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Os Cayapó pelos caminhos da Colônia e do Império: impressões de viagem e das correspondências oficiais

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Academic year: 2021

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A história agrária em Sant'Anna do Paranahyba, sul de Mato Grosso: os Cayapó por entre roças, fazendas e aldeamentos

Maria Celma Borges1 Introdução

No estudo das ações dos pobres livres em Sant’Anna do Paranahyba, no sul de Mato Grosso, discutimos a história agrária tendo em vista a análise dos encontros e desencontros, envolvendo os indígenas, os pobres livres, os escravos e os detentores da terra e do poder econômico e político nesta localidade e no governo da Província no contexto do XIX.

O modo como o aldeamento dos Cayapó foi realizado em Sant’ Anna e como os povos originários foram interpretados pelos poderes públicos e privados são questões a serem enfocadas no texto, por entendermos que a partir desse grupo é possível analisar parte da história agrária no sul de Mato Grosso. Interessa a busca de indícios dos Cayapó desde as monções ao estabelecimento do aldeamento no XIX, na tentativa de encontrar vestígios, desconhecidos no presente pelos habitantes do lugar, por seu exercício constante de uma história substanciada na memória e no discurso do “pioneiro”.

As fontes são correspondências oficiais e um relato de viagem. São evidências construídas sem o intuito de apresentar os vestígios que tanto nos interessam, mas o trabalho do historiador é mesmo o de sulcar a fonte, como se fosse o camponês na lida com a terra, na tentativa de escrever uma história a “contrapelo”, como sugeria Walter Benjamin (1991). Os Cayapó pelos caminhos da Colônia e do Império: impressões de viagem e das correspondências oficiais

Na história dos pobres da terra, em especial dos Cayapó, não se pode ignorar os encontros e desencontros entre esses povos e os colonizadores pelos caminhos que cortavam o sul de Mato Grosso, desvelando conflitos por entre as estradas e rios da Colônia e do Império. Embates que se materializavam pelas nações indígenas se depararem com cerrados e matas sendo tomados por grupos ou indivíduos e, no caso dos Cayapó, por se verem ainda na contingência de terem que trabalhar para o outro em suas roças ou mesmo constituindo milícias particulares, o que derivava comumente na desconstrução do modo de vida.

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Ao processo de colonização os povos originários reagiam no modo possível de cada dia, pelas práticas de enfrentamento, adentrando aos aldeamentos ou mesmo em sua presença nos destacamentos e arredores em relações que, por vezes, envolviam esses povos e as insígnias do poder, a exemplo da concessão de patentes de cabo ou de capitão pela administração provincial, como se depreende da fonte a seguir.

A Correspondência de Joaquim Alves Ferreira, Diretor Geral dos índios de Mato Grosso, em junho de 1850, enviada ao Coronel João José da Costa Pimentel, presidente da Província, desvela uma das estratégias do poder provincial na tentativa de controle dos Cayapó. Ao conceder-lhes patentes desejava-se trazer para si esses povos com os símbolos do poder que se tentava impor:

Tendo me representado o Capitão Antonio José da Silva, proposto Diretor dos Distritos de São Lourenço e Piquiry ou Monte Capitolia que para melhor agradecer-se aos índios de nação Caiapós, a muito estabelecidos com lavouras e criação vizinhos ao Destacamento do referido Piquiry, julga preciso que V. Exa. faça a graça promover ao posto de Capitão o Tenente da mesma nação Lino de Tal, cujo sobrenome deve constar do registro de sua patente, na vaga deixada por seu finado pai, o Capitão Adão, e Cacique da nação, ao de Tentente o Cadete Francisco daquele posto e irmão do proposto acima, e ao de Alferes [rasurado] de Tal por ser bastante ladino, de boas inclinações e gozar respeito entre os seus.2

A concessão de patentes deixa explícita a preocupação do governo em estabelecer redes de negociação que conformassem esses agentes sociais à nova condição imposta pelos projetos de colonização, “catequese e civilização”, e na defesa do território, a exemplo da manutenção dos destacamentos militares, dependentes do plantio e cultivo de roças de milho, mandioca, feijão, abóbora, etc., em terras cultivadas pelos Cayapó. Para que o destacamento na estrada do Piquiri3 ali permanecesse, ele necessitava do apoio dos grupos aldeados em suas proximidades e em Sant’Anna do Paranahyba, do contrário o projeto sucumbiria.

No século XIX, tanto as “bandeiras” impetradas contra os Cayapó pela administração imperial e interesses privados, quanto às ocupações de terras por particulares, derivavam em mortes de indígenas e de moradores nos sítios e roças, de membros do corpo de guarda

2 APMT. Documentos Avulsos, ano de 1850 (Caixa 1855C) 3

Como observou o Prof. Paulo Roberto Cimó Queiroz, estudioso da história de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, o projeto da estrada do Piquiri que visava ligar a capital da Província de Mato Grosso, Cuiabá, à Província de São Paulo, passando por Sant’Anna do Paranahyba, foi abandonado no século XX. Mas é interessante observar que muito tempo a preocupação com as conclusões da obra da “estrada do Piquiri” figurou de modo constante nas Correspondências oficiais do XIX.

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pública e de viandantes que percorriam as estradas e rios no transporte dos correios, de animais e de outras mercadorias.

Antes da descoberta do ouro nas proximidades de Cuiabá, ocorrida a partir de 1719, bandeiras à procura de indígenas já tinham passado pelas terras que viriam a formar a Capitania de Mato Grosso, localizada nas fronteiras com o Paraguai e Bolívia, desde o primeiro século da colonização. Contudo, deveu-se à descoberta desse metal o impulso de ocupação pelo não índio em Mato Grosso, atraindo para aquele espaço a atenção da coroa portuguesa e a presença dos paulistas, em sua maior parte.

As expedições paulistas partiam de Porto Feliz, antiga Araritaguaba, na Capitania de São Paulo, na segunda década do século XVIII, e percorriam, sob ordens da Coroa ou de interesses privados, o Tietê, em terras paulistas, passando por vários rios, matas e varadouros até Cuiabá, em Mato Grosso, então pertencente à Capitania de São Paulo. Para esse percurso, os rios tornaram-se importantes caminhos móveis do sul ao norte de Mato Grosso. Os monçoeiros paulistas percorriam cerca de três mil e quinhentos quilômetros, conforme Holanda (1990), enfrentando corredeiras, saltos e o encontro com os povos originários até chegar às lavras de ouro, ao norte.

Em 1738, com a descoberta de novas lavras, o fluxo populacional aumentou consideravelmente, havendo a necessidade de abrir novas estradas para as incursões terrestres, além das vias fluviais. Com a descoberta do ouro deu-se a constituição da Capitania de Mato Grosso, sendo a região desmembrada da Capitania de São Paulo, no ano de 1748.

Acompanhados de negros escravizados, “negros da terra” e de pobres livres na lida com as embarcações, na busca de caças e do encontro de roças, no transporte de cargas e de alimentos, os viajantes enfrentariam muitas dificuldades, a exemplo das condições de vida derivadas da escassez de comida, pela perda de produtos nas embarcações e deterioração dos mesmos, por se depararem com centenas de insetos, como carrapatos, pernilongos e outros desconhecidos, mas em especial pela resistência dos povos originários em muitos lugares por onde passavam, em encontros nada amigáveis.

Taunay nos conta que na busca desenfreada pelo ouro ou pelo que se chamava de “as grandezas de Cuiabá”, nada fazia diminuir o afluxo dos imigrantes no século XVIII, nem mesmo o temor da fome que rondava toda a América Portuguesa, principalmente pelo caminho das monções, em Cuiabá, e em outros lugares de produção aurífera:

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Nem as mais sinistras notícias do extermínio de expedições inteiras pelos terríveis canoeiros e cavaleiros, paiaguás e guaicurus.

Nem o anúncio de pestes, das carneiradas, e das temerosas fomes do Cuiabá, onde, mais de uma vez, se realiza o que a mitologia grega de simbolismo sempre poderoso, concretiza na imagem de Midas, morrendo de inanição à margem do Pactolo. (1981:15)

Os povos originários defendiam o seu território da presença dos monçoeiros. Povos como os Guaicuru (índios cavaleiros); os Paiaguá (índios canoeiros) e os Cayapó, que cultivavam muitas roças e habitavam um vasto terreno que envolvia o norte e sul de Mato Grosso.

A narrativa da viagem de João Ferreira de Oliveira Bueno, realizada em setembro de 1810, e publicada no primeiro número da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, traz informações dos Cayapó nas terras que constituíam Paranahyba. Os fragmentos dessa fonte denotam o modo como os indígenas eram interpretados pelo olhar do viajante. É possível depreender ainda da memória de João Bueno relatos da presença de negros escravizados por essas diligências e o seu papel no contato com os povos originários.

Na expressão comum deste viajante que partira de São Paulo pelo rio Tietê para chegar ao rio Paraná, termos como “tribo feroz”, “bárbaros”, “selvagens” são comuns, quase como “elementos naturais” da narrativa. Esta interpretação consta em muitos relatos acerca desses povos, em especial no cenário das monções do século XVIII e nas expedições enviadas pela província e por particulares para contê-los no século XIX. No início daquele século, como se percebe na fonte, ainda esta interpretação permeava o imaginário pelos caminhos de Mato Grosso. O trecho a seguir é ilustrativo para a compreensão desta leitura:

De manhã naveguei com duas canoas pelo Paraná abaixo a ver se encontrava os índios, e cheguei à barra do Rio Sucuriú que deságua no Paraná da parte ocidental; e divisando muito abaixo uma fumaça na margem oriental, mandei virar as canoas para aquele sítio, passando pelo Jupiá, que é um recife de pedras, que nasce de uma e outra margem para a foz do rio, ficando um pequeno boqueirão, por onde correm as águas com imensa velocidade, fazendo muitos redemoinhos, sendo necessário passarem as canoas com cordas na popa e proa, indo as pessoas que as levavam, por cima das pedras, afim de não serem submergidas pelos ditos redemoinhos, e parei em uma ilha de areia e pedra, defronte de lugar onde tinha divisado a fumaça, e nela demorei-me algum tempo, mandando tocar a buzina, a ver se se mostravam os bárbaros, o que não aconteceu: inferindo que era alguma partida ou tribo feroz que ali se achava; e vendo baldada a minha diligência, voltei para o meu quartel, chegando às nove horas da noite, com projeto de ir no dia seguinte pelo Paraná acima até o Salto do Urubupungá e depois que cheguei soube de uns mulatos, meus escravos, que tinham ido pelo Paraná acima, terem encontrado os selvagens em uma e outra margem do rio, de cujo encontro assustados voltaram com toda a celeridade (1908:144)

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Nesta viagem, João Bueno seguia acompanhado de seu irmão, o capitão Miguel Ferreira de Oliveira Bueno. Ao relatar passagens que marcaram este itinerário, no dia 28 de setembro, João Bueno conta que objetivava ir ao Salto de Urubupungá, porém:

[...] meu irmão o capitão Miguel Ferreira de Oliveira Bueno, por divertir-se foi à barra do Rio Tietê, que fica próxima à ilha onde estava aquartelado, e nela encontrou na margem oriental do Paraná três selvagens que pescavam, os quais nenhum sobressalto tiveram, antes convieram em vir na canoa ao meu quartel, revestindo-se de tanta confiança e candura, que no embarque lançaram na praia seus arcos e flechas, e até uma faca velha que tinham.

Diferentemente do encontro com o “selvagem” ou “bárbaro”, como narra o temor inicial de João Bueno, os irmãos se depararam primeiro com o despojar das armas por parte dos povos originários e, no dizer do narrador, com “tanta confiança e candura” que os Cayapó obtiveram “agasalho e urbanidade”, após terem sido alimentados. O viajante nos conta ainda que deu: “[...]facas, fumo, farinha, feijão, sal, açúcar, e até mandei-lhes cortar os cabelos, e tornei a mandá-los por no mesmo lugar em que tinham sido encontrados, rogando-lhes que dissessem aos seus chefes que viessem ao meu quartel, porque queria vê-los e mimosea-los”.

A narrativa se refere ao ano de 1810. Neste contexto é importante pensar que a “confiança e candura” desvelavam a tentativa de sobreviver desses povos em meio ao redemoinho da violência colonizadora, ao longo dos séculos XVIII e ainda no XIX, em ações tanto do poder público quanto de interesses privados. “Vê-los”, “mimoseá-los”, “presenteá-los” implicava a tentativa de inserir esses povos nos projetos de civilização e catequese do século XIX, o que muito interessava às autoridades provinciais e aos grandes posseiros; também aos pequenos posseiros e sitiantes, na medida em que poderiam servir de mão-de-obra barata para as suas roças e gado, em especial, no caso de grandes posseiros, para a constituição de milícias particulares, para a condução de boiadas, entre outros trabalhos.

Campestrini (2002:33) apresenta dados reveladores da utilização da mão de obra indígena, na análise da Correspondência Oficial de constituição da Freguesia de Sant’Anna do Paranahyba, em abril de 1838. Como explicita este autor, o objetivo do governo imperial estava em constituir fazendas de “gado vacum e cavalar” para “fixar e aculturar os Caiapó”, ou seja, utilizar-se de seu trabalho e ao mesmo tempo “inseri-los” na sociedade.

Práticas públicas e privadas de inserção dos Cayapó à sociedade levaram muitos homens, mulheres e crianças desse grupo a migrar mais e mais para o interior. “Inserir-se”

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implicava para os povos indígenas - como queriam os projetos imperiais - “deixar de ser indígena”, como se isto fosse possível.

O trabalho de abertura de posses de terras e de estradas, a edificação de destacamentos militares e de aldeamentos, devido à tentativa de controle, extensão e defesa das fronteiras, são ações que podem ser vistas como estratégias públicas e privadas de ocupação da terra e de apresamento dos povos originários.

Um exemplo a ser explorado, em especial neste texto, refere-se ao aldeamento dos Cayapó, em Sant’Anna, que ao ser olhado a partir de uma micro-história possibilita entender os embates entre os interesses locais, o poder provincial e o grupo diretamente atingido por essas ações.

Os Cayapó e o aldeamento de Sant’Anna do Paranahyba

Em 1839 Estevão Ribeiro Rezende, advogado e presidente da Província, ao falar dos Cayapó e do aldeamento em Paranahyba, solicitava ao Delegado do Governo, José Garcia Leal, dados sobre Manoel Silvério de Oliveira, Diretor dos índios. A fonte ordenava que Leal informasse quando Manoel Silvério havia recebido a diretoria, quem era o “senhor ou possuidor das terras” do estabelecimento e como as havia adquirido e ainda que tomasse as devidas providências para a “prosperidade do mencionado aldeamento, catequese e civilização dos índios Caiapós”. 4

Temos algumas respostas a essas indagações na carta do delegado de governo, endereçada ao presidente da Província em setembro de 1839, em que informava que “Manoel Silvério de Oliveira foi empossado da Diretoria dos Índios Caiapós, em outubro de 1837”. Tanto as perguntas do presidente quanto as respostas de José Garcia Leal nos fazem entender que 1837 foi o marco do estabelecimento do aldeamento dos Cayapó em Sant’Anna. Há na correspondência de Estevão Ribeiro de Rezende, e na resposta a ela, sinais da localização do aldeamento, três quartos de légua acima da barra do Barreiro. Há ainda a informação de que se constituía “em nove casas de vivenda feitas, e construindo outras” e também o fato de que as terras ainda estavam em “seu primitivo estado de devolução”, mesmo tendo decorrido

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quatro anos que José Joaquim da Pena, “pretendido possuidor das terras”, as tenha comprado de “seu primeiro possuidor” 5.

A mesma preocupação com a manutenção do aldeamento deu-se na resposta de Garcia Leal, em setembro daquele ano6, levando a entender o interesse em manter o aldeamento no controle da Província. Em janeiro de 1840, Leal informava ao presidente da Província que Manoel Silvério havia se despedido da Diretoria, por “se não poder voltar aquele estabelecimento com a exatidão, zelo que lhe cumpria”. Nomeava em seu lugar a Felisberto Rodrigues da Costa, “esperando de seu zelo, patriotismo, e adesão a causa pública o bom desempenho da importante comissão que de ora em diante lhe fica encarregada”7.

Em maio de 1841, José Leal era destituído da função de delegado de Governo, assumindo o cargo o juiz de paz da Freguesia8. O quadro de ocupação da terra exposto pela administração provincial em correspondência ao juiz de paz, um dia antes da demissão de Leal, explicitava a situação de conflitos, possivelmente envolvendo esse representante do poder local e outros potentados. Conforme Guimarães havia diversas contestações na Freguesia quanto a “posse de terrenos, motivados pela irregular distribuição dos primeiros povoadores que se apoderaram deles, por isso hoje impregnam a entrada de outros, com especiosos pretextos de terem sido os descobridores”. Afirmava ainda que a solicitação se dava: “sem que todavia apresentem algum direito legítimo de suas possuições, obstando assim a que maior número de habitantes cultivem estas terras em benefício da agricultura”.

Em vista desse cenário, o novo presidente ordenava ao Juiz de paz que empregasse todo “seu reconhecido zelo” e não consentisse: “[...] que pessoa alguma se aposse de mais terreno que aquele que puder cultivar por si e por seus escravos, até que a Assembleia Geral decrete a semelhante respeito [...]”.9

Em correspondência à mesma autoridade, o presidente na semana seguinte destacava o conflito entre o novo Diretor dos Índios Cayapó, Felisberto Rodrigues da Costa e Januário Garcia Leal: “[...] acerca de um terreno onde hoje se acha fundado o aldeamento dos mesmos

5 Idem.

6 APMT. Documento 061 (Est. 05). Registro de Correspondência Presidencial com o interior da Província (1840-1841)

7 Idem. 8

Ibidem.

9 APMT. Documento 061 (Est. 05). Registro de Correspondência Presidencial com o interior da Província (1840-1841)

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índios como tudo fez constar ao Presidente da Província, o então Delegado do mesmo, em vários ofícios do cidadão José Garcia Leal, pedindo providências a respeito”10.

Nesta correspondência percebemos o papel da administração provincial tentando coibir as ações de apossamento ilegal de terras em Sant’Anna, realizadas por Januário Garcia Leal em querela com o protegido de seu irmão, já que, como constam nas fontes, foi Felisberto quem substituíra Manoel Silvério no cargo de Diretor do aldeamento dos Cayapó, em 1840, nomeado pelo delegado de governo José Garcia Leal.

A fonte deixa a entender que: “o terreno controverso nunca fora arroteado e cultivado pelo pretendido possuidor Leal”, não podendo “ele entrar em contestação com o mencionado Diretor dos índios por serem estes os primários naturais senhores dele, por isso a eles pertence de fato, se não de direito a posse pacífica do mesmo”. Reforçava ainda que:

[...] por não ter o sobredito Leal título algum legítimo do lugar controvertido, se não essa hipotética prioridade de posse, que mesmo sendo válida, acha-se hoje caduca, porque deixou de cumprir a primeira e essencial condição de arrotear, agriculturar, e beneficiar em proveito geral dos povos, do Estado, e do comércio11.

Desta forma, revertia-se em “comisso o predito terreno ao seu primeiro senhorio”, ou seja, o terreno deveria retornar aos Cayapó. Esta interpretação desvela outra faceta das ações provinciais. Ao tomar partido do Diretor do aldeamento, o presidente destoava de ordens comuns no meados do século XIX. Seria interessante entender melhor o papel desse agente administrativo no contexto da Regência, pois nos parece inspirar-se em ideias que não compactuavam com as ações “regressistas” em voga naquele período.

Passada uma década da correspondência de José da Silva Guimarães em que se expunha a contenda envolvendo as terras do aldeamento, encontramos um ofício de Augusto Leverger, presidente da Província, ao Diretor Geral dos Índios de Mato Grosso, no qual, de modo frontalmente oposto à interpretação do cônego Guimarães, encaminhava: “[...] um aviso para que sejam, de imediato, retomadas as terras dos antigos aldeamentos em que os indígenas se encontrassem dispersos”.

De modo diverso de maio de 1841, em que se reconhecia o direito primeiro dos povos naturais às terras em clara oposição a Januário Garcia Leal, Leverger, inspirado na Lei de 1850, mandava ao Diretor Geral: “[...] sequestrar e incorporar aos próprios nacionais todas

10

Idem.

11 APMT. Documento 127 (Est. 06). Registro de Correspondência oficial entre esta Presidência e as Câmaras Municipais, Bispos, Juízes de Paz e pessoas particulares da Província (1852-1855)

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as terras concedidas aos índios que já não vivam aldeados, mas sim dispersos e confundidos na massa da população, pois que tais terras se devem considerar como devolutas[...]12.

Estar “disperso e confundido na massa da população” era um argumento de Leverger a fim de apresentar a área ocupada como terra devoluta e assim justificar o fim dos aldeamentos. Ao sugerir que fossem arrecadadas as terras de aldeamentos que não estivessem ocupados, é perceptível a sua conivência com os interesses locais, ou seja, com os grandes posseiros em detrimento dos indígenas, bem como o desejo de responder positivamente à Lei de Terras de 1850.

Entretanto, se olhamos para outras experiências é possível perceber as similaridades com a história de Mato Grosso. Ao discutir o destino dos aldeamentos indígenas no Ceará, nos oitocentos, Valle destaca os limites da Lei de Terras na demarcação das áreas, observando como era complexo fazer com que esta Lei vingasse em vista da ineficácia das ações provinciais, já que esbarrava na “carência de funcionários e na resistência de segmentos provinciais e de agentes, como os presidentes de província, que não remetiam informações, nem realizavam qualquer determinação da lei em vigor. (2011:459)

Acrescentaríamos aqui o fato de que passados onze anos do decreto da Lei de Terras e sete do Registro Paroquial de 1854, a fala do Delegado Luis Seixas Pereira dos Guimarães, da Repartição de Terras Públicas de Mato Grosso, ao apresentar a situação de irregularidade das posses e de sesmarias por toda a Província deu indícios dos entraves para a regularização e controle da propriedade das terras. Evidenciava ainda, como apontou Valle ao referir-se ao Ceará, a fragilidade da administração provincial na falta de condições para esta tarefa, como a ausência de juízes comissários e agrimensores para medir e revalidar as posses e sesmarias.

Os vestígios da contenda envolvendo os Cayapó, o diretor do aldeamento e um dos grandes posseiros de Sant’Anna nos dá subsídios para afirmar que se a tentativa de regularização das terras deu-se num processo nada tranquilo devido às fragilidades da administração provincial e o desinteresse dos “possuidores” ou ainda pela falta de recursos, a grilagem e os abusos de poder das terras indígenas e de pequenos posseiros já se iniciaram desde as primeiras incursões de fins dos anos 1820 pelo leste do sul de Mato Grosso.

Breves considerações

12 Idem.

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Apossar-se com o “olhar a perder de vista” era comum aos “pioneiros”. Resistir a estas posses no modo possível de cada dia também explicita a história dos pobres da terra, por mais que a memória privilegiada não seja esta, pelo contrário.

As fontes oficiais e os relatos de viajantes, se lidos de baixo para cima, podem indicar muito do mundo agrário e de sua gente, dos arbítrios e do seu reverso, ao propiciarem o olhar para os povos originários nas brechas que conseguimos abrir em meio à documentação. Ainda não temos evidências suficientes para saber o destino deste aldeamento, a não ser o relato de Justiniano Augusto de Sales Fleury, em 1895, em que conta que naquela época restavam bem poucos dos indígenas do primeiro aldeamento em Sant’Anna, encontrando-se os remanescentes em situação de penúria. Também não sabemos qual o desfecho da história envolvendo Januário e Felisberto, mas pelo histórico dos Garcia Leal pressupomos que o primeiro tenha sido o vencedor nesta contenda e o diretor, tal como os povos originários, tenha sentido na pele o peso do “ser senhor de terras e de gente”.

Faz-se necessário buscar novos indícios para apreender as ações dos Cayapó em sua interioridade, pois em que pese o processo de ocupação da terra e a violência não se pode negar as histórias de luta e os embates impressos a ferro e a fogo, os quais não podem ser apagados, nem da memória e muito menos da história deste lugar.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Teses sobre a filosofia da história. In: Sociologia. São Paulo: Ática, 1991.

BUENO, João Ferreira de Oliveira. Simples Narração da viagem que fez ao Rio Paraná o thesoureiro-mor da Sé desta Cidade de São Paulo. In: Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, Tomo I, 3ª. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908.

CAMPESTRINI, Hildebrando. Santana de Paranaíba – De 1700 a 2002. 2ª. ed. Campo Grade: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2002.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 3a ed. ampl. São Paulo: Brasiliense, 1990. TAUNAY, Afonso de E. Relatos Monçoeiros. São Paulo: Editora Itatiaia Limitada, 1981. VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Terras, índios e caboclos em foco: destino dos aldeamentos indígenas no Ceará (século XIX). In: OLIVEIRA, João Pacheco de. A presença

indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de

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