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Homossexualidade e envelhecimento: as trajetórias da vida de homens gays de camadas médias no Rio de janeiro

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Academic year: 2021

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Homossexualidade e envelhecimento: as trajetórias da vida de homens gays de camadas médias no Rio de janeiro

Murilo Peixoto da Mota1 Resumo: Este artigo analisa as dimensões socioculturais sobre a homossexualidade e o envelhecimento a partir da trajetória de vida de homens gays, com mais de sessenta anos, provenientes de camadas médias e moradores da cidade do Rio de Janeiro. Diante do estigma de ser gay e velho, examina-se como são as experiências relacionais e que estilos de vida são construídos e experimentados por estes homens. São destacadas as lembranças da construção da homossexualidade no curso da vida e as experiências sexuais no âmbito de sua motivação, roteiro e

os significados da amizade.

Palavras-chave: Homossexualidade; Envelhecimento; Masculinidade

Introdução

Este artigo é fruto de uma pesquisa2 que analisa as dimensões socioculturais sobre a homossexualidade e o envelhecimento a partir da trajetória de vida de homens gays com mais de sessenta anos, provenientes de camadas médias e moradores da cidade do Rio de Janeiro. As experiências sociais e sexuais são analisadas no âmbito de suas significações que formam a trama do gay que envelhece. Diante deste universo, cabe indagar: esses homens gozam de novas possibilidades no âmbito do envelhecimento e da experiência homossexual no mundo contemporâneo? Que vivências e possibilidades se apresentam e são construídas como estilo de vida do gay com mais de sessenta anos e de camadas médias cariocas?

Cabe contextualizar que a análise sobre os homens, enquanto categoria socialmente construída, possibilita pensar o poder que exerce em determinado espaço social sobre o outro masculino e, o feminino, que aparece como algo que simbolicamente é desvalorizado (HEILBORN, 2004). Por sua vez, as categorias expressas para classificar a prática erótica e sexual entre indivíduos do mesmo sexo, aportadas pelas palavras gay e homossexual, possuem características

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PhD em Serviço social pela Escola de Serviço Social da UFRJ, Sociólogo do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely de Souza Almeida/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.

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Esta pesquisa é resultado da tese de doutorado intitulada Homossexualidade Masculina e a Experiência de Envelhecer, defendida em out. de 2011 para o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ.

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linguísticas e perspectivas políticas e culturais distintas. A palavra homossexual, apesar de sua carga essencialista, será utilizada para determinar o universo classificatório do indivíduo. Assim, como categoria, considera-se que o termo homossexual tem sua importância como classificação e distinção, pois define a quem nos referimos dando-lhe sentido a partir da prática sexual. Já a denominação gay será empregada para realçar identidade, sensibilidade, gosto e estilo de vida associados às relações sexuais e afetivas entre homens (COSTA, 1992; PARKER, 2002).

O indivíduo gay que envelhece geralmente possui vínculos frágeis dentro da família de origem, levando-o a fazer com que a amizade ganhe um valor fundamental. Para estes sujeitos, o sentido da amizade expressa verdadeiro vínculo fraterno de união, solidificado ao longo de décadas. Deste modo, os grupos de encontro podem caracterizar-se como importante espaço de sociabilidade. Será que estes homens, que na juventude circularam em redes privadas e em círculos sociais fechados em razão da clandestinidade da experiência homossexual, hoje se encontram confinados pela falta de acolhimento e convivência que possibilite nutri-lo de entretenimento e autoestima por estarem velhos?

A experiência relacional na velhice demonstra a necessidade de se prover o envelhecimento com recursos materiais que mantenham longe a sensação de um futuro sombrio. Mas o que dizer quando esta dimensão aponta para um estilo de vida considerado socialmente em desvio pelo fato de o indivíduo ser gay? Implica pensar também em ampliar o debate sobre a cultura da juventude que venha colocar o gay velho a ser mais bem aceito no espaço social. Acrescente-se a isto a necessidade de motivações para novos projetos sociais, pois a ameaça de abandono é real para qualquer velho, homem ou mulher, seja heterossexual ou homossexual, a não ser que esteja materialmente provido de recursos. Neste sentido, Luis Mott (2003), em uma passagem autobiográfica, assinala que vê a velhice como algo distante, porque se acha jovem de espírito, além disso, construiu condições materiais para prover suas necessidades na velhice com a tranquilidade assegurada por uma aposentadoria que garante recursos e portanto, “um futuro, quando menos, num hotel de várias estrelas e, não numa pensãozinha de beira de estrada” (MOTT, 2003, p.52).

Para o início da pesquisa, tomo como ponto de partida os espaços mais comuns de sociabilidade dos pesquisados, como boates, bares e clubes com interações homossexuais. A seleção dos entrevistados se deu a partir de indicações que possibilitaram inserir-me em suas redes de amigos. Isto permitiu manter sob controle a diversidade na escolha desses entrevistados e o ponto de iniciativa para chegar a eles. Não foi um objetivo mapear todos os espaços de

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sociabilidade reconhecidos e frequentados por gays velhos com intuito de esgotar as reflexões sobre a territorialidade de manifestação sociossexual desses sujeitos na cidade do Rio de Janeiro. O que se focaliza são os locais apontados pelos entrevistados como sendo manifestação de entretenimento tomando como questão as escolhas que estabelecem no espaço social para manifestarem seus lazeres no âmbito da experiência da sociossexual.

Neste artigo, alinhavo dois momentos que se entrelaçam a fim de esboçar alguns aspectos sobre homossexualidade e envelhecimento tratados pela pesquisa. Primeiro, analiso a construção que narram as lembranças da experiência homossexual no curso da vida; segundo, estabeleço algumas reflexões sobre a experiência sexual, suas variáveis relacionais e os encontros afetivos; e, por último, estabeleço algumas considerações finais.

- As lembranças sobre a construção da homossexualidade no curso da vida

Os entrevistados revelam o impacto do processo de liberação no início dos anos 19703, embora, o Brasil vivesse o auge da ditadura militar. O enfrentamento dessa situação leva a adaptações relacionais em meio ao aparato de controle e repressão política, exigindo estratégias de convivência no âmbito da vida pública e privada em diversos contextos da sociedade. É um fato, a relação homossexual inclina-se sobre perdas sociais. Assim, a vida amorosa com mulheres passou a ser uma estratégia para encobrir ou amenizar o sentimento de vergonha sofrido pelo desejo sexual direcionado a homens. Essa dimensão tem seus efeitos, como assinalado por Eduardo e Marcelo.

Tive uma mulher que ficou muito tempo na minha vida [...] e foi ela que ficou tapando o sol com a peneira. [...] Então namorava mulheres e tinha relacionamento homossexual ao mesmo tempo. Era clandestino [como homossexual]. (Eduardo, 60 anos)

Eu me casei com uma colega da faculdade de Letras, colega de turma, só que eu já tinha tido experiências homossexuais […]. (Marcelo, 75 anos)

3 Refiro-me ao movimento hippie, à insurgência de lideranças gays, principalmente em São Francisco/EUA, que

invocam o ambiente até então relegado do “gueto” como espaço legítimo de manifestação política e homoerótica. Às revoltas gays, em 1969, desencadeadas por uma batida policial no bar Stonewall, na cidade de Nova York, tornam-se um símbolo de luta. Stonewall passa a ser considerado o nascimento do movimento contemporâneo do Orgulho Gay. Além disso, o impacto da descoberta da pílula anticoncepcional, uma década antes, um divisor de águas nas relações conjugais com o maior controle sobre a gestação e, consequentemente, maior abertura para as práticas sexuais. Soma-se a tudo isso o surgimento, nessa década, dos encontros gays, das manifestações culturais, das expressões artísticas e da imprensa alternativa, que revelavam conteúdo reflexivo sobre a homossexualidade. Foi uma década marcada pela liberação dos costumes e pelo reconhecimento de estilos de vida homossexual, como uma prefiguração do avanço nos comportamentos e nas relações humanas. Assim, os anos 1970 marcam todo um conjunto de experiências nas quais o homossexual prova sua capacidade e seu poder de se fazer respeitar, explicitando uma nova arte de viver (POLLAK, 1990).

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Tratando-se de uma geração que se relacionou com o mesmo sexo em um contexto de autoritarismo político e de intolerância, no qual a homossexualidade se associava à condição de crime e à doença, os entrevistados viveram as relações heterossexuais para atender às expectativas sociais e familiares construídas sobre a ideia de masculinidade fundada em estereótipos de gênero masculino. Assim, a carreira homossexual se apresenta permeada por realidades contraditórias, através das quais se aprende a não se revelar, e, aos poucos, através da sexualidade, a entender “quem se é”.

Na minha rua, naquela época [da adolescência], era quase proibido ser homossexual. Então, a pessoa sabia que a outra era homossexual e já via com outros olhos, já achava que era um marginal. Eu acho que eles tinham mais medo de um homossexual do que de um bandido. Era como eles falavam: homossexualidade é uma doença que pode contagiar alguém da minha família. (Diogo, 65 anos)

O constrangimento com a própria homossexualidade, muitas vezes, suscita as dúvidas em relação a si mesmo e a obrigação de justificar a diferença. A consequência é o enfrentamento das muitas crises existenciais que aparecem na gestão da vida individual, porém não sem gerar situações paradoxais entre as quais o cumprimento social do casamento heterossexual se verifica como uma realidade para os homens desta geração.

Tive uma namorada em São Paulo, uma coisa muito passageira e não era uma coisa verdadeira. Com ela, descobri que a relação heterossexual não era a minha praia. Mas isso eu sempre achei desde criança, pois sentia atração por meninos. (Roberto, 78 anos)

A violência simbólica contra a homossexualidade ancora-se, muitas vezes, nessa dimensão de poder do heterossexual sobre o homossexual. Neste sentido, o indivíduo trava uma luta contra si mesmo a fim de se situar em um espaço social preconceituoso, que gera sentimentos de vergonha, sensação de permissividade, sujeira e transgressão.

Eu comecei tarde [a ter relações homossexuais], porque eu era muito reprimido. A primeira relação [com homem] foi com uns vinte e poucos anos, vinte e três anos. Foi com um ator de teatro, falecido hoje em dia. Um ator até conhecido na época. Eu o conheci num ensaio em que eu estava presente, aí ele se aproximou de mim e ficamos amigos, ele era uma pessoa muito inteligente, e fui à casa dele. Essa relação foi muito chocante para mim, porque eu voltei para casa me achando sujo, fui logo tomar banho, e fiquei horas no banho. Nunca mais quis ver a pessoa na minha vida, engraçado isso!! (Eduardo, 60 anos)

A percepção estereotipada de que a homossexualidade é divulgada no espaço público a partir do estereótipo de feminilidade, leva muitos indivíduos a não se identificarem e a recusarem a se perceberem homossexuais, o que acaba por produzir maior isolamento e a tentativa de negar o desejo homossexual. Nesse sentido, até as experiências do casamento com mulheres aparecem como uma possibilidade de viver essa vida dupla de maneira consciente. O que se busca é

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dissociar-se dos outros homosdissociar-sexuais, ou de tipos que agregam a ideia de dissociar-ser gay à feminilidade e à radical transgressão das normas de gênero. Há comportamentos com os quais os atores não se identificam, mas procuram se situar no âmbito das diferenças, nem que para isso seja preciso recorrer à psicoterapia, como acentuado nas experiências de Luís e Antônio.

No sentido comparativo [entre masculino e feminino], até, por exemplo, eu entender que o meu lado feminino é o meu lado mais canalizado, não o lado de ser mulher e estético, mas o da compreensão, do abordar, da responsabilidade e é muito forte, eu gosto desse meu lado feminino. Então, demorei a entender isso, foi questão para a análise [psicoterapia]. (Antônio, 65 anos)

Segundo Duarte (2005), a ação psicoterapêutica entre os indivíduos de camadas médias delineia um discurso racionalizado mediante as crises subjetivas da vida. Para esse sujeito psicologizado a esfera privada é um espaço de existência importante na alta modernidade, espaço em que se pode valorizar e questionar as relações amorosas, familiares e de amizade em contraponto às representações vividas no espaço público, onde se desempenham papéis sociais e profissionais, mas de maneira individualizada. As transgressões e os medos relativos ao exercício da sexualidade em prol de seu prazer e fantasias são apontados como foco para se pensar a construção da subjetividade. O recurso da psicoterapia é acionado pelos atores para dar conta das contradições advindas desse processo em crise, acionado pela homossexualidade e sua representação de um “eu” em desvio.

É nesta conjuntura que as narrativas explicitam a tentativa de enfrentar a construção de um desejo sexual aprisionado pelo preconceito. Esta questão merece atenção por evidenciar o quanto que tais indivíduos constroem sua consciência sobre as formas de dominação e opressão ligadas a uma sexualidade tomada como estigma. Os entrevistados exprimem a desvalorização de suas próprias imagens de homem, indicando uma luta por vencer sua baixa autoestima e o fracasso performático induzido por se perceber desqualificado no espaço social. Neste sentido, as intervenções terapêuticas parecem visar relançar este sujeito à ação e à nova performance realocando-o dentro de sua autonomia para a construção de seu projeto de felicidade e ideal de vida (FILHO, 2010).

A elaboração da identidade gay a partir de um atributo que é desaprovado, ou seja, a associação com o aspecto feminino, passa a exigir respostas para as maneiras como se posicionam e são aceitos em seu meio social. A recusa em se identificar com a representação gay/mulher/feminino leva, inclusive, à vida secreta, que sinaliza certa proteção do verdadeiro desejo sexual. Segundo Fernando,

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muitos acham que assumir é sair pela rua gritando, “dando pinta”, miando. Eu acho que não! A homossexualidade, o sexo, não tem nada com o caráter feminino, mas com a postura de cada um. E você pode ser conforme quiser e pagar o preço [...] Nós temos uma opção sexual e, no entanto, temos que nos respeitar diante a sociedade. Não é você sair por aí gritando, rebolando, dando pulinhos, não! (Fernando, 65 anos)

A necessidade de aprender com quem se pode relacionar sexualmente, e em que espaços é permitido deixar transparecer afeição e desejo por outro homem é um dos traços comuns nas trajetórias narradas. Na análise de Eribon (2008), o homossexual constrói certa conduta adaptada por ser percebido socialmente pela marca da diferença, o que, muitas vezes, o obriga a confrontar-se com o seu próprio desejo de manter suas relações. Segundo Goffman (1982), trata-se de um aspecto daquele que se sente, de alguma forma, com um estigma e reage buscando estratégias para se posicionar no espaço social aliando-se a outros que sofrem da mesma marca. Assim, a busca dos meios possíveis para fugir da violência faz com que muitos indivíduos com desejos homossexuais migrem para outras cidades e meios urbanos fora do seio da família. O deslocamento espacial e geográfico tem amplo significado simbólico e prático, pois permanecer no lugar de origem é estar sujeito aos controles morais heterossexistas. Francisco relatou que quando morava em Volta Redonda

Tinha medo de frequentar a noite lá e as pessoas me verem como homossexual. Só comecei a frequentar lugares gays aqui no Rio, em 1970. Eu vinha aqui nos finais de semana, foi nessa época que eu me assumi. (Francisco, 72 anos).

Sair para se aventurar em outro território permitiu a Francisco alcançar a almejada individualidade, o anonimato e a liberdade longe dos controles disciplinadores da sexualidade manifesta dentro da norma heterossexual. Por outro lado, a mudança requer a construção de novas redes de sociabilidade, mais identitárias, que possibilitem a interação com outros sujeitos e o alargamento dessas identificações. Em outras palavras, ir para a cidade grande é um caminho que possibilita a construção de uma subjetividade junto a outros com os quais se possa relacionar em torno de valores e gostos similares. Esse dado, acentuado por Pollak (1990), demonstra que os grandes centros urbanos, com sua diversidade e modos de vida, asseguram o anonimato, a individualidade, e oferecem autonomia para que sejam experimentados novos estilos de vida. O relato de José ilustra as possibilidades advindas da vida nas grandes metrópoles.

Fiquei quase um ano na França, aí, quando eu voltei para o Brasil, passei a andar em ambiente gay. Saí fora dos meus amigos de infância, adolescência e passei a frequentar pessoas, bares e boate gays, realmente até então isso não era tão confortável, depois até conheci um cara e tive uma relação. (José, 63 anos)

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Os entrevistados afirmam o quanto esse deslocamento pode significar a busca por uma homossociabilidade possível e a própria aceitação do desejo homossexual sem ter que dissimulá-lo permanentemente (ERIBON, 2008). Portanto, não se trata de uma mera emigração ou percurso geográfico em busca de parceiros sexuais, mas a tentativa de afirmar uma nova existência e afirmação da identidade sociossexual.

Os relatos sinalizam o quanto a experiência homossexual passa a ganhar sentido quando compartilhada com outros no mesmo cenário identitário e estilo de vida gay. Mas a rede de amizades que se estabelece através da experiência homossexual não se refere ao sentido de grupo no qual se está predestinado a entrar; o que há são maiores possibilidades de aprendizagem individual e coletiva sobre a homossexualidade até que o indivíduo venha a identificar-se como gay e, nesse processo, a identidade aos poucos vai se construindo como fonte criadora de estilo de vida (FOUCAULT, 1981).

- A experiência sexual: aspectos relacionais e as motivações a cada encontro

A socialização adquirida no curso da vida, considerando-se a construção de gostos, condutas e práticas sexuais, possibilita adaptações, manutenção de novas relações e aprendizagens na carreira do gay idoso. Isso implica perceber que as trajetórias influenciam, como fontes de conhecimento e motivação, as relações sociossexuais, como acentuado na fala de Marcelo (75 anos).

Mas eu costumo dizer para os meus amigos que vai ser muito difícil eu ter outro relacionamento, mesmo com relação à amizade. Eu não estou fechado para novas amizades de relacionamento, mas tem que ser alguém que valha a pena. E o que vale a pena é ter o que trocar. Uma pessoa que não tem nada para trocar, a não ser sexo, não vale. (Marcelo, 75 anos)

A motivação é uma das questões apontadas para a manutenção da prática sexual e para o sentido dado a novas experiências relacionais. Ou seja, a motivação possibilita a elaboração de roteiros e preferências, que são como planos de ação, e abarca elementos simbólicos e não verbais numa sequência de “condutas organizadas e delimitadas no tempo, por meio das quais as pessoas contemplam o comportamento futuro e verificam a qualidade do comportamento em andamento” (GAGNON, 2006, p.114). Os entrevistados falam do exercício da sexualidade considerando limitações impostas pela velhice, sem que isso signifique negar novas possibilidades para a experiência sexual; o que os leva a permanente negociação sobre aquilo que se considera valer a pena investir em suas relações. O desejo por homens mais jovens aparece por simbolizar o que se

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perdeu com o tempo: o tônus muscular, a vitalidade e a sexualidade espontânea. Contudo, as experiências pouco satisfatórias sugerem mudanças no estilo de vida aspecto destacado por Marcelo e Ricardo.

Eu já cansei de trazer pessoas aqui em casa, pois, às vezes, a pessoa [homem] tirava a roupa e eu não sentia tesão. Não queria ser indelicado, deixei a pessoa dormir aqui, nem tocava. Isso aconteceu com algumas pessoas, não foram uma ou duas, foram várias. Eu encaro naturalmente. Não tive tesão, não vou me importar. Porque que eu vou me importar? [...] E, no momento, não tenho namorado, e acho que não quero mais. (Marcelo, 75 anos)

Hoje, eu não fujo da regra, tenho atração por dois tipos: os mais jovens, porque têm o que eu perdi e era muito bonito, pelo menos era isso o que as pessoas diziam, que eu era muito bonito e eu sabia disso. Então, eu gostava de contatos de mais velhos (...), porque eu acho que a sexualidade tem que ser completa, então tinha que ser com alguém da minha idade, tinha que ter o mesmo nível de idade, de experiência, tinha que ser uma coisa mais completa. (Ricardo, 60 anos)

Evidencia-se que há flexibilidade diante da vida e, neste contexto, novos roteiros vão sendo reinventados para que atendam às mudanças individuais e sociais diante das limitações relacionadas à saúde, à ereção e à falta de atratividade estética do corpo maduro. Ser ativo ou passivo, preferir certos perfis de homens como velho, jovem, alto, baixo, gordo ou magro vai se transformando e perdendo importância diante do que se aprendeu a valorizar no curso da vida e no contexto da velhice. Os depoimentos abaixo são emblemáticos neste sentido.

Olha, no momento eu estou com problemas de ereção, não podia ser diferente, “né” [faz referência a idade]? Mas sempre gostei mais dos caras mais magros, de preferência não muito altos e com jeito de homem. Eu podia ter um relacionamento em que eu fosse totalmente passivo ou totalmente ativo, mas que não fosse com alguém afeminado, as coisas mudam na vida, eu não estou muito exigente. (Marcelo, 75 anos)

Hoje em dia, eu acho que fiquei mais seletivo em certas coisas sexuais, até no próprio relacionamento, porque quando você é jovem você não quer saber, você quer aproveitar a vida e depois a vida traz uma experiência em que você fica mais seletivo, você vê as coisas com mais calma, então, eu acho que a experiência de vida vai te levando por um caminho em que você é feliz, mas também é mais tranquilo, sabe? É bom. Quando você tem quarenta é uma coisa, quando você tem cinquenta é outra, quando você tem sessenta, oitenta é outra. A própria vida te leva para um caminho. (Marcio, 65 anos)

As experiências sociossexuais na velhice trazem este sentimento da amizade como uma referência positiva no âmbito do que se valoriza entre dois homens. O contexto social no qual se estabelecem as relações gays caracteriza-se por uma tendência ao desprendimento amoroso e à individualização nesta fase da vida. O indivíduo depara-se com uma gama de possibilidades, cujas escolhas também abrem para um novo estilo, no qual os vínculos se tornam frágeis e apontam na direção de uma solidão ameaçadora redimensionada pela velhice. A valorização dos encontros nutridos por emoções duradouras, nos quais a amizade se constitui como uma alternativa às tradicionais formas de relação mais regular passou a ser uma referência para os entrevistados

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O sentido dado ao envelhecimento aos poucos possibilita adaptações e ganha valores mais positivos no espaço social, a ponto de amenizar certas rivalidades entre jovens e velhos. Tal aspecto também tem proporcionado redefinições sobre o significado das idades, que demonstra mais autonomia e igualdade entre os indivíduos.

- Considerações finais

Como sugerem esses relatos, é preciso rever a ideia estereotipada de que não existe vida sexual entre os gays idosos. Mesmo que afirme estar fora desse mercado em que se aperfeiçoa o sexo pelo sexo e a supervalorização do rendimento sexual acionada pelo “mercado gay”, ou seja, para estes atores, a procura por experiências sexuais também passa a ser a possibilidade para a manutenção de suas sociabilidades. Todavia, em meio às limitações e fragilidade do corpo na velhice, os encontros direcionados ao sexo casual como uma questão importante para a vida se coadunam com os aspectos simbólicos do que representa a sexualidade para a cultura masculina, sempre disposta às oportunidades sexuais.

As narrativas destes homens expressam o quanto a vida sexual abarca todo um repertório ao alcance dos atributos econômicos disponíveis. Assim, pagar para ter uma prática sexual satisfatória, manter relações afetivas que se sustentam pelas trocas de favores, são aspectos aqui entendidos como fenômenos sociais e demonstram as diferentes maneiras de se experimentar o prazer, que, segundo contam, não acabou com a chegada dos sessenta anos. Neste contexto, a categoria de velho propõe novas dimensões que buscam relativizar o crivo de decadência ou da ausência de projetos, pois esta concepção de velhice não caracteriza os entrevistados. Nesta pesquisa, o que se expressou como velhice e o envelhecer de indivíduos gays explicita tanto os valores no espaço social quanto os conflitos existenciais, uma vez que possui uma carga de sentido simbólico que se quer negar. A posição crítica em relação à ordem biológica da degeneração do corpo, frequentemente acionada para justificar ideologicamente o poder e a dominação do ideal de juventude, leva a uma análise das relações sobre o lugar dos idosos em nossa sociedade.

Os sujeitos pesquisados demonstraram o quanto ainda lutam para exercer a sexualidade, reinventá-la, sem que suas performances públicas sejam alvo de chacota, injúria, objeto de riso frente à estética do corpo, cuja ideologia invisibiliza o velho e nega a velhice. Neste contexto, afirma Márcio (65 anos): “fui flor do campo, agora que sou tiririca do brejo, vão ficar rindo para mim, porque agora que já não estou mais com os meus vinte aninhos, olham para minha cara e ri”.

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como afirma um dos entrevistados, a despeito das limitações que o envelhecimento físico impõe ao exercício sexual. Adriano (68 anos) chega a indagar: “que horas começa a morte de um homem? Quando ele começa a ter falhas nas ereções, porque a identidade dele é essa”. Apreende-se deste reducionismo o quanto o envelhecimento remete a novas situações corporais nas quais os entrevistados tanto apostam a fim de manterem seus desejos e práticas homossexuais. De todo modo, a busca por afeto e a valorização da amizade entram neste jogo com maior evidência e, mesmo diante da fragilidade da saúde e da exigência de novas performances corporais, o que eles informam é que a sexualidade ainda se manifesta e revela reinvenções relacionais.

Os entrevistados, de modo geral, subverteram certas barreiras simbólicas às quais foram submetidos. Não é por acaso que parcela dessa geração passou pelo crivo do casamento, saiu de casa como se buscasse a “carta de alforria”4; buscou psicoterapia como uma maneira de automonitoração reflexiva da experiência na tentativa de organizar a vida social dicotomizada entre o desejo homossexual e os valores morais da norma heterocêntrica.

Alguns atores desta pesquisa ostentam não gostar do que é velho, percebem-se como “coroas” e estão diante da juventude como uma máscara emprestada. Para esses, a velhice é um disfarce e apresenta-se como distante, encontram-se independentes e com autoestima para se situar em meio ao circuito gay, que, mesmo assim, consideram segregadores com relação à aparência de idoso. Nesse contexto, a internet é também um instrumento para estabelecer novas relações que possibilitam escamotear a idade avançada e encontrar novos parceiros sem ter que se expor. Assim, não informar a idade verdadeira no anúncio de seu perfil possibilita novas aproximações a partir da evidência de que ainda tem proximidade com a juventude. É o que enfatiza Eduardo (60 anos) ao afirmar que não coloca a verdadeira idade em sites de relacionamento porque dificulta o sucesso junto a novos pretendentes e ressalta: “minha idade é muita coisa, coloco 50 anos” (Eduardo, 60 anos).

Tal dimensão conduz para novos debates, nos quais os entrevistados explicitam intensas negociações entre o sexual e o sentimental, o desejo e a prática para o exercício da sexualidade e homossociabilidade. Esta análise não implica perceber estas dimensões como separadas entre si, mas, apesar de integradas, possuem certa autonomia no âmbito da experiência destes homens por confrontá-los com os estigmas de ser gay e velho. Essas dimensões apresentam-se como importantes questões para se pensar o ser humano em geral na alta modernidade. Esses sujeitos

4 Metáfora utilizada pelo entrevistado Antônio ao longo de sua entrevista para designar sua sensação de

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expressam seus interesses afetivos no âmbito da ideologia do amor romântico, mas acabam por terem dificuldades em efetivar novos encontros pela aparência da idade avançada.

Referência Bibliográficas

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Abstract: This article analyze the sociocultural dimensions over homosexuality and aging starting from the life course of gay men, older than sixty years old, from medium class inhabitants of Rio de Janeiro. Upon the stigma of being gay and old, it is analyzed how the relational experiences are and which lifestyles are constructed and tried by those men. The memories of the construction of homosexuality throughout life and the sexual experiences in their motivation, script and meanings of friendship are emphasized.

Referências

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