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GT Trabalho e Sociedade 3 a Sessão. Luis Carlos Fridman Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense

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Academic year: 2021

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Trabalho, especialização flexível e reflexividade desanimada

GT Trabalho e Sociedade — 3a Sessão

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Trabalho, especialização flexível e reflexividade desanimada

O mundo da produção material e do trabalho na contemporaneidade é crescentemente marcado pela especialização flexível, isto é, pela assimilação da tecnologia da informação à atividade produtiva e a adaptação da força de trabalho a essas novas circunstâncias. A flexibilidade possibilita a satisfação das demandas de grupos de consumidores cada vez mais diferenciados na fragmentação do mercado de massa.

A reorganização produtiva do capitalismo permite diversificar mercadorias para nichos de mercado cada vez mais específicos. Para além dos grandes e vultuosos processos de substituição de máquinas por outras máquinas, que incorporavam os avanços tecnológicos e potenciavam a mais-valia relativa, vê-se agora a utilização de “máquinas-ferramenta” que, com a ajuda da informática, ajustam-se rapidamente à criação de mercadorias cada vez mais selecionadas. São movidas por programas de computador, o que permite responder às flutuações do consumo. O descarte sucessivo dos padrões de consumo devido à “colonização” do inconsciente e aos investimentos libidinais nas mercadorias solicita o surgimento ininterrupto de novas coisas para satisfazer novos desejos. A propaganda e a mídia são fundamentais na criação das “novas necessidades”, com ênfase nos aspectos simbólicos atribuídos às mercadorias, que Fredric Jameson chamou de “estetização” da economia a partir das sugestões presentes na obra de Walter Benjamin. Nessa expansão dos mercados, o ajuste ou a compatibilidade entre o frenesi do consumo e as novas formas de organizar a produção estabelecem os marcos da especialização flexível.

Na produção “ao gosto do freguês”, pela segmentação do mercado em nichos com demandas específicas, observa-se a fragmentação da força de trabalho, certo grau de desintegração das empresas e a descentralização da produção. Essa tendência convive com a produção em massa, impulsionada pela revolução tecnológica do último quarto de século, que provocou profundas e irreversíveis mudanças institucionais com repercussões na vida familiar, no lazer, na cultura e na política.

Nesse contexto, os mais otimistas especulam que o computador indica a retomada do controle humano sobre a produção associando conhecimento, eficiência e liberdade. Como os avanços tecnológicos permitem a expansão da informação, supõe-se que as pessoas tornar-supõe-se-ão progressivamente mais cultas, alertas e críticas, o que

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favoreceria o aprofundamento da democracia. Uma visão ainda mais radical (ou ingênua?) das maravilhas dos bites e bytes chega a sugerir que o ritmo das soluções ultrapassará o dos problemas. Os apologistas da tecnologia como fio condutor das transformações consideram que ela permite, na produção propriamente dita, maior envolvimento e satisfação dos trabalhadores ao invés da monotonia, da vigilância, da alienação e das mazelas psíquicas vividas no espaço da fábrica. A ênfase no desenvolvimento tecnológico tende a ocultar as relações sociais, que não se desfazem apesar do ar desconstraído dos pequenos gênios da computação que ganham milhões no Vale do Sicílio. Ou mesmo pelo ambiente “clean” das fábricas alemãs automatizadas que em nada se parecem com a barulheira infernal e o sufoco dos galpões na Turquia, em Bangladesh ou no Brasil. A especialização flexível e as grandes mudanças que trouxe para o mundo do trabalho já afetaram e tendem a afetar crescentemente largas parcelas da população mundial. E não há indicações seguras de que trarão maior autonomia, envolvimento ou satisfação dos trabalhadores. É necessário examinar a especialização flexível com maior sobriedade, inclusive em seus efeitos benéficos; o trabalho de propaganda fica a cargo dos ideólogos.

A especialização flexível abrange, antes de tudo, aqueles que fazem parte do mercado de trabalho ou estiveram nele até recentemente. À margem do mundo da flexibilidade estão as grandes massas que em todas as partes do mundo não servem nem de exército industrial de reserva, em um limite ainda mais perverso do que aquele antevisto por Marx como fator de barateamento da força de trabalho e de desunião da classe operária. É o refugo humano, tal como caracterizado por Zygmunt Bauman em

Globalização – as conseqüências humanas, que vegeta à espera da morte. Processo

que potencializou recursos econômicos, tecnológicos e de conhecimento presentes desde o século passado, a globalização ampliou as possibilidades humanas mas também aumentou o fosso entre os que dela participam e os que apenas sofrem as suas conseqüências. Indivíduos podem estar dentro ou fora da globalização nas economias mais sólidas, nos países vulneráveis à especulação ou nas nações que praticamente sucumbiram na nova divisão internacional do trabalho. Em termos políticos, enquanto os incluídos na nova ordem podem aspirar a “cidadania reflexiva em um mundo globalizador” (na expressão de Anthony Giddens) – que alcança desde a neutralização ou extinção dos arsenais nucleares à ampliação dos direitos nas esferas dos estilos de

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vida, da estruturação familiar ou mesmo da busca de auto-realização – os excluídos, o refugo global, são considerados um gente que “traz problemas”.

A dança do dinheiro que afeta profundamente as economias e a fome por capitais voláteis (com sua “sensibilidade” para as flutuações econômicas, sociais e políticas dos “mundinhos” locais) multiplicam os dilemas da globalização. Além do desaparecimento dos empregos, da supressão de carreiras estáveis no mercado de trabalho e da readaptação contínua (e cada vez mais solitária) aos novos sistemas produtivos, assiste-se também ao desmantelamento progressivo de referências locais, comunitárias, de parentesco e de tradições culturais. O fantasma “daqueles que não servem para nada”, “os dispensáveis”, assombra governos e agências internacionais. Quando Bill Clinton, no encontro do Fórum Econômico Mundial de 1999 em Davos, advertiu os empresários mais poderosos do planeta com seu chamamento “não se esqueçam das pessoas lá fora”, ele ofereceu uma “globalização com face humana” resguardando o trânsito livre para as poderosas forças econômicas de seu país. Argumentava que o avanço tecnológico havia revolucionado as formas de trabalhar e de viver, e que esta fase de transição acentuara vulnerabilidades e desigualdades. Como a diminuição das desigualdades depende de acirrados e dramáticos processos de conflito social e luta política, Clinton desempenhou o papel do paladino teatral da justiça social.

A reorganização produtiva do capitalismo flexível alimenta-se da celebração da revolução técnico-científica e de possibilidades ampliadas de criação da riqueza. Esse entusiasmo é acompanhado de um tanto de piedade com a maior parte da humanidade que não incorporou as transformações tecnológicas, a instantaneidade da comunicação eletrônica e o acesso aos estoques mundiais de informação. Os que estão fora desse mundo merecem tolerância desde que não atrapalhem as gigantescas tarefas de reordenamento do trabalho e do capital: o paroquialismo da miséria é coisa de quem ainda vai, quiçá, bater às portas do mundo da flexibilidade. Os “bons sentimentos” são aceitáveis desde que se faça o elogio da velocidade da mudança e do risco.

A reorganização da produção supõe novas disposições para o trabalho. Para seguir em frente no mundo da especialização flexível, a força de trabalho deve se habilitar às freqüentes inovações e não associar a atividade produtiva à estabilidade das carreiras ou a laços contínuos e duradouros com tarefas e companheiros de labuta. Uma gente que se desembaraça da “rigidez” de relações permanentes para sustentar

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uma inserção adaptável e fluida às funções produtivas e ganhar a vida. Quem está fora – ou seja, a maior parte da humanidade – apenas assiste ao auto-atribuído espetáculo de autonomia, criatividade, gosto pelo risco e ambientação animada na desordem.

Em A corrosão do caráter, Richard Sennett desmente essa aparente liberdade e investiga os padecimentos da flexibilidade. Mesmo para quem está incluído no jogo da produção e do emprego, uma vida de não se apegar a nada e experimentar duradouramente a diluição dos laços sociais atinge o “senso de auto-identidade sustentável”. Escrevendo sobre as condições de trabalho em seu país, Sennett considera que o ambiente de trabalho moderno nas empresas americanas sacrifica a constituição de uma narrativa de vida coerente para seus integrantes. A corrosão do caráter acontece quando as pessoas não mais vivenciam os valores de lealdade, confiança, comprometimento, integridade e ajuda mútua nas relações cotidianas.

Muitos indivíduos conseguem suportar a vida nessas condições mas uma parcela expressiva da força de trabalho americana não sente nem atua assim. Nesse tempo de façanhas extraordinárias na produção e no conhecimento, trazem dentro si ansiedade, medo, desânimo e falta de entusiasmo no trabalho. Chamo essa condição de “reflexividade desanimada”, em alusão ao conceito profusamente utilizado por Giddens para dar conta da incorporação de informação no conjunto das práticas na institucionalidade contemporânea.

“Sociedade energética”, sociedade impaciente e o mundo do trabalho

A partir das interpretações de Giddens, pode-se inferir que a reflexividade tem um lado radiante. Apesar dos imensos perigos de um mundo fora de controle, ele é povoado por pessoas inteligentes na medida em que a aplicação do conhecimento estende-se às mais amplas esferas da ação humana, o que influi na remodelação das instituições ou mesmo na invenção de novas formas de viver. Segundo esta concepção, vivemos em uma sociedade altamente energética. Essa energia provém da assimilação pelos indivíduos de informação permanentemente renovada, da invenção e da ampliação da margem de intervenção dos agentes sobre suas práticas. A aplicação disseminada do conhecimento gera tanto riscos globais como uma atmosfera de indagação racional permanente que erode as autoridades últimas e repercute sobre todos os campos da ação humana, inclusive nas relações familiares, na sexualidade e

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nos vínculos emocionais dos relacionamentos. O combustível da reflexividade impele os indivíduos à ambientação na mudança e à confiança para seguir em frente restabelecida na crença em sistemas peritos e na mutualidade da auto-revelação nas relações interpessoais. Para Giddens os temores subjetivos na atualidade devem-se ao desmantelamento dos contextos tradicionais de confiança, com repercussões institucionais mais amplas do que aquelas referidas ao capitalismo e suas formas de produção.

O foco na reflexividade informa a teoria da estruturação de Anthony Giddens, que realça a margem de liberdade dos agentes com relação às estruturas, ainda que nos limites definidos por estas. O seu livro A constituição da sociedade apresenta uma longa elaboração sobre esse tema e critica a idéia de que o comportamento humano resulta de forças que os atores não controlam nem compreendem. Desta maneira, segundo Giddens, uma parte considerável da teoria social, especialmente associada à sociologia estrutural, trata os agentes como muito menos cognoscitivos do que realmente são. Ao mesmo tempo em que descarta o individualismo metodológico, Giddens ressalta em Política, sociologia e teoria social o “caráter passível de aprendizado da participação cotidiana dos atores nas práticas sociais” (Giddens, 1998:310). Essas idéias estão em consonância com várias passagens e expressões contidas em A constituição da sociedade como “o caráter ativo, reflexivo, da conduta humana” (Introdução:XIII), “a capacidade [dos agentes] para entender o que fazem enquanto o fazem” (Introdução:XVIII), “caráter monitorado do fluxo contínuo da vida social” (Giddens, 1989:2), “todos os seres humanos são agentes cognoscitivos... isso significa que todos os atores sociais possuem um considerável conhecimento das condições e conseqüências do que fazem em suas vidas cotidianas” (Giddens, 1989:229), “a rotina, psicologicamente ligada à minimização das fontes inconscientes de ansiedade, é a forma predominante de atividade social cotidiana” (Giddens, 1989:230) e “no desempenho de rotinas, os agentes alimentam um sentimento de segurança ontológica” (Giddens, 1989:230).

Giddens supõe que o “monitoramento reflexivo”, que está na própria base de reprodução do sistema, cria condições subjetivas para inserções transformadoras na variedade das práticas. Essa energia (da reflexividade, da cognoscitividade dos agentes) contrasta com o peso e a importância atribuídos à estrutura nas teorias sociais que destinam aos agentes uma tímida influência sobre as configurações institucionais.

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Por isso Giddens se volta para os agentes em suas rotinas e acentua que “o estudo da vida cotidiana é essencial para a análise da reprodução de práticas institucionalizadas” (Giddens, 1989:229). Como nas rotinas os agentes minimizam as fontes inconscientes de ansiedade e resguardam um mínimo de segurança ontológica nessa ordem mutante e polifônica, a mesma reflexividade que tudo altera e provoca desamparo também cria condições instituicionais que ajudam a viver e, em certo sentido, até mesmo serenar. Nesse contexto, os indivíduos tanto podem obter recursos para neutralizar a insegurança ontológica como sacudir as instituições. Por conseqüência, não é um exagero supor que as possibilidades abertas pelas exigências de autonomia e criatividade da especialização flexível seriam novos campos de ação dos agentes sobre a própria organização produtiva pela difusão da reflexividade na esfera do trabalho da modernidade tardia.

A superação da burocracia rígida, um dos dotes mais salientados pelos entusiastas da flexibilidade, permitiria maior autonomia para os trabalhadores e, em sentido mais geral, maior liberdade para os indivíduos controlarem seu tempo e moldarem suas vidas. No entanto, a investigação de Richard Sennett sobre a experiência dos indivíduos frente à flexibilidade no trabalho mostra um quadro bem diverso. A exigência de que “os trabalhadores sejam ágeis, estejam abertos a mudanças a curto prazo, assumam riscos continuamente, dependam cada vez menos de leis e procedimentos formais” (Sennett, 1999:9) tem um custo pessoal muito alto.

No mundo da especialização flexível as carreiras não são mais o leito por onde flui a experiência de trabalho de toda uma vida. Tudo pode acabar de uma hora para outra quando acontece a reengenharia das atividades, funções e alocações de recursos. A nova organização da produção derivada das inovações tecnológicas permite uma descentralização das tarefas e pressiona os trabalhadores a se adaptarem a novas habilidades e iniciativas. A vivência do tempo é profundamente alterada: não há mais longo prazo.

A flexibilidade condiz com uma sociedade impaciente voltada para a satisfação de demandas de consumo permanentemente renovadas. Os tipos humanos requeridos para atuarem nessa forma de trabalho (ou o “povo novo” da pós-modernidade, nas palavras de Fredric Jameson) são os campeões da compressão do tempo e do espaço, que se movem em um ambiente de equipes que se desfazem depois da consecução dos projetos e na versatilidade incansável para estar à altura das demandas voláteis por

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serviços ou mercadorias. Os laços profissionais assim contraídos não têm durabilidade, o que sacrifica a confiança entre parceiros de trabalho, que só se adensa com o tempo. Assim a produção flexível, “ao gosto do freguês”, resulta, em termos organizacionais, na “força de laços fracos”.

O atordoamento anteriormente experimentado em mudanças históricas ou desastres sociais de grande magnitude é hoje acumulado na vida de todos os dias, na

durée, na rotina. A industrialização trouxe guinadas profundas nas formas de trabalho,

nas aglomerações humanas, nos meios de comunicação e no conjunto das instituições. No mundo da especialização flexível, em que não há longo prazo, o transtorno é permanente e “silencioso”. Na instabilidade do trabalho flexível, tudo é passageiro e os homens não mais experimentam a vivência de laços, compromissos e valores duradouros. A confiança nos outros, a lealdade, o comprometimento e a durabilidade de vínculos são quebrados pela dinâmica do trabalho.

A sociedade impaciente do capitalismo flexível desfaz objetivos de longo prazo e tende a produzir inconsistência nas ligações rotineiras. Uma vida de episódios e fragmentos não fortalece uma narrativa de identidade e a acumulação dos temores cotidianos já é suficiente para fazer surgir boas doses de insegurança. O contraste é evidente com as idéias de Giddens, para quem os malefícios ontológicos nada têm a ver com o capitalismo e como este sistema estipula uma dada organização das relações humanas. Para o autor inglês, a erosão da confiança deve-se, em plano micro, ao desmantelamento das instituições tradicionais e, em plano macro, aos riscos globais de conseqüências imprevisíveis que perfazem a consumação da paranóia planetária. Giddens parece empenhado em investigar como a ordem se mantém em vista de ameaças tão terríveis. Em uma imagem, por quê as massas do mundo inteiro não estão correndo desesperadas pelas ruas na expectativa da catástrofe final? Ou ainda, por quê o descontrole frente aos riscos não provoca a desarticulação das instituições? Segundo Giddens, os sistemas peritos condensam a fé no conhecimento e tranqüilizam as pessoas pela competência e a eficácia demonstradas em estatísticas, consolidando referências e benefícios.

Na dimensão da intimidade, Giddens sugere que a mesma atmosfera de indagação racional impulsiona os indivíduos a se lançarem em relacionamentos em que os questionamentos que visam a auto-realização (vide o feminismo, a superação das hierarquias, a maior “democracia das emoções” etc) também robustecem a

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confiança. Com a atenção despertada para os perigos globais da modernidade radicalizada e o dinamismo dessa ordem assim constituída, Giddens lida de forma muito panorâmica com as perdas “menores” (no trabalho, por exemplo) criadas pela própria reflexividade. Revela-se um entusiasta prudente da reflexividade na vida contemporânea que desperta forças (de reencaixe, por assim dizer) e projetos – o “projeto reflexivo do eu” ou a “cidadania reflexiva em mundo globalizador” – que seriam vias para restituir a confiança dos agentes em outros patamares e mesmo caminhos de transformação social. Vê novas chances na política gerativa feita por pessoas que não esperam as coisas “virem de cima” e intervêm sobre a institucionalidade através dos novos ativismos.

Anthony Giddens não aborda a presença, expansão e crescimento numérico dos “desanimados”, dos que ficam pelo caminho na mudança veloz ou daqueles que a especialização flexível fez com que sua reflexividade não aumentasse as margens de atuação. Assim, acaba por referendar a “capacidade de iniciativa”, a “independência”, a “autonomia”, o “lançar-se na vida e correr riscos” que os ideólogos do capitalismo flexível chamam de criatividade e de liberdade. No entanto, o capitalismo flexível quebra as narrativas pessoais pela readaptação contínua a instituições permanentemente reinventadas. Esse dano não deve ser ignorado pois grandes contingentes de trabalhadores sentem-se à deriva. Será que Giddens postula que a reflexividade é o antídoto social da auto-vitimação individual?

Richard Sennett, que no seu marxismo sutil não convoca o leitor a partilhar dos conceitos gerais de Marx para a explicação do funcionamento do capitalismo, remonta a Denis Diderot e a Adam Smith para investigar a rotina do trabalhador desde os primórdios da industrialização. Diderot considerava que o trabalho trazia inerente dignidade; para Smith a rotina da produção embotava o espírito. O filósofo francês comparava o trabalhador ao ator, que com suas falas bem decoradas e dominadas poderia crescentemente dar-lhes maior expressão. O trabalhador, pela assimilação dos gestos monótonos e repetitivos junto às máquinas, poderia vivenciar a sua rotina como um artista que domina a sua interpretação. Desta maneira, o conhecimento das tarefas poderia proporcionar serenidade e paz. Já Adam Smith, resgatado por Sennett como pensador moral e político, afirmava em A riqueza das nações que “...o homem que passa a vida realizando poucas operações simples se torna tão estúpido e ignorante quanto é possível a uma criatura humana” (Sennett, 1999:41). Para o mestre da

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economia política inglesa, a falta de controle do operário sobre o trabalho e o tempo de trabalho tornava a rotina autodestrutiva e entediante.

Richard Sennett considera Anthony Giddens um novo Diderot pela ênfase no hábito e no auto-conhecimento como fator de autonomia e de habilitação para a ação por força do dinamismo reflexivo da sociedade contemporânea. Sennett segue na trilha de Adam Smith (e, por conseguinte, na de Marx) quando atenta para as mutilações do espírito, a depressão e o tédio na rotina do trabalho. Nos casos tratados em A corrosão do caráter, os trabalhadores padecem pela ausência de um “senso de identidade sustentável” ocasionada pela fraca identificação com suas tarefas e habilidades. Na América do pós-guerra a ação dos sindicatos, o amparo da previdência social e mesmo os laços comunitários ofereciam aos trabalhadores um sentido de continuidade da existência que neutralizava os pavores resultantes do desemprego, da desagregação familiar, da penúria ou do fracasso. Hoje os padeiros de Boston não sabem fazer pão, apertam botões em uma máquina reconfigurável, que faz pães franceses ou croissants. Como diz ironicamente uma empregada do lugar, “...padaria, sapataria, gráfica, é só dizer, eu tenho as qualificações” (Sennett, 1999:82). A identidade dos trabalhadores com suas tarefas é leve, não se sentem estimulados, desafiados ou comprometidos com a atividade. Ou ainda, para aqueles que trabalham em regime de flexitempo, em que a jornada de trabalho não se passa em tempo corrido na fábrica ou no escritório, o controle da empresa é exercido através da tela do computador até com o rastreamento dos e-mails recebidos ou enviados. Em casa, o trabalhador controla melhor o ambiente mas o que ocorre de fato é uma outra cronometragem do tempo de trabalho em uma sofisticação da vigilância ou da dominação informe. Se Nelson Rodrigues fôsse vivo e gostasse de Sociologia talvez ele inventasse os “idiotas da reflexividade”, uma gente à deriva que a assimilação de informação renovada em nada ajuda a viver.

Evidentemente há quem não sinta assim. Os vencedores não sofrem com a fragmentação e a ideologia faz crer que isso se estende aos de baixo. Grandes executivos dos negócios, das finanças ou quadros destacados da tecnologia movem-se com extrema energia na fragmentação e na excitação dos riscos. Largam o que foi até há pouco realizado para se aventurar em novos projetos e na readaptação contínua. Estes estão à vontade no capitalismo flexível. Para os quadros médios e para a massa de trabalhadores trata-se, ao contrário, de agüentar firme enquanto os laços (e não

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somente as tradições) são sucessivamente desmantelados à sua volta. Sentem a rotina com menos energia e lutam para ficar de pé. Apesar da reflexividade afetar a todos, a distribuição de suas conseqüências é extremamente desigual. O desânimo da reflexividade está na diluição dos compromissos mútuos, na lealdade que não se confirma porque não há tempo para ser estabelecida, na confiança que se desfaz a cada equipe remodelada ou mesmo quando a tecnologia substitui a ajuda mútua e a solidariedade no exercício das competências dos trabalhadores. Não há volta atrás mas questionar a flexibilidade pode apontar formas de seguir adiante.

Em vários níveis da produção, a vida interior dos trabalhadores mostra-se portanto profundamente danificada. A universalidade que Sennett extrai de sua investigação é que o homem comum do capitalismo da especialização flexível padece de desorientação a longo prazo e experimenta permanentemente instabilidade e insegurança. As pessoas têm que se reinventar a todo momento, sem laços duradouros com seus companheiros de trabalho, tarefas ou habilidades. Atua-se em cooperatividade superficial e a dependência é vista como uma condição vergonhosa ou o atestado da morte em vida dos “desanimados”. No limite, a flexibilidade torna o senso de autonomia uma inclinação de não se precisar do outro. Um passo em falso e essa experiência emocional transforma-se em culpa ou na vivência do fracasso pela auto-estima dilapidada. Essa condição de trabalho alimenta a corrosão do caráter ou o “valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros” (Sennett, 1999:10). Nada disso se parece com maior envolvimento e satisfação dos trabalhadores quando se deixa para trás a monotonia e a vigilância do ambiente da fábrica.

A reinvenção contínua de instituições, a especialização flexível de produção e a concentração de poder sem centralização erige um novo sistema de dominação. O isolamento, a destruição de laços e o custo pessoal da inserção nessa institucionalidade mutante compõem a fragmentação dos indivíduos na era da especialização flexível. Em sentido mais geral, Sennett conclui que a fragmentação da narrativa pós-moderna deve-se à experiência do tempo na moderna economia política, em uma atualização de como as relações objetivas e materiais da especialização flexível influem sobre a subjetividade dos trabalhadores. Com a diluição dos laços sociais, o interior dos indivíduos sustenta-se predominantemente pela força de vontade de cada um. Nessa aridez de valores – despojada de lealdade, compromisso mútuo,

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solidariedade etc – se avalia a consistência e a fraqueza de cada um. A solidariedade que daí advém só pode ser uma solidariedade entre vencedores ou então desenvolve-se uma subjetividade em que o fracasso torna-desenvolve-se permanentemente o cadáver escondido no armário. Assim, a corrosão do caráter dos indivíduos é um dos desafios mais contundentes à reflexividade contemporânea.

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Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt

1998 — O mal-estar da pós-modernidade, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

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1999 — "Imagens e subversões”, História, ciências e saúde, vol. 5, no 2, Rio de Janeiro.

1999 — “Pós-modernidade, sociedade da imagem e sociedade do conhecimento”, História, ciências e

saúde, vol. 6, no 2, Rio de Janeiro, no prelo.

1999 — “Globalização e refugo humano”, Revista Lua Nova no 46, São Paulo. 1999 — “Vertigens pós-modernas”, Revista Lua Nova no 47, São Paulo. GIDDENS, Anthony

1989 — A constituição da sociedade, São Paulo, Livraria Martins Fontes. 1990 — As conseqüências da modernidade, São Paulo, Editora Unesp. 1996 — Para além da esquerda e da direita, São Paulo, Editora Unesp.

1997 – “A vida em uma sociedade pós-tradicional”, in Modernização reflexiva, Anthony Giddens, Ülrich Beck e Scott Lash, São Paulo, Editora Unesp.

1998 — Política, sociologia e teoria social, São Paulo, Editora Unesp. JAMESON, Fredric

1996 — Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, São Paulo, Editora Ática. KUMAR, Krishan

1997 — Da sociedade pós-industrial à pós-moderna, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. SENNETT, Richard

Referências

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