Dr. António José Correia Presidente da Câmara Municipal de Peniche Largo do Município 2.520‐239 PENICHE Ass: Forte de Peniche ‐ Memória e futuro Lisboa, 23‐12‐2016 Ex. mo Senhor Dr. António José Correia, Presidente da Câmara Municipal de Peniche. No passado dia 10 de Dezembro integrei o grupo de ex‐presos políticos, seus familiares e amigos, que visitaram o Forte de Peniche. Não foi a primeira vez que, desde Abril de 1974, regressei ao Forte, tendo acompanhado, ao longo de 4 decénios as sucessivas fases de ocupação e uso do Forte. Guiei até algumas visitas na qualidade de arquitecto, de ex‐preso político detido nesta prisão e de membro da direcção da APAC‐Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos.
Desde sempre, até porque interveniente em património arquitetónico, que me questionei quanto aos propósitos para uma consequente reutilização deste importante conjunto, numa singular e única geografia que é a da península, melhor será dizer “ilha” de Peniche. Afinal, foi esse o motivo da nossa visita, que o Senhor Presidente quis receber e saudar, dando notícia do processo de integração patrimonial do Forte na memória e vida quotidianas.
É precisamente sobre esta memória e o futuro que lhe está a ser preparado que pretendo transmitir ao Senhor Presidente, com base na minha plural experiência deste Forte, o meu conceito de intervenção que poderá, deverá ser acolhida, sem qualquer prejuízo; pelo contrário, para acréscimo do seu sentido cultural e público e para uma reabilitação eficaz, económica, da componente prisional no Forte. Irei referir‐me a um aspecto que constitui a opção mais determinante. Trata‐se da relação: memória – matéria de suporte – uso futuro. A memória é a longa história como presídio, militar e político, mesmo na nossa contemporaneidade; a matéria de suporte são os pavilhões A e B e mesmo C; o uso futuro é, em particular, o Forte possuir uma diferente tipologia de habitar, com memória. A memória, elemento fulcral, produziu‐se nos pavilhões, onde se depositavam homens em degredo. A sua organização, com destaque para os pavilhões A e B, é a de um singular colectivo de habitação, constituído pelos seguintes espaços, organizados com máxima economia e eficácia na sua finalidade: ‐ sala, por fim convívio, comum (fruto da luta prolongada dos presos políticos contra o “carcereiro”), ‐ copa para chegada das refeições e sua distribuição, ‐ refeitório. E depois, e ainda, separado por gradeamento: ‐ corredor de distribuição para acesso às celas, ‐ instalações sanitárias coletivas, ‐ celas, elementos genéticos e primordiais do sistema prisional de alta segurança. A matéria de suporte ou, se quisermos, onde se faz a produção da memória é, pois, o conjunto dos pavilhões das celas. É aqui que se viveu e criou memória, se apreende, transmite e se acrescenta com a nossa própria experiência, diferente para cada um. Só aqui se poderão retomar as condições únicas em que a memória se produziu e viveu; é onde ela permanece latente para ser transmitida e dela se aprender; e hoje, é aqui que este tipo de memória, ligada ao processo social e à organização política da sociedade se poderá experimentar, mais plenamente.
Os pavilhões A, B e C são a forma que a memória historicamente tomou, é neles que a reconhecemos
e não num qualquer outro novo edifício que os venha substituir, por mais sublime que seja a sua arquitectura.
Apagar a matéria de suporte, os pavilhões celulares, isto é, demoli‐los para depois ali voltar a construir com diferente forma e matéria, é eliminar, precisamente, aquilo que se diz querer preservar: o sinal, a matéria e o ambiente onde se gerou a própria memória. O uso futuro não pode ignorar estas evidências; só pode ter benefícios, únicos e totais quando, ao retomar a matéria de suporte, preservando‐a e usando‐a novamente, o faça ainda e afirmativamente como lugar para habitar; agora não já sem liberdade mas com a liberdade de nos podermos localizar em plenas condições para experienciar a memória: a de outros, que ao tornar‐se social e política se assume como a nossa cultura e a nossa própria memória. Numa palavra, podem e devem os pavilhões celulares ser retomados como lugares para habitar, em regime de dormida pontual ou por breves dias; isto é, suporte de um uso de hospedagem.
Reabilitem‐se os pavilhões celulares A, B e C, dêem‐se‐lhes condições de habitabilidade, durma‐se nas celas; e teremos uma experiência única e autêntica da memória do totalitarismo, estando‐se em plena liberdade. Poupar‐se‐á muito dinheiro e ter‐se‐á um resultado autêntico, verdadeiro e irrepetível. Facultar‐se‐á aos cidadãos poderem colocar‐se no lugar da memória, na sua matéria de
suporte, não apenas para a evocar mas para a viver, de facto, na experiência de uma noite em célula
de prisão, plenamente livres nessa experiência e exercício.
Acredito na reutilização global do Forte, com usos diferenciados e compatíveis com as suas formas e morfologias; e não acredito na falsidade da destruição tipológica para construir o novo sem memória; joga‐se um momento único para a identidade e monumentalidade da ilha de Peniche. Considero que os pavilhões celulares existentes reúnem todas as condições materiais e imateriais para uma correta e sabedora intervenção patrimonial.
À atenção de V.ª Ex.ª Senhor Presidente fica o meu apelo à real valorização da memória e do património construído do Forte de Peniche, poupando os pavilhões celulares ao camartelo, de uma abstrata memória a construir sem a espessura do tempo nem dos homens; que os pavilhões possam, com todo o direito e propriedade integrar o programa geral para este extraordinário Forte no quotidiano de Peniche e do país.
Nesses pavilhões celulares poder‐se‐ão alojar cidadãos e turistas, cidadãos activos na economia do mar, ou deste fazendo o meio de encontro com a natureza, fazendo do Forte uma experiência única – a de habitar/dormir num presídio – ímpar na Europa, também pela localização oceânica.
Porque de fortaleza militar se trata, muito se perderia caso a definição e concretização do projeto para o Forte de Peniche não pudesse contar também com o apoio de milhares de associados da APAC e a participação activa dos seus mais competentes quadros para intervir em fortificações. Sugiro que a C. M. Peniche convide a APAC, a ser representada pelo seu Presidente Eng.º Francisco Sousa Lobo, para participar na definição da intervenção a realizar no próximo futuro.
Embora bem presente em V.ª Ex.ª, incluo nesta carta uma fotografia da recepção que nos fez em 10 de Dezembro passado; e também duas imagens que se referem à intervenção feita pelo arq. Raul Rodrigues Lima; e ainda três fotos do próprio Forte, onde os três pavilhões celulares se destacam pelos seus volumes em crescendo, de monumental simplicidade, austera e autêntica, até pelo que foram e agora são: memória viva, predisposta para ser livremente habitada.
Com os melhores cumprimentos.
PENICHE – FORTE, VISTAS DE SUL PAVILHÕES CELULARES A, B e C DA EX‐PRISÃO POLÍTICA 2015 2015 2015
PRÉ‐EXISTÊNCIA E REFORÇO DO SUPORTE PARA MEMÓRIA PRISIONAL, 1953‐1961.
A prisão de Peniche, antes da intervenção de Raul Rodrigues Lima (1909‐1979), arquitecto do regime do Estado Novo com actividade preponderante a partir de 1939 em projetos para Tribunais e Prisões de todo o tipo, nomeadamente Prisões Especiais, posteriores à «Reforma da Organização Prisional de 1936», entre as quais: Pinheiro da Cruz, Alcoentre, Vila da Feira; prisões políticas: Caxias e Peniche. Intervenção geral entre 1953 e 1961. Início de construção dos Pavilhões A, B, C em 1956, com projeto do arq. Raul Rodrigues Lima, que retoma o pátio e a morfologia geral das precedentes construções.
VISITA DE EX‐PRESOS POLÍTICOS AO FORTE (EX‐PRISÃO POLÍTICA). 2016‐12‐10 PENICHE RECEPÇÃO PELO PRESIDENTE DA C.M. PENICHE DR. ANTÓNIO JOSÉ CORREIA.