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Sub propria ratione e actus scientificus: A polêmica epistemológica de Nicolau d`autrécourt na distinção do conhecimento

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Sub propria ratione e actus scientificus: A polêmica epistemológica de

Nicolau d`Autrécourt na distinção do conhecimento

Jeferson da Costa Valadares

(Mestrando do PFI-UFF/CAPES) “(...) Não sabeis então se estais no céu ou na terra, no fogo ou na água e, por consequência, não sabeis se o céu de hoje é o mesmo de ontem, porque nem mesmo sabeis se existiu o céu (...).” (Nicolau de Autrécourt, Prima Epistola ad Bernardum, § 14)

Resumo: Na primeira carta endereçada a Bernardo de Arezzo, Nicolau d´Autrécourt afirma

categoricamente que uma teoria do conhecimento que separa os atos do conhecimento dos objetos sensíveis está irrevogavelmente em perigo. A presente comunicação, portanto, pretende entender a distinção entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo elaborada por Bernardo de Arezzo em decorrência da objeção empreendida por seu interlocutor Nicolau d`Autrécourt, no quadro de sua primeira carta. Observar, ainda, o estatuto de sua objeção que repousa sob um aspecto de redução ao absurdo e sobre um processo inferencial elegante às proposições epistemológicas em jogo no século XIV.

Palavras-chave: Intuição e abstração; epistemologia; processo inferencial. § 1. Introdução

Esta comunicação, isto é, esta breve notitia1, trata de um problema de epistemologia

amplamente discutido ao longo da Idade Média latina. No século XIV, no quadro da epistemologia autrecuriana, cuja fonte é aristotélica, alguns filósofos de destaque se debruçaram especificamente sobre a tarefa de fornecer uma distinção e os critérios do

conhecimento intuitivo e do conhecimento abstrativo, legando-nos, assim, sofisticada e

refinada semântica epistemológica. É Duns Scotus2 (1265/66-1308) quem fornece aos

1 Entenda-se notitia no sentido de ‘noção’ e ‘ideia’ que se fornerce de uma pesquisa em andamento.

2 Uma observação se faz necessária, mediante o estabelecido no valioso estudo de Cesar Ribas Cezar, sobre o

conhecimento intuitivo e abstrativo segundo Duns Scotus, em seu livro CEZAR, Cesar Ribas. O conhecimento abstrativo em Duns Escoto. EDIPUCRS: Porto Alegre, 1996. 142p. (Coleção Filosofia – 42): “Duns Escoto não trata diretamente do conhecimento intuitivo e de sua relação com o conhecimento abstrativo. Mas podemos traçar os contornos gerais de sua concepção sobre este tema, através de referências ocasionais feitas em textos relativos a outras questões. Na questão 13 das Questões Quodlibetais, que trata da

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filósofos do século XIV a distinção, então quase universalmente admitida, entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo (cf. II Sent., d. III, q. 9; Quodlib., lib. I, q. 13). E sua influência foi de fato notória em Oxford e Paris3.

A historiografia filosófica relacionada ao século XIV, no que diz respeito ao pensamento do mestre parisiense Nicolau d`Autrécourt (Ca. 1298-1369), notadamente o trabalho do medievalista e historiador das ideias Paul Vignaux4, divide o estudo sobre Autrécourt em quatro grandes eixos: (i) o problema de Nicolau d`Autrécourt, em que se destacam aspectos de sua vida, formação e trajetória como mestre na Universidade de Paris; (ii) a polêmica contra Bernardo de Arezzo e a cédula ‘Ve michi’, no qual são estudados e interpretados os aspectos da correspondência (composta de quatro cartas) travada entre Nicolau e Bernardo, ao discutirem problemas de epistemologia, justificação epistêmica, aparência e realidade; (iii) o tratado: ‘Exigit ordo’, dedicado a analisar o seu principal tratado filosófico, no qual investiga questões de filosofia da natureza, do problema da causalidade e do atomismo; (iv) paradoxos lógicos e morais, que tem como objeto de estudo a contribuição de Autrécourt ao desenvolvimento de inquietantes paradoxos da Lógica (o que se convencionou hoje chamar Relevance Logic5, sobretudo na Grã-Bretanha

e Austrália), mormente sua refinada teoria das inferências e aspectos fundamentais de uma possível ética ou moral laica.

relação entre as potências cognitivas e volitivas e seus respectivos objetos, Duns Escoto afirma que há um conhecimento por si do existente, isto é, um conhecimento que atinge (toca) o objeto em sua existência atual. E, há, no entanto, um segundo tipo de conhecimento que capta o objeto, mas não como existente. Ele conhece o objeto mesmo que este não exista atualmente, ou se o objeto existe, ele o conhece não como existente. É um conhecimento indiferente à existência atual do conhecido”. Para melhor ressaltar o estatuto da questão no próprio Scotus, veja-se, ainda, segundo Cezar Ribas, como ele ocorre na sensibilidade e no intelecto: “(i) Na sensibilidade, podemos reconhecer dois tipos de conhecimento. O intuitivo, que capta o objeto em sua existência, e o abstrativo, que capta o objeto mas não como existente. A diferença inegável entre ver uma cor e imaginar uma cor estaria, então, no conteúdo existencial do primeiro ato. (ii) No conhecimento intelectual, por sua vez, podemos reconhecer claramente o conhecimento abstrativo. Quando p. ex., concebemos um universal, conhecemos um objeto sem sua existência atual. Mas, Duns Escoto vai além, e afirma que o intelecto também possui um conhecimento intuitivo.” Neste estudo, mormente no capítulo sobre Abstração e Ciência, Cezar Ribas empreende um minucioso estudo, ressaltando tal qual Scotus o que é intuição e abstração ao mesmo tempo em que pontua rigorosamente a distinção que há entre os dois modelos de conhecimento.

3 MICHALSKI, K. Histoire de la philosophie. Le courants philosophiques à Oxford et à Paris pendant le

XIVₑ siècle. Six études. PATHC: Krakóv, 1999. p. 13.

4 VIGNAUX, P., “Nicolas d'Autrécourt”, Dictionnaire de théologie catholique, 11 (1931), 561-587.

5 Veja-se, p. ex., o artigo de Edwin D. Mares e Robert Goldblatt, na Stanford Encyclopedia of Philosophy: http://plato.stanford.edu/entries/logic-relevance/ (Esse mesmo sistema lógico é denominado por Christophe Grellard de “Logique de la pertinence”).

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O eixo denominado a polêmica contra Bernardo de Arezzo e a cédula ‘Ve michi’ é o objeto da presente pesquisa. Porque, no quadro da troca de cartas entre, Autrécourt e Bernardo, sobretudo na primeira carta, Autrécourt apresenta a este um conjunto de objeções sobre a sua teoria do conhecimento. Em especial, pretendemos entender, neste contexto epistemológico do século XIV, quais são essas objeções, e qual é a distinção entre o conhecimento intuitivo (sub propria ratione) e o conhecimento abstrativo (actus

scientificus), ressaltando, assim, a crítica contundente elaborada por Autrécourt.

Estima-se que o ponto de partida para o entendimento das objeções de Autrécourt a Bernardo, na primeira carta, seja a constatação da distinção que este faz entre conhecimento intuitivo (sub propria ratione) e conhecimento abstrativo (actus scientificus). Pois que, assim, Autrécourt busca apresentar critérios a tal distinção, na medida em que empreende sua crítica, deduzindo consequências céticas6 da doutrina de Bernardo.

Nicolau d`Autrécourt7 é, sem dúvida alguma, dos filósofos medievais, um dos mais fascinantes pela sua maneira de cultivar, até a provocação, certa forma de originalidade: anti-aristotélico radical, ataca, literalmente, seus colegas de ensino da Faculdade de Artes pela sua servilidade ao Filósofo [Aristóteles] e ao Comentador [Averróis]. Atomista convicto vai buscar nos antiqui criticados pelo Estagirita os elementos de um sistema alternativo ao aristotelismo8. Entretanto, este é um ponto sobre o qual Autrécourt

mantém-6 Sobre esse assunto, reportamo-nos à valiosa nota de Christophe Grellard, em sua introdução às

Correspondance et articles condamnés p.10, em que faz as seguintes observações: Deve-se, no entanto, ser prudente na aplicação desta categoria histórica de “ceticismo” às doutrinas medievais. O ceticismo antigo não foi ou pôde ser conhecido na Idade Média: encontra-se uma tradução de Sextus Empiricus datando do final do século XIII ou do início do século XIV (antes 1327), em um manuscrito conservado na BNF (ms. Lat., 14700, ff. 82r-132v), mas este autor não tem nenhum papel no ensino universitário. Poder-se-á, sobre este assunto, consultar o trabalho de Pasquale Porro, “Il Sextus latinus e l`imagine dello scetticismo antico nel medioevo”, Elenchos, 2, 1994, p. 229-253. Se os medievais conheceram a corrente cética, é essencialmente através da crítica que Agostinho fez no Contra os acadêmicos. O ceticismo é então percebido como um defeito filosófico, uma falta de reflexão crítica, e a acusação de ceticismo equivale a uma redução ao absurdo. E, é assim que procede Nicolau d`Autrécourt na primeira carta à Bernardo. Quanto ao pretenso ceticismo de Nicolau d`Autrécourt, deve-se fazer justiça a esta ideia de uma vez por todas. De Rijk observa que não se deve entender por ceticismo ou probabilismo uma incerteza radical do conhecimento, ver uma impossibilidade completa de conhecer o que quer que seja. Ele fala simplesmente em examinar os limites da razão natural, por meio de uma reflexão puramente filosófica.

7 Devo esta breve apresentação da biografia de Nicolau d`Autrécourt a Christophe Grellard, da Universidade

de Paris 1.Veja-se p. ex., GRELLARD, Christophe. Le statut du premier principe chez Nicolas d`Autrécourt. (artigo-conferência inédito, a publicar, traduzido por VALADARES, J. C.).

8 Para uma apresentação geral da filosofia de Nicolau de Autrécourt, veja-se: J.R. Weinberg. Nicolaus of

Autrecourt. A study in fourteenth century Thought, Princenton: University Press, 1948, second edition New York: Green Wood Press, 1969, C. Grellard, Croire et savoir. Les principes de la connaissance chez Nicolas d`Autrécourt, Paris, Vrin, 2005, e os artigos reunidos em S. Caroti & Grellard, C. ( ed.), Nicolas d`Autrécourt et la faculte des Arts de Paris (1317-1340). Actes du colloque de Paris, 19-21 maio, 2005, Quaderni di Paideia, Stilfgraf Editrice, Cesena, 2006.

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se grandemente fiel a Aristóteles, ainda que seja sobre a questão do primeiro princípio9. Para compreender as condições nas quais aborda seus problemas filosóficos, deve-se dizer uma palavra do contexto intelectual em que foi o seu10. Nascido antes de 1300, em Autrécourt (próximo de Verdun, na França), Nicolau é mestre em artes (magister in

artibus), na Universidade de Paris, em 1317. Obtém igualmente um bacharelado em Direito

Civil (baccalarius in legibus), sem dúvida em Orléans, em 1325. De volta a Paris, professor na Faculdade de artes e estudante de teologia de 1326 a 1340, (é membro do colégio da Sorbone a partir de 1330 e lê (comenta) as Sentenças de Pedro Lombardo por volta de 1335-1336; enfim, obtém sua licença em teologia (licenciatus in theologia), em 1339), período em que ele ensina Lógica na Faculdade de artes.

Nessa data, então, é convocado a Avignon para responder pelas teses suspeitas; e, depois é submetido a um interrogatório inquisitorial de 6 anos, e, por fim, condenado (1346) por um conjunto de erros, que deve abjurar publicamente, em Paris, em 1347. Destituído dos títulos universitários, impedido de ensinar, vê sua obra filosófica destruída pelo fogo, e se exila em Metz, onde tinha recebido um benefício de cônego. Morre em 1369. Em razão dessa condenação, conservam-se de sua obra apenas três textos: um conjunto de cartas endereçadas ao franciscano Bernardo de Arezzo e ao secular (igualmente sorbonista) Gilles van Faeno; um tratado filosófico intitulado Tratado útil para ver se os

discursos dos peripatéticos foram demonstrativos (é nomeado Exigit ordo depois de seu

incipit); e, por fim, uma questão disputada sobre a visão beatífica11. Nicolau d`Autrécourt,

entretanto, busca resolver os problemas de epistemologia, tanto quanto de psicologia e filosofia da natureza, estritamente no âmbito da luz natural da razão, sem fazer apelo a nenhuma intervenção divina na sua filosofia, e, particularmente, sua teoria epistemológica.

§ 2. Intuição e abstração: a bipartição clássica do conhecimento no século XIV

9 A questão do primeiro princípio mereceu atenção depois de muito tempo. Veja-se particularmente L. Groark,

“On Nicholas of Autrecourt and the law of non-contradiction”, Dialogue, 23 (1984), 129-134, C. Grellard, Croire et savoir, e mais recentemente, A. Krause, “Nikolaus von Autrecourt über das erste Prinzip und Gewißheit von Sätzen”, Vivarium, 2009, Vol. 47 Issue 4, p. 407-420.

10 Veja-se o excelente e insubstituível estudo de Z. Kaluza, Nicolas d`Autrécourt. Ami de la vérité, Histoire

Littéraire de la France, 42-1, Paris, 1995.

11 À guisa de explicitação, poderão utilizar-se as seguintes edições: L. M. De Rijk, Nicolas of Autrecourt, His

Correspondance with Master Giles and Bernard d`Arezzo, Leiden – New York – Köln: Brill, 1994, Exigit ordo executionis et Quaestio Utrum visio creature rationalis beatificabilis per Verbum possit intendi naturaliter em O`Donnell, J. R., “Nicholas of Autrecourt”, Mediaeval Studies, 1 (1939), 179-280.

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Isto posto, ressalta-se, outrossim, que, segundo a aguda observação de Christophe Grellard, a crítica que Nicolau d`Autrécourt empreende à teoria da intuição e da abstração insere-se no quadro que vai além da sua epistemologia. Isto é patente, no desenvolvimento de sua psicologia atomista (construída contra a de Aristóteles e de seus colegas da Faculdade de Artes). Sobre essa crítica, ou objeção sistemática de Autrécourt às modalidades das teorias do conhecimento, diz Ch. Grellard:

O mestre loreno se insurge principalmente contra dois modelos que permitem explicar nossos atos cognitivos, que não são exclusivos um do outro, isto é: a teoria das species e a teoria da intuição e da abstração. De fato, nesses dois casos, a intenção não é tanto em refutar, mas de destacar os erros de cada uma dessas teorias a fim de mostrar que essas próprias concepções gozam de um grau de probabilidade mais elevado12.

Em linhas gerais, a crítica ou objeção restritiva ao conhecimento abstrativo e intuitivo, que Nicolau d`Autrécourt empreende contra Bernardo de Arezzo, é, na verdade, crítica a Duns Scotus, pois Bernardo de Arezzo se acha inserido particularmente na tradição pos-escotista13 sobre as modalidades de conhecimento. Sendo fiel à tradição pos-escotista, Bernardo distingue dois tipos de conhecimento simples, os quais serão objetos de análise crítica de Autrécourt, a saber: o conhecimento intuitivo e o conhecimento abstrativo. No quadro da primeira carta a Bernardo, Nicolau – segundo a análise de Ch. Grellard – atribui algumas teses (que se configuram como objeto do estatuto de sua objeção) a ele, tais como:

(i) o conhecimento intuitivo claro é aquele pelo qual julgamos que a coisa existe ou não14;

(ii) o conhecimento intuitivo não requer necessariamente a coisa existente15; (iii) o conhecimento intuitivo imperfeito pode naturalmente ser conhecimento da

coisa não existente16;

12 GRELLARD, Christophe. Croire et Savoir. Les principes de la connaissance selon Nicolas d`Autrécourt. J.

Vrin Paris, 2005. (Collection Études de Philosophie Médiéval). p. 123.

13 Sobre este assunto, veja-se, as breves observações de DAY, Sebastian, J. Intuitive cognition. A key to the

significance of the later scholastics. The Franciscan Institute: N.Y., 1947. p. 77-78.

14Nicolas d`Autrécourt. Correspondence, Première lettre à Bernard, § 2, p. 75: “notitia intuitiva clara est per

quam iudicamus rem esse, sive sit sive non.”

15 Ibid., § 2, p. 75: “notitia intuitiva non requirit necessario rem existentem.”

16 Ibid., § 10, p. 79: “Dicitis quod notitia intuitiva imperfecta naturaliter potest esse rei non existentis.” Sobre

este assunto, veja-se as breve observações de Sebastian J. Day: “In the Book of the Oxioniense Scotus refers back to the text from the Second Book which we have just studied [‘… duplex est cognitio, scilicet abstractive et intuitive, quae probate fuit in secundo libro (Oxon. III, d. 14, q. 3, n. 4; XIV, 524a)’] and

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(iv) nosso intelecto não tem um conhecimento intuitivo de nossos atos17;

(v) às vezes, um conhecimento abstrativo é tão claro quanto um conhecimento intuitivo (por exemplo: ‘não importa que o todo seja maior que a sua parte’)18. Postas em evidência algumas das teses de Bernardo, cabe aqui a tarefa de reconstituir e buscar definir de que modo Nicolau as considera em sua primeira carta, a saber, a bipartição clássica entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo. A intuição e a abstração distinguem-se porque a primeira é o conhecimento de um objeto enquanto ele existe, ao passo que a segunda é indiferente à existência. Nicolau critica esta posição de Bernardo, sustentando que todo conhecimento é conhecimento do existente19. Se há uma diferença entre intuição e abstração, destaca Ch. Grellard, ela não se situa em um critério extrínseco como à existência20.

Aurélien Robert, por seu turno, esboça uma pontual análise sobre essa distinção do conhecimento. É bem conhecida a distinção entre esses dois tipos de conhecimento que repousa na ausência ou na presença do objeto, ou antes, mesmo sobre a possibilidade ou não de conhecer este objeto intuitivamente e de conhecer assim a existência21. Sobre a intuição, insiste Aurélien Robert em observar que, de fato, ela deve fornecer um critério existencial ao conhecimento: o que é conhecido intuitivamente é conhecido como existente ou como não-existente22.

supplements the distinction made there between intuitive and abstractive cognition by further distinguishing between perfect and imperfect intuitive cognition”. DAY, Sebastian, J. Intuitive cognition. A key to the significance of the later scholastics. The Franciscan Institute: N.Y., 1947. p. 77-78. Ver, igualmente, nota n. 12, p. 159 de Correspondence... de Ch. Grellard: “Na tradição escotista, o conhecimento intuitivo imperfeito é o conhecimento recordativo de um objeto conhecido no passado e que permite a formação de um juízo de existência evidente que se refira a esse passado. Neste sentido, ele se refere a um objeto não existente, enquanto que ele é perfeitamente natural.

17 Ibid., § 11, p. 79: “dicitis quod intellectus noster de actibus nostris non habet intuitivam notitiam.” Para

uma breve compreensão desta noção de ato, cotejar com a nota fornecida por Ch. Grellard: “Para compreender bem esta noção de ato no sentido dado por Aristóteles. Um ato do intelecto não é uma ação, é simplesmente um estado mental atualizado. Nicolau define o ato cognitivo como uma ‘configuratio quaedam objecti in intellectu’, Exigit ordo, p. 238-1.30”.

18 Ibid., § 12, p. 79: “Et si vos dicatis quod aliquando aliqua notitia abstractiva est ista clara sicut notitia

intuitiva (utputa ‘omne totum maius est sua parte’).”

19 Nicolas d`Autrécourt. Correspondance et articles condamnés. p. 20. 20 GRELLARD, Christophe. Croire et Savoir., p. 126.

21 ROBERT, Aurélien. Jamais Aristote n`a eu de connaissance d`une substance: Nicolas d`Autrécourt em

contexte. In: CAROTI, S.; GRELLARD, Ch. Nicolas d`Autrécourt et la faculté des arts de Paris (1317-1340). Actes du colloque de Paris, 19-21 mai 2005. Stilgraf Editrice: Cesena, 2006. (pp. 113-151), p. 119.

22 Idem., p. 119. Consultar, p. ex., nota 15: “Para algumas indicações sobre a noção de conhecimento intuitivo,

cf. BOLER, J. Intuitive and Abstractive Cognition. In: KRETZMANN, N.; KENNY, A.; PINBORG, J. (éds.), The Cambridge History of Later Medieval Philosophy. Cambridge-New York, Cambridge University Press,

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Partindo destes enunciados, pode-se reconstituir, de maneira breve, como se definem ambas as modalidades de conhecimento já pilhadas por Scotus e revisitadas pela tradição pos-escotista, no meio franciscano cujo seu principal representante aqui é Bernardo de Arezzo, a quem Nicolau d`Autrécourt vai criticar em sua na primeira carta.

Conhecimento intuitivo: “sub propria ratione”

O conhecimento intuitivo é a apreensão completa de um objeto, isto é, sub propria

ratione, que conduz a um juízo de existência. Bernardo distingue, no seio da intuição, um

conhecimento intuitivo imperfeito, que reenvia ao conhecimento passado de um objeto conservado na memória tal qual foi apreendido, com a pequena diferença de que não é possível formar um juízo de existência no presente23.

Conhecimento abstrativo: “actus scientificus”

O conhecimento abstrativo é – ao contrário do intuitivo –, indiferente à existência ou a não-existência. É, de fato, do ponto de vista de Scotus, actus scientificus do intelecto, visto que permite o conhecimento dos termos de uma proposição indiferentes à presença ou à ausência do objeto24. Como, p. ex., “não importa que o todo seja maior que a sua parte...”.

§ 3. À guisa de conclusão: o estatuto da objeção de Autrécourt a Bernardo de Arezzo

De modo geral, segundo Ch. Grellard, o que importa para Bernardo é o próprio ato de conhecimento, ato que é definido por uma característica intrínseca: a clareza, e não por uma relação a outra coisa25. Ao passo que, para Autrécourt, todo conhecimento é, necessariamente conhecimento de qualquer coisa26.

Nicolau d`Autrécourt leva a diante a crítica dos mecanismos psicológicos postos nas obras de seus contemporâneos rejeitando como pertinente a distinção entre intuição e

1982, pp. 460-478. É também a tese defendida por Bernardo de Arezzo como o deixa transparecer as cartas de Nicolau.

23 Ibid., p. 15. 24 Ibid., p. 15. 25 Ibid., p.16. 26 Ibid., p. 16.

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abstração. Ele não diz rejeitar absolutamente essas duas noções, mais antes quer mostrar a inutilidade para explicar os mecanismos postos dentro dos nossos atos de conhecimento27.

Sobre a crítica ou objeção de Autrécourt a Bernardo de Arezzo, é Ch. Grellard que pode melhor detalhar nos seguintes termos:

A crítica da intuição e da abstração intervém no quadro de uma discussão sobre os graus do conhecimento, em função da clareza e da perfeição do ato. Segundo Nicolau, nos enganamos ao distinguirmos a intuição e a abstração por um critério de existência. Sabe-se que é precisamente desta maneira que Duns Scotus distingue o conhecimento intuitivo do abstrativo. A primeira é conhecimento do objeto enquanto existente em ato e que é presente, ao passo que o segundo pode conduzir a um objeto ausente, pois que não existe hic et nunc28.

O estatuto da objeção de Autrécourt configura-se em algumas dúvidas manifestas pelo próprio Bernardo, que se seguem às afirmações das suas proposições. Autrécourt analisa todas as proposições e lança sobre elas dúvidas sobre a validade ou não dos argumentos sobre a intuição e abstração. Duas outras proposições (iv) e (v) são inferidas, como se segue do desenvolvimento da objeção na primeira carta a Bernardo de Arezzo:

“(iv) Toda impressão que temos da existência de objetos exteriores pode ser falsa”, pois, segundo vós, ela pode dar-se quer o objeto exista, quer não. “(v) Pela luz natural da razão não podemos ter certeza de quando nossa impressão a respeito da existência de objetos exteriores é certa ou falsa”, porque ela, segundo vossas palavras, representa do mesmo modo que a coisa existe, quer ela exista, ou não exista (...)29.

O centro da objeção, por fim, após as duas inferências apresentadas às proposições de Bernardo, consiste, diz Autrécourt:

Além disso: se por aquele antecedente, mediante o conhecimento intuitivo, não se pode concluir: “Logo, a brancura existe”, então é necessário acrescentar algo ao antecedente, i. é, aquilo que acima destes a entender: que a brancura não está posta ou conservada na existência por um poder sobrenatural. Com isto, porém, chega-se exatamente ao ponto de minha crítica: quando alguém não está certo de um consequente a não ser mediante outro antecedente, do qual não tem certeza que existe assim como está enunciado, pois não é conhecido por seus termos, nem pela experiência, nem deduzido de ambos, mas crido: então tal pessoa não está certa evidentemente do consequente. (...) Também é admirável, segundo vossas palavras, como acrediteis poder demonstrar que o conhecimento é diferente do

27 GRELLARD, Christophe. Croire et Savoir. p. 125.

28 Croire et Savoir., p. 125. Veja-se, igualmente, a nota 1: “Quodlibeta, VII (Opera Omnia, Vivès, Paris, t.

XXV, P. 290): ‘Etsi cagnitio abstractiva possit esse non existentis aeque sicut et existentis, tamen intuitiva non est nisi existentis ut existens est’”.

29 Ibid., § 3, p.75: “Ex istis infero unam propositionem quartam quod ‘omnis apparentia nostra quam

habemus de existentia obiectorum extra, potest esse falsa’, ex quo per vos, potest esse, sive obiectum sit sive non sit. Et unam aliam propositionem, que quinta est; et est talias: ‘in lumine naturali non possumus esse certi quando apparentia nostra de existentia obiectorum extra sit vera vel falsa’, quia uniformiter, ut dicitis, representat rem esse, sive sit sive non sit.”

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conhecido, pois nem tendes certeza de que existe algum conhecimento, nem de que existam proposições (...)30.

Nicolau d`Autrécourt, ao que tudo indica, lança mão da dúvida das proposições apresentadas por Bernardo ao tratar da intuição e abstração. Chega a conclusão de que o conhecimento intuitivo e o abstrativo não nos fornecem naturalmente a certeza da evidência. Da mesma forma, ao final da sua primeira carta, conclui que Bernardo não tem uma certeza evidente das suas próprias impressões: “E assim, segue-se evidentemente que não tendes certeza evidente de vossas impressões, e, por consequência, não tendes certeza que algo seja captado por vossos cinco sentidos31”.

O que chama atenção, portanto, na filosofia do mestre loreno é sua radicalidade e ao mesmo tempo fineza epistemológica com as quais analisa e critica seus interlocutores. É, por assim dizer, um esforço em buscar não a sabedoria, mas a verdade. E, a verdade é que a dúvida e a justificação epistêmica têm papel fundamental na sua teoria do conhecimento. Vale dizer que toda tarefa de sua teoria do conhecimento é, precisamente, a de fornecer os meios de se evitar um ceticismo e de garantir a certeza dos conhecimentos.

Sua crítica se inscreve em um projeto mais geral de justificação do conhecimento que, sem dúvida, é a chave da abóboda de sua teoria: o Primum Principium. Pois, este é o fundamento do conhecimento que não admite contradição e incoerência. Pois este mecanismo restringiria à incerteza, por exemplo, que há no conhecimento intuitivo e abstrativo. O resumo da objeção, então, consiste em que Bernardo de Arezzo nada afirma com certeza evidente ao conceber o conhecimento intuitivo e o conhecimento abstrativo.

§ 4. Bibliografia

ROBERT, Aurélien. Jamais Aristote n`a eu de connaissance d`une substance: Nicolas

d`Autrécourt em contexte. In: CAROTI, S.; GRELLARD, Ch. Nicolas d`Autrécourt et la

30 Ibid., §§ 7-15, p. 77: “Item. Ex quo ex illo antecedente mediante notitia intuitive non potest inferi evidenter

‘igitur albedo est’, tunc oportet aliquid addere ad antecedens, scilicet illud quod supra innuistis, scilicet quod albedo non est supernaturaliter in esse posita aut conservata. Sed ex hoc manifeste habetur propositum. Nam: quando aliquis non est certus de aliquo consequente nisi mediante aliquo antecedente de quo na ita sit sicut significat, non est certus evidenter, quia nec illud est notum ex terminis nec experientia nec ex talibus deductum sed tantum est creditum, - talis non est evidenter certus de consequente. Sic est, si consideretur illud antecedens cum sua modificatione, ut clarum est cuilibet. Igitur etc.”

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Referências

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