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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ANDREA MARIA VIZZOTTO ALCÂNTARA LOPES O FINO DA BOSSA: TRADIÇÃO E MODERNIDADE NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA ( )

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ANDREA MARIA VIZZOTTO ALCÂNTARA LOPES

O FINO DA BOSSA: TRADIÇÃO E MODERNIDADE NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA (1965-1967)

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em História, Departamento de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel e licenciada em História.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Ribeiro.

CURITIBA 2010

(2)

O historiador Paulo César de Araújo procura entender como se construiu a definição de música “brega” nos anos 1970 e atribui a essa categoria a assimilação da “tradição” ou da “modernidade” para essa produção. Marcos Napolitano, ao trabalhar com a expressão MPB, que, segundo ele, surge em meados dos anos 1960, também mostra a importância dessas duas categorias para a formulação dessa sigla. Entretanto, essa conceituação é bastante complexa e é importante entender o que significam historicamente essas categorias, pois elas marcam também um processo de construção identitária. Esse é o objetivo dessa monografia, que pretende discutir como as categorias de “tradição” e “modernidade” foram importantes para a produção musical de meados dos anos 1960, a partir do programa musical televisivo O Fino da Bossa, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues, entre os anos de 1965 e 1967. A intenção é compreender como era construída uma identidade musical a partir dessas duas categorias, vendo não só a produção dos discursos mas também como eles se efetivavam na prática musical.

(3)

INTRODUÇÃO ...1

1 NA BOSSA COM ELIS REGINA E JAIR RODRIGUES ...8

2 O MERCADO DE BENS SIMBÓLICOS NA DÉCADA DE 1960 ...22

3 TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM O FINO DA BOSSA...30

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 52

FONTES... 54

(4)

INTRODUÇÃO

Em seu livro Eu não sou cachorro não, Paulo César de Araújo procura entender o silêncio da historiografia em relação a determinados gêneros e autores da música popular brasileira, que, apesar das vendagens expressivas de discos e recordes de execuções radiofônicas entre os anos de 1968 e 1978, não eram considerados objetos de estudo no campo das ciências sociais. Para o autor, os artistas pejorativamente denominados “bregas” são um “patrimônio afetivo de grandes contingentes das camadas populares” e suas obras podem se constituir em uma forma de entender a cultura brasileira.1

Após uma extensa e intensa discussão sobre a produção musical desses artistas e sobre a memória construída acerca da MPB, Araújo propõe uma definição para a música “brega”, como “toda aquela produção musical que o público de classe média não identifica à ‘tradição’ ou à ‘modernidade’”.2 Para o autor, quando a música popular brasileira começou a ser debatida e analisada por intelectuais e críticos musicais, já nas primeiras décadas do século 20, a discussão se realizava em torno dos conceitos de “tradição” e “modernidade”. Esse dualismo já estaria presente no debate político-cultural desde 1922, refletindo a necessidade de construção de uma identidade nacional.

Essa tese é corroborada por Marcos Napolitano, em seu livro A síncope das

ideias3, no qual o autor mostra como se constrói essa identidade nacional a partir da

retomada de valores associados a elementos da tradição popular tensionados pela necessidade de modernização desses mesmos valores. A tensão estaria na tentativa de conciliar essas duas posições estéticas e também políticas, pois uma “moderna” música popular brasileira teria se construído na articulação com as raízes de cultura popular considerada “autêntica”, ou seja, ancorada em elementos da tradição musical brasileira. Conceitualmente, o autor destaca o caráter híbrido das obras – na acepção utilizada pelo antropólogo Nestor Canclini, ou seja, como estratégias para lidar com a modernidade, aceitando e rejeitando os seus pressupostos –, pois nas canções poderiam se perceber os dilemas que os artistas sofriam na tentativa de

1

ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 15.

2

Ibidem, p. 353.

3

NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007.

(5)

realizar uma produção orientada pelo nacional-popular, mas que também recebe informações vanguardistas, seja do jazz, da música erudita contemporânea ou ainda tropicalistas, já no final da década de 1960.4 Assim, seguindo a MPB e procurando mostrar que a legitimidade de determinados gêneros e a construção de seus sentidos deve ser entendida não só sincrônica, mas também diacronicamente, que se deve “entender criticamente o processo histórico de legitimação sociocultural de autores, gêneros e obras, necessariamente diacrônico, marcado por descontinuidades, monumentalizações, lugares de memória e invenção de tradições”5, o autor acaba transformando a MPB, categoria construída historicamente, em algo imanente a praticamente toda produção musical brasileira realizada após a instalação das primeiras gravadoras e rádios no país, ou seja, após o início de uma incipiente indústria cultural, que se consolidaria a partir de meados da década de 1960.

Em certo sentido, as duas interpretações, de Araújo e Napolitano, se encontram, ou melhor, se complementam. Se considerarmos que toda identidade é relacional e construída tanto simbólica quanto socialmente, podemos entender que o simbólico é a forma pela qual “damos sentido a práticas e a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído”.6 Da mesma forma, Michael Pollak argumenta que “a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros.”7

Contudo, se os autores percebem essa construção identitária que articula tradição e modernidade – pois o caráter de resistência atribuído exclusivamente à MPB é questionado por Araújo –, não fica claro de qual tradição e modernidade se está falando, pois mesmo entre essas duas vertentes há inúmeras modulações de sentido que devem ser entendidas em relação a determinados projetos

4

NAPOLITANO, Marcos. MPB: totem-tabu da vida musical brasileira. In: Anos 70: trajetórias. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2005, p. 126.

5

NAPOLITANO, Marcos. “História e música popular: um mapa de leituras e questões”. Revista de História, São Paulo, Universidade de São Paulo, n. 157, 2007, p. 167.

6

WOODWARD, Kathryn. “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.” In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 8.

7

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culturais que estão sendo propostos. Nesse sentido, a nossa proposta, nessa monografia, é entender essa tensão entre tradição e modernidade em seu contexto de formulação, pois, concordando com Jesús Martin-Barbero, acreditamos que “historicizar os termos em que se formulam os debates é já uma forma de acesso aos combates, aos conflitos e lutas que atravessam os discursos e as coisas.”8

Assim, o nosso objetivo é entender como esses conceitos informavam a produção musical de meados da década de 1960, período no qual teria sido criado o termo MPB, a partir do debate que confrontava diferentes posições políticas e estéticas. Para Araújo também foi produzido um “enquadramento” da memória da música popular brasileira, pois os pesquisadores que estudam essa produção saem do mesmo meio universitário que produziu o debate sobre a cultura popular e acabam reproduzindo esse mesmo discurso.9 Dessa forma, acaba-se produzindo um discurso etnocêntrico que coloca a MPB como centro da produção musical brasileira dos anos 1960 e 1970 e a ela são atribuídos os valores considerados “positivos” de resistência, liberdade criativa e independência mercadológica. E sobre os artistas e críticos musicais que apresentam uma voz discordante a esse discurso são produzidos silêncios – como no caso de Wilson Simonal – ou deslegitimadas as suas ideias, – como no caso de José Ramos Tinhorão –, que passam a ser consideradas xenófobas ou ultrapassadas. Porém, como demonstra Luísa Lamarão, são ultrapassadas “em relação a uma memória que certa esquerda quer cristalizar sobre sua atuação no campo cultural e político dos anos da ditadura”.10

O crítico e pesquisador musical José Ramos Tinhorão foi uma das vozes do debate sobre a “moderna” música popular brasileira e o alcance das suas ideias pode ser percebido pela interlocução estabelecida com Augusto de Campos – que responderia com vários artigos na imprensa, posteriormente reunidos no livro Balanço da bossa – e com Caetano Veloso, quando formula o seu conceito de “linha evolutiva”11, em debate promovido pela Revista Civilização Brasileira. Tinhorão também foi ouvido por essa revista, junto com o músico Luiz Carlos Vinhas e o

8

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p. 31.

9

ARAÚJO, Paulo César de. Op. Cit., p. 343.

10

LAMARÃO, Luisa Quarti. As muitas histórias da MPB: as idéias de José Ramos Tinhorão. Dissertação. UFF. História, 2008. 155f, p. 126.

11

(7)

compositor Edu Lobo.12 Assim, as ideias de Tinhorão são igualmente importantes para entender o processo de construção da MPB. Se havia uma tensão entre “tradição” e “modernidade”, é importante destacar de qual “tradição” e de qual “modernidade” se está (e se estava) falando, uma vez que não se constituíam de projetos homogêneos.

Para essa discussão, selecionamos o programa musical televisivo O fino da bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, na TV Record de São Paulo, entre os anos de 1965 e 1967, período marcado pelo debate no qual é forjado o conceito de MPB e em que os temas da tradição e da modernidade são constantemente retomados. Esses dois intérpretes também terão uma participação importante nos festivais de música popular brasileira realizados pela mesma emissora, principalmente em 1965, quando Elis Regina vence com a canção Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, e 1966, quando Jair Rodrigues, interpretando a canção Disparada, Geraldo Vandré e Théo de Barros, divide o primeiro lugar com A banda, de Chico Buarque.

É importante destacar a importância dos festivais da canção promovidos em meados da década de 1960, comumente lembrados quando se fala nos “festivais”, ou na “era dos festivais”, tanto pelo sucesso e repercussão que obtiveram na época e a capacidade de mobilização das pessoas em torno das canções participantes, quanto pelas transformações que introduziram na música popular brasileira.

Além disso, em 1965, Elis Regina lança o seu quinto disco solo, Samba eu canto assim, considerado por Marcos Napolitano como fundamental para a constituição da nascente MPB, pois a intérprete estaria no centro do debate sobre a música popular brasileira em sua relação com a “tradição” e a “modernidade”, “na medida em que sua leitura de bossa nova remetia ao universo musical anterior ao movimento”.13 Para o autor, com esse disco Elis Regina contribuiria para ajudar a configurar a MPB que nascia, principalmente pelo “cruzamento de séries históricas e culturais diferentes na reorganização do panorama musical brasileira, do ponto de

12

LOBO, Edu; VINHAS, Luiz Carlos; TINHORÃO, José Ramos. “Confronto: música popular brasileira.” Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 3, p. 305-312, jul. 1965. Entrevistas concedidas a Henrique Coutinho.

13

(8)

vista estético, ideológico e comercial.”14 Ainda de acordo com Napolitano, o desenvolvimento da televisão ajudou a ampliar a audiência da MPB, pois o seu público constituía-se, nesse primeiro momento, pelos ouvintes do rádio, que possuíam outros referenciais sonoros, anteriores à bossa nova, e Elis Regina teria tido um papel fundamental nesse processo, ao conciliar esse padrão estético radiofônico a um repertório formado por vários compositores oriundos da bossa nova.

Assim, com esses dois artistas de importante atuação nos festivais de música, apresentando um programa musical em uma televisão ainda incipiente e que procurava aumentar e consolidar um público específico, podemos entender o debate sobre as tendências musicais da época. Embora ambos os artistas tenham lançado outros discos nesse período, sozinhos ou ainda em dueto, escolhemos como fonte as canções veiculadas no programa, lançadas pela gravadora Velas, em 1994, em três CDs, que contêm trechos do programa registrados pelo técnico de som na época, Zuza Homem de Mello, e que se constituem nos únicos registros fonográficos do programa O fino da bossa – e mesmo audiovisuais, se considerarmos que grande parte do acervo da emissora perdeu-se com incêndio em suas dependências e pelas constantes regravações de programas por sobre materiais antigos. Como o programa repercutiu na imprensa, entre intelectuais e críticos musicais, é possível historicizar o debate a respeito da produção musical popular brasileira. A escolha pelo programa faz-se pela intenção de não tratar apenas das canções que esses artistas estavam interpretando e gravando mas para estudar também os compositores e intérpretes que passavam pelo programa, o que sinalizava a filiação a determinadas propostas estéticas. Assim, os produtos fonográficos desses artistas, os discos – em dueto ou individuais –, serão discutidos como forma de ampliar a compreensão sobre os procedimentos estéticos, uma vez que ainda se inserem nas mesmas propostas musicais presentes no programa televisivo.

O recorte temporal estabelecido para essa pesquisa é dado pelos anos em que o programa O fino da bossa foi transmitido, entre 1965 e 1967.15 Além disso,

14

NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 107.

15

Em 1966, o programa passará a ser chamado de O Fino, por questões contratuais, pois o “proprietário” do nome “O Fino da Bossa”, Horácio Berlinck se desligaria do programa. Depois,

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esse recorte também marca a ascensão da trajetória artística desses dois artistas, suas participações nos festivais de música e o debate sobre a música popular brasileira, que suscita novas questões e posicionamentos a partir do golpe militar de 1964 e também pelo crescente desenvolvimento dos meios de comunicação. Assim, o período engloba momentos importantes para a política e a cultura brasileira.

Metodologicamente, essa pesquisa seguiu o procedimento sugerido por Marcos Napolitano para a análise de uma canção como fonte histórica, cotejando a audição da obra em sua materialidade (os fonogramas resultantes das gravações das apresentações em O fino da bossa) com as manifestações escritas provenientes da escuta musical, que se dá por meio de artigos, críticas, entrevistas dos artistas e outros documentos que permitam situar historicamente a canção16, procedimento fundamental para entender as obras em sua historicidade, uma vez que estamos procurando entender o debate sobre essa produção musical.

As fontes utilizadas podem ser divididas entre um material impresso – composto de artigos de jornais e revistas da época com depoimentos e entrevistas de Elis Regina e Jair Rodrigues, e artigos que discutem a produção musical do período e de forma mais restrita, a desses dois artistas – e um material sonoro, o registro fonográfico das canções. Os principais jornais pesquisados foram o Jornal do Brasil e, entre as revistas, foram utilizadas O Cruzeiro, marcada por uma linha editorial de apoio ao regime militar, à “Revolução de 1964”, e a Revista de Civilização Brasileira, que propiciava a discussão cultural entre intelectuais de esquerda ou críticos ao golpe militar. Além disso, foram utilizadas coletâneas de artigos publicados em livros, como Balanço da bossa, que reúne diversas formulações críticas à música popular brasileira do período. O interesse por fontes de orientações político-estéticas distintas resulta da intenção de compreender os vários discursos e as diferentes recepções em relação às propostas artísticas do período.

É a partir dessa perspectiva que a monografia foi estruturada e dividida em três capítulos, sendo que, no primeiro, é discutida a trajetória artística de Elis Regina passará a ser O Fino 67. Entretanto, tanto nos três CDs que contêm essa produção musical quanto nas fontes do período, o programa é constantemente referido pelo seu nome original.

16

NAPOLITANO, Marcos. “A história depois do papel”. In: PINSKY, Carla. (Org.) Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 235-289.

(10)

e Jair Rodrigues nos primeiros anos de suas carreiras, com destaque para o início em festivais de música e a participação no programa O fino da bossa, procurando situá-los em relação à bossa nova e aos festivais de música – movimentos importantes para entender o debate sobre a música popular após o regime militar.

No segundo capítulo, é dada ênfase ao mercado fonográfico e relacionamento dos artistas com os meios de comunicação e com as estruturas de marketing das gravadoras, em como se relacionavam e se inseriam na indústria cultural que estava se consolidando no país.

Os dois primeiros capítulos abordam aspectos que entravam na discussão sobre a música popular: a origem social dos artistas e suas escutas musicais prévias, que contribuíam para a forma como se expressavam artisticamente, e a relação com o mercado, “cooptação” ou “negação”, termos que tensionavam a produção dos artistas que desejavam um posicionamento crítico em relação ao regime militar e ao capitalismo vigente no país.

A partir dessa discussão iniciada nos dois primeiros capítulos, o terceiro procura destacar os depoimentos dos artistas, intelectuais e críticos musicais sobre a função social da arte, inseridos no debate produzido na mídia, com o intuito de entender qual(is) o(s) significado(s) que estão sendo construídos para as duas categorias, “tradição” e “modernidade”, a partir do programa O fino da bossa. Das 34 canções disponíveis nos 3 CDs sobre O Fino da Bossa, são analisadas 13, com o intuito de perceber como esse discurso era efetivado na prática.

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1 NA BOSSA COM ELIS REGINA E JAIR RODRIGUES

O termo bossa já era utilizado pelo menos desde os anos 1930, quando Noel Rosa dele se apropria em seu samba Coisas nossas, lançado em 1932, como se pode ouvir no refrão “o samba, a prontidão / e outras bossas / são coisas nossas / são coisas nossas”.17 Segundo o crítico musical José Ramos Tinhorão, o termo continuaria sendo bastante evocado nas décadas seguintes, até surgir a expressão cheio de bossa, que designaria “alguém capaz de frases ou atitudes inesperadas, recebidas como demonstração de inteligência ou de real bom humor.”18 Na gíria carioca, a palavra bossa era reconhecida como “o talento especial de uma pessoa para fazer determinada coisa”19, como se pode perceber na referência à cantora Elza Soares, pois o seu sucesso teria vindo da “bossa genial de cantar a música antiga usando o sabadabadá saído direto da garganta”20 ou na capacidade comunicativa de Wilson Simonal, expressa no domínio de palco que possuía, “dono de uma bossa toda sua”21.

Não demoraria para aparecer a expressão “bossa nova”, que seria bastante divulgada pelo jornalista Sérgio Porto – também conhecido como Stanislaw Ponte Preta – em sua coluna no jornal Diário Carioca, que fazia uma espécie de síntese entre esses significados, incorporando também uma associação com o sentido de modernidade, bastante explorado pelo meio publicitário. Assim, podia-se ter um “delegado bossa nova”, “imaginoso e lírico”22, uma nota humorística que pedia um “aumento em bossa nova”, que poderia ser “em dinheiro ou em gêneros”23, uma “bossa nova legislativa”, com a malícia do vereador que queria votar por telegrama24, ou ainda uma forma de promover artigos de vestir, como a “bossa nova opina: os tons são elegantes”25. Para Tinhorão, seria dessa forma que a expressão “bossa nova” acabaria sendo utilizada para identificar um grupo novo de artistas surgidos

17

JUBRAN, Omar. Noel Rosa pela primeira vez. Ministério da Cultura / FUNARTE, 2000, p. 25.

18

TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 28.

19

Ibidem, p. 19.

20

ELZA Soares mulata de 400 bossas. O Cruzeiro, 20 nov. 1965, p. 67.

21

DO MOLEQUE Simona a Wilson Simonal. O Cruzeiro, 19 ago. 1967, p. 56.

22

DELEGADO bossa-nova. Coluna O impossível acontece. O Cruzeiro, 23 maio 1964, p. 56.

23

AUMENTO em bossa nova. Coluna O impossível acontece. O Cruzeiro, 19 fev. 1966, p. 40.

24

BOSSA-NOVA legislativa. Coluna O impossível. O Cruzeiro, 28 jan. 1967, p. 56.

25

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entre 1958 e 1959 cuja maior “bossa” era apresentar “sambas modernos”. Tinhorão era extremamente crítico ao novo gênero musical – para ele apenas uma forma de tocar sambas e uma deturpação do samba de origens populares – e em seu artigo procurava questionar a “novidade” do movimento musical ao mesmo tempo em que valorizava a “velha bossa”, essa sim considerada uma “autêntica” música popular brasileira. Para o crítico, tratava-se de um processo de alienação do jovem de classe média – que consome música estrangeira e despreza a cultura popular – da produção das classes pobres. Assim, a sua crítica recaía tanto à produção quanto à recepção de classe média. Reconhecendo que o conceito de autenticidade tem um sentido histórico e ideológico, Luísa Lamarão argumenta que o pensamento de Tinhorão procurava articular folclore e marxismo, em um discurso que procurava “preservar a autenticidade da cultura popular face às influências alienantes da cultura estrangeira”.26

Para Marcos Napolitano, o sentido de modernidade atribuído à bossa nova pode ser entendido como uma das formas como os “segmentos médios da sociedade assumiram a tarefa de traduzir uma utopia modernizante e reformista que desejava ‘atualizar’ o Brasil como nação perante a cultura ocidental”.27 O autor afasta-se de análises que definem a bossa nova como “reflexo” do desenvolvimentismo do governo de Juscelino Kubitschek, com a qual concordamos pois entendemos que a arte não pode ser entendida como se fosse apenas um “reflexo” da sociedade, mas como uma de suas manifestações, uma das respostas possíveis ao momento vivido pelo país, informada por e formadora do contexto, resultando de um processo de “trocas” e “interações” sociais. Contudo, essa “utopia modernizante” e os seus efeitos sobre a cultura brasileira também eram objeto de discussão e críticas.

De acordo com Anna Moraes Figueiredo, em sua pesquisa realizada entre os anos de 1954 e 1964, a publicidade expressava um desejo de modernidade, “uma

26

LAMARÃO, Luisa Quarti. As muitas histórias da MPB: as idéias de José Ramos Tinhorão. Dissertação. UFF. História, 2008. 155f, p. 84.

27

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 21.

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condição a priori imbuída de positividade”28, que se configurava mesmo como um ideal que deveria concretizar-se no crescimento urbano e industrial, que superaria o “atraso” das zonas rurais e inauguraria um “tempo novo”. E esse processo de desenvolvimento não poderia prescindir do capital estrangeiro. A produção deveria ser feita no Brasil, com a independência econômica vindo da iniciativa privada, mas os capitais não precisavam ser nacionais. Os produtos estrangeiros eram assumidos como modelos para a indústria brasileira e a soberania seria alcançada pela evolução capitalista, pela ampliação do consumo. O conceito de liberdade associava-se diretamente com a possibilidade de consumo de artigos variados. No período pré-golpe de 1964 encontra-se em periódicos da imprensa, como a revista O Cruzeiro, um discurso que realizava a fusão entre consumo, liberdade e democracia, que funcionava, também, como um discurso anticomunista. O estilo de vida “ocidental”, ou seja, das camadas médias urbanas norte-americanas, era contraposto ao “atraso” dos países comunistas e o jazz aparece como um referencial de modernidade a ser seguido. Procurando o sentido que era dado ao termo bossa ou a expressão bossa nova pelos meios de comunicação, percebemos que eles eram frequentes na mídia impressa, em propagandas publicitárias, para atribuir um caráter positivo de modernidade, bom gosto e sofisticação a uma roupa, ao modo de vestir, à decoração de uma casa, sentidos já comentados anteriormente.

No plano estritamente musical, as referências eram várias – seguindo a influência do movimento da bossa nova – e iam desde o conjunto Bossa Três, com quem Elis Regina tocou na boate Little Club, depois que chegou ao Rio de Janeiro, passando pelo Rui Bar Bossa, de São Paulo, ou ainda presentes nos títulos e repertórios de shows, como O remédio é bossa ou nos realizados pelos centros universitários, como o Boa Bossa, do qual Elis participou, ou aquele que nomearia o musical televisivo da Record, O fino da bossa, ambos promovidos pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito de São Paulo.29 Segundo Zuza Homem de Mello, a partir de 1961 proliferaram espetáculos de bossa nova em São

28

FIGUEIREDO, Anna Moraes. Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada: publicidade, cultura de consumo e comportamento político no Brasil (1954-1964). São Paulo: Hucitec, 1998, p. 31. Ver principalmente o capítulo “O progresso chega ao ‘fim do mundo’”, p. 31-51.

29

(14)

Paulo, principalmente nos circuitos universitários, que se transformavam em veículo de promoção do artista.30

Assim, podemos considerar que o nome do programa O fino da bossa, criado por um dos seus produtores, Horacio Berlinck, vinculava-se tanto ao gênero como a um sentido mais geral percebido pela utilização cotidiana do termo.31 Dois meses após a sua estreia outro musical televisivo incorporava o termo bossa ao seu título, mas com repertório distinto. Era o Bossaudade, apresentado por Elisete Cardoso. Para Napolitano, o formato de O fino da bossa mostrava as contradições entre as exigências de linguagem do meio televisivo e o legado intimista da bossa nova, mais próxima do cool jazz. Entretanto, não haveria contradição se considerarmos que a bossa nova também tinha uma vertente do hot jazz, com expoentes como o Zimbo Trio e o próprio Ronaldo Bôscoli, que dirigia os chamados pocket shows no Beco das Garrafas, reduto boêmio carioca composto pelas boates Ma Griffe, Little Club, Bottle’s Bar e Baccara.

A bossa nova, tanto como movimento musical como um gênero musical, também não era um movimento homogêneo. Aqui também podemos perceber que a categoria “modernidade” informava diferentes projetos de bossa nova. Nesse sentido, consideramos importante fazer algumas considerações sobre as definições atribuídas a determinados gêneros e as polêmicas envolvidas nesse processo. Segundo Napolitano, um gênero não se define apenas musicologicamente, por um parâmetro rítmico ou melódico, mas também por convenções que são constantemente debatidas e redefinidas por críticos musicais, músicos, pelo público e pelas gravadoras, tornando-se necessário “entender a genealogia de uma determinada experiência musical, em seus aspectos diversos, como canção, como dança, como identidade cultural e como produto comercial revestido de efeitos que vão além da performance direta.”32 A bossa nova também foi objeto de discussão e reelaboração durante a década de 1960 e um dos elementos constituintes desse debate era a associação à modernidade, que também construía uma identidade cultural.

30

MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 34.

31

Em 1967, com o desligamento de Berlinck do musical, este passaria a ser chamado apenas de O Fino.

32

NAPOLITANO, Marcos. “História e música popular: um mapa de leituras e questões”. Revista de História, São Paulo, Universidade de São Paulo, n. 157, 2007, p. 156.

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Antes de estrear o programa da TV Record, a dupla Elis Regina e Jair Rodrigues protagonizou o show Dois na bossa, que estreou em 9 de abril de 1965, no Teatro Paramount de São Paulo, produzido pelo disc-jockey Walter Silva – também conhecido pela alcunha de Pica-pau – e após o seu sucesso rendeu novas edições e o lançamento de uma série de três discos homônimos, lançados em 1965, 1966 e 1967. Segundo dados da Nelson Oliveira Pesquisas de Mercado (Nopem), criada em 1965 por um ex-funcionário do Ibope e que realizava sua pesquisa a partir das informações fornecidas pelos lojistas de discos das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, o primeiro volume da série, de 1965, atingiu a quinta posição entre os mais vendidos.33 Assim, os artistas estavam ao mesmo tempo na televisão e nos discos, embora nem sempre com o mesmo repertório ou o mesmo arranjo. Além disso, enquanto os discos eram apenas dos dois intérpretes, o musical recebia convidados, o que permite perceber quais os artistas eram valorizados musicalmente. Atualmente podemos ter acesso a essa diversidade de cenário musical a partir da iniciativa do técnico de som Zuza Homem de Mello, que gravou algumas passagens de O fino da bossa que seriam lançadas em três discos em 1994, possibilitando o acesso ao programa, já que o acervo da Record foi bastante danificado por incêndios e regravações posteriores nas fitas originais do musical.

O musical televisivo O fino da bossa estreou na Rede Record em 17 de maio de 1965, conduzido pela dupla Elis Regina e Jair Rodrigues. Era um programa semanal de auditório, gravado às segundas-feiras, no Teatro Record, da Consolação, em São Paulo, e exibido às quartas-feiras, no horário nobre das 20 às 22 horas, com produção do núcleo da chamada equipe A, constituída por Manoel Carlos, Nilton Travesso, A. de Carvalho, João Evangelista e Horácio Berlinck. Eram apresentados diferentes números musicais nos quais os artistas convidados alternavam-se em exibições solo ou com os apresentadores do programa. O musical foi líder de audiência durante o ano de 1965 e manteve o mesmo patamar, estável entre 23% e 26%, em média, durante o ano seguinte, mas perdeu a liderança para o programa Jovem Guarda, que estreou em agosto de 1965, com o comando de

33

VICENTE, Eduardo. Os dados do nopem e o cenário da música brasileira de 1965 a 1969. In: Anais do VII Congresso Latino-Americano da Associação Internacional para Estudo da Música Popular, Havana, 2006. Disponível em: <http://www.uc.cl/historia/iaspm/lahabana/articulosPDF/ EduardoVicente.pdf.> Acesso em: 10 ago. 2010.

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Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderlea. A expressão excedeu os limites do programa e passou a identificar um movimento musical e comportamental “jovem” sob a influência do rock de Bill Haley e seus Cometas, Elvis Presley, Beatles, além de canções românticas italianas, que fizeram surgir uma linguagem própria denominada iê-iê-iê (yé-yé-yé).34 Segundo Adriana Mattos de Oliveira, o programa Jovem Guarda foi criado pela Rede Record devido à necessidade de a emissora apresentar em sua programação um programa jovem que pudesse concorrer e também superar os programas voltados ao rock e ao público jovem das redes concorrentes, além de poder preencher o horário antes reservado à transmissão de jogos de futebol, aos domingos.35

O novo meio, a televisão, trazia novas demandas em termos de linguagem. Agora, o que contava não era apenas o som, como no rádio, mas também o visual. Mas podemos entender esse visual também como uma adaptação dos programas de auditório de rádio – dos quais tanto Elis Regina e Jair Rodrigues participaram como concorrentes no início de suas carreiras – com seu público barulhento conduzido por apresentador(es) em clima festivo. Nesse aspecto, os dois artistas possuíam amplo domínio de cena e com um estilo expressivo sabiam explorar os recursos da televisão e estabelecer uma grande comunicação com a nova audiência televisiva que se formava. Segundo Tinhorão, foi o sucesso de O Fino da Bossa que mostrou que “era preciso um novo tipo de apresentação de palco para atender ao gosto das modernas gerações de jovens, voltadas agora para outras expectativas, geralmente ligadas a imagens e modelos projetados pela indústria do som e do

show-business internacional”.36

Ressaltamos que a análise de Tinhorão sobre o surgimento da televisão está de acordo com as suas reflexões sobre o afastamento das classes pobres da produção de cultura, resultante de um processo de industrialização e urbanização que promoveu um divórcio entre o samba de classe média e o samba das classes populares. Para o crítico, “o aparecimento da televisão em 1950, no Brasil, marca o

34

JOVENS cantores fazem música jovem. O Cruzeiro, 13 nov. 1965, p. 6-13.

35

OLIVEIRA, Adriana Mattos de. A jovem guarda e a indústria cultural: análise da relação entre o Programa Jovem Guarda, a indústria cultural e a recepção de seu público. In: Anais do XXV Simpósio Nacional de História, 2009. [CD]

36

TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981, p. 180.

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início da ruptura definitiva entre a produção de cultura a nível popular e a capacidade de divulgá-la aproveitando os meios cada vez mais sofisticados da tecnologia da comunicação”.37 Entretanto, a sua análise também mostra a importância dos recursos tecnológicos e as transformações operadas na música popular pela nova demanda da linguagem televisiva, em que Elis Regina e Jair Rodrigues tiveram papel preponderante. O trio de apresentadores do Jovem Guarda também sabia aproveitar a nova mídia utilizando som e imagem. Voltando aos nossos dois artistas, percebemos que embora o programa tenha marcado a televisão brasileira e os colocado em destaque, eles já vinham de trajetórias ascendentes de sucesso.

A gaúcha Elis Regina iniciou sua carreira artística ainda em Porto Alegre, ao participar do Clube do Guri, da Rádio Farroupilha, tornando-se, também, secretária do apresentador Ary Rego, dos 11 aos 13 anos. Com 16 anos, lançou, em 1961, pela gravadora Continental, o seu primeiro disco, Viva a Brotolândia, composto basicamente de versões de canções estrangeiras e com um referencial estético apoiado na obra de Celly Campelo, cantora com um repertório baseado no rock e com bastante sucesso entre o público juvenil durante o final dos anos 1950 até 1962, quando abandonou a carreira artística. Antes de mudar-se para o Rio de Janeiro, Elis ainda lançaria mais um disco solo pela Continental, Poema, em 1962, e mais dois em 1963, Elis Regina e O bem do amor, por uma nova gravadora, a CBS. Embora o alcance dessa primeira fase fosse regional, mais restrita ao estado do Rio Grande do Sul e ao espaço em que atingiam as ondas médias da Rádio Farroupilha, as aparições de Elis Regina no programa radiofônico Clube do Guri lhe renderam o título Rainha do Disco Clube, ainda em Porto Alegre.

Esse sucesso inicial, ainda local, também lhe renderia a proposta de um novo contrato, com nova gravadora, a Philips, e em março de 1964 Elis Regina deixava o Sul com a intenção de consolidar a sua carreira no eixo Rio-São Paulo. Continuando a ascensão vertiginosa, em menos de um ano ganhou o prêmio Roquette Pinto de melhor cantora de 1964, tanto pelos pocket shows realizados no Beco das Garrafas, produzidos pela dupla Miele e Ronaldo Bôscoli, quanto pela gravação do compacto com Menino das laranjas, de Theo de Barros. O prêmio Roquette Pinto foi criado, no

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início da década de 1950, para premiar os melhores profissionais do rádio e da televisão brasileira. Foi adquirindo prestígio e na década de 1960 era transmitido ao vivo pela TV Record, o que aumentava a divulgação de um artista para o público. Elis também foi escolhida por Accioly Netto, da revista O Cruzeiro, em sua coluna semanal sobre teatro, como a melhor cantora da cena noturna carioca. Revelada no Bottle’s, seria no Little Club que Elis Regina passaria a “dominar nas madrugadas, gravando também seus melhores êxitos”.38

Já as madrugadas paulistas contavam com o crooner Jair Rodrigues, desde o início da década de 1960. Assim como Elis Regina, também participou de programas de calouros, como o Programa de Cláudio de Luna, da Rádio Cultura de São Paulo, no qual obteve a primeira colocação. O cantor obteve o seu primeiro sucesso com o samba O morro não tem vez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, presente em seu primeiro disco, O samba como ele é, de 1964. Mas foi o seu segundo disco, Vou de samba com você, lançado no final desse mesmo ano, que trouxe o samba que ampliaria o seu sucesso, aquele em que “ele fazia ‘assim’ com a mão”: Deixa isso

pra lá, de dois compositores desconhecidos, Alberto Paz e Edson Menezes.39 Com

uma parte cantada e outra falada, na qual eram inseridos os gestos com a palma da mão direita, era uma música também para ser vista. A coreografia da “mão” foi aperfeiçoada por Jair para obter o melhor efeito possível em programas de televisão dos quais participava.

Elis Regina também utilizaria efeitos coreográficos – mas dos “braços” – aprendidos com o bailarino Lennie Dale quando ainda cantava no Beco das Garrafas. Após essa experiência, no Rio de Janeiro, transferiu-se para São Paulo, no início de 1965, e participou do I Festival de Música da TV Excelsior, entre 27 de março e 4 de abril. Como vimos, possuía algum prestígio e reconhecimento como cantora, que foi ampliado para um público maior com a vitória dupla: o primeiro lugar obtido pela canção Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, e o prêmio de Melhor Intérprete. Assim como Jair Rodrigues, Elis sabia utilizar a voz e o corpo de modo a causar impacto na televisão e, apesar do apelido “Elis cóptero”, os seus trejeitos de braços e cabeça estranhamente sincronizados “fizeram delirar uma

38

NETTO, Accioly. Os melhores do teatro na madrugada. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 13 fev. 1965, p. 25.

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plateia até então considerada pela maioria dos artistas como das mais apáticas do Mundo”.40 O tom da matéria mostra o impacto causado por sua apresentação. Assim, o musical O fino da bossa projetou ainda mais dois cantores que já vinham se destacando.

Os festivais foram importantes para o reconhecimento dos artistas e também contribuíram para o surgimento de uma fórmula de canção de festival, pois os artistas tinham a intenção de obter uma boa classificação e recepção pelo público. Esse aspecto é evidenciado por Zuza Homem de Mello, que identifica a interpretação contagiante e épica de Elis Regina em Arrastão como um dos elementos dessa música de festival.41 Logo em seguida, participava com Jair Rodrigues do primeiro show Dois na Bossa, era contratada pela Rede Record com um salário muito alto para a época e lançava o seu disco Samba eu canto assim. A canção Arrastão e a produção musical associada apresentada por O fino da bossa passaria a ser chamada de “música popular moderna”, transformando-se, com o tempo, em MPM. Para Zuza de Mello, não era uma ruptura, nem uma corrente contrária, mas uma decorrência da estrutura harmônica da bossa nova.42 São os vários elementos componentes de uma composição que são objeto de disputa por uma convenção que busca a legitimação como um gênero musical socialmente aceito e reconhecido, como discutiremos no terceiro capítulo.

A trajetória inicial seria lembrada por Elis Regina no espetáculo Falso Brilhante, que estrearia em 17 de dezembro de 1975, no Teatro Bandeirantes, em São Paulo. Uma das intenções manifestas do show era contar a história de um artista brasileiro, que poderia ser também a da própria Elis, pois o número que abre o show é a encenação de uma edição do Clube do Guri, onde ela se apresentou pela primeira vez. A sua trupe, composta por músicos acompanhadores e de atores,

40

ELA vem de Arrastão. O Cruzeiro, 24 jul. 1964, p. 46.

41

Uma descrição detalhada sobre os festivais de música pode ser encontrada em “A era dos festivais”, de Zuza Homem de Mello, músico e técnico de som que participou de vários desses eventos e que faz, também, considerações interessantes sobre as propostas estéticas presentes em várias das canções desse período, mostrando como se pode constatar o uso de certas “fórmulas” musicais, usadas com o intuito de obter o apoio do público e, consequentemente, também uma melhor classificação na competição. Ver sua análise do arranjo e da interpretação de Elis Regina para Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, considerada paradigmática desse tipo de canção “empolgante” e que, segundo o autor, “esse expediente foi tão importante que passaria a determinar o modelo das músicas de festival.” In: MELLO, Zuza Homem de. Op. Cit., p. 66-73.

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representa as várias crianças que participavam do programa de auditório comandado por Ary Rego. Em meio a brincadeiras infantis, a candidata Elisa Beth (Elis Regina) interpreta a canção Mamãe, de David Nasser e Herivelto Martins, lançada por Ângela Maria, cantora por quem em determinados momentos da carreira Elis expressou a sua admiração.

Nessa encenação, alguns aspectos da sua carreira eram evidenciados, como o estilo de cantar próprio das chamadas “cantoras do rádio”, com a valorização da potência vocal necessária ao canto operístico e o uso de vibratos, mas as brincadeiras e a simulação de uma voz infantil, “que parece querer reproduzir fielmente o que no rádio ouvia” apontam também para uma fase de descoberta do artista. Após a apresentação, a novata Elisa Beth é coroada vencedora.43 Ao mesmo tempo em que reconhecia a importância e influência do rádio em sua formação musical, Elis Regina mostrava que o processo de assimilação nessa fase juvenil era ainda o imitativo, da busca de um sentido próprio para a sua interpretação, que ela atingiria já na sua maturidade pessoal e artística, afirmada pela produção do show Falso Brilhante.

Esse processo imitativo relacionava-se com as referências de escuta musical da cantora, dos programas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, com preferência para as interpretações de Ângela Maria e Cauby Peixoto. Esse aspecto seria fundamental para o estilo interpretativo que adotaria nos primeiros anos de carreira, com uma presença vocal mais próxima do bel canto potente expressionista do que do intimismo defendido pela bossa nova de João Gilberto. E na nossa análise é fundamental perceber as influências anteriores, pois a produção musical – e entendemos o intérprete como criador da obra, ou seja, também portador de sentidos – não se dá apenas em processo sincrônico, em relação ao que estava sendo realizado naquele contexto, mas articulando-se com as experiências vividas e as referências culturais anteriores, pois o intérprete elabora o seu projeto estético a partir das suas escutas anteriores. Por outro lado, enquanto podemos perceber essas influências a partir da audição das obras de Elis, vemos que ela também já

43

PACHECO, Mateus de Andrade. Elis de todos os palcos: embriaguez equilibrista que se fez canção. Dissertação. UNB. História, 2009. 246f, p. 15.

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procurava demarcar o espaço de atuação e circulação da sua produção, situando-se em relação a debates sobre a música popular brasileira.

Se Elis Regina foi construindo uma memória que legitimava esse processo imitativo inicial de escutas anteriores como natural no desenvolvimento da artista, desde as suas primeiras declarações, já no eixo Rio-São Paulo, renegava os seus primeiros discos – com baladas, boleros e twists –, pois seriam resultado de uma imposição de repertório feita pelas gravadoras. Elis assumia a sua saída de Porto Alegre como uma necessidade de mudar de gravadora, de “romper seus contratos no Sul, para sair em busca da conquista do Planalto”, por não concordar em ter que “gravar as músicas que a empresa escolhesse”. 44 Nessa declaração da cantora já está presente um dos eixos que constituiria a memória sobre a produção musical que viria a ser denominada MPB, de que Elis Regina seria um dos ícones: a “aura” de independência do mercado, como se a música se realizasse sem qualquer intervenção mercadológica e somente no plano estético. Essa relação do artista com o mercado será tema do próximo capítulo.

Nessa mesma entrevista, de julho de 1965, Elis também se situava em relação ao sentido que dava para a sua obra, a música popular como “a forma mais direta de comunicação com toda a gente de seu povo”. Essa intenção vinha sendo também defendida por outros artistas como se pode observar no libreto do espetáculo musical Opinião, que estreou em 10 de dezembro de 1964: “a música popular é tanto mais expressiva quanto mais tem uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social, quando mantém vivas as tradições de unidade e integrações nacionais.”45 E essa era a música “moderna” para Elis, “aquela que dissesse das coisas de seu povo e não as impingidas pelas gravadoras”. O repertório de Elis, nesse momento, constitui-se de composições de autores, como Edu Lobo, envolvidos com a proposição de uma canção baseada nas tradições populares e, em alguns casos, com letras de crítica social. A fala dela a coloca em sintonia com os debates políticos-musicais travados na época, enquanto a sua referência cultural a mantém

44

ELA vem de Arrastão. O Cruzeiro, 24 jul. 1965, p. 46.

45

Texto presente no encarte do disco que contém o musical Opinião, gravado ao vivo. Foi remasterizado e lançado em CD pela gravadora Philips, em 2002, em caixa que contém a fase inicial da carreira de Nara Leão.

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mais próxima de uma música com estilo anterior à bossa nova, no tocante à interpretação vocal e mesmo aos arranjos instrumentais. Pode-se perceber o encontro entre duas formas diferentes de expressão artística, que possuíam públicos também diversos.

É interessante perceber que em momentos diversos de sua carreira Elis emitirá opiniões conflitantes em relação à bossa nova de João Gilberto, modelo de uma vocalização intimista contrária aos recursos vocais operísticos bastante presentes na música radiofônica do período. Ressaltamos que concordamos com Napolitano, que questiona os mitos de ruptura da bossa nova, no qual o estilo interpretativo de João Gilberto ocupa papel importante.46 Entretanto, João Gilberto aparece como ícone para vários artistas e referência em várias entrevistas. E nesse sentido podemos perceber que em diversos momentos os artistas dialogavam e se posicionavam perante esses “mitos” – que já estavam sendo construídos com alguns cânones e “clássicos” da bossa nova – ou valores musicais aceitos e dotados de prestígio para um público, principalmente estudantil e de intelectuais, que viria a ser consumidor da obra de Elis Regina.

Nessa mesma entrevista, Elis Regina assumia que fazia uma “moderna música popular brasileira”, expressão preferida pois considerava a Bossa Nova um “movimento musical já superado”. Essa declaração, que sugere ruptura com o movimento, também pode ser entendida pelas desavenças pessoais com os antigos parceiros cariocas, pois ao mesmo tempo em que valorizava a “seriedade e o senso profissional” paulista, a sua crítica também atingia o “isolacionismo criado em torno de si pelos bossanovistas do Beco das Garrafas”47, onde ela começou quando da sua passagem pelo Rio de Janeiro. Entretanto, musicalmente, a sua interpretação trazia as influências dessa sua experiência e, como ponto em comum, o interesse pela “modernização” da música popular brasileira. Mas essa “modernização” ainda não passa pela referência a João Gilberto que, contudo, já aparece no encarte do CD O fino da bossa, v. 2. Trata-se de uma coletânea de textos de entrevistas concedidas por Elis em 1978 e 1979. Embora ainda reconhecesse a importância do vibrato e a influência de Ângela Maria, já aparece uma “espécie de simbiose, uma

46

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001.

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ligação forte” com João Gilberto.48 Algumas considerações merecem ser feitas. Assim como existem os “mitos” de ruptura da bossa nova, consolidou-se um modelo interpretativo baseado no cool jazz como sendo o referencial associado ao gênero, enquanto naquele momento outras propostas estéticas também eram consideradas, tanto por seus autores como pelo público que as consumia, como bossa nova. E o embate a partir da interpretação de Elis Regina demonstra essas tensões. Tratava-se da defesa de “modernidade” e sua incorporação à música popular brasileira. Os que criticavam o hot-jazz como uma “cópia”, mera assimilação, aceitavam o cool jazz como uma leitura inovadora.

O discurso da modernidade também estava presente na obra de Jair Rodrigues, apresentado, em seu disco O sorriso do Jair, lançado em 1966, como “a mais autêntica afirmação da moderna música popular brasileira”.49 Após o lançamento dos seus dois primeiros discos solo e de duas edições de Dois na Bossa, com Elis Regina, e a participação em O Fino da Bossa, Jair Rodrigues também posiciona-se – e é posicionado – no debate sobre a música popular brasileira. A autenticidade de sua obra vem da origem social, “legítimo filho do povo”, nascido em Igarapava, no interior de São Paulo. O novo disco trazia a canção vencedora do II Festival da TV Record, realizado em 1966, e que teve como vencedoras as canções A Banda, de Chico Buarque, defendida por Nara Leão, e Disparada, de Geraldo Vandré e Theo de Barros, defendida por Jair Rodrigues. Assim, ao lado do “ídolo popular do samba cantado em todas as cadências e dolências” aparece também a valorização da infância em meio rural que legitima a atuação em Disparada e a regravação de um “clássico popular”, Chão de estrelas, de Silvio Caldas e Orestes Barbosa. A música moderna que Jair Rodrigues apresentava e defendia era um samba que mantinha o seu “conteúdo primitivo” e as suas “raízes”.50 E as raízes eram buscadas também na suas escutas anteriores, nas canções populares que ouvia em sua infância passada na fazenda Itaquerê, no município de Nova Europa. Dessa forma, Jair Rodrigues realizava um hibridismo das

48

Trecho presente no texto O Fino da Bossa por Elis Regina, presente no encarte do CD Elis Regina no Fino da Bossa, ao vivo, volume 2. Trata-se de uma compilação de entrevistas concedidas a Zuza Homem de Mello no “Programa do Zuza”, em 17 de maio de 1978, e no “Fino da Música”, em 8 de novembro de 1979.

49

Texto presente no encarte do LP O sorriso do Jair.

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formas populares com os gêneros “modernos”. As especificidades dessa relação entre a “tradição” e a “modernidade” na produção musical de Elis Regina e Jair Rodrigues serão discutidas no terceiro capítulo. Mas antes, propomos a discussão, no segundo capítulo, de um outro elemento que tensiona esse debate: o mercado fonográfico e a indústria cultural que estava em processo de expansão e que se consolidaria na década de 1970.

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2 O MERCADO DE BENS SIMBÓLICOS NA DÉCADA DE 1960

Segundo Márcia Dias, o fim da década de 1950 e os primeiros anos da década seguinte marcam o processo de expansão da indústria cultural, que se consolidaria nos anos 1970.51 Por um lado, há uma grande fertilidade artística nesse período, com a emergência de movimentos musicais, como a bossa nova, a jovem guarda, o surgimento de uma “moderna música popular moderna”, o tropicalismo, além dos festivais de música. Por outro, o golpe militar de 1964 realiza transformações importantes na economia brasileira, que refletirão, também, na indústria do disco, fortalecendo o mercado de bens culturais, a partir de uma estratégia que visava à “integração nacional”. Dessa forma, são resolvidos problemas tecnológicos que viabilizam o desenvolvimento da indústria cultural no Brasil.

As iniciativas do governo beneficiaram vários segmentos da indústria cultural, como a televisão, o setor de publicidade, a mídia impressa e todo o setor editorial (pela política de redução do custo do papel), o cinema e a indústria de discos. Ao mesmo tempo, com a instituição da censura, o regime militar estabelece um controle sobre a produção cultural destinada a esse mercado, tornando-se, repressor – com a adoção da censura prévia – e incentivador – por meio de iniciativas que visam ao desenvolvimento dos meios de comunicação – das atividades culturais, em um processo chamado de “modernização conservadora” por alguns autores, como Daniel Aarão Reis, para referir-se a um crescimento com repressão e censura, em um ambiente não democrático.52

O objetivo do Estado é a “integração nacional”, mas os benefícios serão percebidos, também, pelas empresas do setor de comunicações. Para Renato Ortiz, tanto para o Estado como para os empresários, essa promoção da “integração nacional” era benéfica, pois enquanto os “militares propõem a unificação política das consciências, os empresários sublinham o lado da integração do mercado”.53

51

DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2000.

52

REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

53

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Foi marcante a interação entre os vários meios de comunicação, com o desenvolvimento de um segmento ajudando o do outro, como a indústria fonográfica, que se beneficia do desenvolvimento do setor publicitário, por exemplo, da mesma forma que as mensagens publicitárias, veiculadas tanto no rádio como na televisão, também se utilizavam de canções de artistas reconhecidos. Há ainda a estratégia desenvolvida pela Rede Globo, já no início dos anos 1970, de criar uma gravadora, a Som Livre, para divulgar as trilhas sonoras de suas novelas. Segundo Eduardo Scoville, a relação da emissora com a música popular brasileira se daria pela trilha sonora de novelas, que promoveu alterações na forma como a música popular brasileira passou a ser comercializada, pois estabelecia um novo veículo para a promoção da música, a novela televisiva.54 A televisão torna-se um excelente veículo para a promoção dos artistas, pois ter uma canção na trilha sonora de uma novela era uma real possibilidade de sucesso para um artista. Assim como participar de eventos televisivos.

Influenciada pelo rádio, pois muitos dos primeiros profissionais de televisão eram oriundos desse meio, a primeira emissora de televisão, a TV Tupi, no final de 1950, colocava no ar, em São Paulo, programas musicais de auditório como A Buzina do Chacrinha, enquanto a filial carioca, quatro meses depois estreava o Calouros em Desfile, apresentado por Ari Barroso. Em relação ao apresentador Abelardo Barbosa – o Chacrinha –, Tinhorão mostra que ele já sabia utilizar as possibilidades da imagem, criando uma “roupa estapafúrdia” e abusando de elementos visuais extravagantes, que reuniam em um mesmo figurino tanto o cocar de penas como um calção de lamê estilo balão.55 Realçamos esse aspecto, pois se o programa O Fino da Bossa marcou pelo seu sucesso, com dois apresentadores sabendo dispor dos recursos visuais que a imagem televisiva solicitava, também foram criticados por esses mesmos recursos. Elis, pela interpretação vocal e corporal, e Jair, por sua ingenuidade e espontaneidade deslumbradas que o fariam “cantar sentado na borda do palco e a plantar bananeiras diante das câmeras, em ímpetos circenses”.56 Com a intenção de “modernizar” Elis Regina, Ronaldo Bôscoli

54

SCOVILLE, Eduardo Henrique L. M. Na barriga da baleia: a Rede Globo de Televisão e a música popular brasileira na primeira metade da década de 1970. Tese. UFPR. História, 2007. 294f.

55

TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit., 1981, p. 170.

56

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assumiria a direção de O Fino da Bossa, junto com Miele, e o programa ressurgiria como Elis 67 e um dos argumentos de Bôscoli seria a incompatibilidade de transformar a imagem e a carreira de Elis com um cantor que plantava bananeiras no palco.57

Desde o seu início, em 1953, a Rede Record estabeleceu uma programação voltada para a música. Porém, nessa década, o alcance da mídia televisiva ainda era bastante reduzido. Seria em meados da década seguinte que a Record garantiria a sua audiência com programas musicais de auditório, ao mesmo tempo em que a televisão ia conseguindo uma verba maior de publicidade, antes destinada às rádios e aos jornais. Em 1960, a emissora realizou o seu primeiro festival competitivo de música popular, denominado I Festa da Música Popular Brasileira, mas que acabou não sendo transmitido e não teve muita repercussão. Foi após o sucesso do I Festival Nacional de Música Popular Brasileira promovido pela TV Excelsior, em 1965, que a TV Record promoveu o seu segundo festival, em 1966 – este, sim, com bastante repercussão58, além de colocar em sua grade de programação vários musicais. Entre maio e agosto de 1965, a TV Record lançou O Fino da Bossa, Bossaudade e Jovem Guarda, enquanto no ano seguinte, outros programas do gênero estreariam na emissora, como o Show em Si...Monal, cujo apresentador, o cantor Wilson Simonal, estava terminando o contrato do seu programa Spotlight, com a TV Tupi.

Retomando o processo de interação anteriormente citado, podemos perceber outra evidência, agora entre meios de comunicação e empresários de outros setores da indústria, que é o investimento feito na carreira solo de Rita Lee, convidada para estrelar o lançamento da coleção de tecidos da Rhodia, em 1970. Nessa interação, tanto a empresa, pela divulgação dos seus produtos, como Rita Lee, pela construção da sua imagem perante o público, saíram ganhando. A empresa já vinha fazendo desfiles em que a música ocupava papel de destaque desde meados dos anos 1960 e patrocinando espetáculos, como o I Festival da TV Excelsior, de 1965. Porém, segundo Mello, a contrapartida buscada pela Rhodia era a interferência no evento, na escolha dos jurados. Para que o seu ganho fosse completo, a canção

57

ECHEVERRIA, Regina. Op. Cit. Ver capítulo 3, “A rainha da MPB”, p. 42-63.

58

Sobre os festivais, ver MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 2003.

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vencedora deveria ser interpretada por algum artista que participasse dos shows promovidos pela Rhodia, que, nesse caso, era Wilson Simonal.59 Entretanto, apesar da interferência, a vencedora seria a canção Arrastão, interpretada por Elis Regina.

É nesse contexto que ocorre a expansão do setor fonográfico, que cresce vinculado ao desenvolvimento dos outros meios de comunicação e também da indústria de bens de consumo duráveis, em especial os eletroeletrônicos, pois os fonogramas dependem dos aparelhos que permitam a sua reprodução. Entre 1965 e 1972, as vendas de discos tiveram um crescimento médio de 400%.60 Alguns autores consideram que foi a modernização da sociedade brasileira que levou à mudança na mentalidade empresarial. A visão tecnocrática e a concepção de um planejamento econômico, organizado em metas bem claras e definidas (como já havia ocorrido com Juscelino Kubitschek) levaria à reformulação das atividades gerenciais pela indústria brasileira.61

Para Napolitano, a indústria fonográfica começa um processo de racionalização industrial antes que a televisão.62 O desenvolvimento da indústria cultural e do mercado fonográfico trouxe novidades tecnológicas mais eficazes para a divulgação musical, como o surgimento do long-play (LP), de 12 polegadas e 33 1/3 rotações por minuto, que substituiu o antigo 78 rotações, em 1948. Entretanto, o LP ainda era muito caro até o início dos anos 1960, principalmente para as classes de menor poder aquisitivo, sendo bastante utilizado o lançamento de compactos simples e duplos, que, se obtivessem retorno, estimulavam o lançamento de um LP. Com a demanda criada pela bossa nova e o crescimento do mercado de bens simbólicos, o LP passa a ser produzido em maior escala e, com isso, foram criadas as condições para que se modificassem até mesmo as bases criativas da composição, pois o LP trazia uma nova relação do artista com o disco, pois permitia um trabalho de autor, uma concepção total do disco, inviável no compacto simples, de 2 músicas, ou no compacto duplo, de 4. Além disso, barateava os custos de produção, já que cada LP equivalia a 6 compactos simples e a 3 duplos, permitindo que fossem reduzidos os custos na produção de discos e, assim, logicamente,

59

MELLO, Zuza Homem de. Op. Cit., p. 66.

60

DIAS, M. T. Op. Cit., p. 54.

61

ORTIZ, Renato. Op. Cit., p. 134.

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auferidos maiores lucros, aspecto sumamente importante para a lógica capitalista na qual operava uma empresa fonográfica.

Para Napolitano, o LP representou a “personalização e performance musical, reforçada pela bossa nova, e ligada à necessidade de rotular as músicas na forma de ‘movimentos culturais’, visando a uma realização mais segura com o público consumidor”.63 Para o autor, os rótulos anteriores que definiam os gêneros das composições são substituídos por identificações a artistas conhecidos ou projetos estéticos dotados de legitimidade e reconhecimento perante a audiência.

Enquanto a indústria do disco caminhava a passos largos para uma nova racionalidade produtiva, as emissoras de televisão, nos anos 1960, ainda não haviam descoberto uma forma satisfatória de ocupar os seus espaços publicitários para obter maiores lucros. A primeira a buscar a racionalização do uso do tempo foi a TV Excelsior, cuja programação passa a obedecer a determinados horários, sem atrasos, com programas estruturados ao longo do dia, visando a públicos específicos. A racionalização atinge também o tempo dos comerciais e a “Excelsior é a primeira emissora de televisão a conceber uma identidade entre tempo e espaço comercial.” Da mesma forma que antes era possível comprar um espaço publicitário no jornal, era possível obter um “espaço de tempo” no vídeo, “tempo sem conteúdo, vazio, abstrato, portanto mensurável e comercializável”.64

Contudo, a experiência da Excelsior era uma exceção em relação a outras emissoras, como a Rede Record, que produziu os festivais de música de sucesso entre 1965 e 1967 e vários programas musicais televisivos. Ainda prevalecia o horário “cheio”, ou seja, o programa em si, patrocinado por alguma empresa ligada, principalmente, às indústrias de bens não-duráveis. Era um tipo de patrocínio que remetia aos padrões radiofônicos. Assim, o sucesso obtido pelos festivais e musicais transmitidos pelas emissoras de televisão beneficiou economicamente mais a indústria fonográfica, que já estava bastante estruturada, do que as próprias emissoras. Por outro lado, argumenta Napolitano, foi justamente a ausência de rigidez nos horários e uma forma quase “artesanal” de produzir os programas que garantiram a sua espontaneidade e o clima de festa de auditório. A Rede Globo iria

63

NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 83.

64

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introduzir esse controle rígido de tempo, mas não obteria o mesmo sucesso na realização dos festivais e musicais.65

A relação da música com o mercado se definia, também, pelas estratégias de divulgação dos artistas e de manutenção do sucesso. Os publicitários João Leão, Sergio Penna Kehl, Décio Fischetti e Horácio Berlinck (um dos produtores de O Fino da Bossa), junto com o empresário Roberto Colossi, que gerenciava a carreira de vários artistas, inventaram o boneco Mug. Era um personagem de pano preto e olhos esbugalhados, redondo, sem pescoço, e que fez muito sucesso no Natal de 1966. Era vendido como um “amuleto” para o ano seguinte. Embora o boneco tenha sido utilizado por vários artistas, como Chico Buarque, foi Wilson Simonal quem mais aproveitou essa estratégia de marketing. Apareceu com o boneco na capa do seu disco Vou deixar cair..., lançado em 1966, compôs o Samba do Mug e até batizou o seu novo show, Mug...nífico Simonal, que estreou em fevereiro de 1967.66

O boneco Mug era para fazer concorrência à marca Calhambeque, criada devido ao sucesso do programa Jovem Guarda. Segundo Adriana Mattos de Oliveira, os publicitários da agência Magaldi, Maia & Prosperi, criadores do programa, rapidamente, lançaram uma grife, inspirada pelo sucesso homônimo de Roberto Carlos, com itens de vestuário, bonecos, calçados, chaveiros, bolsas e artigos escolares.67 Houve uma forte influência da mídia televisiva na divulgação não só da obra dos artistas da jovem guarda, como também sobre o comportamento dos jovens. Significativa foi a influência desses artistas sobre as roupas e os cabelos e a repercussão, com diretores de escola proibindo os cabeludos de assistirem às aulas e com a associação deles à delinquência e à falta de higiene.68

O programa Jovem Guarda reuniu artistas roqueiros, inspirados nos Beatles e em outras vertentes do rock, além de cantores de baladas românticas que faziam enorme sucesso também no Brasil. Não era uma concorrência direta a O Fino da Bossa, já que era transmitido em horário diferente, mas o sucesso alcançado pelos artistas do Jovem Guarda, também no mercado fonográfico e a repercussão social

65

NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., 2001, p. 86.

66

Texto do jornalista Ricardo Alexandre, autor da biografia Nem vem que não tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal, presente no encarte da coleção Wilson Simonal na Odeon (1961-1971), lançada pela EMI MUSIC.

67

OLIVEIRA, Adriana Mattos de. Op. Cit.

68

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