Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, Suplemento 12: 141-145, 2011.A cidade antiga e as m uralhas: M agna Grécia e Sicília,
um a proposta de interpretação
Patrícia Boreggio do Valle Pontin *
PONT1N, P.B.V. A cidade antiga e as muralhas: M agna Grécia e Sicília, um a proposta de interpretação. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplem ento
12: 141-145, 2011.
R e su m o : E sta investigação pretende prom over um m aior conhecim ento
sobre as m uralhas de algum as das principais poleis gregas da M agna G récia e Sicília n os períodos A rcaico e C lássico para m elhor entender a fun ção sim bólica e sagrada das m esm as.
Palavras-chave: M uralhas - Fortificações - M agna G récia - Sicília - G récia
A ntiga.
O bjetivos e ju stificativa
E
sta investigação pretende prom over um m aior conhecim ento sobre as m uralhas de algum as das principais poleis gregas da M agna G récia e Sicília nos períodos A rcaico e C lássico para m elhor entender a fun ção sim bólica e sagrada das m esm as.D iferen te da cerâm ica, d as escu ltu ras, e das in scrições, o teste m u n h o d as m u ralh as é raram en te p u b lic ad o . A s m u ralh as n ão tiveram m u ita aten ção d o s estu d o s C lá ssic o s, talvez p o rq u e d o p o n to de v ista h istó rico raram en te foram atrativas ou p o r serem de d ifícil d atação . S e elas n ão p o d e m ser d a ta das seu v alo r co m o d o cu m en to h istó rico é severam en te lim itad o . U m a m u ralh a p o d e ser d a tad a, p rim eiram e n te, p o r u m a referência literária direta, ou , m elh o r ain d a, p o r
inseri-(*) Bolsista de pós-doutorado da FAPESP junto ao Labeca - MAE/USP. ppontin@usp.br
ções. S eg u n d o , p elo estilo d a alven aria e p elo s d etalh es d a co n stru ção .
Segun do M artin (1956: 189), a cidade grega é m odelada em prim eiro lugar p or suas linhas exteriores: suas m uralhas. D o m esm o m odo, Gar- lan (1991: 119) afirm a que desde a época homéri- ca, a cidade, vista do exterior com o pólis, aparece em princípio contornada p or um a m uralha, e isso é ainda m ais verdadeiro n a época clássica, em que a noção de fortificação liga-se a um aspecto cultural. N ão é por acaso que representações plás ticas ou pictóricas gregas, com o relevos, pinturas, m osaicos adotaram as m uralhas com o elem ento sim bólico da cidade. Segun do G arlan (1991:121,
125), na iconografia grega, personificações das próprias cidades ou de sua Tyché, n o geral, são cobertas com a coroa torreada sobre a cabeça, personificando as cidades.
D e acordo com H an sen (2004b : 135), do s quatrocentos e noventa e um assen tam en tos atestados com o poleis n as fontes arcaicas e clás sicas, trinta e dois n ão possuem m uralhas. D as restantes quatrocentas e cin qü en ta e nove poleis, duzentas e sessen ta e u m a são atestadas
arqueo-logicam ente com o fortificadas antes do fim do p eríodo clássico.
E m H om ero, as cidades renom adas são pro tegidas por m uralhas, com o Tróia (II. 3, 153), Tebas (II. 19, 99) e T irin to (II. 2, 559). A pólis m urada é representada no escudo de A quiles
(II. 18, 514). Tam bém o m uro íngreme (II. 6,
327) ou os longos m uros da pólis estão entre os epítetos padrão u sados para descrever a cidade,
(II. 4,34).
D as mil e trinta e cinco poleis do Inventory of
archaic and classical poleis, sessenta por cento do
total são explicitam ente atestadas com o assen tam entos am uralhados. A lém disso, ao todo, du- zentas e vinte e duas dessas poleis são atestadas nas fontes literárias com o fortificadas (H ansen 2004b: 137).
U m a grande questão da econom ia grega é o custo de construção de um circuito de m uralhas. O financiam ento da construção das m uralhas da cidade era um fardo considerável (M cK. C am p II 2000: 46). A queles que viviam num assentam ento a ser fortificado tinham que estar prontos para contribuir com trabalho ou dinheiro, ou am bos. N o final do século V a.C ., para reforçar a defesa da cidade, D ionísio I decidiu construir um a m uralha m onum en tal fortificando n ão só a parte urbanizada de Siracusa, com o tam bém a Epípole (cidade alta) que, durante o assédio ateniense (415-413 a.C .), tinha representado o ponto fraco do sistem a defensivo. A extrem idade oeste do circuito da m uralha possui um a fortaleza cham ada de C as telo Eurialo. D o trabalho participaram 6 0.000 hom ens, que construíram em 20 dias um longo m uro de 5 .0 0 0 metros, para a defesa da parte N orte da Epípole, segundo nos conta D iodoro (XIV, 18, 2-8), o resto foi depois edificado em seis anos sucessivos (entre 402 e 397 a.C .). A m uralha tinha em seu trajeto norte 5,7 km; no lado leste que acom pan ha o mar, 7,8 km e no trajeto sul, 5,7 km.
D iodoro Sículo, em sua descrição da forti ficação da Epípole em Siracusa por D ionísio I em 401 a.C ., nos fornece a m elhor indicação do custo total de um circuito de m uralhas. Estes custos e a descrição de D iodoro deixam claro que as m uralhas representam consideravelm ente a m aior expressão física do público, da parti
cipação com unal, se pen sarm os em term os de dinheiro, de trabalho, ou organização.
Se por um lado p odem os entender a m ura lha com o um a obra militar, p or outro lado, po dem os perceber que nessas escolhas estratégicas essenciais para a construção das m uralhas, foi levado em conta tod o um com plexo de dados em que o econ ôm ico, o social, o político e o m ilitar aparecem estreitam ente im bricados.
Percebem os duran te nossas leituras que nes ta árida tem ática das m uralhas, o único autor que aborda a necessidade do ab an d on o de um a história exclusivam ente técnica e descritiva das fortificações é Yvon G arlan em seu artigo “ Forti fications et histoire grecque” em Problèmes de la
guerre en Grèce ancienne (Vernant 1968: 245-60).
Segun do este autor, há sem dúvida um a ligação entre as poleis e as suas m uralhas que ultrapassa o plano militar.
Tendo em m ente o espaço construído não apenas pela sua form a, m as tam bém pelo seu sentido ideológico, pretendem os desenvolver o estudo das nossas m uralhas con sid eran do seus aspectos sociais, políticos, econ ôm icos e cul turais e, não, nos restringindo apenas aos seus aspectos form ais. N ossa p rop osta é aban d on ar um a investigação puram ente técnica e descritiva das fortificações, pois as m uralhas não são m o num entos e docum en tos m udos, e apo n tar para um a dim ensão m ais social e política, tarefa que ain da n ão foi em preendida pelos pesquisadores nessa tem ática. A ssim , com o objeto m aterial car regado de conotações ideológicas e sim bólicas, acreditam os que o estudo das m uralhas gregas nos possibilitará estabelecer sua relação com o contexto social no qual elas estão inseridas.
A s teorias de autores com o Pearson, Ra- p oport, Lawrence e Low, M cG uire e Schiffer, Zarankin e A cuto, na m edida em que destacam a im portância do espaço construído n ão apenas pelo seu aspecto form al, m as tam bém pelo seu sentido ideológico, nos interessam no âm bito da interpretação que pretendem os desenvolver em nossa pesquisa.
D essa form a, a arquitetura, as fortificações, p or conseguinte, podem ser um m eio para o estudo do m u n d o social p or serem um elem en to constitutivo da paisagem hum an a. A través da análise de um a form a arquitetônica p odem os
Patrícia Boreggio do Valle Pontin
conhecer im portantes aspectos relacionados ao m odo de vida e visão de m undo das sociedades que a produziram . A ssim ao estudar um espaço construído é m uito im portante conhecer as ca racterísticas específicas da cultura que o produ ziu, com o seus ideais im plícitos, o jeito de agir socialm ente, a m aneira correta de comportar-se, pois esses fatores influenciam na configuração do espaço construído com o um todo.
P ro p o sta de trabalh o
Para dar início à nossa pesquisa com eçam os um a investigação e um levantam ento prelim inar das poleis gregas da Sicilia e do sul da Itália e de suas fortificações nos períodos arcaico e clássico. E studando inclusive suas plantas, selecionam os, a princípio, 10 sítios arqueológicos para integra rem n osso estudo. Esses sítios foram seleciona dos por se tratarem de algum as das principais
poleis gregas n o O cidente e por apresentarem
vestígios de m uralhas dos períodos que preten dem os tratar. São eles: A grigento, C am arin a, Locris, M etapon to, N axos, Poseidônia, Selinon- te, Siracusa, Tarento e Vélia. Em prim eiro lugar, a partir de toda inform ação que recolhem os pu blicada sobre n osso tem a, pretendem os realizar um inventário arqueológico que reúna e ordene essas inform ações e que sirva de fundam ento para n osso trabalho posterior.
Em segundo lugar, através do registro e tratam ento da inform ação gráfica e docum ental desse m aterial coletado, de m odo sistem ático, farem os o m apeam ento das m uralhas nas plan tas dos sítios on de se encontram localizadas, e, farem os com parações entre elas. Em terceiro lugar, com pletarem os tal inform ação trazendo a luz aquela docu m en tação inédita, percebendo as m udan ças ocorridas nas m uralhas nos séculos que tratam os.
N o sso objetivo é com por um banco de dad os e im agens sobre as m uralhas referente ao levantam ento dos sítios arqueológicos por nós visitados. Pretendem os desenvolver dois tem as básicos. O prim eiro tem a é entender a questão das fronteiras e a m uralha com o m aterialização delas. En ten der as oposições: bárbaro x hele no; civilizado x n ão civilizado; protegido por
energias divinas x desprotegido. A bord arem o s a questão das m uralhas no contexto da co lo nização grega (sécs. VIII-VII a.C .), na M agna G récia e Sicilia, on de as cidades gregas contras tam m uitas vezes com os territórios p ovoados por nativos, ch am ados “bárb aro s” para tentar responder a algum as questões:
1) N essas fun dações gregas, as necessidades defensivas em território estrangeiro tin ham um caráter imperativo?
2) A adoção do circuito de m uralhas foi no geral m uito precoce nos assen tam en tos colo niais, isso se deu em razão de um arredor m uito hostil?
3) A s m uralhas sim bolizavam a afirm ação das fundações gregas frente aos n ão gregos?
4) M uitos textos de autores antigos asso ciam as noções de cidade, de m uralhas e de civi lização. N esse sentido a existência de m uralhas é essencialm ente reveladora de um a natureza hum anizada, e sua ausência é sin ôn im o de barbárie?
5) A ausência de fortificações só pode conceber-se em um a sociedade prim itiva? Em que se fundava, na A ntiguidade, essa concepção da m uralha com o fato de civilização?
A o tentar responder essas questões procura rem os perceber as im plicações políticas das m u ralhas na história dessas poleis, e em que m edida as m uralhas são um sím bolo de soberan ia das m esm as. O s deuses são design ados para guardar as p ortas de m uitas dessas cidades de fun dação grega, e é freqüente que as divin dades sejam representadas diante dessas portas. A s cidades fazem dos m uros e de suas p ortas um a res sacra, o elem ento prim ário e sagrado d o agrupam en to urbano, com o afirm a M artin (1956: 189-190); os m uros sagrados estão cercando os tem plos dos deuses. Pretendem os perceber o profu n do valor religioso que se dedicava à m uralha a partir do estudo das cerim ônias realizadas para a determ inação dos lim ites exteriores d o território urbano.
6) O núcleo urbano constituía um a espécie de sacralidade que seria ím pio de ab an d on ar e, nesse caso, as m uralhas representariam por assim dizer o papel de circuito sagrado?
N esse contexto religioso, n ão p od em os deixar de m encionar os san tuários com o locais
de refúgio. U m a das m ais im portantes funções do s san tuários era prover asilo aos refugiados políticos.
7) A organização espacial dos san tuários prestava-se ao uso por refugiados e soldados acan tonados. Em que m edida cada tem plo é nele m esm o um a pequen a fortificação?
O segundo tem a diz respeito às m uralhas e a urbanização: criação de áreas de refúgio; relação das portas com o interior e com o ter ritório exterior n o qual estão inseridas. C o m o foi bem afirm ado p or Perring (1991: 273-274), todas as cidades incorporam alguns elem entos arquitetônicos que proporcionam o envolvi m ento e outros que o excluem. Praças, pórticos e avenidas largas podem dar as boas vindas a algum as esferas da vida social ao residente ou ao visitante. M as, m uralhas, restrições a en tradas em certas propriedades e a ausência de facilidades essenciais podem desencorajar ou até m esm o im pedir alguns tipos de uso. Em tal abordagem que visa um a estratégia de inclusão, a ordem social é encorajada pela identificação dos interesses da com un idade pelo espaço urbano que é supervision ado pelo uso público. A o contrário, é possível desenvolver estratégias de exclusão on de o espaço pode ser estruturado para excluir ou deter pessoas e atividades inde sejáveis e, portanto, reservá-lo para atividades m ais aceitáveis. Seja com o for, elas encontram um a expressão física e podem , portanto, ser
estudadas por m eio das evidências arqueológi cas disponíveis, n o n osso caso, as m uralhas. O p lan ejam en to das ruas, a adoção de fronteiras, de ruas ou de propriedades e a dem arcação clara entre o u rban o e o rural, tu d o isso em conjunto atesta a existência de controles rígidos d o uso do espaço urbano. A du pla cidade-território constitui o que p odem os cham ar de espaço cívico, no interior d o qual os cidad ãos podem tom ar consciência de su a identidade.
8) Por ser com um a todos os cidadãos por excelência, garan tin do em últim a instância a segurança de todos, a m uralha é a referência a partir da qual o cidadão tom a a m edida do espaço cívico?
9) A s m uralhas m aterializam em prim eiro lugar o lim ite entre a aglom eração u rbana e os arredores do cam po. Se a m uralha é um a linha de dem arcação, em tem pos de paz, ela é um a barreira estanque entre a ástry e a khóra?
10) C o m o as m uralhas interferem no vai-e- -vem perm anente entre as du as zonas?
11) D e que form a a m uralha exerce controle sobre as esferas econôm icas, políticas e religio sas, dad a a sua expressão física e sim bólica?
C o m o en cam in ham ento destas questões relativas às m uralhas, p en sam os trazer um a contribuição para o conhecim ento da natureza m esm a da m aterialidade da pólis no tocante à articulação de seus espaços e à integração das funções desem pen hadas p or seus habitantes.
PO N TIN , P.B.V. The ancient city and the walls: M agna Graecia and Sicily, a proposed interpretation. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplem ento 12: 141-145, 2011.
A bstract: T h is research aim s to prom ote a better u nderstan din g o f the sym bolic an d sacred function o f the walls o f the som e poleis o f the M agna G raecia and Sicily in the Archaic and C lassical periods.
K eyw ords: City W alls - Fortifications - M agna G raecia - Sicily - A ncient Greece.
Patrícia Boreggio do Valle Pontin
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