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PERCURSOS ESCOLARES NO PRIMEIRO GRAU: significados e práticas familiares de escolarização (239) ZAGO, Nadir. Universidade Federal de Santa Catarina

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PERCURSOS ESCOLARES NO PRIMEIRO GRAU: significados e práticas familiares de escolarização (239)

ZAGO, Nadir

Universidade Federal de Santa Catarina

A comunicação elaborada para este encontro se apoia em resultados de pesquisas que venho desenvolvendo nos últimos anos e que têm por objetivo investigar como se desenvolve a escolaridade no ensino fundamental, a partir dos sujeitos da escolarização. A preocupação tem sido em abordar esta problemática partindo de "dentro" dos meios populares, isto é, do cotidiano da população em idade escolar, das condições concretas de escolarização, do significado da educação formal e das práticas familiares quanto a escolarização dos filhos.

A realidade estudada levanta um dos problemas que tem uma grande tradição nas Ciências Humanas e Sociais : o das desigualdades sociais e escolares. As abordagens que marcaram a compreensão desta problemática variaram no tempo. Durante os anos 60 e 70 foram as teorias da carência ou da privação sociocultural que serviram de parâmetros explicativos para as diferenças nos resultados escolares. Segundo esta orientação, os alunos fracassam pela pobreza do seu meio econômico e cultural que resulta em carência de estimulação perceptiva, sensorial, deficiências afetivas, cognitivas e lingüisticas (SOARES, 1989:13). A carência está na família, que por sua situação de pobreza, não proporciona estímulos suficientes e adequados ao bom desenvolvimento escolar. O conceito de privação cultural e do que é adequado, correto, bom e favorável ao desenvolvimento (psicológico, afetivo e intelectual) do aluno e de seu desempenho futuro, acha-se apoiado nos valores e comportamentos das classes médias e superiores.

As interpretações culturalistas com base na carência ou na privação dos meios populares face a cultura dominante, deram origem a inúmeros programas, já bastante conhecidos, de intervenção compensatória nas instituições escolares. Críticas posteriores mostraram que ao invés de contribuir na resolução dos problemas sociais, estes programas serviram para ocultar as razões de ordem estrutural responsáveis pela desigualdades sociais.

A pretensa neutralidade da escola sobre os resultados escolares, que marcou as teorias culturalistas, é desmistificada pelas abordagens críticas desenvolvidas na Sociologia, a partir

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dos anos 70. Nestas, o debate sobre a escola estava apoiado na forte correlação estatística entre fracasso ou sucesso escolar e a origem social. "Inicialmente dominada por uma

abordagem culturalista que procurava no meio familiar da criança as inferioridades permitindo explicar os insucessos escolares, a Sociologia da Educação viu em seguida emergir uma

corrente conflitualista bem mais crítica em relação à estrutura social e o fracasso escolar das classes populares compreendido não em termos de carências mas em termos de relações de classe" (LEGER e TRIPIER, 1986:35).

As teorias da reprodução tiveram importantes contribuições para a compreensão das desigualdades sociais, entre elas, a de ter permitido deslocar a questão central do debate, apoiada nas características individuais (aptidão, dom) e da carência cultural, para uma visão mais crítica da relação educação e sociedade. Mas permaneceu uma lacuna deixada pelas teorias da reprodução, como o pouco interesse sobre o que se passa na família, suas ações e significados face à educação escolar. As atividades familiares não são observadas, mas deduzidas da condição de classe a que pertencem os sujeitos. Estes ficam ocultados, determinados pela sua origem social e dominados pelas forças imanentes da sociedade.

A questão da singularidade é então um problema não resolvido, quer pelas teorias da

reprodução, quer por aquelas da carência cultural. Para as primeiras, o problema se coloca por considerarem o princípio de homologia entre as estruturas e para as segundas, pela ênfase ao papel determinante das influências do meio sobre o indivíduo, sem considerar o sentido que um mesmo elemento objetivo tem para ele (CHARLOT; BAUTIER e ROCHEX, 1992:17). Estas teorias têm em comum ainda o fato de apresentar a escola "como um simples operador transformando as diferenças sociais iniciais em diferenças sociais ulteriores" e de considerar a existência de uma "homologia de estrutura (uma "correspondência") entre o sistema de posições sociais iniciais, aquele das posições escolares e o das posições sociais finais" (1992:14). Vale observar que os estudos sobre as desigualdades escolares durante muito tempo conferiram às famílias populares um status de passividade diante dos mecanismos de seleção e de exclusão escolar.

Estudos mais recentes (refiro-me aqui especialmente à literatura consagrada aos problemas escolares nos meios populares), têm permitido o desenvolvimento de novos temas de análises e abordagens microssociais que levam em consideração como se produz fracasso escolar no cotidiano da população, quais as relações que se estabelecem entre as famílias e a escola, entre outras questões que colocam os sujeitos sociais como informantes principais da pesquisa. Como explicar os casos de fracasso mas também de sucesso escolar nos meios populares? Os casos de sucessos escolares, "atípicos", "trajetórias marginais ou excepcionais", como também têm sido chamados, contrariam o que é estatisticamente provável, ou ainda, o conhecimento que o pesquisador tem sobre o funcionamento provável do mundo social (LAHIRE, 1997). Estudos sobre o sucesso escolar nos meios populares, constituem uma

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preocupação recente nas pesquisas educacionais e representam um campo aberto de análise, certamente com muito ainda a elucidar.

Se as teorias da carência cultural insistiram nas "faltas" das famílias populares face à cultura legítima, várias pesquisas têm possibilitado conhecer melhor o ambiente doméstico como espaço de socialização, no seio do qual se desenvolvem as práticas educacionais. Do mesmo modo, enquanto os estudos estiveram centrados nas desigualdades escolares, onde tudo parecia depender das estruturas sociais objetivas, o aluno e sua família ficaram reduzidos a um conjunto de variáveis econômicas e sociais. Em épocas mais recentes, um certo número de pesquisas têm se voltado para a compreensão dos processos escolares, com especial atenção para os projetos e às práticas familiares e seus efeitos na escolarização dos filhos, dando assim visibilidade a uma dinâmica social (240). Qual o significado da escola e do trabalho escolar ? Como explicar as variações em termos de fracasso e sucesso escolar encontradas nos meios populares ? são questões, entre outras, que necessitam ser melhor investigadas.

Os trabalhos de campo que tenho desenvolvido junto às famílias de meios populares são suficientemente reveladores da necessidade de se estudar as situações escolares

articuladas com outras dimensões da vida social e familiar (materiais e simbólicas). Com estas preocupações, encontrei na abordagem defendida por B. Lahire (1977), uma possibilidade de interlocução, especialmente no que se refere à "noção sociologicamente construída de configurações sociais" (241). O conceito de configuração social é aberto, servindo mais para designar uma abordagem construída pouco a pouco no curso da pesquisa empírica, do que a de pretender estabelecer uma definição estável. Ao invés de eleger fatores explicativos isolados do seu contexto, a abordagem adotada pelo autor privilegia uma análise capaz de dar conta das configurações familiares singulares, no quadro das relações sociais de

interdependência.

Como Lahire, outros autores estão voltados para a tentativa de superação da dicotomia objetivo/subjetivo e dos reducionismos disciplinares, sejam eles psicológicos ou sociológicos, que tanto marcaram a pesquisa educacional, do mesmo modo que as ciências sociais e humanas, de modo geral.

É dentro desta perspectiva de análise que minhas interrogações se aproximam neste estudo sobre a formação dos percursos escolares no primeiro grau. O trabalho procurou privilegiar quatro eixos principais de análise : 1) história familiar (origem social, estrutura familiar, mobilidade demográfica, inserção no mercado de trabalho), 2) situação escolar e acontecimentos que marcaram o curso de escolarização dos filhos (aprovação ou reprovação, interrupções, assiduidade à escola, trabalho, condições materiais de escolarização), 3) a ocupação do tempo dos filhos e seu significado, 4) a relação da família com a escola,

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envolvendo os valores sobre a educação formal, os projetos e a mobilização dos pais em termos escolares.

Os dados foram obtidos a partir de entrevistas semi-diretivas realizadas com famílias, com filhos em idade de escolarização obrigatória, residentes em um bairro da periferia urbana de Florianópolis. Quanto as características socio-econômicas, algumas diferenças podem ser observadas entre a população estudada, entre elas : o tipo de moradia (50% das famílias moram na favela), renda (não superior a 4 ½ SM), escolaridade e ocupação dos pais, tamanho da família.

Com base nos relatos tanto dos pais, quanto dos seus filhos, a análise esteve voltada para a compreensão dos percursos escolares enquanto processo e na sua interação com as

disposições sociais, simbólicas e das práticas definidas pelos sujeitos sociais. Como se constrói a exclusão do sistema de ensino e, por outro lado, como explicar os casos "atípicos" de permanência no sistema até a conclusão do ensino fundamental, faz parte desta análise. O propósito do trabalho não foi com o estabelecimento de uma correlação fator por fator, mas em uma análise dos percursos a partir das configurações sociais. No ambiente doméstico, como observa LAHIRE (1997), as combinações podem ser múltiplas entre as dimensões moral, cultural, econômica, política, religiosa e estas podem definir configurações sociais suscetíveis de influenciar nos resultados escolares.

O texto que segue reúne dados relativos ao valor social da escola nos meios populares e a extensão da escolaridade, esta diretamente relacionada com a problemática da interrupção dos estudos no ensino fundamental.

O valor social da escola e a dicotomia entre a obrigatoriedade oficial e a escolaridade real

Conforme já mencionado, uma das tendências que marcou as análises sobre o fracasso escolar, preconizava que as condições sociais e culturais inerentes às camadas populares eram inadequadas à adaptação escolar. Pouco se sabia sobre o significado da escola para esses meios sociais. Inúmeros trabalhos realizados com famílias populares, no Brasil e no

estrangeiro, confirmam a forte valorização e mobilização dos pais pela instrução dos filhos, contrariando a tese da privação sócio-cultural, amplamente difundida nos anos 60 e 70.

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É preciso levar em conta, como observa De Queiroz, que os valores e as práticas são de natureza distinta se considerarmos o momento da história econômica e social de uma

sociedade em que a reprodução social era relativamente independente dos diplomas escolares de outro, mais recente, cujo capital dominante é representado pelo capital escolar (1995:63-65). É neste segundo momento que a mobilização mais consciente e calculada dos sujeitos da escolarização se impõe como uma necessidade.

Mesmo diante dos obstáculos materiais e insucessos escolares, de um modo geral as famílias pertencentes aos meios populares mantêm uma relação positiva com a educação escolar. Destituídos de capital econômico e material, a escola torna-se a única via que os pais podem vislumbrar como possibilidade de integração social e profissional dos filhos. O nível de instrução correspondente ao diploma de primeiro grau é reconhecido como uma condição indispensável para ter acesso ao mercado de trabalho. Esta demanda está fortemente apoiada na percepção dos sujeitos entrevistados sobre as transformações no mundo do trabalho e as dificuldades de integração dos jovens na vida ativa.

As ambições sobre o futuro dos filhos são limitadas mas representam sempre a superação das condições sociais dos pais: da renda incerta do pai pedreiro, pintor ou que vive de biscates, da mãe faxineira ou empregada doméstica (242) e de suas trajetórias com dificuldades múltiplas. Estudar para "ser alguma coisa que garanta a vida", "para não ter uma vida fraca", "estuda até se formá prá tê um emprego melhor" são, entre outros propósitos gerais, os que se repetem de forma quase idêntica nas entrevistas quando o assunto é o futuro dos filhos, seja do sexo masculino ou feminino. Sobre eles os pais projetam a esperança de superação de suas condições de vida através de uma inserção profissional em ocupações que, embora modestas, sejam mais valorizadas: "o que eu não tive, eu quero prá eles", "o que eu não fui, eu quero prá eles" são, entre outras expressões, as que reatualizam a própria história dos pais.

A escola representa um instrumento necessário de obtenção dos conteúdos

fundamentais para fazer face às diversas situações da vida quotidiana (fazer contas e através da leitura, poder interpretar os diversos códigos do mundo urbano) e inserção no mercado do trabalho, mas também uma instância de socialização e ocupação dos filhos menores, como a proteção do contato com a rua e tudo o que temem deste universo (drogas, más companhias). Instrução e socialização são pois inseparáveis, como constatou De Queiroz (1995:75). A relação que as famílias populares mantém com a escola responde assim a uma multiplicidade de demandas relacionadas a fatores simbólicos e heterogêneos. Estas demandas são

freqüentemente frustradas, dando origem a conflitos entre as famílias e a escola, conforme já foi mostrado em outro artigo (ZAGO, 1997).

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Se a educação escolar constitui hoje um valor inegável nos meios populares, não existe necessariamente um projeto escolar nem mesmo uma previsão sobre o tempo de

permanência no sistema de ensino. Isto porque não se perde de vista que sua continuidade depende das condições reais de vida e por isso mesmo as projeções em termos do futuro escolar são pouco ambiciosas e de perspectivas vagas : "estudar até a 6a série", "se tivesse condições poderia estudar mais", enquanto um grupo de famílias tentam assegurar o primeiro grau completo ou o segundo grau.

É especialmente sobre a definição de um projeto escolar, do tempo de permanência no sistema de ensino e das condições objetivas de escolarização, mais do que da avaliação feita pelos pais sobre a escola, seus programas de ensino e suas práticas pedagógicas, que se observam as principais diferenças nas relações que os meios populares estabelecem com a educação. O levantamento das histórias ou itinerários escolares evidenciam percursos

marcados pela descontinuidades na relação com o sistema educacional, com saídas e retornos à escola, aqui denominados "percursos descontínuos", de outros que seguem um curso regular, sem interrupção ou "percursos contínuos".

O primeiro caso retrata a realidade observada em um número significativo de famílias estudadas (16 sobre um total de 34), nas quais a interrupção escolar é geralmente precoce para o conjunto dos filhos, sendo poucos aqueles que conseguem ultrapassar a fronteira entre a 4a e a 5a séries do primeiro grau. Na sua grande maioria, apresentavam um atraso escolar acentuado (dois ou mais anos), conseqüência de interrupções temporárias dos estudos e/ou reprovações. Dos 16 filhos com mais de 14 anos que não freqüentavam a escola, apenas quatro tinham mais de 4 anos de estudo, mas nenhum deles havia completado o primeiro grau.

Na imprevisibilidade do futuro, para muitos a única perspectiva que existe é a de apostar nas chances e no destino traçado segundo o interesse de cada um : "eles podem trabalhar para chegar onde eles querem", "eu acho que o futuro deles, eles é que tem que procurá". Ou ainda, é no quadro do ensino noturno associado ao trabalho que se apresenta a possibilidade de recuperação do tempo passado fora dos bancos escolares. A passagem pelo ensino noturno faz parte da história escolar de muitos dos sujeitos desta pesquisa, mas poucos são aqueles que ainda permanecem no sistema de ensino.

Assim, a importância concedida aos estudos, embora fundamental para justificar a permanência na escola, não é uma condição suficiente. Os percursos escolares em

determinados grupos sociais são permeados por muitos obstáculos. No pano de fundo estão as condições sócio-econômicas desfavoráveis e o estado de pobreza crônica, decorrentes dos baixos salários, desemprego ou subempregos. Esta realidade social, comum nos estratos mais desfavorecidos da população, tem reflexos consideráveis sobre o desenvolvimento escolar.

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Como observa De Queiroz (1996:71), nos casos em que produz uma grande distância entre o universo cotidiano das famílias e o universo escolar, as relações com a escola se tornam muito problemáticas.

Apesar das condições pouco favoráveis à adaptação escolar, há um investimento das famílias, centralizado sobretudo na figura da mãe, para garantir aos filhos um nível mínimo de instrução. Os percursos escolares analisados que mostram o retorno de ex-alunos à escola mesmo após vários anos de interrupção é, neste sentido, revelador. Por isso mesmo é preciso considerar que pertencer ao grupo dos não escolarizados não significa necessariamente um caso de abandono definitivo da escola. O curso escolar acontece geralmente dentro de um processo descontínuo no tempo, permeado por entradas, saídas e retorno à escola, fenômenos estes que acentuam a distância entre a idade do aluno e a idade escolar. A constatação a que se pode chegar, é do atraso escolar que não é resultado de deficiências intelectuais mas de uma situação complexa que conjuga problemas de diferentes ordens.

Este fenômeno de descontinuidade do curso escolar não é pois resultado de uma variável isolada mas é conseqüência de uma configuração de fatores. Os percursos escolares assim identificados, reúnem realidades sociais e econômicas muito próximas, caracterizadas, seja pela falta crônica de recursos e instabilidade de emprego, seja pela luta contínua para resolver problemas imediatos de sobrevivência e moradia, situações estas freqüentemente acompanhadas de mobilidade geográfica acentuada e da introdução precoce dos filhos no trabalho. Muitos exemplos poderiam ser citados para ilustrar como a mobilidade geográfica acompanhada de precárias condições de vida desestabiliza a relação com os estudos. A ela geralmente se associam a inserção precoce no trabalho; as dificuldades em responder as solicitações da escola em termos de material escolar; as dificuldades em acompanhar o currículo da escola e a própria desmobilização dos alunos em permanecer na instituição após repetidos insucessos escolares.

O fenômeno da interrupção escolar precoce não é extensivo ao conjunto da população estudada. Do total de famílias estudadas, em 18 não haviam sido registrados casos de

interrupção dos estudos em idade de escolarização obrigatória. Tomando os dados, comparativamente, sobre a situação escolar dos filhos de 7 a 14 anos pertencentes as 16 famílias cujos percursos escolares sofreram interrupções em relação ao grupo de 18 aqui analisadas, as diferenças são significativas: estavam escolarizados 61% dos filhos do primeiro grupo contra 100% do segundo. Já aqueles com mais de 14 anos, 27 % do primeiro (27 anos correspondia à idade máxima dos filhos) contra 71% no segundo (a idade máxima era 20 anos), estavam escolarizados. Há, portanto, uma variação significativa no histórico escolar nos meios sociais considerados.

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Alguns elementos estão associados as diferenças assinaladas entre os percursos. Um deles refere-se à presença do trabalho em idade escolar. A inserção da criança no trabalho e sobretudo quando esta representa uma forma contribuição à subsistência familiar, diminui as possibilidades de permanência no sistema educativo. Os dados da pesquisa são reveladores desta observação : dos 14 membros com idade de 7 a 14 anos que não freqüentavam a escola no momento da pesquisa, 10 participavam regularmente da renda familiar. O trabalho infantil, conforme as condições acima, é pouco representativo nas famílias cujos filhos tinham uma escolaridade sem interrupção. Nas 18 mencionadas, apenas em três foi verificada a

participação de menores de 14 anos na renda familiar, nas demais, a ocupação do tempo neste período da vida é voltada preferencialmente para os estudos e as atividades lúdicas, em vários casos associadas às atividades domésticas.

Alguns fatores favorecem a entrada mais tardia dos filhos no mundo do trabalho bem como a prolongação dos estudos. Entre estes fatores, uma maior estabilidade tanto na renda quanto na ocupação dos adultos no mercado de trabalho, o nível de escolaridade dos pais, famílias menos numerosas mas também os valores e práticas familiares de socialização. Cabe no entanto observar que não há uma homologia entre a ausência ou presença de interrupção dos estudos e resultados escolares (avaliados em termos de aprovação ou reprovação). O atraso escolar, conseqüência de uma ou mais reprovações, assim como um desempenho que caracteriza uma maior adapatação à escola (sucesso escolar), encontram-se presentes tanto nos percursos escolares contínuos quanto descontínuos.

Sem deixar de pôr em evidência as condições econômicas da população estudada, é preciso reconhecer que elas não determinam mecanicamente os comportamentos escolares, tanto dos pais como de seus filhos. Mesmo entre as famílias economicamente mais pobres observam-se comportamentos que demarcam resistências à exclusão precoce da escola bem como à inserção das crianças no mundo do trabalho. A análise desenvolvida, apoiada no estudo da escolaridade a partir do contexto familiar, revela racionalidades diferenciadas nas práticas de socialização e escolarização dos filhos.

Esta constatação remete para a necessidade de considerar a dinâmica interna familiar e as práticas escolares e seu significado, como elementos importantes na compreensão dos percursos escolares. Os elementos dominantes que permitem reunir estes percursos em função da presença ou ausência de interrupção escolar ou ainda de aprovações ou

reprovações, não dão visibilidade aos fatores secundários ou periféricos, possíveis de exercer influências em termos de uma maior ou menor adaptação à escola.

A mobilização familiar, embora não garante necessariamente "a sobrevivência

escolar", tem um papel considerável na escolarização. Contrariamente ao argumento da "falta de interesse", a pesquisa de campo revela a luta diária pela sobrevivência, pela garantia da

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moradia, da educação, entre outras questões fundamentais. As abordagens culturalistas apoiadas na "carência dos meios populares" como explicação para o fracasso escolar não foram superadas. Em entrevistas com professores, pude constatar a presença ainda forte de argumentos sobre o insucesso dos alunos apoiados na "separação dos pais", na "falta de interesse" pela educação dos filhos, entre outros. Desmistificar este rótulo de "famílias desestruturadas" e "pais" como sujeitos passivos é fundamental em qualquer escola pública. Este esforço não cabe somente à escola mas, como observou Gomes, "nenhuma política pública pode ser pensada sem um maior conhecimento da situação concreta das populações destinatárias" (1994:61).

Comos mostram os estudos de campo, o esforço pessoal e a existência de vaga na escola pública não são condições suficientes para garantir a permanência no sistema de ensino. Neste sentido, situar as discrepâncias entre matrícula inicial e matrícula final como evasão escolar é, no mínimo, uma questão mal colocada. O mais apropriado é se falar em exclusão, que tem origem na privação das condições necessárias à sobrevivência, nas condições precárias de trabalho, na oferta de uma escola que, como já mostraram vários estudos, acentua as desigualdades sociais e escolares.

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