• Nenhum resultado encontrado

O caso Battisti e os limites do jurídico

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O caso Battisti e os limites do jurídico"

Copied!
6
0
0

Texto

(1)

O caso Battisti e os limites do jurídico

Rachel Nigro•

Ex-ativista de esquerda – membro do “Proletários Armados pelo Comunismo” – PAC – um pequeno grupo dissidente das Brigadas Vermelhas – acusado de participação em quatro crimes de homicídio entre 1977 e 1979, Cesare Battisti vivia ‘exilado’ na França desde 1985 sob o manto da “doutrina Mitterand”. Obteve seu pedido de extradição negado pelas autoridades francesas em 1991 e em 1993 foi condenado à revelia pela Justiça de Milão e sentenciado à prisão perpétua.

Em 2004, dois anos após ter sido novamente solicitada, a França concede à Itália a extradição de Battisti, gerando protestos de intelectuais de esquerda e um imbróglio jurídico tão grande quanto o que assistimos hoje. No meio da discussão, Battisti vem para o Brasil. Enquanto isso, na França, todos seus recursos são rejeitados e a decisão de extradição torna-se definitiva. A França não é mais um território seguro para Battisti. Seus advogados recorrem à Corte Européia de Direitos Humanos e também não conseguem modificar a decisão.

Em 2007, Battisti é preso no calçadão de Copacabana. Em 2008, o CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados – rejeita seu pedido de refúgio com um placar apertado. O principal argumento do Comitê é de que não há provas de perseguição política na Itália, logo, não há razão para temer o retorno de Battisti ao seu país de origem. Nesse ponto, os advogados de Battisti recorreram ao então Ministro da Justiça, Tarso Genro, que concede a Battisti o status de refugiado em janeiro de 2009.

• Rachel Nigro: Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio), professora do departamento de Direito da Puc-Rio e bolsista doutor do projeto Ética e realidade atual: o que podemos saber, o

(2)

A decisão do ministro vem apoiada em parecer solicitado à Advocacia Geral da União – AGU – que, contrariando a principal razão aduzida no parecer do CONARE, entendeu que “haveria razões ponderáveis para supor” que Battisti poderia ter sua “situação agravada”, até mesmo com “risco de perseguição política, caso fosse entregue para cumprir pena em território italiano”. Vale adiantar que estas serão também as razões evocadas pelo presidente da República ao rejeitar o pedido de extradição solicitado pela Itália, ou seja, as mesmas disposições contidas no tratado de extradição assinado entre Brasil e Itália: “Risco de perseguição política atual e risco de agravar a situação do extraditando”. No entanto, contrariando o entendimento da AGU e do Ministro da Justiça, o STF julgou ilegal o ato de concessão de status de refugiado a Battisti1. Com efeito, a Corte autorizou, após três longos dias de discussão, por cinco votos a quatro, a extradição do italiano.

Mas a segunda parte da sessão reservava uma questão inédita, nunca antes enfrentada pelo Tribunal: a quem cabe a palavra final nos processos de extradição? Duas respostas foram sugeridas: a) ao STF e b) ao Presidente da República2. Por cinco votos a quatro, ficou então decidido que a última palavra sobre a entrega ou não de Battisti às autoridades italianas caberia ao presidente da República.

Mas algumas semanas depois o resultado do julgamento foi alterado, pois o ministro Eros Grau que, a princípio, tinha sido contado do lado daqueles que optaram pela supremacia do presidente, esclareceu seu voto: o presidente pode decidir, mas está adstrito ao tratado entre Brasil e Itália. Este ‘remendo’ na sua decisão tornou-a singular e, portanto, não condizente com nenhuma das alternativas. Então, até o momento, parece correto supor que o Supremo Tribunal Federal decidiu não decidir e, por mais incrível que pareça, ele pode ter boas razões para justificar tal ‘decisão’.

1

O voto vencedor foi do relator, o ministro Cesar Peluso, seguido por Lawandowski, Ayres Brito, Ellen Gracie e Gilmar Mendes, que entenderam: a) a concessão de status de refugiado não impede a extradição e b) não houve crime político. Os demais ministros, Joaquim Barbosa, Carmen Lucia, Eros Grau e Marco Aurélio entenderam que o STF não podia anular de ofício um ato de Ministro de Estado. 2 Quatro ministros optaram pela primeira tese: Gilmar Mendes, Cesar Peluso, Ellen Gracie e Lewandowiski. E cinco ministros optaram pela segunda alternativa, fundamentada pelo art. 84, VII e 90 da CF: Ayres Brito, Joaquim Barbosa, Carmen Lucia, Marco Aurélio e, à princípio, Eros Grau.

(3)

O ‘esclarecimento’ do então ministro Eros Grau não foi apenas singular, como também evidenciou a gravidade da questão. Juridicamente, a questão consiste em saber a quem cabe a palavra final em casos de asilo, extradição e expulsão de estrangeiros. E, se não há consenso quanto a esta resposta, a quem compete decidir de quem é a competência para decidir. As decisões do presidente, dentro de sua esfera de competência, são finais e irrecorríveis? Mesmo se autorizada por lei, existem limites à discricionariedade da autoridade no Estado de Direito? A quem compete decidir se uma competência autorizada pela Constituição enquadra-se na moldura normativa, ou seja, se ela é, em última análise, constitucional? Voltando ao caso Battisti: a decisão do então presidente da República pode ser revertida pelo STF?

Neste turbilhão de questões, este texto pretende ressaltar apenas uma questão jurídica: a quem compete delimitar competências auto-referenciais? Mas também pretende ultrapassar os limites do jurídico e arriscar adentrar nos domínios da moral e da política. Com efeito, ao analisarmos uma questão que parece de mera técnica jurídica, vamos nos deparar com uma profunda reflexão sobre os fundamentos do direito, da política e da moral. São essas indagações e não exatamente o desenrolar da questão jurídica que passo a analisar agora.

No Estado de Direito, todas as decisões devem ser motivadas, ou seja, elas devem expor as razões que as fundamentam. Escolhas imotivadas são arbitrárias e anti-democráticas. A República não existe sem transparência. O povo – o ‘dono’ da “coisa” pública – exige satisfação. E dar satisfação significa, na linguagem jurídica, fornecer razões, motivar a decisão. Essa é uma exigência constitucional, independe da vontade de qualquer pessoa ou órgão. Se as razões aduzidas são boas o suficiente para sustentar a decisão, este é um outro problema, talvez sem solução. Mas, ao menos, os argumentos são expostos e passam a ter efeito semi-vinculante para futuras decisões.

Desse modo, mesmo se o presidente da República tenha competência absoluta para decidir casos de extradição – o que não é unanimidade entre os ministros do STF – e mesmo que alegue tratar-se de questão política e não jurídica – o que teoricamente lhe livraria de fornecer razões jurídicas – o ‘soberano’ precisa fornecer razões, explicar

(4)

seu gesto, dar satisfação aos ministros do Supremo Tribunal Federal que tiveram seus votos vencidos, à população brasileira e italiana. Mas as razões oferecidas pelo presidente para justificar sua decisão foram as mesmas aduzidas pela AGU que, como já assinalado, produziu um parecer técnico-jurídico utilizando as mesmas expressões contidas no tratado: risco de ter sua situação agravada e risco de perseguição política. Vale notar que, apesar de reivindicar que trata-se de uma questão ‘política’, as únicas razões fornecidas foram ‘jurídicas’.

Nos sistemas jurídicos modernos, todas as competências das autoridades estatais estão definidas de forma relacional mediante normas jurídicas, não cabendo ao titular decidir livremente, de forma auto-referencial. Esta é uma “heteronomia absoluta” própria do “Império da lei” (rule of law), expressão inglesa para nosso “Estado de direito”. Todos se submetem a normas estabelecidas de acordo com procedimentos legais, independentemente de desejos e vontades subjetivas. O direito prevê competências das autoridades e direitos dos indivíduos de modo relacional, isto é, sempre “conforme uma lei”. Assim, apesar do presidente da República ser detentor da competência para autorizar ou não a extradição de Battisti, ainda compete ao STF verificar, ao menos formalmente, se a decisão presidencial está de acordo com a ‘moldura constitucional’, no caso, a Constituição brasileira e o tratado entre Brasil e Itália.

Recapitulando o caso: no atual sistema jurídico-político vigente, o presidente da República tem discricionariedade para decidir casos de extradição, desde que obedeça a lei a respeito, no caso, o tratado. Mas quem diz se sua decisão é uma entre as possíveis dentro da moldura normativa válida é o STF. Na linguagem jurídica, este fenômeno é chamado de “determinação auto-referencial de competência ou competências auto-referenciais”3. No direito, isto acontece toda vez que não podemos encontrar um método que constate os limites de uma atividade decisória. Nesses casos, a autoridade competente pode decidir conforme seu livre-arbítrio, indicando ela mesma os limites de sua competência. Trazendo a questão para o campo da

3 Cf. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico, pág. 271. Como marca Dimoulis, o paradoxo da auto-referencialidade pode ser entendido através do topos cético que se exprime no brocardo “quis custodiet

(5)

interpretação jurídica, deveríamos reformular a pergunta do seguinte modo: como é possível que a autoridade, que fixa sozinha os limites de sua competência, evite a atuação arbitrária? Apesar da estratégia relacional na distribuição de competências, o direito positivo precisa enfrentar a questão: quem decide? Quem é o soberano?4

Poderíamos entrar agora numa longa discussão sobre os limites do direito e da política ou, em outros termos, os limites jurídicos da democracia, mas escolhemos outro caminho: a filosofia clássica. No diálogo Eutifron5, Platão nos faz refletir sobre o paradoxo da auto-referencialidade ou, nos termos do ceticismo, o modo do círculo vicioso6. Neste texto sobre a natureza da piedade, Sócrates tenta convencer Eutifron a não denunciar seu pai pela morte de um escravo. Sócrates pergunta a Eutifron qual a essência da piedade e este lhe responde que é aquilo que é amado pelos deuses. Então Sócrates propõe a questão que deixará Eutifron nervoso: “Os deuses amam as ações porque elas são piedosas ou as ações são piedosas e por isso os deuses as amam?” E Eutifron vê-se, então, aprisionado numa “movimentação em giro”, como ele mesmo define a argumentação socrática, nos indicando a circularidade paradoxal do argumento. Porém, independentemente de, ao final do texto, Eutifron encontrar-se ofuscado pela brilhante eloqüência do filósofo, este não consegue dissuadi-lo de denunciar seu pai.

Esta situação limite também pode ser traduzida na clássica “teoria dos mandamentos divinos”, onde se discute se Deus é o criador da moralidade. A questão pode ser colocada nos seguintes termos: “as ordens de Deus são boas porque vem de Deus ou porque tem boas razões que as sustentam?” Se Deus tem razões para seus comandos, então são essas razões e não a sua vontade o que explica porque algumas ações são moralmente corretas e outras não. Mas esta explicação implica em considerar a teoria dos mandamentos divinos falsa, ou seja, não é Deus quem cria a moralidade, Ele apenas a ratifica. Por outro lado, se não existem razões para justificar o comando divino, então as ordens de Deus são arbitrárias, o que o torna imperfeito e

4 Vale lembrar que esta questão é colocada e enfrentada por Carl Schmitt na sua disputa com Hans Kelsen sobre o guardião da Constituição. Giorgio Agamben retoma essa problemática através do conceito de “estado de exceção”.

5 http://www.consciencia.org/eutifron-dialogos-de-platao

(6)

prejudica sua autoridade moral. Este é o paradoxo: se aceitamos a teoria dos mandamentos divinos, nenhuma ação pode ser considerada intrinsecamente certa ou errada, pois a avaliação depende exclusivamente da vontade divina. Logo, seus comandos são arbitrários e não podem fornecer a base para legitimar sua moralidade. Por outro lado, se Deus possui razões para seus comandos, então são essas razões que explicam porque alguns atos são corretos e outros não.

A questão que está em jogo tanto no dilema de Eutifron quanto na teoria dos mandamentos divinos é se existem razões objetivas, independentes de Deus, dos deuses, do soberano ou da opinião pessoal de cada um que devem prevalecer sobre a vontade da autoridade, por maior que seja seu poder de escolha. Se estas razões existem per se e, mais grave ainda, se elas estão expressos em textos escritos, então são estas razões que legitimam os comandos e não a vontade da autoridade política. Mas esta é uma questão bem mais complicada. Esperamos voltar a discuti-la aqui. Por enquanto, aguardamos ansiosos o desfecho deste caso.

Referências

Documentos relacionados

O Museu Digital dos Ex-votos, projeto acadêmico que objetiva apresentar os ex- votos do Brasil, não terá, evidentemente, a mesma dinâmica da sala de milagres, mas em

nhece a pretensão de Aristóteles de que haja uma ligação direta entre o dictum de omni et nullo e a validade dos silogismos perfeitos, mas a julga improcedente. Um dos

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

Tal será possível através do fornecimento de evidências de que a relação entre educação inclusiva e inclusão social é pertinente para a qualidade dos recursos de

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

Evento que exigiu o fim da impunidade para os Crimes de Maio de 2006 reuniu vítimas da violência policial de vários Estados e deixou claro que os massacres de pobres e jovens

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política