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Os fluxos da rede de atenção psicossocial no Rio de Janeiro: o caso do CAPSad na RAPS

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Academic year: 2021

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Os fluxos da rede de atenção psicossocial no Rio de Janeiro: o caso do CAPSad na RAPS

Beatriz Brandão RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar a rede de atenção psicossocial (RAPS) a partir dos CAPSad no Rio de Janeiro. Apresentarei o que nomeio de: os casos na rede e a rede nos casos, como visualização de um trabalho que deve ser intersetorial, autônomo, particular e coletivo ao mesmo tempo. Assim, pretendo responder ao questionamento de “como a rede afeta o caso e como o caso afeta a rede?” Para o desenvolvimento da questão serão acompanhados dois casos: o de um adolescente, usuário de crack, que seu cuidado deve ser decidido entre CAPSad e CAPSi e os casos dos nomes sociais das usuárias(os) transexuais. Percebe-se, em ambos, que toda uma rede é mobilizada, fazendo com que ela repense, de forma concreta, sua estrutura e estratégias de funcionamento. Os casos apresentados são uma aparente visualização de passagens, distâncias e proximidades do CAPSad na rede, que entrecruzam informações e transformam a redução de danos em ação prática.

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Introdução

No setor público, a existência de uma rede de saúde institui um conjunto de serviços que deve atuar de forma integrada. A categoria de rede opera como uma interpendência dos serviços na concepção de equipamentos, dispositivos e instituições. Age, dessa forma, “como tipo ideal de gestão, arquitetura para o planejamento de uma gestão intersetorial estrutura em rede”. (MARTINEZ, 2016, p. 282). Nessa perspectiva, a RAPS1, como foi idealizada, compreende uma ação integradora de casos que devem ser

vivenciados intersetorialmente.

Sua concepção considera alguns princípios2, como o da diversidade, por isso

equipe multiprofissional, universalidade, com abertura de acessos e possibilidades de circuitos, com recursos clínicos para o cuidado integral. A complexidade da rede é se construir uma relação de ajuste entre autonomia e interdependência, em que cada serviço seja autônomo e responsável por seu funcionamento próprio, possuindo parte de tomada de decisões, mas que não deve estar desarticulado com as lógicas que sustentam o corpo institucional.

O conceito de rede é fundamental para entender sentidos e métodos utilizados pelos CAPS, que são serviços de atenção psicossocial estratégica. No caso dos CAPSad leva-se em conta diferenças no modo do trabalho, ainda que a maioria dos serviços opere pela mesma lógica macro política instaurada pela RAPS, há a especificidade de ser AD, cujo encaixe com o uso das drogas absorve não somente um circuito institucional e burocrático, como um circuito químico, que envolve substâncias às pessoas e experiências. A questão AD não se trata de um detalhe no tratamento global, e sim modifica cenários, contextos e práticas de ação, evidenciando dissonâncias que passam

1 Possui os seguintes componentes: Atenção Básica em Saúde (Unidade Básica de Saúde, Núcleo de Apoio

a Saúde da Família, Consultório na Rua, Apoio aos Serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório, Centros de Convivência e Cultura); Atenção Psicossocial Estratégica (Centros de Atenção Psicossocial, nas suas diferentes modalidades); Atenção de Urgência e Emergência (SAMU 192, Sala de Estabilização, UPA 24 horas); Atenção Residencial de Caráter Transitório (Unidade de Acolhimento, Serviço de Atenção em Regime Residencial); Atenção Hospitalar (Enfermaria especializada em Hospital Geral, Serviço Hospitalar de Referência para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas); Atenção Hospitalar (Serviços Residenciais Terapêuticos, Programa de Volta para Casa); Estratégias de Desinstitucionalização (Iniciativas de Geração de Trabalho e Renda, Empreendimentos Solidários e Cooperativas Sociais Estratégias de Reabilitação Psicossocial).

2 Princípios do SUS e porque são trazidos a todo o momento. Princípios da universalidade, integralidade e

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tanto pela percepção de cuidado quanto pelos manejos e formas de tratamento. O CAPSad, por sua estratégia de cuidado em si, une saúde com as formas destinadas ao consumo AD, é um serviço de saúde de caráter híbrido, que deve ser de oferta garantida, como determina o SUS, e lançar mão de estratégias de atenção direcionadas para uso de drogas, o que provoca interpretações, por vezes dissonantes, entre os profissionais como psiquiatras, psicólogos, redutores de danos, enfermeiros etc.

Ao mencionar rede, no caso do serviço de saúde, me reporto primeiro à RAPS com os equipamentos com os quais os CAPSad mantém contato direto em construções de casos, como também considero os dispositivos para além da RAPS que estão reiteradamente no cotidiano dos CAPS, como iniciativas da sociedade civil tais quais espaços de convivência, ONGs, sistema de justiça, assistência social, conselho tutelar. Destaco as CTs nessa lista, pois apesar de estar como parte da RAPS, não se vincula ou é incorporada na integração dos serviços da rede no Rio de Janeiro. Como formalmente está inscrita na rede de atenção psicossocial - ainda que não seja SUS - o que vemos é uma presença/ausência no interior das discussões dos CAPSad, que deve ser mais problematizada com as particularidades políticas dessa relação.

Por isso, falo não só em RAPS, mas antes a sistematizo e somo com os fluxos da /na rede, e opto por um caminho em que apresento os casos na rede e a rede nos casos, como visualização de um trabalho que deve ser intersetorial, autônomo, particular e coletivo ao mesmo tempo. A escolha para essa distinção repousa em pensar sobre o conjunto de ações que age e interfere nos casos, isto é, como a rede afeta o caso e como o caso afeta a rede, como o caso de uma criança ou adolescente usuário de drogas em que seu cuidado deve ser decidido entre, por exemplo, CAPSad e CAPSi ou entre ambos. E, ainda, há momentos em que toda uma rede é mobilizada, fazendo com que ela se repense, de forma concreta em suas estratégias de funcionamento, como os casos dos nomes sociais das usuárias(os) transexuais que reconectam toda uma estrutura para se verificar como cada dispositivo trata a questão. O caso LGBTQI+ é uma aparente visualização de passagens, distâncias e proximidades do CAPSad na rede e vice e versa, agindo como um termômetro ou mesmo um diagnóstico de como dialogam, entrecruzam informações e transformam a redução de danos em ação prática.

Nessa seção o enfoque recai no entendimento do funcionamento da RAPS como um arranjo institucional que compreende equipamentos e serviços. Essa compreensão se dá por meio dos itinerários terapêuticos, tanto dos usuários, quanto dos profissionais e as

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redes que devem mobilizar para funcionar. Se, de um lado, temos profissionais acionando redes para tornar seus trabalhos possíveis, usuários circulam e são absorvidos por essa malha para tornar suas vidas, em alguma medida, possíveis também. Por isso, opto pelo entendimento dos circuitos que ligam instituições, usuários e profissionais, que se apresentam como circuitos químicos inscritos nos circuitos urbanos.

Por sua vez, os CAPSad se estabelecem entre circuitos, estando presentes dentro de um urbano que reúne política sanitária, de drogas, de segurança e de assistência, se solidificando na lógica construída pelos usuários, em que Estado por meio de instituições, se ratificam em seus percursos, escolhas e ações. A possibilidade articuladora do CAPSad em toda essa ordem de organograma nos aponta para costuras de identidade, já que como Barnes (1988) nos indica, “processos políticos transinstitucionais de rede não são como constructo simbólico para pensar a estrutura das relações sociais, mas como instrumento de compreensão das relações entre indivíduos”.

Como a RAPS e os fluxos da rede se baseiam em relações, serão mobilizadas as categorias de circuitos e paragens, em consonância com a ideia de “ressonâncias e transversalidades” entre os sistemas e instituições (MALLART e RUI, 2015). Trago a ideia de relações em diálogo com a pesquisa sobre os Consultórios na Rua de Mariana Martinez (2019, p. 285), em que atuar em rede conecta “materialidade, canal de escoamento, troca, fluxo. Mais que aliança, passam por gente, registros, informações, afetos, recursos materiais”. Já que a gestão do cuidado materializada na ideia de rede se dá devido aos recursos partilhados

Essa gestão do cuidado ocorre juntamente com uma “gestão populacional dos marginais em que a lógica de punição repressão e controle convivem com preocupações de assistência, saúde e cuidado que aciona equipamentos, discursos, saberes e poderes”. (MALLART e RUI, 2015, p. 10). Coexistem dispositivos de gestão da ordem e do cuidado com trânsitos incessantes, o que permite pensar nesse processo de ressonâncias e transversalidades, circuitos e paragens. São os trânsitos incessantes dos usuários por sistema de justiça, prisional, de assistência, de saúde e religioso que dão a potencialidade de conectar territórios antes não pensados como estando em sintonia é por meio dessa gestão que eles ficam em ordem.

Se os usuários transitam seus corpos, com eles levam suas gramáticas e narrativas, seja do crime, da produção externa de um “proibicionismo introjetado” (WORCMAN e

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MORGANTINI, 2019)3, do discurso religioso e suas conversões, o fato é que levam essas ressonâncias entre os serviços para cada um de seus cotidianos e gestam eles mesmos conectando pontas. É preciso ressaltar também que não é somente os que estão no interior do CAPSad que são assistidos pelos profissionais, nesse caso, as cenas de uso dos territórios agem como articuladores de gestões em rede. São pontos intermediários entre casos na rede como rede nos casos, pois mobilizam vários serviços para seus lócus, da mesma forma que emergem histórias, necessidades e situações que fazem a rede toda repensar juntas seu modus de trabalho, correlacionando profissionais e usuários em seus circuitos.

Outro ponto que interliga a rede de modo mais complexo é a presença das CTs na RAPS. A entrada em campo me fez questionar em que medida estão elas apenas de modo formal na lei ou na prática nos percursos dos usuários, isso porque mesmo que atendam os mesmos usuários, não há diálogo sobre o tratamento ou mesmo se os dois serviços estiverem com o mesmo caso. No Rio de Janeiro, CAPSad e CTs atuam com modelos diferentes, frequentam e lutam em espaços diferentes, mas operam com o mesmo público. Como isso afeta o circuito do usuário? É o usuário responsável por trazer esses modelos, um para o outro, de acordo com o que experiencia em cada? Suas condutas se diferem em cada um deles? Seriam os circuitos e paragens desses usuários que trariam o aspecto de transversalidade e ressonância entre os dispositivos de cuidado? São os casos que interligam a rede e o objetivo dessa seção é explorar as formas de acontecimentos da política no cotidiano.

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Abaixo trago dois casos que escolhi para espelhar a rede nos casos, e um para o caso nas redes, tratando de trajetórias que vão do particular para o universal e do universal para o geral, ao perceber o quanto de reciprocidade há nessas interseções entre trajetos individuais e institucionais.

A rede nos casos

- Caso Rian4

Rian tem 13 anos, com aparência de muito menos idade e uso intenso de crack. Morador de um grande complexo de favelas é conhecido como Mini Hulk pela forma que corre e se transforma diante de situações que lhe confiram risco. A história de Rian começa a ser discutida em rede primeiro porque seu caso está entre CAPSad e CAPSi. Para além da busca por uma especificidade no tratamento, há outros serviços e instituições envolvidos, pois a escola começa a convocar outras instituições para sua responsabilidade, como o Conselho Tutelar, que retira a guarda de sua mãe, desde 2013 ela não tem poder familiar.

Ao sair da escola, Rian está fora da instituição de educação, mas inserido em muitas outras - de controle e de cuidado. Corre do Conselho Tutelar para a cena de uso, onde o encontram no território e enviam para abrigos da prefeitura, dos quais já passou em nove. Volta para a cena de uso e é acolhido pelo CAPSad em emergência, pois tinha feito furto no território, o que o colocou em risco de vida em várias localidades. Ser alcançado pelo CAPSad, deu algum sentido de moradia para ele, que pretendia ficar entre CAPSad e cena de uso. Expressava que ser usuário do CAPS fornecia a ele segurança na cena, pois dizia que se se alguém o tentasse pegar, ele dizia ser acompanhado pelo CAPS. Numa reunião em que o CAPSi foi até o CAPSad profissionais davam o informe de que a juíza determinava que ele fosse internado no CAPSad, com envio de relatório em 10 dias.

Entretanto, o temo internação por parte do sistema judiciário já evoca um desconhecimento do trabalho da saúde mental estratégica e que virou parte da discussão da reunião. As questões sobre as dificuldades no trabalho com Rian também ficam

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evidenciadas, pois um dos maiores desafios do trabalho nos CAPS é sustentar o PTS, e o dele deveria ser revisto, porque sem o uso Rian começa a ficar mais ansioso e foge. Quando os funcionários vão a seu encontro, grita na rua, os mordendo e chutando, o que revela o seu difícil manejo. Só que, para além da questão do desejo do uso, sua mãe também se encontra com ele no serviço, o que traz mais complicações a seu caso. Sua presença impõe ares de autoridade e cuidado, um primeiro impasse se dá com a perda da guarda oficializada pelo Conselho Tutelar, e gera um questionamento constante acerca da legitimidade de sua presença ali.

Por outro lado, em diversas reuniões sobre o caso, profissionais viram a necessidade de, por ora, ela se manter ao lado de Rian no auxílio do tratamento, como o agravo de que nenhum dos dois pode voltar para o território onde moravam. Porém, algumas resistências são encontradas por suas ações cotidianas em relação ao menino, por exemplo, para tentar fazer com que ele permaneça no espaço diz que vai abandoná-lo caso ele fuja, o que o deixa – unida à falta do uso de crack – mais ansioso e agressivo.

Quando Rian quer fumar, a mãe agride os usuários que dão cigarro a ele, ao afirmar: “lá na favela você fazia o que queria, mas quem manda aqui agora sou eu”. Tendo sido tolhida de garantir sua autoridade oficialmente pelo Conselho Tutelar, tem o CAPSad como oportunidade de seu exercício de maternidade, já que no espaço doméstico e na cena de uso isso não lhe era uma opção. Por se tratar de um pré-adolescente, Rian diz que ficar “o tempo todo” dentro do CAPS é chato e que quer trabalhar com eles nas ações do território, argumentando que pode auxiliar porque conhece muita gente e tem acesso a muitos espaços5.

O uso do cigarro torna-se uma importante pauta entre os dois CAPS presentes (álcool e drogas e infantil). O CAPSad (onde se encontra também a mãe de Rian) optou por não viabilizar o cigarro, no argumento de que como devem estar na legalidade, torna-se um manejo complicado porque ele é adolescente e o uso não é permitido por lei. Dizem que ainda que funcionem na égide da legalidade, não trabalham para a justiça, por isso essa decisão foi, também, tomada em relação às dificuldades de manejo demandado, já

5 Nessa situação em específico, avalio que o único impeditivo seria a menor idade de Rian, já que a ida de

usuários com a perspectiva de auxiliar no acesso a espaços e pessoas que o serviço de saúde não consegue já acontece. Um dos exemplos de iniciativas como essa é o “Projeto Bike da Prevenção”, que conseguiu pagar bolsa para muitos usuários como agentes de prevenção e promoção da saúde, os transformando em redutores de danos, ao voltar a trabalhar no serviço que uma vez foram usuários. O projeto foi finalizado em dezembro de 2019 quando ainda estava no trabalho de campo. Para saber mais sobre o “Bike da Prevenção”, ver em: http://www.rio.rj.gov.br/web/sms/exibeconteudo?id=8872076

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que a mãe entra em conflito com outros usuários quando Rian fuma. Reiteram sobre o papel do CAPSad em pensar a ratificação da postura da conselheira tutelar que repete que a mãe não tem direito de maternidade, que lhe foi retirada em juízo. Ao contrário, a postura profissional é a de que rivalizar com ela é risco maior, pois fragiliza o processo. Já o CAPSi não impede Rian de fumar e diz que teve negociação com ele e a mãe juntos. Argumentaram que essa troca do crack pelo cigarro já é boa, acionando a RD, sem necessariamente nomeá-la no discurso. O CAPSad concorda com essa colocação, no entanto, reafirma que a postura deles se dá inclinada a como os julgamentos morais, que viabilizam espetáculos, fragilizam o CAPS enquanto política, e se cercar de cuidados para que não apontem erros moralizantes é uma aposta.

A conversa entre ambos os serviços chegam a algumas propositivas: olhar para a mãe como paciente, mesmo que não tenha demanda AD e nem esteja na infância; não comparar ambos os serviços e dar a entender que são duas lógicas diferentes; devem dar o entendimento de que estão trabalhando juntos e deixar claro que não estão na condição de juízes. Por fim, falaram que as instituições de saúde têm que colocar em análise o poder que elas exercem na comunidade, o que gera um processo de culpa entre eles. A clínica é derivada de uma moral pra uma ética.

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O caso do Rian movimenta várias instituições para seu interior, dentro e fora da RAPS. A começar por ser um pré-adolescente com situação pendular entre rua e abrigamento, uso intensivo do crack e perda da tutela da mãe. Desde os seis anos, quando começou a usar crack, sua vida está para o Estado e seus processos, é a ida frequente para as ruas como já usuário de drogas, que aciona seu primeiro contato com o dispositivo público. A primeira instituição que passa a decidir pela coordenação da vida de Rian é o Conselho Tutelar, que retira a guarda da mãe por negligência. É quando ele entra no circuito dos abrigos - dos quais já detém muito conhecimento pelos nove que já passou - a escola, seguida da justiça e da assistência social são os primeiros sistemas a horizontalizar suas relações com o Estado.

A polícia, e logo depois a sociedade civil, são os segundos marcadores de influência e definição de rotas e é a sua permanência nas cenas de uso que o leva ao CAPSad. Por se tratar de um pré-adolescente, seu caso fica entre dois CAPS e deve ser debatido simultaneamente. No entanto, Rian traz algumas particularidades que desafiam

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as abordagens, ainda que isso não seja uma novidade, visto que a maioria dos casos traz peculiaridades que colocam os CAPSad a trazer a RD de várias formas diferentes. Como é comum entre os usuários, não sustentava o tratamento e seu PTS tinha que ser revisto quase que diariamente, sendo esse um dos fatores mais demandantes no dia a dia e nas reuniões de equipe do CAPSad: a constante revisão dos PTS.

Maternagens possíveis6

Nessa questão, a presença da mãe se tornava uma aporia, porque ela não tinha a guarda do menino e não era usuária de drogas (o que não dava a indicação de tratamento no CAPSad). Mostrava uma marcação moral forte, reiterando que nunca usou drogas, menciona que já roubou, traficou, foi abusada, foi prostituta, mas nunca usou droga, o que fazia o julgamento e a não aceitação com o uso do filho ainda mais acentuado. Dentro do serviço sua mãe se reivindicava ser sujeito e um dos pontos postos era a mãe querendo exercer poder de decisões juntamente - e por vezes divergentes - dos CAPS, que abria para o serviço a necessidade de rever as visões e formas de maternagens possíveis.

Um dos desafios impostos ao serviço era o de analisar como o sofrimento da mãe estava, em alguns momentos, se sobrepondo ao dele e o faziam pensar suas funções, pois se o CAPS fracassa enquanto instituição, ela fracassa, se o CAPS vai bem ela é absolvida de ser má mãe. Como apostas em ação prática pensaram na possibilidade de convidar a mãe para ir com eles na ação territorial nas cenas de uso, como não podiam ir com Rian.

Se, por outro lado, tinham a tutela dividida com mãe que não tem a tutela, havia também o cuidado de não maternalizar Rian e tratá-lo como bebê. Isso a partir do entendimento de que não se podia perder a dimensão de que era criança, mas com vivência de rua e uso de drogas, e alegavam aparecer essa face mais no CAPSad do que no CAPSi. O que se mostrava necessário no manejo era: o CAPS deve cuidar como pessoa, senão cuida de um estereótipo.

6 “As formas de se assumir no mundo, a percepção, os comportamentos e as atitudes que a mulher vai

desempenhar estão diretamente conectados à imagem que ela tem de si mesma. E esta imagem é construída e reconstruída durante toda a existência, através das relações estabelecidas com o mundo, consigo mesma e com os outros”. (NAPOLEÃO, 2019, p. 83).

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Uso do Cigarro

Entre os usuários adultos, o uso de algumas drogas lícitas é permitido na convivência. A mais usada é o cigarro. Além do café e do açúcar. O álcool não é permitido pelo alto número de alcoolistas no espaço, ainda assim, a entrada de bebidas alcoólicas sem permissão ainda é uma questão muito forte e um desafio a ser compreendido (esse ponto em específico será retornado e analisado na seção sobre redução de danos).

Voltando ao cigarro, como o uso é permitido e quase todos os usuários utilizam, não é demandante de questões para além das que acometem o cotidiano, como conflitos pela posse, furto, troca, perda e venda da substância. No entanto, quando se trata de um caso inscrito em trânsito na rede, o uso do cigarro pode se tornar uma questão no caso de criança e adolescente em que a legalidade entra em conflito com a proibição, vedada até 18 anos.

O uso do cigarro para crianças e adolescentes expõe poderes e divergências de quando a RD atinge ao ECA. O que temos, em suma, com o caso Rian é que legalidade e ilegalidade se complexificam quando se transformam em ilegalismos (FOUCAULT, 2006) no interior da instituição e como elas se decidem entre si.

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- Caso Juliana

O número de gestantes nas cenas de uso tem aumentado cada vez mais. Pensar a partir de um caso, da Juliana de 22 anos, viabiliza ver as articulações e desafios em relação às gestantes. Em 2016 a encaminharam para o Hospital Maternidade Leila Diniz após o parto da primeira filha. Juliana fazia uso de cocaína, maconha e loló desde os 12 anos e morava com a madrasta, fez uso de drogas durante toda a primeira gestação e não fez pré-natal. O pai da criança estava preso e ao sair da maternidade, sua filha ficou com sua madrasta, mas não com a guarda oficial (ainda).

Juliana briga com madrasta e vai morar com o companheiro e, então, começa a ser atendida pelo o CAPSad em 2018, já com 4 meses da segunda gestação. Nesse momento relata uso esporádico do crack na cena de uso. O CAPSad faz articulação com a Clínica da Família Raphael de Paula e a madrasta dá suporte para chegar à CF, onde Juliana tinha vinculação com uma enfermeira da equipe e só aceitava fazer qualquer procedimento com ela. Vai ao pré-natal de maneira irregular, não comparece quando é marcada a consulta e vai em outros momentos.

Aparece de novo no Hospital Maternidade Leila Diniz após o parto do segundo filho e o hospital aciona vara da família (há decreto nesse território que determina que qualquer mulher que dê entrada na maternidade com histórico de uso de droga, o hospital precisa notificar a vara). A situação de Juliana com o Hospital Maternidade Leila Diniz se tornou tão séria que, em dado momento, ventilou-se que havia ocorrido um sequestro da criança pela mãe. Juliana fica com medo de que seu filho seja tirado dela e chega à Clínica da Família Raphael de Paula querendo vacinar a criança. Todo território estava avisado que uma mulher tinha roubado um bebê no Hospital Leila Diniz e juíza aciona polícia atrás dela.

Juliana, então, retorna ao CAPS, com a criança, dizendo que está com medo, deprimida, que não quer perder o bebê, mas se continuar fugindo com a criança teria problemas. Pensa em voltar para a madrasta, mas a determinação da juíza é a de que se ela retornar tira a guarda da primeira filha que, nesse momento, está com a madrasta. Segue para a Casa Lar de Balthazar, enquanto madrasta quer guarda do segundo filho, com isso, Juliana fica mal e vai mais para a cena e uso, em comparação a todo o período,

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se colocando em risco. Antes desse episódio ela usava crack em determinadas fases, seu humor era outro, agora o uso está mais intenso, fica deprimida e quieta.

Chega à cena um dia com o braço quebrado, pede ajuda e a levam ao CAPS. Com necessidade de operação, vai para o Hospital Municipal Barata Ribeiro que a acompanha e dá alta sem que o CAPS saiba. Dessa forma, fica dois ou três meses sem ser localizada, até que a madrasta entra em contato dizendo que está grávida novamente e usando muito crack. A encontram dentro de um buraco gritando nome de uma funcionária do CAPS, que vai a seu encontro na cena e Juliana diz à técnica que está com verme na barriga, se referindo ao bebê. Diz que tentou fazer pré-natal e não aceita voltar ao CAPS, diz que quer acompanhamento médico, mas que vai continuar na cena de uso. A profissional percebe que Juliana está com o humor melhor, não tão deprimida como das outras vezes. Juliana pergunta se for para a casa da madrasta consegue ficar com a criança.

Decide voltar para o CAPS depois da conversa com a assistente social, ao dizer que ficou pensando nas coisas que a profissional falou, mas o “diabo atenta”, pois chamam para voltar pra cena no viaduto. À época da discussão de seu caso, estava com sífilis diagnosticada o que, na outra gestação, não tinha. Juliana diz que queria cuidar da sífilis e fazer o pré-natal e, se ficasse na cena, não ia conseguir. Ficou no leito do acolhimento, querendo muito saber o sexo da criança, o CAPS conseguiu a articulação e a ultra que mostrou ser um menino. No entanto, tem mais duas gestantes da cena com a dificuldade do acesso ao pré-natal, a singularidade de Juliana é estar acolhida, por isso conseguiu a ultra no hospital.

Para os profissionais a preocupação é que Juliana coloque muito desejo de ficar com a criança, atentando para que não tentem fazer controle com a gestante, já que historicamente saúde e assistência agiram sobre modelo de mãe. Consideram que cuidado agora é para que ela não “se torne só isso” e perca sua dimensão de mulher. Hoje, ela só fala do bebê e o CAPS deve pensar a Juliana, como pessoa, nesse processo. Os passos para o PTS seriam: fechar o acompanhamento da sífilis; saber sobre o pai, pois quando soube a idade gestacional ficou na dúvida em quem era o pai. Outro ponto diz respeito ao deslocamento da identidade de mãe e de usuária de drogas, porque nessas duas posições há muitos sofrimentos, o que ela vislumbra, ao se olhar nos dois prismas, é uma perspectiva de derrocada.

A questão judicial também a preocupava bastante, por isso diz que vai ter bebê em outra cidade para não pegar vara do Leila Diniz. O que pede mais debate no CAPS,

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já que não é intenção criar rotas de parto, mas no caso dela tem que ponderar, algo que a ponderação já parte da própria Juliana. Não podem negar a ela que não corre risco, alegam. A assistente social do CAPS conversou com a assistente social do Leila Diniz, e relata que só em dizer nome de Juliana a equipe “quase infarta”. O que é levantado, portanto, é que a relação que estabelecem com a rede tem também que ser construída junto com a relação de confiança com a gestante. Pensar para além do CAPS nessa atenção a crise. Entretanto, a dificuldade de acesso passa por ser serviço ambulatorial, que, segundo equipe, não pensa com chave da saúde coletiva. A pergunta em torno de Juliana - que engloba gestações, cena de uso, CAPS e contato em rede - é, para eles: “o que temos para oferecer para ela para além do território?”

As situações com as maternagens, expressas em possibilidades, nos mostram o já trazido em algumas falas, reuniões, conversas: como se levar em conta desejos, trajetórias, vontades e contextos, que sejam vistas mais que nos limites do cuidado, mas em sua expansão. Acontecimentos como o de Juliana são iluminadores para se perceber os dilemas num pêndulo dos direitos da mulher e os direitos da criança (NAPOLEÃO, 2019). Além disso, a oportunidade de rever uma série de padrões, vistos em sua desconstrução: “as ideias de mãe e maternidade são associadas a imagens de pureza e santidade que estão distantes da imagem de abjeção suscitada pelo uso de drogas. Necessária visão sobre as mulheres em, cujos corpos, essa contradição aparente desafia as normas e provoca uma reação do Estado, para quem elas eram invisíveis até o momento em que provocam esse choque” (LIMA, 2018, p. 10).

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A ideia de rede nos casos se dá com o intuito de pensar como um caso tem potencial de mobilizar uma quantidade de equipamentos, como pode fazer com que os serviços dialoguem entre si, travem debates sobre suas estruturas, ajustem seus funcionamentos e rotinas. É na relação entre os dispositivos que se opera a existência da rede e ela só pode ser expressa através da troca entre eles, que se dá por meio dos casos em que partilham o cuidado. As histórias individuais de Rian e Juliana mostraram como a rede afeta os casos, mobilizando serviços a discutirem seus próprios paradigmas e os levando a compreender como o outro pauta suas ações.

Apenas um caso pode ser afetado por muitos dispositivos (da saúde, educação, assistência, justiça), o que impulsiona, por sua vez, que a própria rede se conheça em seus detalhes cotidianos. Um caso revela sobre operações da rede e como elas são em redes. Rian liga as pontas de instituições de cuidado e controle, quando sua trajetória recebe atravessamentos institucionais que iniciam na escola, passam pelo Conselho Tutelar, abrigos, CAPSad e CAPSi. Em seu caso, é possível ver que algumas funções podem não estar claras para outra instituição, como, por exemplo, o Conselho Tutelar que exige a internação de Rian num CAPSad, o que não faz parte de sua competência. Outro destaque se dá na interação entre CAPSi e CAPSad sobre o uso do cigarro, cujo comportamento de um espaço voltado para a questão AD se difere do outro, ainda que sejam ambos CAPS e serviços de saúde mental estratégica.

No caso de Juliana vemos uma profunda relação entre instrumentos de saúde e de justiça. Em torno de sua gravidez, Juliana articula Hospitais, Clínica da Família CAPS, Conselho Tutelar. Demarca uma relação que passa pelos e entre o corpo técnico e visibiliza o papel de cada profissional, como eles podem mobilizar as decisões de entradas e saídas institucionais. Visto no fato de Juliana só ter aceitado fazer seu pré-natal quando o CAPSad fez articulação com a Clínica da Família, onde ela tinha vinculação com uma enfermeira da equipe. A gestante só aceitava fazer qualquer procedimento com a enfermeira. Sendo assim, com as vivências de Rian e Juliana mostram como um único caso traz para si uma mobilização de dispositivos da rede, que realizam articulações e reconhecimentos entre si em torno dele.

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- Os casos na rede

“Sarita faleceu ontem em situação de rua debaixo da marquise e perdeu os documentos”, conta um profissional em reunião de equipe. Questões com nomes sociais são candentes dentro dos CAPSad. A realidade de Sarita, que falece sem ter o nome social reconhecido, infelizmente, faz mais parte de nosso cotidiano do que imaginamos. Durante uma reunião de equipe, afirmam os profissionais que eles precisam conversar sobre isso porque o serviço pode acabar sendo mais um espaço de reprodução de transfobia, ao afirmarem que “se hoje temos ferramentas para compreender a condição da pessoa não podemos insistir em chamar de ele alguém que é ela, isso é muito mais que uma questão só administrativa”. O fato é posto porque alguns usuários ou usuárias chegam da CER com nome de certidão e não cruza com a inscrição interna do prontuário no CAPS, o que forma uma barreira de acesso, que faz repensar porque eles estão ou não acessando determinados serviços.

Outra profissional se posiciona ao dizer que: “todos temos preconceito e tem que colocar na mesa pra discutir, que bom que somos esse espaço e temos que pensar como cuidaremos, e não rola mais ingenuidade, uma pergunta muito simples é: como é que você quer ser chamado?”.

Embora sejam postas abertamente tais discussões sociais, o corpo administrativo diz que não há como chegar nesse ponto de debate se não resolverem a questão na ponta, quando ela ainda é administrativa, pois, questionam, como vão cuidar do paciente cujo cadastro não é encontrado. Pensando nisso, debatem formas de facilitar essa entrada, falam que na anamnese podem colocar os dois nomes. Essa pauta ganha seu lugar de muito enfoque, pois estão recebendo mais população LGBTQI+7, principalmente, trans

por causa do território.

Uma das últimas apostas foi expressa da seguinte forma: “se nosso serviço está fazendo esse investimento de encontrar acesso onde só se encontra barreira, uma solução é só preencher o nome social, não tem essa de colocar dois nomes”. No entanto, outros profissionais insistem em dizer das dificuldades burocráticas que encontram quando chegam de outro serviço e vem com nome de certidão, que dificulta todas as ações

7 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais +. A escolha por essa sigla se dá por ser

atualmente a mais utilizada pelos movimentos sociais. Na política de saúde encontramos o termo LGBT por esse texto estar inscrito no contexto histórico em que foi elaborado.

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subsequentes. O consenso se dá, nesse momento, em colocar dois nomes no prontuário porque outras instituições, como hospitalares, são muito rígidas, restando à solução de colocar dois nomes, sinalizando ao mudar a cor, colocar traço no nome de registro, coluna diferente. Só precisa quem não tem ainda registro com nome social.

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A questão debatida na reunião de equipe retrata um dos temas mais delicados e atuais do serviço. A saúde da população LGBTQI+8 está garantida em direitos por lei,

contudo, como exposto na reunião, ao darem entrada na RAPS, encontram uma série de serviços e dispositivos de saúde que, ainda que trabalhem de modo intersetorial, cada um é investido de suas especificidades, modos de trabalho técnico e profissional e contextual de acordo com o território.

Por isso é válido o recorrente questionamento de como se contornou seu acesso à RAPS, quais serviços seus casos tiveram que passar, quais as dificuldades apontadas em cada um desses dispositivos. Avaliar, ainda, duas camadas de diferenciação: se há diferença no tratamento LGBTQI+ nos CAPSad em relação a outros dispositivos da RAPS e, da mesma forma, o que contrasta o acesso e cuidado LGBTQI+ em relação aos outros usuários. Pensar sobre isso pode impactar a forma de trabalho e registro ao perceber que a questão AD unida a LGBTQI+ podem modificar os itinerários terapêuticos, atentando às narrativas e experiências em seu processo de circuitos e paragens.

Ainda que com seus direitos assegurados, pode haver hiatos entre a esfera legal e a prática psicossocial, tendo em vista que “a saúde LGBT é apontada como vulnerável mesmo após a publicação de importantes documentos que garantem o acesso e a inclusão do grupo na saúde”9. A existência de uma rede como a RAPS, o tratamento feito em

CAPSad, e a entrada de muitos usuários LGBTs trazem desafios nas rotinas dos serviços que devem ser analisadas de maneira mais analítica.

8 Política Nacional de Saúde Integral de LGBT. O processo de discussão e formulação da Política teve

início com a organização do Comitê Técnico de Saúde Integral LGBT, instituído pelo Ministério da Saúde, em 2004. A política tem como base a construção de ações transversais em diversas áreas da saúde como: a inclusão da temática da atenção integral à população LGBT na formação permanente dos profissionais do SUS; a inclusão de quesitos orientação sexual, identidade de gênero e étnico-racial nos documentos de notificação; a sensibilização dos profissionais da saúde acerca das especificidades da população LGBT.

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Algumas hipóteses apontam que há “fragilidade na efetivação das propostas preconizadas, pois vão ao encontro ao atendimento discriminatório e heteronormativo prestado pelos profissionais de saúde”10. Existe a complexidade que une orientação

sexual, identidade de gênero e o recorte AD (Álcool e Drogas). No caso dos CAPSad leva-se em conta as diferenças no modo do trabalho, ainda que a maioria dos serviços opere pela mesma lógica macro política instaurada pela RAPS, há a especificidade AD.

Na teoria e na forma da lei alcançamos mudanças, devido ao acúmulo de lutas na questão LGBTQI+, mas como se tornam os direitos alcançados quando se personifica em casos concretos, com suas trajetórias e itinerários terapêuticos? Nas reuniões de equipe, no cotidiano do serviço mostraram-se notáveis as questões inerentes à causa LGBTQI+ e as dificuldades para lidar interinstitucionalmente, assim como entre os profissionais e usuários. Nessas três instâncias, a dificuldade mais percebida em nível institucional foi relacionada ao nome social, entre os profissionais era visibilizada a falta de informação às singularidades dessa população, já com os usuários o manejo era necessário em casos de violência e homofobia.

De acordo com Portaria 182011, é necessário ter um campo para se registrar o nome social, independente do registro civil, sendo assegurado o uso do nome de preferência. No entanto, a RAPS é formada por muitos serviços e dispositivos, uns mais burocratizados e institucionais – como hospitais – outros mais voltados a serviços substitutivos da saúde mental que tentavam uma integração. Ao passo que, por exemplo, o CAPSad discutia como dar prosseguimento ao caso de Laura Villela12, eram interpelados pela “perda do caso na rede”, pois, no transcurso do processo, Laura Villela não existia em outros prontuários, uma vez que não havia sido respeitado o nome social e ainda se chamava Rafael Villela em algumas unidades de saúde.

Ao narrarem suas próprias histórias, havia sempre rupturas entre locais que podiam ser quem eram e outros onde deviam retornar a seus status biológicos, como quando eram acolhidas em comunidades terapêuticas. Suas identidades operavam tal qual um boomerang, remodelando expectativas e vivências, em pouco tempo, a depender do

10 Cf ALBUQUERQUE et al, 2013, p. 517.

11 De 14/08/2009, que dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, art. 4º, item I: “identificação

pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo documento do usuário e usuária um campo para se registrar o nome social, independente do registro civil sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo ser identificado por número, nome ou código da doença ou outras formas desrespeitosas ou preconceituosas”.

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equipamento em que estava, tinha que lidar como sendo Rafael ou Laura. Outra camada é da relação entre usuários. À época da pesquisa de campo, havia três funcionárias LGBTs numa das UAAs e mais uma acolhida, um número representativo se levarmos em conta a porcentagem de profissionais.

Uma das dificuldades entre usuários e profissionais é vista particularmente nesse espaço que se diferencia de outros serviços da rede por ser considerado “espaço de casa”. O que torna os conflitos cotidianos mais espessos e de soluções nada fáceis, na necessidade de um intermediário na maioria das vezes. O próximo caso é de uma travesti, ex-acolhida da UAA, que sofria assédio moral, entre outros usuários e funcionários.

Quando iam dar a comida, aí na maior cara de pau mesmo, diz: “olha, só vou dar duas colheres de arroz para você”, aí depois juntava seis, oito bifes de carne e começava a comer na frente da gente, os outros ficavam indignados. Mas era sempre comigo. Lá na favela eu virei mendiga, saí daquele glamour todo, perdi casa, perdi tudo, virei moradora de rua, suja, cachaceira. De repente chego numa UA, os técnicos veem a pessoa limpa, vê a pessoa gente, achavam que eu já tinha aprontado, que eu já tinha roubado, que eu já tinha coisa na favela e eu estava lá. E aí ficava fuçando lá na comunidade qual a vacilação que eu tinha feito. Imagina se eu estivesse correndo risco de vida?

Tinha as pessoas que não aceitavam certas coisas que viam, que não era legal comigo, que tinha preconceito, que era uma forma de me enxergar mesquinha que estavam tendo ali. Aí ficava: “travesti, drogada, cachaceira, ser redutora de danos?”. Eu ficava no quarto, menina, eu ficava chorando.

Mas vou te falar a UA é muito diferente da CT, UA é outra coisa, lá você já pega coisa da casa. Um ambiente da casa, aquela coisa família. Eu ficava muito à vontade lá. Só não dá pra ser sem o CAPS, uma coisa que eu acho bacana aqui do CAPS, que nas reuniões de segunda-feira são acalorados. Porque todo mundo fala ali o que tem de falar. E lá não era assim. A UA não se sustenta sozinha, de jeito nenhum. Tem que ser vinculada ao CAPS, bem amarrado. Aí serve. Aí todo mundo brilha. Brilha o cliente do serviço, brilha os profissionais. Eu falo muito isso que os profissionais são o céu e a gente é a estrela. É só deixar.

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Caso Luna

Travesti. 45 anos. Hoje redutora de danos. Ex-prostituta, moradora de rua, empregada doméstica, atendente da rede alimentícia. Passou por duas CTs, sem ser chamada de Luna e sim de Gabriel (seu nome de registro), usuária do CAPSad, bolsista do programa Bike da Prevenção. Palestrante, já que hoje é convidada para falar sobre sua experiência em universidades. Essa é Luna, que descobriu sua identidade feminina aos 14 anos, órfã de pai e recém-enlutada sem saber como lidar com essa perda e, devido à profunda desigualdade que vivia num dos maiores complexos de favela do Rio de Janeiro, encontra na rua e na prostituição a forma de vivência. Nas palavras dela, abaixo:

Eu nem sabia que existia o CAPS e a redução de danos começou aí. Me pegaram pela barriga. E a alimentação era boa. Nunca tinha escutado falar em redução de danos. Eu comecei a ocupar os meus espaços com outras coisas. Porque lá tinha oficina, tinha biblioteca, tinha oficina de chá, que tinha uma horta. E eu tava mais feliz, eu já era a Luna. E a droga já estava diminuindo.

Por isso que aproveitei a oportunidade de fazer um curso de formação, de redutora de danos, no controle abusivo de álcool e drogas múltiplas. Fiz e estou terminando agora o de agente de cuidados e de prevenção de saúde. Uma promotora de saúde, me especializando agora em HIV, sífilis, hepatite viral.

Aí eu faço essas promoções de prevenção de saúde para pessoas que estão em vulnerabilidade social. Às vezes não estão nem inseridas em clínicas de família. Vou em praças, com morador de rua, sabe, encontrar com a população trans, que é uma população que você não vê em clínica de família, não vê muito aqui no CAPS. Eu estou me abrindo aqui para você um pouco, mas a minha população não consegue ter essa abertura, não.

Eu falo: gente, vai lá no CAPS. Você precisa falar, na rua trans fala com trans, travesti fala com travesti, homem fala com homem. Gente lá todo mundo fala com todo mundo. Entendeu? Todo mundo fala com todo mundo. Eu falo com homem, falo com mulher, falo com travesti, falo com trans. Eu sou do mundo. Não vivo naquele meu mundinho que eu vivia.

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Estou com 45 anos de idade, passei por epidemias, não tinha nem água encanada no meu tempo. Não tenho nenhuma doença crônica porque eu ultrapassei as barreiras aqui no Brasil de uma mulher travesti negra, que muitas são assassinadas, muitas morrem de depressão, entendeu? Muitas de doença, que poderiam ter prevenido. Quando vai saber da doença já está em estágio avançado. Elas veem isso em mim, entendeu? Elas pensavam nessas idas e vindas minhas de avaliação de saúde, que eu tava como soro positiva. Até dá processo chamar uma pessoa de aidética hoje em dia, não pode. Elas veem isso. Aí eu falo: eu quero que vocês envelheçam também. É isso, é o que o CAPS faz com a gente.

Eu sou Luna travesti, porque para mim é um ato político. Travesti. Eu vim da década de 90. Eu sou muito bem resolvida com o meu corpo.

***

A história de Luna é umas das que nos mostra que quem liga essas pontas é o usuário, que percorre esses espaços levando as próprias vidas deles um para o outro. Sendo assim, compreender os trajetos de Luana nos leva também a apreender suas escolhas. Talvez sua aderência ao método da RD do CAPSad esteja também relacionada às privações de identidade de gênero que sofreu nas CTs. Quem sabe a apreensão de uma abordagem também não se conforma na negativa de outra.

As histórias de Luna e Gabriel se confundem com dois temas importantes dessa seção: a questão LGBTQI+ na RAPS e especificamente como essa questão se reverbera nas CTs. Levando com conta que – mesmo que não haja compartilhamentos de casos entre CAPSad e CTs no Rio de Janeiro – as CTs fazem parte oficialmente da RAPS, o que a transforma em responsabilidade legal que deve ser pensada em termos de como seu trabalho pode afetar aos outros serviços intersetorialmente.

O fato de se dizer convertida à religião a que foi apresentada na CT não anula sua identidade de gênero. Passou por várias abstinências, que classifica como loucas, mas quando retornava ao uso o faz de maneira ainda mais intensa, como visto em muitos relatos. No entanto, depois de começar a fazer RD optou pela abstinência, sem a obrigatoriedade que antes tinha. O caso de Luna nos manifesta muitos pontos norteadores dessa pesquisa e abre muitas outras perspectivas.

Por ora, destaco a questão LGBTQI+ e o fato de ser travesti reordenou sua vivência numa CT, sua vinda e aceitação no CAPSad, seu lugar político, na sua

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transformação em redutora de danos, nos projetos da prefeitura, no que é o dispositivo UAA. No que se entende como caso de sucesso, pois “se existir é diferir, é pela afirmação da diferença que a RD ocupa seu espaço”. (PETUCO, 2019).

A alimentação, um dos temas mais falados durante a crise, também retorna na fala de Luna, como sua primeira RD, método esse que lhe ofereceu uma profissão em que pode acessar a sua própria população e reviver memórias refazendo-as. Do primeiro prato de comida à promoção de saúde nos acessos comunitários que o serviço de saúde tem dificuldades de acessar, assim se forma uma redutora de danos. Mulher, travesti, que dizia sentir um sentimento de inexistência e agora ressignifica a RD como uma modificadora das urgências.

Optei pela distinção da rede nos casos, a pensar como um único caso mobiliza toda uma rede para seu interior, e os casos na rede, como um caso afeta a estrutura de serviços da rede, a fazendo se repensar e reorganizar. O caso LGBTQI+ foi escolhido porque representa as mudanças no campo dos direitos sociais e humanos, e como tais mudanças reverberam, de forma concreta, em apostas políticas e funcionamentos burocráticos e administrativos. O conceito de casos na rede não aponta somente para como uma vida aciona dispositivos diferentes, mas como esses dispositivos vão ser postos à prova e em discussão clínicas, institucionais e políticas. É quando seus impasses chegam às Secretarias a serem notados por implementadores e formuladores da política pública também.

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Referências Bibliográficas

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FOUCAULT, Michel. Gerir os ilegalismos. Entrevista a Roger Pol-Droit gravada em janeiro de 1976. In ________ Michel Foucault: entrevistas. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

LIMA, Michele Salgado de. A quem pertence essa gravidez? Reflexões sobre a maternidade/maternagem de mulheres que fazem uso de drogas e as agentes do Estado. Dissertação de Mestrado – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Ciências Sociais: 2018.

MALLART, Fabio. RUI, Taniele Cristina. “Por uma antropologia das transversalidades urbanas: entre o mundão e os dispositivos de controle”. Anais do 39º Encontro Anual da ANPOCS. GT 34 - Sobre periferias: novos conflitos no espaço público, 2015.

MARTINEZ, Mariana. “O Consultório na Rua e as novas formas de intervenção em cenários de uso do crack: o caso de São Bernardo do Campo”. In: RUI, Taniele et al (Orgs). Novas faces da vida nas ruas. São Carlos: EdUFSCar, 2016.

NAPOLEÃO, Paula Figueiredo. “’Ei, eu tô aqui, você não ta me vendo?’”: Reflexões sobre a rede de cuidado de mulheres grávidas usuárias de drogas em situação de vulnerabilidade na cidade do Rio de Janeiro”. Dissertação Mestrado do Programa de

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Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, 2019.

PETUCO, Denis Roberto da Silva. O pomo da discórdia? Drogas, saúde, poder. Curitiba: CRV, 2019.

WORCMAN, Nicola; MORGANTI, Rafael. “O proibicionismo introjetado: a reprodução da violência e exclusão entre os usuários de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas”. In: PIRES, Roberto Rocha C. (Organizador). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Rio de Janeiro: Ipea, 2019.

Referências

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