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A RESISTÊNCIA NÃO ARMADA NO GUETO DE VARSÓVIA

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Academic year: 2021

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A RESISTÊNCIA NÃO ARMADA NO GUETO DE VARSÓVIA

Nanci N. Souza A história do Levante do Gueto de Varsóvia, ocorrida entre 19 de abril e 16 de maio de 1943, está diretamente ligada à história do nazismo e do antissemitismo na Polônia. Em primeiro lugar, devemos retomar a data de 1o desetembro de 1939, quando Hitler invadiu a Polônia e (re)editou sucessivos decretos contra a comunidade judaica polonesa. Com a invasão alemã, as Leis de Nuremberg entraram em vigor, em caráter imediato, atingindo um terço da Polônia incorporado à Alemanha. Logo no início da ocupação, cerca de 2.000.000 de judeus poloneses ficaram sob o domínio nazista.

Durante a ocupação alemã, os nazistas se aproveitaram de espaços junto aos muitos bairros habitados por uma maioria judaica para transformá-los em guetos. O mesmo ocorreu com o bairro judeu de Varsóvia que serviu aos propósitos nazistas de concentrar milhares de judeus, fossem eles poloneses pertencentes a Varsóvia ou refugiados de outras nacionalidades. Em 16 de novembro de 1940, os alemães fecharam hermeticamente o gueto configurando o perfil de mais um espaço de exclusão étnica e política. Além dos milhares de judeus de Varsóvia que já haviam recebido a ordem de se mudarem para o bairro judeu, deixando do outro lado do muro suas posses, milhares de refugiados afluíram a ele. (RINGELBLUM, 2003).

O gueto de Varsóvia serviu à política nazista de abandono e desumanização obrigando 460.000 judeus a viverem em um espaço constantemente reduzido em suas dimensões por ordens nazistas. O isolamento foi acompanhado pelo excesso de população aglomerada em pequenos apartamentos compartilhados por várias famílias. Conforme dados do Yad Vashem1 (1981), aproximadamente 30% da população judaica de Varsóvia foi confinada em 2,4% da área da cidade, ou seja: concentrou-se 380.000 judeus em menos de 3,5 quilômetros quadrados. Das 1.800 ruas de Varsóvia, somente 73 foram designadas ao gueto que representava um passo adiante no processo de penalização racial colocado em prática pelos nazistas contra os judeus.

Devido à superpopulação, a fome e as epidemias passaram a fazer parte do

Mestre em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Arqshoah/LEER-USP. nancyead@yahoo.com.br

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Yad Vashem: Instituto de Preservação da Memória dos Mártires e Heróis do Holocausto (Museus). Ver YAD VASHEM. Um dia no gueto de Varsóvia. Tradução Bracha Freundlich. Jerusalém: Yad Vashem, 1993.

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cotidiano do gueto. Somente em janeiro de 1941, morreram de fome 2.000 pessoas. A ração diária de pão não superava a 100 gramas. No total, somando a cota que recebiam dos alemães com o auxilio mútuo providenciado pela população judaica, cada morador do gueto recebia apenas 800 calorias por dia, uma quantia insuficiente para suprir as necessidades de um ser humano, forçando assim, a introdução de alimentos por vias de contrabando.

Entre os que praticavam o contrabando estavam as crianças que, por serem pequenas, podiam passar pelas rachaduras diminutas dos muros do gueto. Muitas delas tornaram-se sustentadoras de suas famílias. Crianças de dez a quatorze anos mantinham seus pais invertendo, assim, a ordem natural que seria a dos pais proverem o sustento a seus filhos. Sobreviver era um combate diário para crianças e adultos.

Se em março de 1941 o número de judeus no gueto de Varsóvia passava de 460.000, no final desse ano, por causa da fome extrema, a população diminuiu consideravelmente para 415.000. As maiores vítimas da fome foram os refugiados de outras províncias que não se adaptavam à nova realidade. Eles recorriam às instituições judaicas ou a algum Comitê Domiciliar - movimento sócio-político criado após a invasão alemã - com diversas atividades, entre elas, a de assistência social aos necessitados, a preservação da cultura judaica e a educação. Como a ajuda nunca era suficiente, muitos aguardavam, por fim, a morte em silêncio. Entre 1940-1942, mais de 80.000 habitantes morreram em consequência da fome, das enfermidades e da privação. Lembrando que chegaram à Varsóvia aproximadamente 90.000 refugiados antes do estabelecimento do gueto.

Na tentativa de amenizar os danos causados pela fome, os refeitórios públicos beneficentes existentes no gueto buscavam assegurar, pelo menos, uma refeição diária para todos que viviam em necessidade e em estágio total de miséria. Era preciso reagir ao confinamento e à morte indigna, intervindo individual e coletivamente de modo a transformar uma realidade com vista a impedir a degradação total do sujeito.

Não se pode deixar de citar o trabalho de resistência junto aos orfanatos, como o do médico e educador Janusz Korczak, precursor dos direitos da criança que, em Varsóvia, abrigou dezenas de órfãos. Cumpre citar também os movimentos juvenis que participavam de atos de auto-ajuda nos guetos e que procuravam aliviar a fome das crianças além de oferecer outros cuidados. Tirá-las das ruas, da mendicância e do contrabando foi um desafio para todos os habitantes no gueto e, em particular, para os

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educadores2.

Grupo de crianças judias de um jardim de infância estabelecido pela educadora Ita Rozencwajg, no gueto de Varsóvia, 1941.

Cortesia de Ita Rozencwajg. Crédito: United States Holocaust Memorial Museum

A resistência no gueto foi a linha tênue entre a vida e a morte, num regime cuja essência era o terror. A condição humana de produtores de cultura e de trabalho havia sido negada aos judeus. As proibições nazistas eram claras

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não havia possibilidade de estabelecer qualquer tipo de diálogo, de comunicação entre opressor e oprimido. A linguagem mais familiar era a violência corpórea, moral e desumana que se expressa, entre diferentes formas, pela fome, pelas doenças e, por fim, pelo medo e pela morte.

Na tentativa de assegurar a manutenção da vida e sua dignidade humana, os judeus estabeleceram alguns princípios fundamentais de sobrevivência que nortearam a vida em comunidade, permitindo o estabelecimento de novas organizações e o reajuste de antigas estruturas - a religiosa e a comunitária - às necessidades do momento. Assim se fazia, nas entrelinhas, a resistência cultural e física da comunidade judaica.

De acordo com Ruta Sakowska (2007), a resistência se manifestou em todas as áreas da vida humana: na alimentação dos famintos, na ajuda aos desabrigados, no acolhimento aos órfãos, por uma participação ativa na produção artística, nas pesquisas

2 Sobre este assunto consultar minha dissertação de Mestrado: Gueto de Varsóvia: educação clandestina

e resistência em www.teses.usp.br/teses/.../2013_NanciNascimentoDeSouza_ . Ver também:

Dissertação de Sarita Mucinic Sarue. Janusz Korczak. Diante do Sionismo em www.teses.usp.br/teses/.../8/.../2011_SaritaMucinicSarue ; e o livro: Os órfãos de Korczak:

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científicas, dentre alguns exemplos. Em junho de 1942, encontramos, atuando no gueto de Varsóvia, vários médicos e professores judeus que levavam a cabo investigações cientificas, em especial sobre a fome, que era um dos temas preocupantes e de difícil controle; o ensino, por sua vez, era adaptado em apartamentos privados, cantinas, sótãos e outros esconderijos, enquanto que, na vida religiosa e cultural, era improvisado nas antigas salas de bibliotecas, salas de concertos e teatros. Apesar das circunstâncias extremas, as pessoas continuavam a acreditar que era possível sobreviver ao nazismo e crer na vida através da música e da leitura dos livros, tudo, ainda que na clandestinidade.

Nessa luta pela sobrevivência do homem como sujeito, a cultura, a religião, o ensino, as organizações coletivas e, até mesmo, o otimismo exerceram influência positiva sobre os habitantes do gueto, levando-os a organizar um tecido social e cultural capaz de superar as difíceis provas impostas pelo ocupante nazista. Uma estratégia possível de minar, ainda que pelas porosidades e lentamente, o estado em que se dava o confinamento.

Entre as formas de resistência que persistiram na clandestinidade no gueto de Varsóvia, a educação organizada clandestina transformou-se em uma das mais importantes arenas da resistência individual e coletiva. Esta, embora expressamente proibida, seguia com suas atividades. Ensinar e aprender eram atos perigosos para judeus no gueto de Varsóvia, que nã ab i am mã s seus “ i eit s”, a esa a opressão diária e falta de condições. (KARDOS, 2002).

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Turma de uma escola clandestina no gueto de Varsóvia, 1940-1941. Crédito: Arquivo do Yad Vashem.

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Tinha-se consciência de que os grupos de crianças miseráveis - abandonadas à própria sorte, sem escolarização, vítimas fáceis da imoralidade nas ruas - eram um dos graves problemas sociais do gueto. O momento exigia dos moradores do gueto ali confinados uma atitude social em conjunto com medidas educativas. Assim, os educadores procuravam zelar pela vida física, emocional e, na medida do possível, pela vida intelectual dessas crianças.

A educação no gueto de Varsóvia foi uma forma de resistência frente ao propósito nazista de desumanização dos judeus e sua aniquilação enquanto um povo com história e cultura milenares. Foi um meio de transcender a si mesmo e a situação histórica imposta. Em se tratando especificamente das crianças, a educação clandestina velou pela humanidade da criança e buscou assegurar seus direitos mais básicos, quando ainda não era conferido à criança nenhum direito universal reconhecido3.

Portanto, a batalha final do levante do gueto de Varsóvia rememorada sempre em 19 de abril, data que marcou o início do confronto entre nazistas e partisans em 1943, deve ser analisada sob um prisma muito mais amplo da resistência. Ainda que sem armas, educadores, associações judaicas e cidadãos comuns, investiram contra os nazistas. Garantiram que, nos porões do gueto, circulassem conhecimentos e alimentos para as crianças, ainda que mínimos, mas que garantiam a crença na vida e na dignidade humana apesar da morte ao lado.

3 A Declaração dos Direitos da Criança somente foi reconhecida em 20 de novembro de 1959 pela Assem-

bleia Geral das Nações Unidas pondo a tônica no direito das crianças à educação, a cuidados de saúde e uma nutrição adequada. Ver mais sobre o assunto no link:

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Referências

KARDOS. S. M. Not Bread alone: clandestine Schooling and resistance in the Warsaw ghetto during the holocaust. Havard Educational Review. Cambridge, v.72, nº 1, 2002, p. 33-66.

KORCZAK, J. Diário do gueto. Tradução Jorge Rochtlitz. São Paulo: Editora Perspectiva, 1986.

RINGELBLUM, E. Crónica del gueto de Varsovia. Tradução, Seleção, introdução e notas de Katarzyna Olszewska Sonnenberg y Sergio Trigán. Barcelona: Alba Editorial, s.l.u., 2003.

SAKOWSKA, Ruta. Archives clandestines du ghetto de Varsovie. [Archives Emanuel Ringelblum]. Les Enfants et L'enseignement Clandestin dans le Ghetto de Varsovie. Tome II. Paris: Fayard / BDIC, 2007.

YAD VASHEM. Um dia no gueto de Varsóvia. Tradução Bracha Freundlich. Jerusalém: Yad Vashem, 1993.

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