• Nenhum resultado encontrado

BUTLER ALÉM DO GÊNERO: A PERFORMATIVIDADE NA POLÍTICA DE RECONHECIMENTO

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "BUTLER ALÉM DO GÊNERO: A PERFORMATIVIDADE NA POLÍTICA DE RECONHECIMENTO"

Copied!
13
0
0

Texto

(1)

BUTLER ALÉM DO GÊNERO: A PERFORMATIVIDADE NA POLÍTICA

DE RECONHECIMENTO

Lorena Rúbia P. Caminhas1 Resumo: Esta investigação se debruça sobre o conceito de performatividade na obra de Judith Butler, buscando compreender como ele perpassa tanto a explicação sobre a conformação do gênero quanto a edificação de uma noção de reconhecimento. Trata-se de uma investida de caráter exploratório voltada para seis livros publicados pela autora dentre os anos de 1990 a 2013, quais sejam: Gender Trouble (1990), Bodies that matter (1993) e Undoing Gender (2004) na temática de gênero; e Precarious Life (2004), Frames of War (2009) e Dispossession (2013) em relação às questões de precariedade, vulnerabilidade e reconhecimento. No desenrolar da reflexão sustento que a performatividade está na base de uma compreensão sobre as possibilidades emancipatórias da política e, por esse motivo, abrange as diversas problemáticas discutidas por Butler.

Palavras-chave: Performatividade. Gênero. Reconhecimento.

Introdução

Este texto propõe uma reflexão acerca da noção de performatividade na obra de Judith Butler, buscando compreender como ela se desdobra para além das questões acerca de gênero e figura nos contornos de uma política de reconhecimento. Essa empreitada é de caráter fundamentalmente exploratório, e é traçada a partir de uma incursão em seis diferentes livros da autora, separados em duas categorias: a) os estudos sobre gênero, composto por Gender Trouble:

feminism and the subversion of identity lançado em 1990, Bodies that matter:on the discursive limits of sex publicado em 1993 e Undoing Gender de 2004; b) as discussões sobre vulnerabilidade,

precariedade e reconhecimento, representadas pelas publicações Precarious life: the power of

mourning and violence impresso em 2004, Frames of war: when is life grievable? disponível em

2009 e Dispossession: the performative in the political escrito em coautoria com Athena Athanasiou em 2013.

A escolha dos seis livros, uma modesta seleção do conjunto da obra da autora, foi realizada levando em consideração a popularidade dos títulos e as traduções disponibilizadas, sejam em português ou espanhol. Certamente a análise realizada a partir de tal corpus não reflete a

(2)

completude da discussão sobre a performatividade, que perpassa outros livros e textos de Butler. Ademais, a divisão promovida entre os escritos não faz jus tanto à circulação do conceito em pauta quanto da abrangência dos temas tratados; entretanto, ela é útil e profícua para fins analíticos, principalmente para estabelecer um panorama da circulação da performatividade. Por fim, é preciso salientar que o estudo foi realizado a partir de dois procedimentos: leitura e fichamento de cada exemplar e, posteriormente, efetuou-se uma busca por palavras-chave para identificar os momentos exatos de mobilização da noção.

A performatividade do gênero

No prefácio escrito em 1990 do livro El género en disputa a autora assinala que a noção de performatividade passou por um conjunto de transformação à medida que diversas críticas emergiram. Nessa obra, a primeira definição do conceito possui duas ramificações: a) ele pode ser entendido como uma metalepse2, na qual “a antecipação de uma essência provisória de gênero origina aquilo que determina como exterior a si mesma” (BUTLER, 2007, p. 17); e b) é composto por uma repetição e um ritual, que adquirem seus efeitos a partir de processos de naturalização. A performatividade emerge nesse livro para questionar uma suposta essência/ontologia do gênero e um modelo substancialista de identidade (que perpassou diversos movimentos de política indenitária). Segundo Butler (2007), o gênero se edifica mediante a repetição de atos descontínuos, regulados por uma normatividade que prevê a continuidade entre gênero, sexo e desejo. Na letra da autora

Esses atos, gestos e realizações (...) são performativos no sentido de que a essência ou a identidade que pretendem afirmar são invenções fabricadas e preservadas mediante signos corpóreos e outros meios discursivos. O fato de que o corpo com gênero seja performativo mostra que não tem uma posição ontológica distinta dos diversos atos que conformam sua realidade (BUTLER, 2007, p. 266, grifos no original).

Afirmar que o gênero é performativo significa dizer que a identidade e a divisão de gênero fundamentam e reforçam a si mesmas no momento de repetição da norma reguladora, dando a impressão de uma coerência interna. Destarte, são três elementos principais destacados no processo: primeiro, a ontologia do gênero fundamenta as expressões de gênero ou, tal como escreve Butler, “o gênero é performativo, isto é, conforma a identidade que supõe ser” (BUTLER, 2007, p. 84); segundo, a produção do gênero se realiza mediante a repetição das normas; e, terceiro, as normatividades estabelecem uma continuidade entre as características atribuídas ao gênero, de

2 Uma figura de linguagem que expressa as relações lógicas de contiguidade entre o antecedente e o consequente. No caso mais específico do gênero, a performatividade como metalepse explica que a ontologia de gênero é consequência da própria repetição dessa ontologia em atos e discursos.

(3)

modo que “o efeito substantivo do gênero se produz performativamente e é imposto pelas práticas reguladoras da coerência de gênero” (BUTLER, 2007, p. 84).

A teoria de Butler, conforme ela mesma adverte, “às vezes oscila entre entender a performatividade como algo linguístico e apresenta-la como teatral” (BUTLER, 2007, p. 31). Na concepção da autora essa oscilação se deve ao fato de o ato discursivo ser executado, principalmente porque ele se apresenta diante de um público e está sujeito a interpretações. Ademais, os enunciados têm consequências práticas, uma vez que nomeiam e posicionam as coisas e as pessoas no mundo. A performatividade em Butler procura estabelecer a relação entre “uma teoria linguística do ato discursivo com os gestos corporais” (BUTLER, 2007, p. 31), partindo do pressuposto de que o discurso é um ato com desdobramentos linguísticos e práticos. Ciente dessa visada teórica, a performatividade não pode ser interpretada como “nem um livre jogo nem a autorrepresentação teatral; nem pode ser simplesmente equiparada com a noção de performance no sentido de realização” (BUTLER, 2002, p. 145).

Se a performatividade colabora para pensar o gênero como um processo de construção e reconstrução, ela também afirma uma subordinação às normas histórica e socioculturalmente estabelecidas. Mas não apenas: junto aos elementos de subjugação estão os de transformação; “fazer” o gênero possibilita que ele seja “desfeito”. A iterabilidade e a citacionalidade são características da performatividade que explicam tanto a repetição e reafirmação das normatividades, quanto as oportunidades de alteração dessas mesmas normas: o jogo estabelecido entre reforço e contradição demonstra o caráter provisório dos fenômenos performativos, sempre sujeitos à revisão. Mas como especificamente a performatividade funciona em relação ao gênero?

Repetir e retomar uma norma reguladora permite a edificação do gênero e de sua essência: os atos descontínuos que reforçam o gênero nos distintos corpos autorizam determinada ontologia de gênero, que só é possível a partir da repetição desses mesmos atos. É um processo que envolve reiterar e citar. Mas esse procedimento não é um construto integral e terminado; ele é, ao invés, composto por brechas, abertas por aquilo que a norma determina como exterior a si mesma (o que a autora denomina de “exterior constitutivo”). Para uma lei ser estabelecida ela precisa enunciar aquilo que não é; entretanto aquilo que nega é parte de si mesma. O gênero está sempre perpassado por elementos que supostamente são externos a ele, fundamentando áreas de abjeção e indignidade; todavia, tal excedente permite o questionamento, expondo o gênero a releituras e paródias que revelam sua marca performativa.

(4)

A performatividade vai além da discussão sobre a prevalência das normatividades acerca de gênero, e se desdobra para os marcos que “determinam o que será inteligivelmente humano e o que não, o que se considerará real e o que não, estabelecem o campo ontológico no qual se pode atribuir aos corpos expressão legítima” (BUTLER, 2007, p. 29). Ao mesmo tempo, discute as oportunidades de subversão de padrões que determinam corpos e sexualidades possíveis e viáveis.

Nessa breve remissão à performatividade em El género em disputa fica claro os objetivos da autora em anunciar tal conceito: o gênero não pode permanecer confinado nas esferas do natural e do essencialismo, mas precisa ser analisado a partir do caráter sociocultural das distinções promovidas entre homens e mulheres. Para tanto, é necessário compreender os mecanismos subjacentes à operação que produz dois distintos gêneros, diretamente relacionados como o sexo supostamente biológico e o desejo sexual.

A discussão promovida pela autora também possui uma visada política, na medida em que ela pretende repensar o sujeito do feminismo e as possibilidades políticas ensejadas pelo movimento. Se as identidades estáveis que delimitam quem são os homens e as mulheres são frutos de uma normatividade estabelecida em meio ao campo do poder, então pensar “as mulheres” como fundamento de uma luta feminista seria atuar no seio e em consonância com uma ontologia do gênero, a mesma que produz substanciais desigualdades.

O problema do ‘sujeito’ é fundamental para a política, e certamente para a política feminista, porque os sujeitos jurídicos sempre se constituem mediante certas práticas excludentes que, uma vez determinada a estrutura jurídica da política, não se percebem (...) Se esta análise está correta, então a formação jurídica da linguagem e da política que apresenta as mulheres como ‘o sujeito’ do feminismo é, por si só, uma formação discursiva e o resultado de uma versão específica da política de representação. Assim, o sujeito feminista está discursivamente formado pela mesma estrutura política que, supostamente, permitirá sua emancipação (BUTLER, 2007, p. 47).

Os sujeitos não existem antes ou além da lei, mas são constituídos por ela; por isso mesmo, não é possível separar o gênero das interseções políticas e culturais mediante as quais ele é produzido. Ainda assim, é possível questionar as bases de pretensão universal no feminismo (e seus representados), que pretendem definir as identidades e as formas de opressão que são distribuídas por todas as culturas. Como definir o feminismo e o sujeito em nome do qual ele advoga? Nas palavras de Butler: “talvez, paradoxalmente, se demonstre que a representação terá sentido para o feminismo unicamente quando o sujeito ‘mulheres’ não se dê por sentado em nenhum aspecto” (BUTLER, 2007, p. 53).

A noção de performatividade aparece, portanto, como uma chave normativa de compreensão da própria fundamentação do gênero, baseada em um processo de repetição e citação das normas (a

(5)

essência presumida do masculino e do feminino é efeito de um conjunto de discursos que promovem as distinções entre homens e mulheres), mas também de revisão e paródia da lei. Implica um elemento de sujeição e outro de intervenção transformadora, ambos contidos na própria normatividade. Ela também figura como um elemento de questionamento das lutas feministas, recolocando o problema do sujeito, que precisa ser representado. Definir a performatividade como um conceito normativo que consubstancia a compreensão de diversos processos (do gênero e da política feminista nesse caso) permite compreender o fio condutor que a redireciona para outras problemáticas, muito além das questões de gênero.

Em Cuerpos que importan a performatividade é pensada a partir de seu caráter de citação, principalmente porque através dela as normatividades são reiteradas e repetidas em um processo de reforço e permanência do sentido. Não se trata, dessa forma, de atos singulares, mas de ações ritualísticas que ocultam e dissimulam o conjunto de convenções aos quais alude, naturalizando-o. É exatamente sua possibilidade de ser citada que substancia e autoriza determinadas formações discursivas. A performatividade, nesse sentido, é um processo baseado em dois momentos singulares: “nomear e fazer, nomear e produzir” (BUTLER, 2002, p. 162).

No pensamento butleriano, as formações discursivas (e a capacidade do discurso de produzir efetivamente aquilo que nomeia) são a base para definir a performatividade; mas essas formações precisam ter uma importância e uma autoridade para atuarem performativamente sobre os sujeitos e seus corpos. Para Butler é o processo mesmo de citação que autoriza os enunciados, na medida em que ele reforça os sentidos produzidos. Os esquemas reguladores que sustentam os proferimentos são, nas palavras da autora, “critérios historicamente revisáveis de inteligibilidade que produzem e conquistam os corpos que importam” (BUTLER, 2002, p. 36).

Butler retoma em Cuerpos que importan outras duas importantes características formativas da performatividade: as restrições e as exclusões. Porque os fenômenos performativos dependem da construção de um suposto exterior para se formarem, tal exterior só pode ser uma condição de possibilidade de sua existência. “Neste sentido, não se trata somente de que haja restrições à performatividade; ao invés, é necessário conceber a restrição como condição mesma da performatividade” (BUTLER, 2002, p. 145). Quando a autora afirma que os discursos normatizados produzidos performativamente instituem os “corpos que importam”, ela está afirmando que “a força normativa da performatividade – seu poder de estabelecer o que há de ser considerado um ‘ser’ – se exerce não somente mediante a reiteração, também se aplica mediante a exclusão” (BUTLER, 2002, p. 268).

(6)

A partir de tais constatações é possível afirmar que a performatividade é responsável por implementar um conjunto de possibilidades normatizadas (de sexualidade, de corpo e de gênero) associado a uma miríade de impossibilidades; tais impossibilidades são tomadas como um exterior, mas elas são, na verdade, partes integrantes das normatividades. O exterior constitutivo é parte fundamental da norma porque ele sustenta as diretrizes instituídas e cria um âmbito de abjeção que é interditado. Por conseguinte, “se o poder que tem o discurso para produzi aquilo que nomeia está associado à questão da performatividade, logo a performatividade é uma esfera na qual o poder atua

como discurso” (p. 316).

É nesse jogo estabelecido performativamente entre a normatividade e seu exterior constitutivo que se situam as possibilidades de subversão da lei, especialmente porque o acesso ao mundo e a formação dos sujeitos acontecem dentro das normas reguladoras; se a realidade é prenhe das normatizações e se constitui em relação a elas, então somente no interior delas é plausível transformar os parâmetros estabelecidos.

A performatividade descreve esta relação de estar implicado naquilo a que se opõe, este modo de voltar o poder contra si mesmo para produzir modalidades alternativas de poder, para estabelecer um tipo de oposição política que não é uma oposição ‘pura’, uma ‘transcendência’ das relações contemporâneas de poder, mas é a difícil tarefa de forjar um futuro utilizando recursos inevitavelmente impuros (BUTLER, 2002, p. 338).

No interior de Cuerpos que importan a autora já esboça as possibilidades de pensar a performatividade em políticas de reconhecimento: ela afirma que a produção de sujeitos viáveis passa pelas normatividades, que nada mais são que construtos performativos, baseados em um processo de citação. O reconhecimento é um processo que também estabelece uma fronteira entre indivíduos e vidas possíveis e outros intoleráveis e abjetos. Seria a atribuição de reconhecimento realizada performativamente?

Paradoxalmente, a condição discursiva do reconhecimento social precede e condiciona a formação do sujeito; não é conferido o reconhecimento a um sujeito; o reconhecimento forma esse sujeito. Ademais, a impossibilidade de alcançar o reconhecimento pleno, isto é, de habitar por completo o nome em virtude do qual se inaugura e mobiliza a identidade social de cada um, implica a instabilidade e o caráter incompleto da formação do sujeito (BUTLER, 2002, p. 317).

Em Undoing Gender o tema do reconhecimento já está mais destacado, e começa a ser traçado de modo mais claro s articulações entre reconhecimento e performatividade. Uma primeira pista pode ser percebida, como dito anteriormente, na discussão realizada pela autora sobre as normatividades que tornam uma vida possível e passível de ser cuidada ou inviável e digna de uma morte social: “é em um momento fundamental de vulnerabilidade que o reconhecimento se torna possível, e cria a necessidade da autoconsciência. O que o reconhecimento faz nesse momento é,

(7)

com certeza, manter a destruição sob controle” (BUTLER, 2004, p. 149). Os termos através dos quais o reconhecimento da humanidade é atribuído são socialmente articulados e intercambiados, em um processo que define o humano e, por consequência, o menos-que-humano (o exterior constitutivo). Na letra de Butler, “se os esquemas de reconhecimento que estão disponíveis são aqueles que ‘desfazem’ a pessoa conferindo reconhecimento ou ‘desfazem’ a pessoa retendo o reconhecimento, então o reconhecimento se torna um espaço de poder através do qual o humano é diferencialmente produzido” (BUTLER, 2004, p. 2).

Na continuidade do argumento, a autora revela sutilmente como a performatividade constitui a atribuição de reconhecimento: para Butler a ação transformadora é proporcionada a partir dos mesmos termos que definem os critérios de reconhecimento, evidenciando que para subverter tais critérios é preciso demonstrar que eles são construtos reforçados e repetidos através do tempo, sustentados por uma norma reguladora (o mesmo processo performativo da subversão do gênero). Nesse ínterim, “eu posso sentir que sem alguma cognoscibilidade eu não posso viver. Mas eu também posso sentir que os termos pelos quais eu sou reconhecido tornam minha vida impossível” (BUTLER, 2004, p. 4).

A performatividade em processos de atribuição de reconhecimento

O tema do reconhecimento se destaca no pensamento butleriano quando figuram as reflexões sobre os padrões de inteligibilidade e os marcos de reconhecimento que atuam na distribuição diferencial da humanidade, distinguindo uma vida digna de luto de outras que não são nem consideradas como perdas. A inteligibilidade dialoga com o reconhecimento, ambos responsáveis por definir quais são as vidas viáveis e possíveis e quais são inviáveis e impossíveis. Está em jogo os critérios para definir “o que conta como humano, as vidas que contam como vidas e, finalmente, o que faz com que uma vida valha a pena” (BUTLER, 2006, p. 46).

No livro Vida Precaria a autora anuncia como objetivo principal questionar as possíveis formas de deliberação e reflexão públicas quando a vulnerabilidade e a agressão se apresentam como pontos de partida para a vida política. A ideia de vulnerabilidade está no cerne da argumentação desenvolvida nessa obra e afirma o laço do self com os diversos outros aos quais ele permanece inexoravelmente ligado. Nos termos de Butler, “falo de violência, de vulnerabilidade e de luto, mas estou tratando de trabalhar com uma concepção mais geral de humanidade pela qual estamos desde o início entregues ao outro” (BUTLER, 2006, p. 57). Essa afirmação tem consequências morais e éticas, na medida em que “cada um de nós se constitui politicamente em

(8)

virtude da vulnerabilidade social dos nossos corpos – como lugar de desejo e de vulnerabilidade física, como lugar público de afirmação e de exposição” (BUTLER, 2006, p. 46). A vulnerabilidade diz respeito tanto a conformação dos sujeitos que depende diretamente do vínculo com os outros (próximos e distantes), quanto de um processo de desapropriação desses mesmos sujeitos em face dos outros.

Ao demonstrar que existe desigualdade no tratamento das perdas humanas, a autora questiona quais seriam os limites das normas culturais que definem a legitimidade das mortes e os sujeitos dignos de luto. Tais normas estão perpassadas por marcos de reconhecimento e por possibilidades de inteligibilidade da própria humanidade. Nesse sentido, o reconhecimento da vulnerabilidade (a relação de dependência mútua entre os sujeitos) está diretamente associado à humanização; mas tal reconhecimento depende dos parâmetros normatizados que o circunscrevem. “Sempre existe a possibilidade de que não se reconheça ou que se constitua como ‘irreconhecível’, mas quando a vulnerabilidade é reconhecida, esse reconhecimento tem o poder de mudar o sentido e a estrutura da vulnerabilidade mesma” (BUTLER, 2006, p. 70).

O reconhecimento é produzido mediante determinados marcos interpretativos que condicionam as possibilidades de atribuição do reconhecimento; tal distribuição diferencial implica uma alocação desigual da precariedade. Entretanto, tais marcos são sempre parciais e nunca se estabelecem por completo; é justamente por isso que “nossa capacidade de praticar a liberdade depende dessa parcialidade” (BUTLER e ATHANASIOU, 2013, p. 68). O reconhecimento “designa a situação na qual alguém é fundamentalmente dependente dos termos que ele mesmo não escolheu para poder emergir como um ser inteligível” (BUTLER e ATHANASIOU, 2013, p. 79), baseado em um projeto relacional e reflexivo que fundamenta um “eu” e um “outro”. Ele está embasado em

um conceito de reflexividade no qual o self atua sobre os termos de sua formação precisamente para promover uma socialidade que exceda (e possivelmente preceda) a regulação social. Em outras palavras, a forma de reflexividade que procura desfazer a soberania e a posição defensiva é uma em que certa elaboração do self, até mesmo um trabalho do self, que procurar abrir, ou manter aberta, a relação com a alteridade (BUTLER e ATHANASIOU, 2013, p. 70).

As questões concernentes aos marcos de reconhecimento são discutidas mais detidamente em Marcos de Guerra, obra na qual a autora reforça seu argumento de que existem formas diferenciais de conceber as vidas possíveis e viáveis. Segundo Butler (2010) o humano é delimitado em meio a critérios seletivos, minimizando ou maximizando a precariedade. Consequentemente, “se certas vidas não se qualificam como vidas ou, desde o princípio, não são concebidas como vidas

(9)

dentro de certos marcos epistemológicos, tais vidas nunca serão consideradas nem vividas nem perdidas no sentido pleno de ambas palavras” (BUTLER, 2010, p. 13). O reconhecimento atua diretamente nessa classificação na medida em que “a produção normativa da ontologia produz o problema epistemológico de apreender uma vida, o que, por sua vez, dá origem ao problema ético de saber o que deve ser reconhecido, ou, mais propriamente, o que deve ser protegido da lesão e da violência” (BUTLER, 2010, p. 16).

Claro está que os marcos de reconhecimento condicionam os modos através dos quais é articulada a humanidade, mas eles não circunscrevem todas as possibilidades interpretativas sobre as distinções entre o humano e o menos-que-humano. Conforme adverte Butler, “o que podemos apreender vem, sem dúvida, facilitado pelas normas de reconhecimento; mas seria um erro afirmar que estamos completamente limitados pelas normas de reconhecimento em curso quando apreendemos uma vida” (BUTLER, 2010, p. 18). A autora prossegue com o argumento ao afirmar que a precariedade de alguns pode ser apreendida ou suposta por determinados padrões de reconhecimento e, da mesma forma, ser rechaçada por tantos outros; contudo, “ainda que eu deveria sustentar (e sustento) que as normas de reconhecimento deveriam ser baseadas em uma apreensão da precariedade, não creio que esta seja a única função ou efeito do reconhecimento, nem que o reconhecimento seja a única ou a melhor maneira de registrar a precariedade” (BUTLER, 2010, p. 30).

No pensamento butleriano existe uma distinção entre os marcos de reconhecimento e as condições historicamente articuladas de reconhecibilidade: “Se o reconhecimento caracteriza um ato, uma prática ou, inclusive, um cenário entre sujeitos, então a ‘reconhecibilidade’ caracterizará as condições mais gerais que preparam ou modelam o sujeito para o reconhecimento” (BUTLER, 2010, p. 19). Esboça-se, desse modo, duas esferas nas quais a atribuição de humanidade ou o reconhecimento da precariedade são estabelecidas distintivamente. Além delas, ainda há a inteligibilidade que estabelece o âmbito do cognoscível. A reconhecibilidade prepara o terreno para o reconhecimento, enquanto que a inteligibilidade condiciona e produz a cognoscibilidade.

Pensar o reconhecimento a partir dos parâmetros delineados na teoria butleriana é considerar que os marcos que o regem não conseguem conter completamente os sentidos que transmitem, e se rompem sempre que tentam proporcionar uma organização definitiva de seu conteúdo. “O marco nunca determina completamente o que nós vemos, pensamos, reconhecemos e apreendemos. Algo excede o marco que perturba nosso sentido da realidade; ou, com outras palavras, algo ocorre que não se conforma com nossa compreensão estabelecida das coisas” (BUTLER, 2010, p. 24). Porque

(10)

os marcos rompem constantemente com seus contextos, esta operação torna-se parte constitutiva de sua própria formulação, fato que revela tanto sua eficácia quanto as possibilidades de inversão e instrumentalização crítica. “O que ocorre quando um marco rompe consigo mesmo é que uma realidade tida como certa é colocada em questão, revelando os planos instrumentalizadores da autoridade que procura controlar tal marco” (BUTLER, 2010, p. 28).

O caráter performativo dos marcos de reconhecimento começa a ser mais bem delineado quando a autora afirma que eles possuem estruturas reiteráveis: por meio da repetição, os marcos atingem sua estabilidade e autoridade. Mas eles não são formações imóveis e invariáveis, e estão sempre expostos a rupturas que são consequências das próprias tentativas de estabilização. Nesse processo de afirmação e rompimento, novas possibilidades de reconhecimento são gestadas. Todas essas possibilidades de manutenção e subversão são possíveis porque os marcos são constituídos por e dialogam com o seu exterior constitutivo, de modo que eles sempre precisam lidar com aquilo que rejeitam.

Conforme explica a autora, “os marcos estão sujeitos a uma estrutura reiterável: só podem circular em virtude de sua reprodutibilidade, e essa mesma reprodutibilidade introduz um risco estrutural para a identidade do marco como tal” (BUTLER, 2010, p. 44). Essa mesma capacidade de reprodução permite sua ruptura, fato que é politicamente relevante principalmente porque ele abre possibilidades de renovação da atribuição de reconhecimento. Somente nesse sentido que o “reconhecimento deve ser uma categoria transformadora, ou deve trabalhar para tornar o potencial de transformação o objetivo da política” (BUTLER e ATHANASIOU, 2013, p. 87).

O potencial político da performatividade é ressaltado, visto que a noção abre as portas para o desconhecido em meio a um processo que subverte as normatividades sociais (sejam de gênero, sejam da percepção do humano, sejam em relação à sexualidade). A política da performatividade consiste na possibilidade de invocar e citar diferentemente as normas e as ficções reguladoras; ela consiste em uma “luta com a norma, uma luta implicada naquilo que procura contestar” (BUTLER e ATHANASIOU, 2013, p.99). Ela produz irrupções e subversões nas matrizes normatizadas de inteligibilidade, bem como nos marcos de reconhecimento: “abrir o político a um futuro imprevisível de significados é sempre permitir o excesso performativo da temporalidade social que resiste ser totalizada e capturada pelas forças autorizadas de significação” (BUTLER e ATHANASIOU, 2013, p. 140).

Retomando as reflexões anteriormente apresentadas, é possível afirmar que a noção de performatividade condiciona e direciona a argumentação sobre a atribuição de reconhecimento,

(11)

revelando os mecanismos que ora promovem a distribuição diferencial da humanidade e da precariedade e ora proporcionam o questionamento dessas mesmas desigualdades. É de suma importância assinalar que Butler possui como objetivo pensar sobre uma política efetivamente emancipatória e livre de formas de violência. Quando ela demonstra que o gênero não possui nem uma essência nem uma ontologia, revela que as normatividades que impedem que determinados sujeitos com gênero tenham vidas viáveis e possíveis são formas de distribuição diferencial da precariedade; não se trata somente de refutar uma suposta natureza do homem e da mulher, mas traçar objetivos políticos a partir da compreensão do caráter instrumentado do gênero. O mesmo vale para o reconhecimento: ao compreender como determinados marcos favorecem ou desfavorecem a ocorrência de determinados tipos de violência para distintas pessoas, a autora busca compreender como transformar a atribuição desigual do reconhecimento no seio social. Se existem normas estabelecidas que precedem o próprio sujeito, as quais ele está submetido, então é dentro dessas mesmas normas que os indivíduos podem vislumbrar subversões e alterações das paisagens normatizadas.

O raciocínio da autora é fundamentando, portanto, na noção de performatividade: se existem normatividades que atuam performativamente condicionando e enquadrando a existência social dos sujeitos, e se não é possível simplesmente abandoná-las, então é preciso pensar nas possibilidades de subversão abertas pelas normas mesmas. É essa a emancipação política da performatividade: uma inversão e revisão das leis reguladoras a partir daquilo que elas mesmas expõem como seu excesso.

Considerações finais

Ao longo do percurso traçado neste artigo, buscou-se demonstrar que a performatividade extrapola os limites dos problemas de gênero e avança em direção ao reconhecimento. Em ambas os temas, a noção está diretamente atrelada às normatividades que regem seja as distinções de gênero, seja os marcos de reconhecimento. A performatividade tal como figura na obra butleriana não aparece apenas como um conceito, mas como um complexo raciocínio sobre as possibilidades e impossibilidades postas pelas normas estabelecidas sociocultural e historicamente. Ao mesmo tempo em que a performatividade afirma a continuidade, ela abre espaço para o excesso e para as transformações: porque os fenômenos performativos nunca se completam plenamente, sempre podem ser reinterpretados e subvertidos (transformados a partir daquilo mesmo que afirmam ser).

(12)

Os caminhos da performatividade na obra butleriana vão em direção a uma revisão do modelo substancialista que outrora definiu a identidade de gênero e dos marcos de reconhecimento que regem a atribuição de humanidade. A iterabilidade e a citacionalidade estão presentes, bem como as rupturas e as releituras: a normatividade e seu exterior constitutivo se movimentam em uma dança ininterrupta, baseada em uma repetição dos passos consagrados e na introdução de novas possibilidades coreográficas. Nesse contexto, o conceito assume um importante potencial político diretamente atrelado à ideia de desidentificação – que se faz presente desde El género en disputa até

Dispossession.

Tanto em El género en disputa e Cuerpos que importan o exterior constitutivo do gênero – espaço da ameaça e do rechaçado – não é apenas uma oposição às normatividades condena ao fracasso, mas um recurso crítico que rearticula os termos da legitimidade e inteligibilidade. A partir do momento em que os mecanismos que regem as normas são expostos e seu excesso é percebido como uma possibilidade, existe a oportunidade de se desidentificar com a hegemonia e ressignificar identidades de gênero desprezadas. O mesmo vale para as diversas formas de mobilização política: a competência democrática de movimentos sociais pode ser rearticulada a partir de uma remissão à desidentificação como amálgama que mantém o grupo reunido em torno de um problema comum. Para Butler, “na realidade, é possível que tanto a política feminista como a política queer se mobilizem precisamente através de práticas que destacam a desidentificação com aquelas normas reguladoras mediante as quais se materializa a diferença sexual” (BUTLER, 2002, p. 21). A desidentificação tem um potencial crítico ainda mais acentuado porque

pode ocorrer que se façam certas identificações e afiliações, certas conexões compassivas amplificadas, precisamente para poder instituir uma desidentificação com uma posição que parece demasiado saturada de dor e agressão, uma posição que, em consequência, só poderia ocupar-se imaginando diretamente a perda de uma identidade viável (BUTLER, 2002, p. 152).

A passagem da desidentificação do gênero para o reconhecimento pode ser percebida no próprio caminho da performatividade: revelar as desigualdades de atribuição de reconhecimento impostas por marcos específicos de reconhecimento é também uma proposta de desidentificação com as normas que regem os enquadramentos diferenciais da humanidade e da distribuição da precariedade. Diante desse panorama, resta questionar se a desidentificação seria uma trilha para a política, que propõe ao invés da identificação entre os sujeitos a desidentificação de normatividades que os colocam em desigualdade: se as normas instituem uma identificação aos seus padrões, a subversão não seria a própria desidentificação de tais padrões?

(13)

Referências Bibliográficas

BUTLER, J. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2002.

__________. Undoing gender. New York-London: Routledge, 2004

_________. El género en disputa. El feminismo y la subversión de la identidad. Barcelona: Paidós, 2007.

_________. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós, 2006. _________. Marcos de guerra: las vidas lloradas. Buenos Aires: Paidós, 2010.

_________; ATHANASIOU, A. Dispossession: the performative in the political. Cambridge: Polity, 2013.

Butler beyond gender: the performativity in the politics of recognition

Abstract: This research deals with the concept of performativity in the work of Judith Butler,

seeking to understand how it pervades both the explanation about the conformation of the gender and the construction of a notion of recognition. It is an exploratory investigation of six books published by the author between 1990 and 2013, namely: Gender Trouble (1990), Bodies that

matter (1993) e Undoing Gender (2004) discussing gender; and Precarious Life (2004), Frames of War (2009) e Dispossession (2013) in relation to issues of precariousness, vulnerability and

recognition. In the course of this reflection, I maintain that performativity is the basis of an understanding of the emancipatory possibilities of politics and, therefore, covers the various questions discussed by Butler.

Referências

Documentos relacionados

Lance Condicional: Na hipótese do maior lance dado no Leilão não atingir o valor mínimo de venda estipulado pela Empresa Vendedora, o Leiloeiro, após o encerramento do Leilão,

A aplicação destes procedimentos (testes de contacto “patch” usando diferentes veículos, testes de transformação linfocitária, etc.) em conjunto com pro- tocolos

Os Testes de Provocação Oral são considerados o Gold Standard na confirmação do diagnóstico das alergias medicamentosas, mas exige a exclusão de reações graves imediatas

To confirm to us that you can access this information electronically, which will be similar to other electronic notices and disclosures that we will provide to you, please confirm

BONNEVILLE école Eteaux 3 ,bergeret marie caroline 16 4 12 16 48 ARGENT. EQUIPE 3 ,gay lancermin sophie

Esta seção aborda as mudanças e permanências nas FRs. Uma das maiores inovações nas FRs da Argentina e do Uruguai é a repartição igualitária das retiradas. Tudo leva a crer que

RESPONSABILIDADE CIVIL Dano Moral Assédio sexual Proposta sexual injuriosa em ambiente de trabalho Autora que alega ter sido vítima também de difamação perpetrada

A evolução desse “novo ser” ao longo do século passado fez que duas novas leituras, ambas na década de 1990, emergissem diante das mudanças de ordem econômica e social no