesmo quando os compradores eram fazendeiros locais. Nesse ponto, o comércio de escravos vindos das províncias do Sul do Brasil não se diferenciava daquele de outras fontes no país.

O cruzamento dos registros de meia siza com as notas dos livros de cartório ainda se mostram bastante incipientes. Buscando maiores informações para essas análises, procurei cruzar os dados da coletoria com alguns livros do cartório. Assim, comparei os registros de meia siza de 1875 com o dos livros de notas do mesmo

9 “Constitucional”, 5/1/1876, n. 174. Microfilme MR 0180. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL).

10 SCHEFFER, Rafael da Cunha. Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849-1888. Dissertação em História apresentado a Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis:

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período, o mesmo sendo realizado para os três primeiros meses do ano de 1878. Nesse período analisado, apenas dois casos foram encontrados de cativos aparecendo nos dois registros, não tendo havido nenhum caso novo nos livros de nota. Observar esses números gerais pelos registros de meia siza parece realmente mais promissor, visto que toda transferência anotada nos livros de cartório fazia referência a esse registro das coletorias. De toda forma, ainda devemos investigar os outros livros deste cartório e os do primeiro cartório de notas de Campinas, ainda não pesquisados.

Um dos casos encontrados em ambos os conjuntos de documentos envolve tanto um escravo nascido no Sul quanto um dos comerciantes que frequentemente vendiam em Campinas cativos daquela região. Em vinte de outubro de 1875, João Carlos Hungria, residente em Sorocaba e agindo como procurador de Pedro Candido Rodrigues, de Itapetininga, e Francisco Carneiro da Silva Lobo, de Jaguary, vendeu dois escravos para o comendador Joaquim Policarpo Aranha, por quatro contos e 400 mil réis. Nesta transação, como ocorreu em diversos outros casos em que o comendador estava envolvido, ele foi representado pelo seu procurador, o Doutor Gustavo Adolpho de Castro. Nessa transação, foram negociados os seguintes cativos: Domingos, fula, de onze anos de idade e natural de Faxina (cujo proprietário era Pedro Candido) e Francisco, cabra de 25 anos, natural do Paraná.11Aqui observamos a ação de um negociante que intermediou a venda de 81 escravos ao longo dos anos cobertos pelo registro de meia siza. A participação de João Carlos Hungria no mercado de escravos é interessante. Em 1875 ele aparece em alguns registros de meia siza e livros de notas como residente em Sorocaba (como no caso acima) e vendendo escravos dessa região.12 Nos registros de 1877 a 1879, onde se concentraram a maioria de seus negócios, praticamente a totalidade dos escravos por ele negociados tinham como origem o Rio Grande do Sul, fazendo com que nos questionemos a respeito de mudanças na sua relação com essa fonte de cativos. Teria João Carlos utilizado suas possíveis fontes em Sorocaba para atuar como intermediário de escravos ou ele mesmo teria se colocado no mercado no Sul do Brasil?

Outro ponto a ser observado diz respeito a trajetória de Francisco, escravo natural do Paraná que estava sendo negociado nesse momento. Aqui é importante

11 Livro 14. p. 17v. (6415).

12 Em 1875, João Carlos Hungria atua como procurador na venda de duas escravas, ambas naturais de

Sorocaba e vendidas para o comendador Joaquim Policarpo Aranha em Campinas. Escrituras de compra e venda de escravos, pgs. 99v e 100. Livro de notas 14. Cartório Paula Leite.

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observa que aos vinte e cinco anos de idade, esta já é no mínimo a segunda transferência de que Francisco é objeto. Nascido no Paraná, esse cativo já havia sido transferido para Jaguary em data anterior, e novamente para Campinas em outubro de 1875. Mostra-se assim a fragilidade dos laços e pouca estabilidade a que poderia ser exposto um jovem trabalhador escravizado. Infelizmente, para Francisco não temos dados de sua cidade de origem ou ocupação profissional, mas com sua venda para Campinas ele provavelmente foi empregado pelo comendador no serviço da lavoura.

A outra venda observado nos dois registros foi a de Rodolpho, já citada anteriormente. Em 23 de janeiro de 1878 Carlos Rodrigues de Oliveira vendeu esse jovem trabalhador a Francisco Fernandes de Abreu, ambos residentes no termo de Campinas. Apesar de ter sido vendido para outro senhor no mesmo termo, Rodolpho, com apenas nove anos de idade, já havia sido anteriormente vendido do Rio Grande do Sul, de onde era natural. Em 1872 ele já havia sido matriculado na coletoria de Passo Fundo, sendo o cativo número 29 na relação de escravos de seu senhor, tendo sido transferido e registrado na coletoria de Campinas em agosto de 77. Na escritura de compra e venda, foi apontada sua aptidão para o trabalho campeiro, tendo sido vendido por um conto e oitocentos mil réis.

No caso específico de Rodolpho, é interessante observar que sua cidade de origem é Passo Fundo, não uma grande cidade ligada as charqueadas, principais espaços de concentração de escravos, mas sim de uma região com base econômica mais diversificada e de pecuária de menores extensões do que aquela praticada no Sul. Mesmo assim, Rodolpho provavelmente nasceu em um grande plantel, com pelo menos 29 escravos, e teve tempo de aprender as lidas do trabalho campeiro antes de ser vendido para o Sudeste. Sua transferência com aproximadamente oito anos aponta mais uma vez para a capacidade de destruição das famílias presente no comércio de escravos, na fragilização dos laços sociais que ele provocava. Nascido pouco tempo antes da Lei de 1871 (segundo sua idade apontada), Rodolpho também não pôde contar com a proteção da lei de 1869 que protegia a família escrava dessas separações.

Através dessas histórias podemos entender não apenas os impactos dessas transferências sobre os cativos e seu mundo, mas também as próprias formas de organização e modos de operação dos negociantes. Assim, ainda que esta comunicação seja um ponto inicial de uma pesquisa, ela já aponta a importância da presença de

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escravos do Sul na região de Campinas, e logo a força do comércio interprovincial naquelas províncias.

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