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Psicose e ética do pensador na

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Resumo Na década de 1950, Wilfred Bion publicou artigos dedi-cados ao aprofundamento e à ampliação das concepções de Me-lanie Klein sobre a psicose. O olhar do autor sobre os processos intrapsíquicos ajudou a elucidar as dificuldades do psicótico em constituir e sustentar uma vida subjetiva vinculada à consciência das realidades interna e externa. Porém, o entendimento dessas dificuldades ganhou uma complexidade teórica e técnica ainda maior quando Bion passou a explorar o potencial intersubjetivo da identificação projetiva, tomada como veículo de comunicação e como forma primitiva de se obter conhecimento de si. Neste estudo, mostra-se o processo pelo qual Bion chegou a essa com-preensão em uma experiência clínica sua, e a importância desse processo para o tratamento. Também se delineiam as ideias do autor naquela época sobre o significado do objeto externo, em especial sobre o papel do analista no processo de subjetivação. Palavras-chave identificação projetiva normal, pensamento pré-verbal, comunicação primitiva, atitude analítica.

Abstract In the 1950s, Wilfred Bion published articles dedi-cated to deepening and expanding Melanie Klein’s concepts on psychosis. Bion’s view of intrapsychic processes helped to elucidate the difficulties faced by psychotics in constituting and sustaining a subjective life linked to the awareness of internal and external realities. However, the understanding of these dif-ficulties gained even greater theoretical and technical complex-ity when Bion began to explore the intersubjective potential of projective identification, which was taken as a means of com-munication and a primitive way of obtaining self-knowledge. This study shows the process through which Bion reached this understanding in a clinical experience and the importance of this process for treatment; it also outlines his ideas at that time re-garding the significance of the external object and especially the analyst’s role in the process of subjectivation.

Keywords normal projective identification; pre-verbal thou-ght; primitive communication; analytic attitude.

AdriAnA SAlvitti

Universidade de São Paulo (USP). adrianasalvitti@hotmail.com

P

sicose

e

ética

do

Pensador

na

clínica

de

B

ion

:

Panorama

dos

artigos

dos

anos

50

Psychosis and the thinker’s ethics in Bion’s clinic:

a scenario of papers from the fifties

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Introdução

O

tema desta edição, voltado para a dis-cussão das noções de alteridade e éti-ca na psiéti-canálise, deflagra o que há de mais central e, ao mesmo tempo, problemá-tico na prática clínica. Certamente o conceito de inconsciente e as compreensões sobre as formas do homem admitir ou ignorar aquilo que há de estranho, intolerável e de desco-nhecido em si, bem como fora de si, constitui o estofo dessa disciplina desde o plano mais abstrato, teórico explicativo, até o plano mais concreto, ligado ao dia a dia do consultório. As formas de subjetivação e de conduta ten-do em vista o outro interno e externo com-põem uma discussão fundamental no que diz respeito à clínica psicanalítica, uma vez que as questões relacionadas ao reconhecimento de uma alteridade fazem parte da natureza da relação analítica seja no âmbito transferen-cial, seja contratransferencial. O trabalho psi-canalítico com a psicose, em especial, veio dar a essas questões uma agudeza ainda maior.

Do ponto de vista da história da psicaná-lise, já vem de longa data a problematização em torno das mudanças que ocorreram na teoria e na técnica analítica em função do tra-balho com pacientes não neuróticos, isto é, que apresentam transtornos mais ou menos severos na constituição do narcisismo (GRE-EN, 2008). Essas mudanças se impuseram ao analista pela sua necessidade em examinar o seu papel e a função do enquadre quando falham a manutenção do dispositivo analítico e a capacidade de simbolização no paciente, bem como no próprio analista. Mas não ire-mos nos deter sobre os aspectos históricos desse tema. Apenas destacamos a excelente abordagem feita por André Green (1975), que combina uma perspectiva objetiva relaciona-da à diversirelaciona-dade de quadros psicopatológicos que passaram a ser descritos na literatura psicanalítica e nos quais predominam funcio-namentos psicóticos, com uma perspectiva subjetiva relacionada a mudanças no analista. Green entende que, ao longo do desenvolvi-mento da psicanálise, houve uma ampliação na sensibilidade e na percepção para estados

de mente mais regredidos, incluindo maior atenção ao próprio estado mental e emocio-nal do aemocio-nalista, muito em função da maneira como o paciente se comporta na sessão e emprega a linguagem para fazer e comunicar coisas concretas, em vez de transmitir signifi-cados verbais.

O psicanalista inglês Wilfred R. Bion (1897-1979) desenvolveu a sua obra no bojo das contribuições e inovações trazidas pelo pensamento de Melanie Klein com relação a esse grupo de pacientes; além disso, cola-borou de maneira original para o aprofunda-mento na compreensão dessas questões no âmbito teórico e técnico. A experiência clíni-ca de Bion com esquizofrênicos, neuróticos graves e pacientes borderline deu origem, na década de 1950, a formulações originais sobre o funcionamento mental primitivo e sobre a qualidade da relação analítica. Veremos que ele contribuiu para o entendimento do esta-do precário das funções esta-do ego em virtude do ódio e do sadismo direcionados a elas, e do quanto era difícil a esses pacientes alcan-çarem e manterem um contato minimamente enriquecedor com a realidade interna e exter-na. Essas compreensões são acompanhadas de descrições clínicas bastante minuciosas, que surpreendem pelo conteúdo bizarro das experiências e pela capacidade de Bion per-ceber os diferentes usos que os pacientes faziam de seus instrumentos psíquicos, tanto no sentido de impedir como de promover o desenvolvimento.

A partir da década de 1960, Bion realizou importantes reflexões sobre o método, des-tacando as funções de personalidade no ana-lista no tratamento de ansiedades primitivas. A essas reflexões Bion acrescentou o interes-se pela natureza da “matéria” ou do objeto de investigação psicanalítico combinado à sua possibilidade de apreensão dentro e fora do consultório. Neste último caso, referimo-nos a uma preocupação de Bion com a possibilida-de possibilida-de transmissão da psicanálise por meio possibilida-de trabalhos científicos.

Dada a extensão de seu pensamento, fa-remos um recorte em sua obra, abrangendo

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apenas o período em que Bion estava em vias de organizar as suas ideias naquela que ficou conhecida como a Teoria do Pensar, apresen-tada em 1962.1 Nossa intenção é apresentar um panorama das concepções do autor sobre a psicose, presentes em artigos publicados nos anos 50, e chamar a atenção para um mo-mento clínico no qual Bion enfoca o papel do analista no evolver de uma situação analítica.

Nesses artigos, ainda não encontramos os conceitos que comumente caracterizam o pensamento de Bion, como função-alfa, ele-mento beta e reverie, muito menos a formula-ção já clássica sobre a necessidade do analista manter uma atitude livre de memória, desejo e compreensão. Vale dizer que esses concei-tos estão na base de qualquer discussão que se pretenda fazer sobre alteridade e ética em Bion. A pergunta natural a se fazer é por que, então, deixá-las de lado e, mais ainda, por que tirar do leitor a oportunidade de conhecer ou de revisitar conceitos tão complexos?

Obviamente não se trata de ignorá-los. O que pretendemos fazer é expor algumas das questões que somente a posteriori irão compor a sua teoria de modo explícito, mui-to porque encontramos nesses artigos iniciais traços de uma abordagem que está na base de formulações bastante abstratas, presen-tes em livros como O aprender da

experiên-cia (1962b) e Elementos da psicanálise (1963).

Entre a publicação desses livros e os artigos da década de 1950 há um grande salto na for-ma e no conteúdo apresentado. Bion não é um autor sistemático ou didático, e muito do processo de amadurecimento de suas ideias e das questões que fazem a ponte entre seus trabalhos não são evidentes.

O interesse de Bion pelo método, asso-ciado ao desenvolvimento de uma capacida-de capacida-de pensar tanto no paciente como no ana-lista pode ser visto em algumas passagens de seus artigos. Nelas, notamos a relação mais ou menos direta entre a emergência de

insi-ght no analista e a entrada do paciente em

1 BION, 1962a. Uma visão geral sobre a obra e a vida de

Bion pode ser encontrada em BLÉANDONU, 1993.

contato com uma vida psíquica que, em seus aspectos fundamentais, mantinha-se inviabili-zada.2 Uma análise do artigo Sobre arrogância (1958b) nos permitirá acompanhar a atenção de Bion aos transtornos de pensamento tam-bém no que diz respeito à mente do analista e à forma com que foi possível a ele chegar a certas compreensões na sessão, a partir de mudanças em seu estado de mente. Ao con-trário do que se poderia imaginar, o enfoque não é propriamente sobre a contratransferên-cia no sentido do que se passa com o analista, e sim na atividade de pensar ansiedades mui-to primitivas e seus percalços.

Além de essas concepções terem uma importância clínica em si, esperamos que elas ajudem o leitor interessado em Bion a cons-truir pontes entre ideias que se encontram espalhadas em sua obra, e facilitem o acom-panhamento de alguns desdobramentos em seu pensamento.

Concepções teóricas sobre

a psicose e experiências clínicas

Quando nos voltamos aos textos escri-tos por Bion na década de 1950, observamos todo o seu empenho em elucidar os meca-nismos arcaicos do funcionamento mental, a gênese psíquica da psicose, bem como a descrição de uma série de fenômenos psicóti-cos em pacientes severamente perturbados. Notamos também que essas descrições tive-ram como base a observação da qualidade da comunicação entre paciente e analista, prin-cipalmente no que diz respeito à forma de o paciente empregar a linguagem verbal. Esta, além de ser um modo de pensamento e co-municação, é um veículo para a concretização de fantasias primitivas com o objeto. A fim de evitar ansiedades aniquiladoras, mas também a fim de fazer valer seus impulsos sádicos e seu anseio pela onipotência, o psicótico frag-menta o pensamento verbal e usa a lingua-gem para descarregar ansiedades e fazer coi-sas concretas com o objeto externo. Ao invés 2 Nos últimos anos, essas ideias têm sido aprofundadas

por nós por meio de diferentes ângulos (SALVITTI, 2004, 2006, 2011).

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de as palavras representarem ideias e emo-ções e servirem para pensar, elas equivalem a uma parte não admitida da personalidade. Por meio de fantasias onipotentes que subja-zem à fala e às ações, as ansiedades primitivas seriam expelidas e colocadas para dentro de uma pessoa, ou de uma coisa qualquer, pro-vocando, de fato, reações no ambiente exter-no. Em um conhecido trecho de Notas sobre

a teoria da esquizofrenia (1954), Bion faz a

se-guinte afirmação:

[...] o paciente fala de um modo so-nolento com a intenção de fazer o analista dormir. Ao mesmo tempo, estimula a curiosidade do analista. A intenção [...] é dividir o analista, que é impedido de dormir e de fi-car acordado.3

Como diz Meltzer (1998), o recém-apre-sentado conceito de identificação projetiva por Melanie Klein, em 1946, estava no centro dessas constatações, proporcionando impor-tantes ampliações teóricas e avanços na téc-nica. Segundo a concepção original de Klein (1946), a identificação projetiva seria o meio pelo qual, em fantasia, um aspecto odiado ou idealizado que está cindido da personalida-de é reconhecido como pertencente a outra pessoa, deixando o projetor esvaziado desse mesmo aspecto. As ansiedades envolvidas nesse processo acarretariam inibições no in-telecto e na formação de símbolos, prejudi-cando a formulação e resolução de problemas relacionados com o conhecimento e o desen-volvimento da personalidade.

Bion foi um dos principais colabora-dores de Klein na investigação da dimensão patológica e anormal da identificação proje-tiva, descrevendo os efeitos da destrutivida-de direcionada ao ego e às suas funções. Em seus artigos sobre a psicose, mostra que o pa-ciente fica impossibilitado de usar a atenção, a memória, o pensamento verbal e a capaci-dade de julgar para conhecer a si mesmo e a 3 BION, 1954, p. 35.

realidade ao seu redor, tornando ainda mais intoleráveis as ansiedades as quais está sub-metido. Ousar sonhar, pensar e constituir um mundo interno mais enriquecido promoveria a percepção de toda essa destrutividade e o surgimento de significados bastante doloro-sos e quase impossíveis de serem admitidos.

Porém, Bion também mostrou as formas com que esses pacientes tentam reconstituir seu aparelho psíquico e tomar contato com a realidade odiada. Mecanismos comumente associados à psicopatologia psicótica, como a alucinação, o delírio e a identificação pro-jetiva, também seriam usados para a recons-tituição do ego na busca por conhecimento. Em meio a tantas dificuldades e contando com recursos tão incipientes, é surpreenden-te encontrarmos nos relatos de Bion peque-nos momentos – não mepeque-nos sofridos – peque-nos quais o paciente sente que há cooperação, em que experimenta alívio diante de um ob-jeto que o ajuda quando consegue dar vazão ao seu “impulso para comunicar” e obter a “ingestão de cura”. Especialmente em Sobre

alucinação (1958a), Bion mostra que a cisão,

a alucinação e o delírio poderiam ser usados como atividades criativas a serviço da “intui-ção terapêutica”.4

Bion detectava, assim, a presença de um pensamento primitivo que existiria à par-te de significados verbais, relacionado a me-canismos tipicamente patológicos, que não tinham essa como sua única característica. A descrição de aspectos criativos presentes na psicose trouxe uma importante contribuição à literatura da área, cujo enfoque se dá, so-bretudo, nos aspectos mais doentios do pa-ciente. Essa descrição é importante, também, por deixar entrever o significado clínico de o analista acompanhar as diferentes qualidades e empregos que os fenômenos assumem na sessão de momento a momento. Voltaremos a isso no próximo item.

Bion nota que na posição esquizopara-noide haveria a expressão de um simbolismo rudimentar ou de um pré-simbolismo seme-4 Idem, 1958a, p. 82;96.

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lhante ao material onírico, capaz de propor-cionar alguma consciência da realidade psí-quica e uma comunicação primitiva. Se de um lado o pensamento verbal estaria associado à posição depressiva devido a sua qualidade de síntese e de integração, por outro, seria pos-sível detectar já na posição esquizoparanoide um pensamento pré-verbal e tentativas de re-constituição do ego.

Essas ideias foram bastante discutidas em um de seus artigos mais importantes, inti-tulado Diferenciação entre a personalidade

psi-cótica e a personalidade não-psipsi-cótica (1957),

por meio de uma perspectiva eminentemente intrapsíquica, mas já com algum destaque para a maneira como o analista lidou com material tão primitivo. A dimensão intersubjetiva ga-nhará uma exposição mais ampla nos artigos

Sobre arrogância (1958b) e Ataques à ligação

(1959), quando Bion descreve em maiores detalhes a natureza da relação analítica. Sem fazer menções diretas, Bion parecia estar refle-tindo intensamente sobre o papel do analista no tratamento quando predominam formas primitivas de pensamento e de comunicação.

Em acréscimo à descrição dos modos com os quais o paciente impede a formação do psiquismo, em Ataques à ligação (1959) Bion inclui o ódio dirigido a tudo aquilo que promo-ve vínculo intrapsíquico e intersubjetivo, como a linguagem, a curiosidade, as emoções, a ca-pacidade de entendimento, o seio, o pênis, a criatividade do casal parental e, por extensão, da dupla analítica. Porém, Bion chama a nossa atenção para a importância e a necessidade de o psicótico habitar plenamente a posição esquizoparanoide e nela encontrar uma forma de transmitir e de elucidar as suas ansiedades. Reproduzimos a seguir uma passagem que ex-plicita bastante bem essa problemática.

Esta impressão decorre em parte de uma característica da análise de um paciente que foi difícil de interpre-tar pois não parecia, em momento algum, chamativa o bastante para que a interpretação se apoiasse em evidência convincente. Por

toda a análise, o paciente recorreu à identificação projetiva com uma persistência tal que sugeria que se tratava de um mecanismo de que jamais conseguira valer-se o suficiente; a análise deu-lhe uma oportunidade para o exercício de um mecanismo de que havia sido privado. [...] Quando o paciente se esforçava por livrar-se dos temores de morte, sentidos como sendo de-masiado intensos [...], ele cindia e afastava tais temores e os colocava dentro de mim, com a ideia de que, se lhes fosse permitido ali repousar por tempo suficiente, minha psique os modificaria, podendo eles então ser reintrojetados sem perigo.5

A partir de constatações clínicas como essa, a identificação projetiva, que até então havia sido amplamente descrita em seus as-pectos defensivos, ganhou novos contornos conceituais e proporcionou importantes des-dobramentos técnicos. Além de Bion explici-tar as diferenças do conceito, mostrando as suas implicações metapsicológicas, ele tam-bém enfocou o trabalho clínico, em especial, a importância de o analista atentar para as diferentes qualidades que os fenômenos pri-mitivos poderiam assumir durante a sessão.

Notamos, assim, nesses últimos arti-gos da década de 1950, a exposição de uma característica nova do conceito de identifica-ção projetiva, associada à descriidentifica-ção de uma percepção nova que surge no analista no decorrer da situação analítica. Sobre

arrogân-cia (1958b) é o artigo que melhor ilustra essa

mudança subjetiva no analista, conforme a afirmação de Green (1975) mencionada na in-trodução de nosso texto. Dado o enfoque de Bion, tomamos essa afirmação também como expressão de mudanças que ocorrem na sin-gularidade de um processo analítico. Apesar de representar um avanço técnico, a aten-ção do analista à qualidade assumida pelos 5 Idem, 1959, p. 119-120.

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estados primitivos de mente não é uma con-dição a priori de observação. Na década de 1960, Bion indica que será necessário explorar as condições emocionais e as funções de per-sonalidade envolvidas nos impedimentos e fa-vorecimentos da observação em psicanálise.

Sobre atitude analítica,

arrogância e tratamento

A união entre a percepção da natureza da relação analítica e a atitude do analista rela-cionada a uma ética é talvez o grande tema de

Sobre arrogância (1985b). Este artigo dá uma

ideia muito clara do momento em que um sen-tido emerge e organiza uma situação caótica na qual paciente e analista formavam uma du-pla frustrada. O texto ilustra por meios clínicos algumas das reflexões mais abstratas de Bion sobre a teoria da técnica na década seguinte, formuladas em torno da relação entre o pen-sador que passa a existir para dar conta de pensamentos até então não pensados. Vamos agora à narrativa clínica presente no artigo.

Bion iniciou seu relato de caso no mo-mento em que passam a predominar caracte-rísticas psicóticas em um paciente neurótico. A ênfase é sobre uma forma especial de objeto interno ou de força – Bion usou os dois termos, um teórico e outro mais próximo ao caráter “palpável” do fenômeno –, que passou a im-pedir o contato criativo do par e a emergência de insight. Ao longo da narrativa, constatamos que se trata de um objeto que falha em suas capacidades de tolerar a identificação pro-jetiva, e que há uma relação intrínseca entre essa falha e a qualidade excessiva no emprego da identificação projetiva. Antes de Bion nos apresentar essa compreensão, há a descrição de uma situação caótica, em que o pensa-mento e a comunicação verbal do paciente tornaram-se prejudicadas. As interpretações alcançadas ao longo dos anos de nada serviam para dar conta dessa nova circunstância. Bion, percebendo-se desorientado, formou, com o paciente, um casal impotente e frustrado. A psicanálise e o emprego da comunicação ver-bal eram sentidos pelo paciente como uma forma do analista se impor sobre ele, mostrar

a sua superioridade e, principalmente, atacar um modo singular de comunicação.

Aos poucos, Bion notou uma ligação en-tre arrogância, curiosidade e estupidez, surgi-das nas sessões de maneira esparsa e isolada, e que ora seriam identificadas com o paciente, ora com o analista. O trabalho de recolhimen-to e reunião em um recolhimen-todo significativo dessas informações esparsas é um dos pontos mais interessantes e inovadores do artigo. A ideia de Bion é que elementos edipianos poderiam ser reconhecidos no processo de investigação analítico em si. Isto é, a busca de um sentido para o caos, seja por parte do paciente, seja por parte do analista, poderia se dar por meio do respeito à realidade psíquica e sua verdade, ou de modo arrogante, impaciente e sem me-didas, tal qual Édipo quando busca desvendar o crime a qualquer custo e impõe a sentença antes de ter mais informações sobre o crimi-noso. Esses elementos do mito compõem uma imagem significativa da natureza do relacio-namento analítico, no qual tanto o paciente como o analista representaria um objeto pou-co tolerante que rapidamente procura uma resposta para se livrar de culpa persecutória, ou para evitar qualquer desconhecimento.

Embora Bion estivesse perdido em meio a um caos de significados já esclarecidos, po-rém ineficientes do ponto de vista interpretati-vo, o paciente diz sentir que o analista era tan-to capaz quantan-to incapaz de suportar “algo”. O significado desse “algo” foi alcançado quando Bion se deu conta de que a identificação pro-jetiva, mais que a linguagem verbal, seria uma forma de relação de objeto apoiada não ape-nas na destrutividade. Nomeou de normal essa forma de identificação projetiva, em contrapo-sição ao seu caráter excessivo e patológico.

A identificação projetiva normal estaria relacionada à constituição do narcisismo de vida (GREEN, 1988) desde que o objeto exter-no, alvo das projeções e identificações pudes-se tolerar, modificar e nomear as ansiedades primitivas despertadas. Essas constatações de Bion podem ser aproximadas ao trabalho de colegas como Winnicott, que tinha no ambien-te emocional primitivo um importanambien-te foco de

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compreensão acerca do estabelecimento do narcisismo primário e de suas perturbações.6 Em Ataques à ligação (1959), Bion constrói uma imagem da relação primitiva de objeto e indica as sua importância para a análise:

Sentia que o paciente experimen-tara na infância uma mãe que cor-respondia zelosa às demonstrações emocionais do bebê. Esta resposta zelosa continha certo laivo de um impaciente ‘não sei o que há com essa criança’. Minha dedução foi de que a mãe, para entender a criança, deveria ter tratado o choro do bebê como algo mais do que uma exigên-cia da presença dela. [...]. É possível observar-se na análise uma situação complexa. O paciente sente estar tendo uma oportunidade que até então lhe havia sido negada [...]. A gratidão por essa oportunidade coexiste ao lado da hostilidade ao analista como alguém que não en-tenderá e impedirá o uso, por parte do paciente, do único método de comunicação mediante o qual ele se sente capaz de se fazer entendido.7

Diante de um objeto que é capaz de acompanhar o tipo de emprego da identifica-ção projetiva de modo a poder contê-la em si e discriminar a sua natureza por meio da lin-guagem verbal, o paciente terá a chance de conhecer as suas sensações e seus sentimen-tos, como amor, medo, ódio, inveja, e come-çar a forjar para si uma vida subjetiva até en-tão renegada. O analista torna-se, assim, um pensador que passa a existir como uma espé-cie de órgão transformador de pensamentos primitivos e ansiedades insuportáveis, com o qual o paciente poderá se identificar.

6 A diferença na abordagem teórica e técnica entre

os autores não nos impede de observar um diálogo intertextual entre eles. Imaginamos se parte das ideias apresentadas por Bion não poderia ser uma resposta sua às colocações feitas por Winnicott nas cartas dirigidas ao autor em meados das décadas de 1950 e 60 (cf. WINNICOTT, 1990).

7 Idem, 1959, p. 120-121.

Breve conclusão

A sequência dos artigos escritos por Bion na década de 1950, principalmente seus textos finais, nos leva a ver que o tratamen-to psicanalítico implica uma abertura para o outro no sentido de uma disposição para acompanhar e pensar o que o paciente faz de seu próprio psiquismo e de suas ansiedades. Mas ao invés de explorar aquilo que se passa no analista no âmbito contratransferencial, Bion, na década de 1960, voltará sua atenção à elucidação dos elementos e das funções de personalidade envolvidas com a sustentação emocional dos estados de mente primitivos (BION, 1962a e 1962b).

A atitude do analista no sentido de aco-lher e notar esses estados certamente tem um efeito sobre a disposição mental e emo-cional do próprio paciente. Em seus artigos, percebemos que a coexistência de processos doentios e normais no funcionamento mental primitivo e nas relações de objeto exige do analista uma abertura para a observação de fenômenos que não se reduzem a definições psicopatológicas estanques. Porém, não bas-ta o analisbas-ta saber que a cisão, a alucinação, o delírio e a identificação projetiva poderiam se direcionar para a busca de conhecimento so-bre a vida emocional. Uma vez que é a partir da qualidade da relação com o paciente que o analista poderá determinar a natureza dos fenômenos, tornar-se-á importante discutir as condições de observação em psicanálise, a relação entre teoria e prática, e a natureza do objeto psicanalítico (BION, 1962b, 1963).

Em Sobre arrogância (1958b), o leitor en-contra uma descrição muito viva dessa proble-mática quando Bion faz a aproximação entre a identificação projetiva como comunicação e a conquista dessa percepção pelo analista em uma sessão. Vemos, assim, a constitui-ção de um método de trabalho que pode ser mais bem explicitado como uma ética, e que pressupõe do analista uma disposição para conter estados de não saber, uma abertura ao desconhecido de cada situação, e a capacidade de transformar em matéria simbólica aspectos dolorosos e insuportáveis da personalidade.

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Dados da autora: Adriana salvitti Psicanalista. Psicóloga, Pós-doutoranda pelo Instituto de Psicologia da USP. Recebido: 21-09-2011 Aprovado: 20-03-2012

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