Grids, retículas e a Helvetica: um caso de esquizofrenia
Grids and the Helvetica: a schizophrenia case
Pedro Gonzalez
Aluno especial do Programa de pós-graduação em Design UFPR pedro@pedrogonzalez.com.br
Resumo: O objetivo deste artigo é, a partir da leitura e análise de dois textos clássicos, um da História da Arte e outro do design, estabelecer um paralelo entre os dois, pois se situam sob o mesmo contexto histórico e conceitual. Além disso, os dois textos tratam de elementos estruturais da imagem e da informação, apesar de serem aparentemente dissonantes, pois um fala da pintura modernista e o outro de tipografia. Mas dentro de uma visão modernista, tanto a retícula (a grade na pintura) quanto a tipografia possuem particularidades funcionalistas e um comportamento que pode ser definido como esquizofrênico, pois possuem características análogas e ambíguas, mas em raros casos excludentes entre si.
Palavras-chave: tipografia; modernismo; grade; retícula
Abstract: The aim of this paper is to make an interpretation of two classic texts, one from Art History and the other from the design field, and establish a parallel between the two, because they are located under the same conceptual and historical context. Moreover, the two texts deal with structural elements of the image/picture and information, although seem to be incongruous because one speaks of modernist painting and the other is on typography. But within a modernist view, both the painting grid and typography have a particular functional and behavior that can be described as schizophrenic, because they have similar characteristics and ambiguous, but in rare cases mutually exclusive.
1. Introdução
Através da leitura e interpretação de dois textos clássicos, um do campo da História da Arte, e outro do design (especificamente a tipografia), este artigo pretende estabelecer um paralelo entre entre a retícula da pintura modernista e a teoria da “tipografia invisível”, respectivamente o conteúdo desses dois textos.
O ensaio “Retículas”, da historiadora e crítica de arte Rosalind Krauss faz uma análise da retícula na pintura modernista e a classifica como esquizofrênica, por possuir um comportamento ambíguo e praticamente simultâneo. Já “A taça de cristal”, de Beatrice Warde, faz uma comparação da tipografia com uma taça de cristal, ao afirmar que a tipografia deve ser invisível, sendo apenas uma estrutura feita para revelar o seu conteúdo.
Sendo a retícula um elemento de estruturação da imagem (e por conseguinte o grid seu análogo na diagramação), e a tipografia um elemento de estruturação da informação, os dois textos se tocam em algumas partes e uma interpretação possível é a de que a tipografia possui as mesmas características da retícula.
Essa interpretação é possível pois durante o mesmo período histórico tanto a pintura quanto o design estão discutindo os mesmos conceitos, e se alimentando das mesmas ideias – tanto no que diz respeito ao estado da arte (movimentos artísticos) quanto à recente e vertiginosa industrialização que se inicia na Revolução Industrial e culmina na Segunda Grande Guerra do século XX.
Através desse paralelo chega-se à conclusão de que a tipografia, enquanto elemento estrutural de organização e visualização da informação, não deve interferir nem se sobressair em relação ao conteúdo que se pretende informar. Ela deve ser lida e percebida e, ao mesmo tempo, permanecer invisível.
Nota: afim de distinguir melhor os termos usados na História da Arte e no Design, e manter-me fiel aos dois textos-base, utilizarei o termo “retícula” quando me referir a esse elemento especificamente na pintura, e “grid” quando o mesmo elemento aparecer no design e em outras áreas (urbanismo, na maioria dos casos).
2. O grid
O grid como conhecemos não é nenhuma novidade para o homem. Essa maneira ordenada (através de eixos ortogonais) de organizar o espaço territorial é um princípio com raízes nas sociedades mais antigas. Segundo Samara (2007: 9), “Levar uma vida com algum sentido, criar uma ordem compreensível para esse sentido e o pensamento estrutural são traços de culturas que lutam pela civilização.” Ainda de acordo com esse autor, chineses, japoneses,
gregos, romanos e incas obtiveram sucesso em seguir essas ideias estruturais para construir cidades, realizar guerras e organizar imagens. Outra característica importante do grid é o seu aspecto transcendental / espiritual: desde a antiguidade, em muitos casos essa estrutura se baseava no cruzamento de eixos que correspondiam a intersecção do céu e da terra.
Já no século XIX, com o período de industrialização e crescimento (e planejamento) das grandes cidades, o grid começa a exercer um importante papel na sociedade que se adaptava à novas tecnologias e na organização social que demandava soluções rápidas. Esse momento histórico e social fez com que o grid (a retícula) fosse naturalmente refletido na expressão humana através dos movimentos artísticos que se estruturaram no século seguinte. 3. O De Stijil e a produção em série
Foi no Neoplasticismo (ou De Stijl) que a retícula teve sua grande contribuição através dos ideais utópicos de ordem e harmonia pregados pelo movimento artístico. Apesar de ter sido usada em outros movimentos, foi nessa pintura modernista de origem holandesa que a retícula estabelecida pelo De Stijl reafirmou o antigo senso de ordem, formalizando-a ainda mais e transformando a si mesma em parte integrante da pintura. O movimento pregava o uso da retícula de maneira tão fervorosa que Theo van Doesburg, ao inclinar o eixo tradicional de 90º passou a ser ignorado por Piet Mondrian. (Samara, 2007: 10)
Após as duas grandes guerras do século passado, a ordem e a clareza (no sentido conceitual e prático da higiene e da assepsia) se tornaram os objetivos principais da sociedade, que encontrou terreno fértil para colocar ordem nas violentas mudanças provocadas pela industrialização e pelos confrontos que destruíram boa parte da Europa. Esses objetivos também foram incorporados ao design, que começava a sentir essas mudanças na própria sociedade que necessitava se reorganizar.
Essas condições sociais e culturais exerceram influência no design da Escola de Basiléia (Suíça), que deu origem ao chamado de Estilo Tipográfico Internacional. Essa corrente do design utilizou o grid de maneira muito eficiente, tanto em relação ao planejamento gráfico quanto aos resultados práticos obtidos com programas de identidade visual de grandes empresas.
A partir dos anos 1970 os designers começaram a utilizar o grid como um fim em si, e a explorar o potencial da própria forma. Esse experimentalismo atravessou a década de 1980 e a partir dos anos 1990 alguns professores de design começaram a utilizar outros métodos organizativos, com pesquisas fora do campo da estrutura racional. Desde então o grid passou a ser visto como uma das ferramentas úteis ao designer.
nas mídias digitais, e é improvável prever como o design se comportará daqui para frente, mas é ainda mais improvável que o grid deixe de estruturar as mensagens visuais.
4. Futurismo e o estilo tipográfico internacional
A tipografia moderna é fundamentada principalmente nas teorias e princípios do design desenvolvidos durante as décadas de 1920 e 1930. Walter Dexel, El Lissitsky, Kurt Schwitters, Jan Tschichold, Paul Renner, Moholy-Nagy, Joost Schmidt entre outros, deram nova vida para um design até então sustentado numa tipografia demasiadamente rígida.
Influenciado pelo movimento progressista e por uma visita a Bauhaus em 1923, o tipógrafo alemão Jan Tschichold publicou em 1928, Die Neue Typographie (“A nova tipografia”). Essa visão de uma “nova” tipografia vem amparada pelo momento descrito por Rosalind Krauss:
Un único elemento parece haberse mantenido constante en el discurso vanguardista: la originalidad. Por originalidad me refiero sobre todo en este caso al tipo de revuelta en contra de la tradición implícita en la proclama de Ezra Pound “¡Hazlo nuevo!” o en la pretensión futurista de destruir los museos que poblaban Italia de “incontables cementerios”. Más que como una negación o disolución del pasado, la originalidad de la vanguardia se concibe como una origen literal, como un comienzo desde cero, como un nacimiento. (Krauss, 1986: 171)
A nova tipografia proposta por Tschichold tornou-se o principal manifesto renovador do design gráfico. O livro defendia uma diagramação assimétrica dos elementos, algumas noções de composição através de linhas de estruturação bem marcantes, além de várias outras regras modernistas, e apresentava as primeiras explicações claras do uso de letras de diferentes tamanhos e pesos.
A sistematização das regras defendidas por Tschichold é aplicada de uma maneira mais abrangente no design por Josef Müller-Brockmann, designer suíço conhecido por um trabalho incrivelmente limpo e estruturado, baseado na ordem e na funcionalidade, e seus princípios influenciam até hoje o design gráfico. Tornou-se o mais influente teórico do design suíço (mais tarde o movimento ficou conhecido como estilo internacional) ao escrever Grid Systems, em 1961, cujo conteúdo é sustentado por um ideal de expressão absoluta e universal, através de concepções objetivas e impessoais.
Na sua renúncia à exteriorização de sentimentos pessoais e subjetivos, ou às técnicas propagandísticas de persuasão da publicidade comercial, Müller-Brockmann se alinhou na vereda da “despersonalização” do design – uma orientação que convinha à expansão do capitalismo na etapa imediata ao pós-guerra. Essas teorias austeras e rígidas tem clara
influência da mentalidade calvinista na Suíça.
O texto de Grid Systems insiste constantemente numa aproximação funcional e racional para o grid, como se nota na introdução do livro:
O fato de que a maioria dos designers são ignorantes desse sistema para estabelecer a ordem ou que os mesmos não o entendem e portanto não o usam corretamente pode ser entendido como um sinal de que o uso do grid é algo que peça um estudo sério. Qualquer um que deseje levar isso adiante perceberá que, com a ajuda do sistema de grid, se sentirá mais apto a encontrar uma solução para seus problemas de design que é funcional, lógica e também esteticamente mais interessante. (Müller-Brockmann, 1981: 9)
O manifesto futurista de Filippo Marinetti também parece exercer influência em Müller-Brockmann, ao explicar a filosofia do grid e do design, e ao trazer a ideia do novo como conceito de vanguarda e a preocupação com o futuro:
O uso do grid como um sistema ordenado é a expressão de uma certa atitude mental, na medida em que mostra que o designer concebe seu trabalho em condições que são construtivas e orientadas para o futuro. (…) O design construtivista significa a conversão das leis do design em soluções práticas. Trabalhar com o sistema de grid significa se submeter à leis de validade universal. (Müller-Brockmann, 1981: 10)
O texto continua como se fosse uma pregação, uma leitura de mandamentos divinos. Algumas citações são bastante conhecidas por aparecerem na bibliografia de design referente aos grids: “O sistema de grid é um auxílio, não uma garantia” e “É necessário aprender a usar o grid. É uma arte que requer prática” (Müller-Brockmann, 1981: 10). A filosofia do grid se expande para além da linguagem visual.
5. Rosalind Krauss: esquizofrenia
Em 1979, a historiadora e crítica de arte norte-americana Rosalind Krauss publicou “Originalidade da vanguarda e outros mitos”, contendo o ensaio “Retículas”, que aborda a vanguarda modernista, mitologia e seus limites. A autora descreve a retícula de uma pintura modernista como “planificada, geometrizada, ordenada... antinatural, antimimética e antirreal. É a imagem da arte quando ela se vira de costas para a natureza.” (Krauss, 1986: 23)
Por todas essas qualidades anti-, a retícula é o contrário da perspectiva (que é a projeção pictórica do mundo exterior), fazendo uma negação do natural, do real e priorizando a superfície da pintura através do uso da repetição e da modulação.
O poder da retícula está na sua capacidade de se esconder e se revelar, ao mesmo tempo (KRAUSS, 1986, p.26), e na maneira como se apresenta na pintura modernista como uma bandeira da liberdade, sendo simultaneamente uma restrição à própria liberdade devido à
sua peculiaridade principal ser a repetição (Krauss, 1986: 174). Mas em nenhum momento a teórica desmerece essa pintura em virtude das “limitações” impostas pela retícula.
Os diversos movimentos artísticos da época – Futurismo, Dadaísmo, Construtivismo e Cubismo, cada um com suas peculiaridades –, tornaram a retícula modernista um emblema de seu tempo, da modernização e da industrialização. Ela reflete a estandardização, a produção em massa, a mecânica do transporte. Em outras palavras, a retícula coloca a cultura contra a natureza e o corpo: “ela vira as costas para a natureza”.
Retícula centrífuga e retícula centrípeta
Para Rosalind Krauss, a retícula pode ser entendida de maneira esquizofrênica. Não se trata aqui de uma esquizofrenia doentia, ou negativa em qualquer aspecto. Essa leitura é feita de duas maneiras: centrífuga e centrípeta. Na perspectiva centrífuga, a grade reticular é uma representação diminuta do mundo exterior, e que continua além das bordas da tela, sendo um fragmento do mundo real. Como exemplo, algumas obras de Mondrian, que por mais que pareçam simplesmente retas e planos coloridos, são a expressão máxima do abstracionismo. Na intenção do pintor, o que se buscava era a simplificação de todas as formas e cores da natureza, além de exaltar as propriedades físicas da cor e da percepção ótica. Já na perspectiva centrípeta, a obra deixa de ser uma “janela para o mundo”, e faz a total separação entre o mundo e a arte, tornando-se uma projeção de si mesma e uma leitura auto-referencial da obra de arte (Krauss, 1986: 33-34). Como exemplo deste comportamento, podemos citar algumas obras de Frank Stella.
Todas essas condições acabaram por colocar a retícula como um discurso estético, e não como um elemento estrutural da imagem. Da mesma maneira, a tipografia presente no Estilo Internacional do Design teve um comportamento bastante semelhante.
6. A taça de cristal
Um dos textos mais lidos, criticados e reproduzidos do design e da tipografia é “A taça de cristal ou a impressão deve ser invisível”, publicado em 1932 por Beatrice Warde. Nesse ensaio, a historiadora de tipografia faz uma comparação entre uma taça de vinho e a tipografia, com um foco bastante específico na transmissão da informação escrita como forma de disseminação do conhecimento. Partindo do pressuposto de que alguém que toma vinho busca não apenas sorver o líquido, mas apreciar suas características como a cor e o aspecto visual, pois entende que essas são informações importantes para “conhecer” o vinho, a tipografia deve ter o mesmo comportamento em relação ao seu conteúdo, ou seja, a mensagem: “a taça de cristal foi feita para revelar e não para esconder” (Warde in: Bierut et
al, 2010: 58). Uma taça inapropriada (opaca, de cor dourada e adornada com pedras coloridas) tem o mesmo efeito que uma composição tipográfica ruim: vai se sobressair em relação ao seu conteúdo.
Outras metáforas são utilizadas pela autora: num exame oftalmológico, um pequeno texto em negrito, composto em corpo 14, sem serifa, é mais “legível” que um texto de tamanho 11, regular e serifado. Mas um tamanho maior de texto e em negrito, é comparável a uma voz de palanque, que grita o tempo todo e torna o texto inaudível. Um tamanho mais discreto e bem composto é uma voz suave e contínua, sendo um “veículo imperceptível para a transmissão de palavras e ideias” (Warde in: Bierut et al, 2010: 59). Uma terceira metáfora que chama a atenção é a comparação da tipografia com janelas e vitrais góticos. Um vitral gótico tem a função de decorar, e transformar a passagem da luz invisível em formas coloridas, decompondo-a através da coloração de cada pedaço do mosaico. Essa é a tipografia empregada de maneira equívoca, pois não serve para revelar o conteúdo, a informação. O “bom” uso da tipografia é equivalente a uma janela transparente, pois permite que vejamos a paisagem externa sem interferências ou distorções.
7. Conclusão: Schizogrotesk
As tipografias classificadas como grotescas (sendo a Helvetica a mais conhecida, embora historicamente existam outras famílias consagradas como a Akzidenz Grotesk e a Franklin Gothic) foram projetadas com o objetivo de maximizar sua legibilidade e ao mesmo tempo se absterem de qualquer significado intrínseco em seus desenhos. Em outras palavras, foram projetadas para serem lidas sem serem notadas. Essa é uma das particularidades da tipografia invisível de Beatrice Warde, mas considerando o período em que foram desenhadas, e a maneira com que foram utilizadas, também se enquadram no comportamento esquizofrênico das retículas de Rosalind Krauss. O comportamento ambíguo dessas tipografias, inseridas no contexto histórico descrito, é muito parecido com o da pintura daquela época. Também a tipografia, numa maneira mais abrangente, é um recorte (no sentido de “miniatura”) do mundo, pois serve para transmitir a informação contida no mundo real – e naturalmente fazer essa informação retornar ao ambiente exterior. Seu comportamento análogo é o próprio discurso de um cartaz, por exemplo, ao pertencer a um estilo bastante particular, neste caso a pela Escola Suíça. Nesse exemplo do cartaz, a peça faz uma auto-referência ao estilo e época em que foi criado.
Algumas questões ainda foram levantadas e ficam pendentes: se a tipografia deve ser uma “taça de cristal”, ou seja, transparente de forma a apenas revelar seu conteúdo, o que explica a numerosa quantidade de novos desenhos (e redesenhos) tipográficos lançadas ano
após ano, onde cada projeto busca se diferenciar dos demais? Outra pergunta que parece natural é a relação do ornamento com a tipografia: sabemos que em questões restritas à legibilidade dentro do design de informação, tudo o que não é necessário é eliminado (uma das premissas do modernismo), mas o uso do ornamento não torna um desenho tipográfico único, com particularidades que o distingue dos outros e que também pode ser aproveitado num esquema de hierarquia visual?
Referências
CHEREM, Rosângela. “A grade e o duplo, questões para pensar a relação da retícula com a obra de arte” In:16o Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, ANPAP, Dinâmicas Epistemológicas em Artes Visuais. Florianópolis, 2007.
HIGGINS, Hannah B. The grid book. Cambridge: MIT Press, 2009.
KRAUSS, Rosalind E. The Originality of the Avante-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge: MIT Press, 1986.
LUPTON, Ellen: in ROBERTS, Lucienne and THRIFT, Julia: The designer and the grid. Rotovision. Minneapolis: 2002.
MEGGS, Phillip B. História do Design Gráfico. São Paulo: CosacNaify, 2009.
MÜLLER-BROCKMANN, Josef. Grid Systems in Graphic Design. Nova York: Hastings House Publishers, 1981.
ROCK, Michael. “Beyond typography” in: Eye Magazine nº 15. Inverno de 1994.
SAMARA, Timothy. Grid – Construção e Desconstrução. São Paulo: CosacNaify, 2007. WARDE, BEATRICE: in BIERUT, Michael et al (org.). Textos clássicos do design gráfico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.