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Damas e Cavalheiros O Estudo de Caso das Quadrilhas Juninas do Recife

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Academic year: 2021

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Gênero, Feminismo e Cultura Popular – ST 56 Hugo Menezes Neto

UFPE

“Damas e Cavalheiros”

O Estudo de Caso das Quadrilhas Juninas do Recife

As manifestações da cultura popular traduzem valores, crenças e concepções de mundo vivenciadas pelos atores sociais em seu dia-a-dia. Estando intrinsecamente ligada a vida cotidiana tais manifestações expressam o olhar do “manifestante” sobre a realidade que o cerca, ora negando ora reforçando preconceitos, esteriótipos e relações de poder existentes na sociedade. A partir das pesquisas sobre as festas juninas da cidade do Recife apontaremos algumas questões de gênero suscitadas a partir da observação da dinâmica de produção das quadrilhas juninas, um brinquedo popular que se transformou em um verdadeiro espetáculo público do ciclo junino recifense.

Os brincantes urbanos (pós)modernos não se reconheciam mais na representação do matuto jocoso proposta pela quadrilha chamada de tradicional e buscaram aproximar a manifestação da vivência urbana. Para Carlos Rodrigues Brandão o ser humano é basicamente criativo e recriador modificando continuamente o que um dia aprenderam a fazer é o que o autor considera como regras humanas da criação e do amor.

“(...) fazer de novo, refazer, inovar, retomar o antigo e a tradição (...) incorporar o velho e o novo e transformar um com o poder do outro” (BRANDÃO,1985:39).

Assim, a partir dos anos 80 foram incorporados novos ritmos, cores e modelos estéticos. Formas de fazer e se organizar surgiram para contemplar novas carências, dar visibilidade, estruturar um movimento, consolidar idéias e até mesmo transgredir limites impostos pela dicotomia tradição / modernidade. A cidade é um mosaico de identidades e influências, portanto, as manifestações que nela estão inseridas precisam interagir com as novas realidades, se resignificar continuamente, sobretudo para poderem continuar existindo.

Damas e Cavalheiros

“Nenhuma mudança ocorre sem fazer parte de um conjunto de fatores determinantes, que apontam para a capacidade criadora do homem. Envolvido em seu universo, com os embates do dia-a-dia, não se deixando embrutecer, petrificar e reagindo por meio da arte, resultando daí inovações introduzidas nas expressões artísticas e culturais (ALMEIDA E LÉLIS, 2004: 34)”

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“Dar pinta é se soltar, se jogar, se não der uma pinta básica não tem alegria, vibração. Hoje em dia todo mundo dá pinta...”

(Sérgio de Barros, Quadrilha Dona Matuta)

“Acho que quando se dança homem é homem e mulher é mulher”.

(Rildo Plínio, Quadrilha Brigões )

A quadrilha junina é por excelência uma dança de pares onde damas e cavalheiros interagem e dançam a dois. No entanto, no bojo das mudanças mencionadas, percebe-se que as coreografias gradativamente passaram a ser executadas muito mais de forma individual. Mesmo dançando juntos, homens e mulheres desempenham performances diferenciadas e cada vez mais individualizadas, sempre atendendo as idéias a priori de como devem se apresentar uma dama e um cavalheiro. Este raciocínio encaixa-se na interpretação de Geertz (1978) sobre o “modelo de” que está atrelado à capacidade de simbolização que precede à realidade social detentora das formas de ser homem e ser mulher. Os concursos de quadrilha observam, em seus regulamentos, a beleza e a graciosidade das damas e o garbor e o porte dos cavalheiros. As primeiras devem expor sua feminilidade e sensualidade enquanto os segundos a força e o vigor de sua masculinidade.

Não obstante, de damas e cavalheiros esperam-se atitudes diferenciadas e estereotipadas, porém, observa-se que comportamentos tidos como “desviantes” é um fenômeno cada vez mais comum que paulatinamente se torna uma marca dos grupos juninos de Recife. Homens vestidos como cavalheiros, mas que utilizam uma linguagem corporal que não se enquadra àquela previamente estabelecida, ou seja, que dançam com trejeitos afeminados são chamados, em um vocabulário muito particular ao universo dos quadrilheiros de “pintosos”.

Os

elementos apresentados pelas manifestações da cultura popular só existem porque há uma demanda social que propõe as suas existências. Neste caso específico, as quadrilhas se tornaram um espaço de intensa participação de homossexuais que trazem consigo novas linguagens corporais que mexem com as concepções estéticas e performáticas convencionais desta manifestação de estrutura cênica sexista. Na quadrilha todos são aceitos, recusam a invisibilidade social e elevam sua auto-estima, conseqüências naturais da transformação do indivíduo negado pelo sistema em

artista-criador. É esta conotação criadora e transformadora que agrega tantas pessoas num

brinquedo que não tem necessariamente motivações religiosas, hereditárias e nem tampouco é unicamente lazerístico.

“É através da atividade criadora que ele (o artista) afirma sua existência social” (GULLAR, 1963:18).

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As Caricatas

Nas quadrilhas juninas “tradicionais” a figura do homem vestido de mulher sempre existiu, todavia, de uma forma pontual (na maioria das vezes apenas na encenação do casamento) e pitoresca que servia apenas para reforçar estigmas negativos. No atual movimento quadrilheiro da cidade do Recife uma nova personagem compõe os espetáculos, os quadrilheiros a denominam de “caricata”. Mais do que homens vestidos de mulher com trejeitos afeminados, as caricatas são homens vestidos de “damas” mas que paradoxalmente não se comportam como tais, possuem uma linguagem corporal própria, uma performance “over”, propositalmente exagerada. As caricatas surgiram no ano 2000 na quadrilha junina Lumiar, hoje são brincantes que dançam, animam, interpretam, participando do espetáculo das mais diversas forma

As caricatas são interpretadas por homossexuais que não são necessariamente travestis na sua vida

cotidiana. Para Marcos Benedetti (2005) as travestis têm o desejo de sentirem-se como mulher, femininas. Por sua vez, as caricatas criam um universo peculiar, onde o processo de construção da linguagem corporal e a decodificação da ordem simbólica do gênero perpassam muito mais pelo cênico do que pelo sexual. Ser caricata não é se sentir feminina, nem atender as idéias a priori de ser dama, é ser um artista (mesmo que exclusivamente do ciclo junino) que interpreta um híbrido entre uma “drag” e uma dama mas com uma forte identidade homossexual afirmada. Vale salientar que o movimento gay da cidade do Recife são protagonistas na história das quadrilhas juninas, responsáveis por muitas mudanças de paradigmas que desencadeiam nas mudanças estéticas da manifestação.

“A quadrilha Lumiar em 2000 estava com um problema de damas e por isso eu estava com dificuldade em uma coreografia (...), aí eu quebrei a cabeça e eles entraram no casamento de uma forma mais engraçada dando um certo humor(... )e surgiu a história das caricatas e foi pegando eu faço isso com muita responsabilidade não importa a opção sexual de quem faz mas a consciência de que é um trabalho de atores(...”) (Fábio Andrade, Quadrilha Lumiar).

“A caricata é diferente de uma dama, a energia, o gingado, a atuação, tem a maquiagem, brincos, arranjos, tudo é muito grande, coisas que chamem atenção, a dama é delicada(...) Se a pessoa quer se ‘travecar’ para ser uma dama perde a essência de caricata” (Geraldo Silva, Quadrilha Tradição)

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Apesar da grande maioria das quadrilhas aderirem a “moda” das caricatas este ainda é um assunto polêmico dentro do movimento, em alguns grupos ter uma caricata é uma possibilidade descartada enquanto outros não existiriam sem elas. Talvez os valores híbridos que a presença deste homem fora de seu “modelo de” traz dificulta o entendimento da função e da real necessidade da existência deste personagem para as quadrilhas que ora afirma ora desmistifica preconceitos em torno da homossexualidade.

O mais

importante é perceber que sua presença gera

discussões e reflexões sobre os usos do corpo e a exposição da sexualidade dentro de uma manifestação que separa seus brincantes em homens e mulheres com papéis previamente definidos. As caricatas afrouxam as amarras dos comportamentos do ser masculino e do ser feminino. Contemplando a posição de Mauss (1974) ao observar que gestos, posturas e movimentos corporais resultam de um processo de aprendizagem, visto que aprendizagem é uma prática contínua de vida, as caricatas ensinam que existe uma margem de escolha do papel que o indivíduo quer exercer enquanto “manifestante” que deve estar ligada à trajetória de vida do sujeito.

A Preparação do Espetáculo

A preparação das quadrilhas juninas em Recife começa entre outubro e novembro do ano anterior. O que chama atenção nesta preparação é a divisão sexista das atividades de construção do

“(... ) eu sou homossexual, dancei de homem 5 vezes mas sempre dava uma quebradinha né! até eu poder optar por dançar de caricata (...) eu acho que ta vestido de homem ele tem que ser homem, dançar como cavalheiro, a sexualidade dele não interessa a ninguém, é por isso que hoje em dia tem cavalheiros, damas e caricata pra gente poder optar...” (Wagner Alves, Quadrilha Lumiar, 1ª caricata de Pernambuco).

“(...) caricatas não tenho nada contra elas mas, na minha quadrilha eu nunca gostei, acho que foge muito, não gosto, talvez tenha sentido para as algumas quadrilhas na minha eu nunca gostei nunca coloquei”(Alana Nascimento, Quadrilha Raio de Sol)

“Às vezes a gente precisa colocar um personagem e não tem uma pessoa tão cômica quanto os artistas que se vestem de caricatas, na minha quadrilha são 4 caricatas, acredito que funciona, (...) às vezes a gente não consegue encontrar isso numa dama ou num cavalheiro” (Jimmy Glauber, Quadrilha Tradição)

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espetáculo. Quase a totalidade das lideranças dos grupos juninos são homens, são eles os brincantes que assinam as coreografias, os vestuários, são os responsáveis pelo projeto do espetáculo. Eles são os grandes marcadores de quadrilha (ausência total das mulheres marcando as quadrilhas), os espaços de visibilidade são ocupados pelos quadrilheiros homens.

Às mulheres cabem os espaços dos bastidores, elas exercem, em sua maioria, as funções de costureiras e bordadeiras, seus nomes dificilmente são lembrados com o êxito e o sucesso de um espetáculo. No fim de cada ciclo junino os grandes artistas são os homens que estão à frente se seus grupos e de preferência grupos vencedores dos grandes concursos.

É a reprodução das relações de poder na sociedade onde o masculino e o feminino se encontram em arranjos sociais que traduzem a dominação e a subordinação. Para Joan Scott o processo normativo que abarca os discursos político-ideológicos estabelece estratégias que legitimam as convicções sobre os sujeitos. As manifestações populares se empoderam destes dessas estratégias, delimitando espaços específicos, de modo a tornar possível a participação binária e desigual dos atores envolvidos.

Embora seja clara a divisão de papéis entre homens e mulheres perpetuando a concepção de espaço público para eles e o privado para elas, vale ressaltar que a Federação das Quadrilhas Juninas de Pernambuco – FEQUAJUPE é presidida por uma mulher mesmo sendo a única mulher entre os seis diretores desta instituição.

O Casamento Junino

Existe neste brinquedo um espaço verbalizador do pensamento e das práticas sociais vividas pelo grupo, o casamento junino. Uma comédia de costumes que pode reforçar preconceitos arraigados na sociedade ou contestar injustiças sociais do cotidiano criticando as instâncias de poder e a ordem religiosa. O casamento é uma sátira que propicia a exposição de temas referentes à realidade social da periferia da cidade como sexualidade, gênero, raça, violência, família, entre

“De fato, não vemos muitas mulheres atuando enquanto liderança nas quadrilhas juninas, nem mesmo em funções de destaque artístico, mas se a gente olhar direitinho a participação feminina é essencial (...) elas precisam aparecer mais...” (Rejane Santana, presidenta da FEQUAJUPE)

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outros. O formato é muito parecido com o casamento “matuto”, quase sempre a noiva já está grávida, o noivo não quer casar e tudo acontece para atrapalhar a cerimônia, mas surgem estórias paralelas e personagens que atravessam o enredo principal inserindo novas situações, traduzindo diversas demandas sugeridas pelo dia-a-dia marginal das comunidades carentes do Recife, expondo inquietações e desejos.

A reafirmação de preconceitos contra a mulher permeia estas “paródias às cerimônias tradicionais”. O papel social destinado às mulheres pela estrutura de dominação do masculino é tratado de forma pejorativa a partir da exploração de antigos estereótipos no intuito de comicidade, “a fofoqueira”, “a prostituta”, “a beata”, “a donzela”. A legitimação da sociedade patriarcal é esplanada no exercício do poder pelo pai da noiva (o coronel) e pelo próprio noivo. O casamento é visto como destino único e esperado pela mulher, a virgindade e a gravidez ganham sentidos ambíguos deixando de serem vistos como tabus para serem encarados com mais naturalidade, todavia o casamento é a resolução dos “problemas” causados pela perda da virgindade ou pela gravidez.

A participação das caricatas no casamento acontece de forma pouco reflexiva acerca da estrutura social na qual estão inseridos que acentua os preconceitos, desqualifica os direitos, expurga e condena as diferenças. Geralmente as caricatas participam do casamento em personagens negativos, quase sempre colocados como vilões que intervêm na cerimônia, tentam atrapalhar, querendo destruir a “felicidade matrimonial”, personagens montadas com sentimentos de inveja e recalque.

No casamento percebemos mais claramente a identificação do público com os atores, bem como acontece com o Bumba-meu-Boi, como afirma Luiz Gonzaga de Mello, o público deste tipo de brinquedo popular não se contenta em ser mero espectador, participa do espetáculo de forma viva e contundente. Mesmo não conseguindo interferir no desenrolar da estória (pois o casamento é gravado), o público participa, grita, vaia e responde a todos os momentos cênicos. Sobretudo, o público é o receptor que se identifica com o discurso da quadrilha e se reconhece nas personagens e situações propostas pelo grupo emissor dos símbolos e sinais que correspondem à vivência e comportamentos cotidianos. Público e brincante estão envolvidos pela (de)codificação recíproca de signos e valores sociais.

“Todo símbolo é cultural e supõe uma ordenação inteligente de todo o mundo visível (...) o símbolo sempre supõe dois pólos um emissor e outro receptor...” (MELLO, 1995: 47)

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Considerações Finais

O trabalho exposto trata-se de um recorte extraído das primeiras impressões de campo de uma pesquisa sobre as festas juninas da cidade do Recife para a dissertação de mestrado em Antropologia. A interface entre gênero e cultura popular é tão imensamente interessante quanto pouco explorada, é importante à medida que suscita discussões sobre as permanências e as mudanças nos comportamentos individuais e no discurso da coletividade, principalmente sob a ótica das classes populares. O olhar sob as questões de gênero nas manifestações populares contribuirá para desvendar preconceitos intrinsecamente vinculados às produções populares, além de contribuir no entendimento dos sentidos e motivações para a existência, a reprodução e o emprego dos esteriótipos e dos estigmas referentes ao gênero e a sexualidade.

Referências

ALMEIDA, Magdalena e LÉLIS, Carmem (orgs.). Quadrilha Junina: História e Atualidade. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife, 2000.

BENEDETTI, Marcos. Toda Feita. Porto Alegre: Garamond, 2005.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Que é Folclore. São Paulo: Brasiliense, 1985. GEERTZ, Cliford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GULLAR, Ferreira. Cultura Posta em Questão. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1963. MELO, Luiz Gonzaga de. Antropologia Cultural. Petrópolis: Vozes, 1995.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia: v 1. São Paulo: EPU: EDUSP, 1974.

__________, SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil Para a Análise Histórica. Recife: S.O.S Corpo, 1996.

Referências

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