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Marcelo Mello Valença. A Questão da Segurança nas Novas Operações de Paz da ONU: Os casos de Serra Leoa e da Bósnia-Herzegovina

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Marcelo Mello Valença

A Questão da Segurança nas

Novas Operações de Paz da ONU:

Os casos de Serra Leoa e da Bósnia-Herzegovina

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio.

Orientador: Nizar Messari

Rio de Janeiro Abril de 2006

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Marcelo Mello Valença

A Questão da Segurança nas

Novas Operações de Paz da ONU:

os casos de Serra Leoa e da Bósnia-Herzegovina

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Nizar Messari

Orientador PUC-Rio

Nizar Messari

PUC-Rio

João Pontes Nogueira

PUC-Rio

Eduardo José Viola

UnB

João Franklin Abelardo Pontes Nogueira

Coordenador Setorial do Centro de Ciências Sociais - PUC-Rio Rio de Janeiro, 10 de abril de 2006

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Marcelo Mello Valença

Graduou-se em Direito na PUC-Rio em 2003. Pesquisador do Grupo de Análise de Prevenção de Conflitos (GAPcon). Tem interesse na área de Segurança Internacional, Resolução de Conflitos, Direito Internacional, Direitos Humanos e por questões relativas aos Bálcãs e África.

Ficha Catalográfica Valença, Marcelo Mello

A questão da segurança nas novas operações de paz da ONU: os casos de Serra Leoa e da Bósnia-Herzegovina / Marcelo Mello Valença; orientador: Nizar Messari. – Rio de Janeiro: PUC-Rio, Instituto de Relações Internacionais, 2006.

185 f.: il.; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais.

Inclui bibliografia.

1. Relações Internacionais - Teses. 2. Segurança internacional. 3. Resolução de conflitos. 4. Operações de paz. 5. ONU. 6. Bósnia-Herzegovina. 7. Serra Leoa. 8. Dilema de segurança interna. 9. Violência estrutural. I. Messari, Nizar. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Instituto de Relações Internacionais. III. Título.

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Agradecimentos

À minha família, pelo carinho incondicional e em todos os momentos. Sem este apoio, este trabalho não teria sido possível.

À Tatiana, pelo amor, paciência e compreensão frente todas as dificuldades enfrentadas durante este período. Eu te amo.

Ao meu orientador Professor Nizar Messari, pelos conselhos e, especialmente, pela sua amizade.

Aos Professores João Pontes Nogueira e Eduardo Viola, por comporem a banca de Mestrado e pelo debate proporcionado, enriquecendo os resultados do trabalho com suas críticas e sugestões.

Aos amigos, em especial ao Gustavo Seignemartin de Carvalho, Vagner Camilo Alves, Ivi Vasconcelos Elias, Paulo Gontijo, Márcio Neves e Roque Araújo Júnior. Espero ter correspondido às expectativas.

À toda equipe do IRI, funcionários e professores, em especial à Professora Letícia Pinheiro, à Maria Helena Marques e à Luciana Varanda, pela amizade e apoio durante o curso e após a sua conclusão.

Aos meus colegas de turma pelo companheirismo e pela troca de experiências, enriquecendo ainda mais o aprendizado nestes dois anos.

Ao CNPq, à Capes e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos para a conclusão deste trabalho.

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Resumo

Valença, Marcelo Mello; Messari, Nizar. A Questão da Segurança nas

Novas Operações de Paz da ONU: os casos de Serra Leoa e da

Bósnia-Herzegovina. Rio de Janeiro, 2006. 185p. Dissertação de Mestrado – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Tendo como referencial teórico o instrumental do campo da resolução de conflitos, esta dissertação aborda as implicações da segurança nas operações de

peacekeeping multidimensional. Através dos elementos verificadores da

resolução do dilema de segurança interno, discute-se a importância da segurança para o sucesso do peacekeeping no pós-Guerra Fria e para a reconstrução das estruturas estatais. Para isso, foram estudadas as missões na Bósnia-Herzegovina e em Serra Leoa, ambas consideradas bem sucedidas pela ONU e cujos mandatos previam ações no campo de segurança e da reconstrução sócio-econômica do Estado. Ficou claro que o sucesso do peacekeeping multidimensional não reside apenas na garantia da segurança, vista como a ausência de ameaça militarizada: em função de sua própria natureza, essas operações dependem também da abordagem de questões não-materiais. Contudo, esses aspectos não são comumente estudados pelos teóricos do campo. Perceber a importância de suprimir a violência estrutural e preservar a diversidade cultural é essencial para o novo peacekeeping. Não fazê-lo é ignorar as causas que deram origem ao conflito e correr o risco de vê-lo acontecer novamente. Faz-se crucial, também, a vontade política da comunidade internacional de agir, sem a qual a cooperação entre as partes dificilmente acontecerá. Assim, percebe-se que o objetivo das operações de paz no pós-Guerra Fria não se limitaria a encerrar a violência direta, mas buscaria desenvolver cada missão dentro de suas particularidades, permitindo resolver os conflitos a partir de suas causas e impedindo que a guerra ocorra novamente.

Palavras-chaves:

Segurança internacional – Resolução de conflitos – Operações de paz – ONU – Bósnia-Herzegovina – Serra Leoa – Dilema de segurança interno –

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Abstract

Valença, Marcelo Mello; Messari, Nizar (Advisor). Security Issues in

Recent UN Peace Operations: the Experiences of Sierra Leone and Bosnia and

Herzegovina. Rio de Janeiro, 2006. 185p. MSc. Dissertation – Instituto de Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Using as reference the theoretical field of conflict resolution, this dissertation discusses the effects of security in wide peacekeeping operations. Based on an analysis of the elements of the internal security dilemma, this dissertation discusses the importance of consolidating the security in the post-Cold War peace operations held by the UN and the state-building process. The empirical studies reported in this work were both considered successful by the UN, having fulfilled their mandates with activities and programs developed in the security and socio-economic reconstruction arenas. The view expressed in this dissertation is that security, understood as the absence of militarized threats, is not enough to guarantee the completion of the mission: as wide peacekeeping deals with threats both in the military and the non-military arenas, it demands both material and non-material approaches, although the latter is not commonly studied by conflict-resolution researchers. Tackling structural violence and preserving cultural diversity has become essential for the success of wide peacekeeping. Failing to do this is to ignore the causes of the conflict, at the risk of seeing violence return. It is also necessary to count with the support of the international community, which is essential to the cooperation between parties. The dissertation concludes that wide peacekeeping is not aimed only at the resolution of the conflict, but rather intends to deal with its causes, treating each mission as unique in its particularities and limitations and preventing the conflict return.

Keywords:

International security – Conflict resolution – Peace operations – United Nations – Bosnia and Herzegovina – Sierra Leone – Internal security dilemma – Peacekeeping – Structural violence – New wars

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Sumário

1 Introdução 15

1.1. Considerações Iniciais 15

1.2. A Evolução do Campo Teórico da Resolução de Conflitos 19

1.3. Objetivos e Estrutura do Trabalho 22

1.4. Questões Metodológicas 24

2 Peacekeeping e Segurança 26

2.1. Introdução 26

2.2. As Guerras Tradicionais e as Novas Guerras 27

2.3. As Novas Guerras 31

2.4. A Manutenção da Paz ou Peacekeeping 35

2.4.1. O Peacekeeping durante a Guerra Fria 38

2.4.2. Peacekeeping multidimensional 41 2.4.3. A Questão da Segurança 47 2.5. Conclusão 59 3 Bósnia-Herzegovina 63 3.1. Introdução 63 3.2. A História do Conflito 64

3.3. O Dilema de Segurança Interno na Bósnia-Herzegovina 67

3.3.1. A Reforma Policial e das Estruturas Judiciárias 69

3.3.2. Desarmamento, Desmilitarização e Reintegração 86

3.3.3. Retorno de Refugiados e Deslocados Internamente 93

(8)

4 Serra Leoa 109

4.1. Introdução 109

4.2. A História do Conflito 110

4.3. O Dilema de Segurança Interno em Serra Leoa 115

4.3.1. Reforma da Polícia e da Justiça 118

4.3.2. Desarmamento, Desmobilização e Reintegração 130

4.3.3. Refugiados e Deslocados Internamente 143

4.4. Considerações Finais 148

Conclusão 152

(9)

Lista de tabelas

Tabela 1: IPTF – Cursos informativos para a polícia 73

Tabela 2: IPTF - Curso sobre dignidade humana 74

Tabela 3: IPTF - Curso de transição 74

Tabela 4: IPTF – Licenciamento Policial (situação ao final da missão) 75

Tabela 5: Presença de minorias étnicas na polícia 77

Tabela 6: Diligências da IPTF/Sfor em busca de armas ilegais 90

Tabela 7: Unmac - Pessoal Disponível 97

Tabela 8: Atuação da CDPD 100

Tabela 9: Refugiados e DI's na BiH no pós-guerra 103

Tabela 10: IPTF – Armas Recolhidas (2000 - 2003) 135

Tabela 11: Unamsil – Indivíduos registrados nos programas de desmobilização

(1999 - 2001) 139

Tabela 12: Unamsil – Inscritos nos programas de reintegração (2000 - 2004) 142

Tabela 13: Serra Leoa – Repatriados (principais países de asilo) 144

Tabela 14: Unamsil – População alvo do Acnur 147

(10)

Lista de quadros

Quadro 1 – Presença da IPTF 71

(Fonte: Relatórios do Secretário-Geral para o CS)

Quadro 2 – Presença da Unamsil (1999 – 2005) 121

(Fonte: Relatório do Secretário-Geral)

Quadro 3 – Presença da Uncivpol (1999 – 2005) 122

(Fonte: Relatórios do Secretário-Geral)

Quadro 4 – Policiais capacitados pela Uncivpol e Pnud (2000 – 2005) 124 (Fonte: Relatórios do Secretário-Geral)

Quadro 5 – Refugiados de Serra Leoa no exterior 147

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Abreviaturas e Siglas

Acnur Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

APC All People’s Congress

APD Acordo de Paz de Dayton

BICC Bonn International Center for Conversion

BiH Bósnia-Herzegovina

BIHMAC Centro de Controle de Minas da Bósnia-Herzegovia

CDPD Comissão de Direito de Propriedade para Deslocados

CNCP Conselho Nacional de Comando Provisório

COW Correlates of War

CRFA Conselho Revolucionário das Forças Armadas

CS Conselho de Segurança da ONU

CVR Comissão de Verdade e Reconciliação

DBDI Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional

DDR Desmilitarização, Desarmamento e Reintegração

DI’s Deslocados Internos em função de conflitos

DKPO Departamento de Operações de Peacekeeping

DSI Dilema de Segurança Interno

Ecomog Grupo de Monitoramento da Comunidade Econômica dos Estados da África

Ecowas Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental

ENI Exército Nacional (Popular) Iugoslavo

EUA Estados Unidos da América

(12)

FDC Forças de Defesa Civil

FTRR Força Tarefa para a Reconstrução e o Retorno

ICG International Crisis Group

ICTJ International Center for Transitional Justice

Ifor Força de Implementação da ONU

IPTF Força Tarefa da Polícia Internacional das Nações Unidas

OIG’s Organizações Intergovernamentais

OIT Organização Internacional do Trabalho

OMS Organização Mundial da Saúde

ONG’s Organizações não-governamentais

ONU Organização das Nações Unidas

OSCE Organização para Segurança e Cooperação na Europa

Otan Organização do Tratado do Atlântico Norte

Piatic Programa Internacional de Assistência ao Treinamento e a Investigações Criminais

PIC Comitê de Implementação da Paz

Pnud Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PPSL Partido Popular de Serra Leoa

PVSJ Programa de Verificação do Sistema Judiciário

RI Relações Internacionais

RPFI República Popular Federal da Iugoslávia

RS Republika Srpska

RUF Frente Revolucionária Unida

Sfor Força de Estabilização da ONU

UE União Européia

Unamsil Missão das Nações Unidas em Serra Leoa

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Unesco Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura

Unicef Fundo das Nações Unidas para a Infância

Unmac Centro de Controle de Minas das Nações Unidas

UNMIBH Missão das Nações Unidas para a Bósnia-Herzegovina

Unomsil Missão de Observação das Nações Unidas em Serra Leoa

Unprofor Força de Proteção das Nações Unidas

URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

(14)

Nobody made a greater mistake than he who did nothing because he could only do a little.

(15)

1

Introdução

1.1.

Considerações Iniciais

A presente dissertação pretende abordar a importância dada à garantia da segurança nas operações de peacekeeping multidimensional, realizadas no pós-Guerra Fria. Apesar de não buscar exclusivamente o fim do enfrentamento entre os grupos outrora em conflito, esta nova forma de se pensar as missões de paz procura solucionar também as causas que deram origem à guerra, dentro de um processo bifásico que envolveria o afastamento da violência física e, de maneira coordenada, a reconstrução e o fortalecimento das instituições. Estes elementos proporcionariam a estabilização da vida em sociedade.

A fim de comprovar nossas expectativas, utilizaremos o instrumental disponível no campo da resolução de conflitos como referencial teórico para nossa discussão. Esta pretende responder à seguinte pergunta: a garantia das condições de segurança no pós-conflito leva ao sucesso no peacekeeping? Com base na revisão da literatura especializada e na análise de duas operações consideradas bem sucedidas pela Organização das Nações Unidas (“ONU”) nossa resposta a esta pergunta seria que o oferecimento de condições de segurança, por proporcionar as bases para o desenvolvimento das demais etapas do peacekeeping, levaria ao seu sucesso. Sem que esta seja trazida ao cenário do pós-conflito não haveria como proporcionar as condições necessárias para restabelecimento da economia ou da governança legítima, por exemplo: “security, which encompasses the provision of collective and individual security to the citizenry and to the assistors, is the foundation on which progress the other issue areas rests” (Feil, 2002, p. 98).

Desta nossa hipótese principal decorreria uma segunda, que tomaremos como complementar: questões pertinentes à formação da sociedade e o seu

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equilíbrio no pós-conflito, como a boa distribuição de bens e serviços aos diversos grupos que habitam o Estado (Gleditsch, 2001, p. 64), o restabelecimento de atividades econômicas básicas, a reconciliação entre os grupos sociais e o estímulo da participação destes no jogo político que se busca formar (Ball, 2001, p. 723) seriam dependentes da existência de condições de segurança, especialmente daquela institucionalizada pelo Estado. Por serem conflitos que questionam a legitimidade estatal e sua capacidade de fornecer bens e serviços a grupos políticos, proporcionar o acesso destes grupos aos bens e serviços do Estado demonstraria a intenção de proporcionar a inclusão de todos no jogo político e social. Assim, a formação de um corpo policial preparado, apoiado por estruturas legais que possibilitem a sua plena atuação, mostra-se de grande importância para reconstruir uma sociedade que passou por conflitos internos, independentemente de qual tenha sido a motivação destes conflitos. A construção destas estruturas institucionais comprovaria a presença do Estado, facilitando a integração entre os grupos que o compõem.

Assim como grande parte dos estudos direcionados às Relações Internacionais (“RI”), a resolução de conflitos possui uma conexão muito forte com o que é produzido e decidido politicamente pelos atores internacionais. Seu desenvolvimento se dá conforme e em conjunto às decisões políticas tomadas e também conforme seu objeto-alvo – no caso, os conflitos – se comporta diante estas mudanças. Isto inflige à área um caráter fortemente policy oriented, proporcionando o entendimento de que se trata de um instrumental teórico que busca solucionar problemas práticos, ainda que haja autores que ressaltam a existência de uma visão diferente da área de estudos (Kriesberg, 1997; Miall et al, 1999; Bellamy e Williams, 2004). De um modo geral, a empiria constrói a teoria neste campo. Esta natureza política era nitidamente percebida durante o período da Guerra Fria, quando as intervenções realizadas pretendiam apenas encerrar o conflito, evitando que se propagassem por áreas próximas e levassem ao enfrentamento entre Estados Unidos (“EUA”) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (“URSS”). Com o fim deste período, os interesses políticos continuavam a determinar os rumos das missões de paz, mas o interesse da comunidade internacional de preservar a estabilidade política e a segurança regional levaria ao aperfeiçoamento dos mecanismos usados para a prevenção dos

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conflitos, incluindo a participação de terceiros e a busca por uma abordagem voltada às necessidades do Estado-alvo. Mas, mesmo com essas mudanças e diante de contribuições vindas de teorias críticas, o campo ainda é tido como essencialmente racionalista. Apesar desta ampla presença do elemento político, há neste campo espaço para o desenvolvimento da discussão acadêmica, estabelecendo metas e princípios que guiariam o desenvolvimento das ações.

Deste modo, a intervenção para o restabelecimento e manutenção da paz poderia ser vista como uma ferramenta de uso extremamente pragmático. Por decorrer de um aprendizado com base em operações anteriormente realizadas, o novo peacekeeping se aproveitaria deste conhecimento prévio, aprimorando modelos genéricos de ação que guiariam as linhas-mestras da intervenção. De modo coordenado, as causas que deram origem ao conflito também seriam abordadas. Estas, entretanto, deveriam ser encaradas como particularidades daquela operação, requerendo estratégias de solução próprias, desenvolvidas dentro daquele framework mais amplo. No novo peacekeeping, cada missão passou a ser encarada como única, por se dirigir a um conflito de origem específica. Este, por sua vez, também passou a ser encarado como único, com características e motivações próprias: as novas guerras são, atualmente, travadas dentro de um território estatal, envolvendo agentes não-estatais domésticos apoiados por outros agentes – estatais e não-estatais – não localizados no território. As novas guerras seriam motivadas pela ilegitimidade da autoridade do Estado sobre determinado grupo político, questões econômicas, culturais, entre outras. Diante deste novo panorama, passou-se a se exigir que as causas que deram origem ao conflito fossem solucionadas, para que a violência direta não retornasse a ocorrer.

A combinação destes dois elementos – modelos genéricos de ação com o entendimento das causas dos conflitos – marcaria o peacekeeping multidimensional, permitindo a atuação internacional no campo militar, policial, socioeconômico, entre outros. A abordagem mais ampla compreenderia todos os aspectos da vida em sociedade, mas a prioridade ainda se daria à questão da segurança.

(18)

Derivadas da hipótese principal teríamos outras duas proposições com as quais pretendemos trabalhar. A primeira seria de que garantias tardias de segurança prejudicariam as etapas já desenvolvidas ou em desenvolvimento no processo. Mesmo que consideremos o peacekeeping como um conjunto de ações coordenadas, a segurança deve ser vista como anterior aos demais elementos, de maneira a assegurar o seu desenvolvimento. Ao desenvolver estruturas efetivas de segurança à população, os peacekeepers proporcionariam as condições para que a boa distribuição dos bens e serviços anteriormente mencionada se efetivasse. Sem esta segurança, a instabilidade e incerteza decorrente dos enfrentamentos se mostrariam mais fortes, impedindo o estabelecimento da cooperação necessária para que o processo de paz ocorra.

A outra hipótese seria uma conclusão decorrente das duas proposições acessórias apresentadas acima: se os elementos econômicos, sociais e políticos são dependentes da segurança civil e a sua implantação tardia prejudicaria o sucesso da operação de peacekeeping, então em curto prazo, o não oferecimento de segurança civil não se mostraria problemático; o mesmo não poderia ser observado em médio ou longo prazo, o que representaria sérias dificuldades para o sucesso da paz no Estado. Em um primeiro momento, posterior ao fim dos conflitos, a violência seria abrandada pela presença das forças de ocupação, não carecendo imediatamente da existência de estruturas garantidoras de segurança. Todavia, conforme a paz é estabelecida e a sociedade é reconstruída, tornando-se mais complexa, surgiria uma demanda por instituições estatais que possibilitem a continuidade das reformas sociais, econômicas e políticas. Estas reformas careceriam da base que as estruturas de segurança proporcionariam, ameaçando prejudicar à boa distribuição e prestação de bens e serviços pelo Estado aos grupos políticos que comporiam a sua população. Sem as estruturas de segurança consolidadas, as conquistas atingidas até então ruiriam por falta de bases que as sustentassem.

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1.2.

A Evolução do Campo Teórico da Resolução de Conflitos

A expressão “resolução de conflitos” tem significação ambígua, pois ao mesmo tempo em que representa o processo de encerramento de tensões armadas, indica também a conclusão deste processo. Tal imprecisão indicaria que o comportamento das partes não é mais violento e tanto a estrutura do conflito quanto a percepção de uma parte em relação à outra foram alteradas (Miall et al, 1999, p. 21), transpassando uma idéia de continuidade e dinamicidade ao processo de resolução de conflitos. Atualmente o processo de paz não se esgota quando a violência direta chega a um fim, mas quando se proporciona um cuidado específico com as causas que levaram as partes a optarem pela guerra. E assim como os conflitos1, o instrumental disponível e desenvolvido pelos estudiosos do campo teórico da resolução de conflitos não é estático: como apontamos, sua dinâmica decorre de seu caráter político. Deste modo, este instrumental tem sofrido transformações importantes ao longo das décadas, influenciando a sua relação teórica com a sua aplicação prática:

[c]onflict resolution is oriented toward conducting conflicts constructively, even creatively, in the sense that violence is minimized, antagonism between adversaries is overcome, outcomes are mutually acceptable to the opponents, and settlements are enduring (Kriesberg, 1997, p. 51).

Destarte, e entendendo o campo da resolução de conflitos como em constante evolução, podemos perceber que desde a “criação” da disciplina, na década de 1950, esta passou por profundas mudanças que alteraram a forma como o campo aborda seus desafios. Estas mudanças nos permitiriam especificar períodos, cada qual definido por características próprias, decorrentes tanto dos debates teóricos no campo, quanto dos reflexos ocasionados pelos processos políticos à época.2

1 A expressão “conflitos” será utilizada como sinônimo para se referir aos enfrentamentos entre

grupos e a violência armada; por outro lado, a utilização do termo “disputas” terá como peculiaridade a representação de choques de interesses onde não há violência armada (Burton, 1990 apud Kriesberg, 1997, p. 64).

2 Sobre a evolução do campo teórico da resolução de conflitos, ver Louis Kriesberg (1997) e Miall

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O instrumental teórico e prático de prevenção dos conflitos – incluindo, mas não se limitando ao peacekeeping – era desenvolvido conforme as necessidades práticas e o contexto político. E como a atuação política da ONU era refreada pela tensão ideológica existente entre EUA e URSS, os mecanismos desenvolvidos eram limitados por estes dois atores. O peacekeeping nesta época – tratado neste trabalho como “tradicional” – se limitava, como exposto adiante, a servir de anteparo entre os Estados em conflito, evitando o confronto direto para que pudesse ser atingida a paz. A preocupação em não intervir nas áreas de influência das superpotências era constante, daí o caráter um tanto quanto superficial das medidas aplicadas para resolver o conflito: o que se buscava era a prevenção de um eventual enfrentamento direto entre EUA e URSS. Isto explicaria também o número reduzido de operações de paz desenvolvidas neste período.

As práticas de resolução de conflito como conhecemos hoje, especialmente através da participação de terceiros, começaram a se tornar mais freqüente a partir da década de 1970 (Kriesberg, 1997, p. 57). Nesta época, iniciou-se a preocupação de promover a integração do campo teórico da resolução de conflitos com outras áreas de estudo através da atuação em frentes distintas e interligadas. Estas frentes incluíam analisar tanto o plano doméstico como o internacional, buscando soluções pragmáticas que possibilitassem oferecimento de novas respostas aos problemas que surgiam.3

Com o encerramento da Guerra Fria no final da década de 1980, a situação da ONU foi alterada: uma vez livre das amarras políticas que a impediam de agir, a organização passou a atuar de maneira mais complexa, impulsionando seu papel na ordem internacional. Se antes era vista apenas como arena de uma disputa política e ideológica, o final da Guerra Fria reanimou a ONU e possibilitou que esta desempenhasse o seu papel originalmente previsto quando da sua fundação: buscar a manutenção da paz e segurança internacionais, estimulando a colaboração entre Estados e organizações regionais (Miall et al, 1999, p. 56). Esta

3 As respostas agora fornecidas incluiriam, mas não se limitariam à participação de terceiros, a

promoção de diálogo entre as partes e a negociação que acabou por auxiliar e ampliar a área de atuação dos acadêmicos e políticos voltados à resolução de conflitos em diversos níveis sociais e políticos – os tracks: “[p]eacekeeping may be more cost-effective than fighting wars, but

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mudança no sistema internacional permitiu também maior participação de organizações intergovernamentais (“OIG’s”) regionais que atuavam utilizando a ONU como fórum de debate, levando as operações de paz para um nível regional e auxiliando sobremaneira na sua execução (Herz e Hoffmann, 2004, p. 119). Sua participação já era prevista na Carta de 1945, mas as tensões políticas das quatro décadas seguintes à sua criação em muito tolhiam qualquer ação conjunta entre estes atores internacionais.

Concomitantemente a este desenvolvimento teórico e prático, surgiam as críticas, especialmente por parte de teorias sociais críticas e estruturalistas, dirigidas à natureza essencialmente racionalista do campo (Kriesberg, 1997; Miall et al, 1999). Mas, apesar disto, o campo teórico da resolução de conflitos continuou a ser identificado primariamente como integrante das problem solving

theories. A teoria empregada nesta área seria obtida através do acúmulo de

experiências, especialmente pela intensa participação e pelo diálogo estabelecido entre os policy makers e os teóricos do campo. As soluções produzidas seriam primariamente dirigidas aos problemas a serem resolvidos – como, por exemplo, a elaboração dos mandatos das operações de peacekeeping pelo Conselho de Segurança (“CS”). Mesmo assim, parte destas críticas foi incorporada, trazendo à baila a preocupação em se abordar às causas estruturais do conflito, de modo a sanar tais problemas e evitar que os conflitos retornassem (Kriesberg, 1997; Miall et al, 1999).

A década de 1990 foi marcada pela intensa participação da ONU nos conflitos existentes no mundo, tanto em questões interestatais – como no caso da invasão do Kuwait pelo Iraque – quanto em situações de conflitos internos, como nos diversos embates na África e nos Bálcãs. Este período também marcou a mudança de postura da ONU frente a estes desafios: uma vez libertada das restrições político-ideológicas, a organização se preocupava agora com a promoção de direitos humanos e de condições dignas de vida aos povos afetados pelos conflitos, buscando resolver as causas da guerra ao invés de apenas pôr panos quentes e promover a estabilidade momentânea.

preventing wars and thus the need for peacekeeping is more cost-effective still, and less risky” (Lund, 1996, p. 26).

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Cada missão autorizada pelo CS aproveitava-se do conhecimento provido por missões anteriores para atingir seus objetivos, em um processo de aprendizado que envolvia também a análise das condições específicas que estavam por vir. Diversos documentos foram produzidos para adequar o papel da ONU neste novo cenário internacional, como a Agenda para a Paz e seu Suplemento (1992 e 1995, respectivamente). Estes verdadeiros manuais de ação visavam complementar o disposto na Carta da ONU, moldando a sua ação perante os novos desafios e promovendo a reestruturação do sistema de segurança coletivo. O fim das tensões políticas entre as EUA e URSS possibilitou a adoção de medidas mais concretas para resolver mais rapidamente as novas formas de conflitos que surgiam, buscando mecanismos institucionalizados para a prevenção dos conflitos (Lund, 1996; Kriesberg, 1997; Herz e Hoffmann, 2004). Bloqueios políticos foram superados, permitindo um maior desenvolvimento das operações de paz e outras ações de igual natureza cooperativa por parte da comunidade internacional.

Apesar de tudo isso a ONU – e mais especificamente o CS – continua a ser uma arena de deliberação política tal como na época da Guerra Fria e por isso conduzida por interesses e com limitações quanto a sua atuação. A participação dos Estados-membros voltada para seus interesses políticos acaba por permitir que certos problemas continuassem sem solução ou sem a abordagem adequada, mas, comparativamente às décadas passadas, muito já foi feito.

1.3.

Objetivos e Estrutura do Trabalho

As novas operações de paz, com o fim da tensão política decorrente da Guerra Fria, assumiram uma complexidade maior do que aquela existente em seu período inicial. Livre da situação delicada que poderia dar origem a uma nova guerra mundial, a comunidade internacional teria a capacidade de agir de maneira incisiva no conflito, dedicando a atenção necessária para o seu fim e também para a constituição de condições que impedissem o retorno da violência. A resolução de conflitos também envolve a sua prevenção, logo os esforços desenvolvidos pelas novas missões também teriam esta finalidade. Com a maior integração entre

(23)

os Estados existente atualmente, a instabilidade em um deles poderia afetar a paz e a segurança de toda uma região.

Assim, através do estudo de casos de missões de paz tidas como bem sucedidas e desenvolvidas após a Guerra Fria, mostraremos a importância que existe em se garantir a segurança na fase inicial da intervenção como elemento determinante do sucesso das demais medidas a serem desenvolvidas. Pudemos perceber uma grande preocupação, seja por parte dos estudiosos do campo, seja pelos agentes políticos responsáveis pela autorização e realização das operações de paz, em buscar as condições materiais que levassem a estabilização da segurança nas operações de paz. Esta tendência percebida na literatura especializada e nos documentos estudados nos levou a enfatizar os aspectos materiais da segurança nas operações de paz, em conformidade com o que é apresentado no campo teórico da resolução de conflitos.

Desenvolvemos nossos argumentos em três capítulos. No primeiro, de natureza eminentemente teórica, exploraremos e discutiremos o campo teórico da resolução de conflitos. Isto nos ajudaria a demonstrar e compreender os principais pressupostos que guiam as novas operações de paz sob a ótica dos acadêmicos da área. Poderíamos perceber nesta análise o caráter eminentemente material da abordagem desenvolvida no campo e de sua forte motivação política.

Daí surgiria uma primeira implicação do nosso trabalho: apesar das novas missões de paz desenvolvidas pela ONU se preocuparem também com garantias não-militarizadas, como uma economia estável e da criação de uma arena política em detrimento do confronto violento de interesses, a preocupação com a segurança ainda continuaria em primeiro plano. Esta forma de atuar constituiria um modelo bifásico, que envolve medidas garantidoras do fim da violência e da reforma institucional do Estado (Miall et al, 1999; Ball, 2001). Somente após a sua estabilização as demais etapas seriam bem sucedidas, ainda que estas sejam planejadas em coordenação com os elementos de segurança. Para verificar esta implicação, nos valeremos dos elementos que garantiriam a resolução do dilema de segurança interno (“DSI”) – (i) reforma da polícia e do poder judiciário, (ii) programas de desmobilização, desarmamento e reintegração (Licklider, 2001) e (iii) programas de retorno de refugiados e deslocados internamente em função

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do conflito (Adelman, 2001) – para mostrar a estabilização da segurança. Cumprindo esta verificação e devolvendo a segurança ao Estado, as novas missões de paz teriam criado um campo favorável para a atuação em outras áreas (Feil, 2002, p. 100), que seriam desenvolvidas coordenadamente a esta primeira etapa.

Para comprovar nossos pressupostos teóricos, estudaremos nos dois capítulos seguintes, as duas maiores missões de paz desenvolvidas no pós-Guerra Fria: a Missão das Nações Unidas na Bósnia-Herzegovina (“UNMIBH”) e a Missão das Nações Unidas em Serra Leoa (“Unamsil”). Ambas receberam mandatos que permitem classificá-las como missões multidimensionais e foram encerradas após terem cumprido suas obrigações, conforme previstas pelo CS. Desta maneira, ambas as missões teriam se preocupado em garantir inicialmente a segurança, dentro dos parâmetros que expusemos com o DSI, atacando posteriormente os problemas institucionais e socioeconômicos que levaram ao início da violência. Analisando e estudando estatisticamente estes dois casos, esperamos comprovar nossas hipóteses de trabalho, discutidas anteriormente, mostrando que o sucesso destas operações multidimensionais se deu pelo cumprimento daquele processo bifásico.

1.4.

Questões Metodológicas

Achamos importante expor nesta introdução algumas peculiaridades da metodologia adotada. Apesar de nos basearmos tanto em textos acadêmicos quanto em documentos oficiais da ONU e de suas agências para analisarmos os elementos do DSI e o seu sucesso em cada uma das missões, nosso levantamento de estatísticas se fundamentou principalmente em documentos da ONU produzidos à época das missões de paz. Assim, todos os dados apresentados nesta dissertação foram por nós pesquisados, organizados e consolidados4, em função

4 Exceto quando explicitamente apontado. Em algumas ocasiões, utilizamos publicações

acadêmicas que trabalharam com dados estatísticos oficiais, contrapondo-os com as informações por nós apuradas nos documentos pesquisados, de modo a garantir a precisão das informações pesquisadas.

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da ausência de um trabalho específico – ou, ao menos, disponível na Internet – que se preocupasse em reunir tais informações.

Apesar de termos produzido um bom número de informações estatísticas que acreditamos não terem sido alvo de preocupação por acadêmicos e policy

makers, lamentamos pela dificuldade enfrentada para produzir tais tabelas e

gráficos demonstrativos dos avanços e retrocessos enfrentados nos dois processos de peacekeeping estudados. Não apenas a dificuldade de acesso aos dados referenciados por período e regiões se mostrou uma constante em nosso trabalho, como também se podiam perceber contradições entre o que era relatado pela ONU em seus discursos aos Estados-membros e o que era percebido na prática, na atuação de campo. Assim, estas diferentes “narrativas” – os relatos políticos e os números evidenciando a realidade – acabaram, por vezes, impondo barreiras à nossa análise. Isto se mostrou mais grave no caso de Serra Leoa, quando os dados necessários para o bom desenvolvimento de nosso trabalho não estão disponíveis de modo completo nos relatórios divulgados, causando importantes lacunas na compilação de informações. A missão na Bósnia-Herzegovina, mesmo cercada por grandes esforços internacionais, sofreu destas dificuldades também.

Destarte, e apesar de tentarmos cobrir de maneira precisa os períodos estudados, por vezes podem ser percebidas lacunas nestas análises. Estas lacunas, todavia, não nos parecem suficiente para desacreditar nossas hipóteses e conclusões. Mais, acreditamos que a percepção de tais lacunas ajudaria a apontar necessidades que devem ser sanadas em operações futuras, de maneira a retratar fielmente o que ocorre durante o desenvolvimento da missão, possibilitando o pleno oferecimento de condições para o seu cumprimento e sucesso.

(26)

2

Peacekeeping e Segurança

2.1.

Introdução

Este capítulo defenderá o argumento de que o oferecimento de garantias de segurança para os grupos combatentes no processo de peacekeeping proporcionaria um campo mais estável para as demais etapas deste processo. Tais garantias permitiriam que estes grupos superassem a insegurança e desconfiança frente ao Outro, assim como em relação ao próprio processo, levando-os a cooperar e a resolver o DSI.

Dividimos o texto em três seções. Na seção 2.2, apresentaremos a idéia de guerra tradicional ou clausewitziana e contrapomos a ela as chamadas novas guerras, predominantes a partir da segunda metade do século XX, valendo-nos principalmente das discussões propostas por Kalevi J. Holsti (1996) e Mary Kaldor (2001)5. Esta mudança na tipologia da guerra permitiria entender tanto a atuação da ONU na busca de seu objetivo de garantir a paz e a estabilidade internacional quanto perceber as mudanças sofridas no processo de peacekeeping desenvolvido pelas Nações Unidas, com o auxílio de seus Estados-membros. Da mesma maneira, a alteração no modo de fazer a guerra, tornando-a essencialmente interna, implicaria na mudança de como a paz é vista. Em 2.3, expomos com maiores detalhes as características destas novas guerras, enfatizando seu baixo nível de institucionalização, seus novos atores e objetivos.

5 Mesmo que partindo de pressupostos diferentes – enquanto Holsti associa o que ele chama de

guerras de terceiro tipo à fragilidade dos novos Estados que se formavam a partir de 1945 e ao questionamento da sua legitimidade, Kaldor relaciona o que ela chama de novas guerras aos processos de globalização –, os dois autores podem ser vistos como complementares. Ambos possibilitam o estudo desta nova forma de guerra trabalhando os seus componentes políticos, culturais e econômicos, aproximando o trabalho destes dois teóricos. Desta maneira, nossa opção foi pela utilização do termo “novas guerras” para indicarmos este tipo não-clausewitziano de guerra. Conforme Miall et al (1999, p. 66), a terminologia para se referir a este tipo de conflito é

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Em 2.4 será trabalhado o instrumental teórico e prático do peacekeeping, tanto o tradicional – i.e., o desenvolvido durante o período da Guerra Fria – quanto o intervencionismo complexo, desenvolvido a partir da década de 1990. A complexidade que este instrumento adquiriu após o término da Guerra Fria permitiu à ONU e aos seus Estados-membros promover intervenções em campos mais complexos, buscando solucionar as causas das guerras de maneira permanente, buscando com isso possibilitar que os problemas que levaram as partes a pegarem em armas sejam definitivamente solucionados. Apresentaremos o modelo bifásico de trabalho no pós-conflito de Hugh Miall, Tom Woodhouse e Oliver Ramsbotham (1999) combinado com o proposto por Nicole Ball (2001) para reforçarmos a preocupação que se deve ter com segurança, ao mesmo tempo em que se promove o desenvolvimento da atuação das forças internacionais em outras áreas estratégicas, como a econômica e a social.

Exploraremos, também, a questão da segurança no peacekeeping e, a partir dela, proporíamos a resolução do DSI como forma de assegurar as condições para o desenvolvimento de um processo de peacekeeping estável. Através do oferecimento de condições que ofereçam a superação deste dilema, os interventores proporcionariam às partes garantias que permitiriam a elas cooperar com o processo de reconstrução do seu Estado, evitando que haja o retorno às armas para a promoção de seus interesses. Com isso, então, seriam desenvolvidas medidas buscando soluções em longo prazo, como a restauração da economia e das relações sociais e o estabelecimento de um governo legítimo.

2.2.

As Guerras Tradicionais e as Novas Guerras

Os conflitos – como parte integrante do jogo político – devem ser vistos e entendidos como dinâmicos, adquirindo características específicas que os diferenciariam uns dos outros. Ainda que podendo ser ordenados em grupos mais amplos – através de características genéricas como natureza das partes envolvidas,

vasta, com diversos outros termos sendo utilizados incluindo, mas não se limitando a, conflitos internos, pequenas guerras, guerras civis e conflitos de baixa intensidade.

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modus operandi, entre outros, de maneira a se criar tipologias e classificações

(Holsti, 1996; Kaldor, 2001; COW, 2004?) –, cada guerra é única, pois suas origens e motivações são pertinentes a um contexto espaço-temporal determinado, implicando em características políticas e culturais específicas (Kaldor, 2001; Keegan, 2002). Dentro desta idéia, podemos apontar uma tipologia de conflitos nos últimos séculos: os conflitos interestatais; os intra-estatais, travados entre grupos privados dentro de um mesmo território estatal (Holsti, 1996; Kaldor, 2001); e os conflitos extra-estatais, envolvendo um ente estatal e um grupo nacional ou internacional (COW, 2004?, sp.). O primeiro tipo seria a forma tradicional de se ver a guerra, enquanto os outros dois constituiriam as novas guerras.

A guerra tradicional é um conflito continuado entre forças militarizadas de dois ou mais Estados, organizadas em estruturas institucionais e claramente distinguíveis – seus exércitos –, com o objetivo fazer o outro lado se render (Holsti, 1996; Keegan, 2002). Este modelo seguiria a descrição de Clausewitz (2003) de que a guerra é a violência produzida a partir do enfrentamento entre agentes estatais. Sua importância histórica se deu porque, ao longo de pouco mais de três séculos, ajudou a garantir o fortalecimento da organização e da consolidação de um sistema internacional composto por Estados, molde da organização política atual.

Tal forma de ver a guerra é compreendida dentro do cenário europeu posterior à paz de Westphalia, em 1648, e que se reproduziu e se adaptou até a Guerra Fria:

[w]hat we tend to perceive as war, what policy-makers and military leaders define as war, is, in fact, a specific phenomenon which took shape in Europe between the fifteenth and eighteenth centuries, although it has passed several changes since them (Kaldor, 2001, p. 13).

São os conflitos descritos na Carta da ONU, regulados pelo direito internacional e pelos manuais diplomáticos. Seu caráter institucional é forte, pois pressupõe o monopólio do uso da força pelo Estado e impõe distinção entre os soldados e os civis através do uso de símbolos distintivos e uniformes, entre outros elementos caracterizadores (Creveld, 1991; Holsti, 1996). Nestas guerras,

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o Estado, as forças armadas e a população civil representam entes distintos legal, política e estrategicamente, reforçando a estrutura institucional destas guerras.

Tamanha institucionalização é decorrente, segundo Mary Kaldor (1999, p. 20), das separações estruturais que existiriam nestes conflitos, através da distinção explícita: (i) do público e o privado, i.e., entre as atividades do Estado e o que não estaria sob sua competência; (ii) do interno e o externo, definindo os limites territoriais do Estado; (iii) do plano econômico e o político, com a coerção física não compondo as atividades econômicas; (iv) do plano civil e o militar, determinando o que faria parte da vida social e o que comporia a barbárie; e, finalmente, (v) do possuidor legal do direito de usar a força, os não-combatentes e os criminosos, delineando as fronteiras da guerra, da paz e da violência institucionalizada do Estado. Estas distinções estabelecem padrões que ressaltam a diferença entre os tempos de guerra e os de paz, com a clareza do início e do fim dos conflitos e o pleno conhecimento de quem era o inimigo a ser enfrentado e dos meios a serem utilizados.

Na segunda metade do século XX, entretanto, percebeu-se a mudança do caráter assumido pelos conflitos: se até a II Guerra Mundial as guerras eram tidas claramente como travadas por e entre Estados, a partir de 1945 os conflitos – motivados pelo princípio da autodeterminação dos povos – buscariam a ruptura com um governo considerado ilegítimo e o estabelecimento de um novo governo, legítimo (Holsti, 1996, p. 26). Estas guerras aconteciam entre grupos políticos dentro do território estatal contra outros grupos ou contra o próprio Estado, visando, por exemplo, a independência de um território, de insatisfação de minorias diante de governos que não contemplassem os seus interesses. Mas a Guerra Fria deixou estes conflitos em hibernação, ainda que fizessem parte de um fenômeno crescente – e.g., as guerras de independência dos Estados africanos e asiáticos (McWilliams e Piotrowski, 1997; Wimmer, 2004).

Com o fim da Guerra Fria e da tensão política dela decorrente, as novas guerras foram vistas como predominantes, trazendo ao cenário político internacional conflitos de características distintas daqueles anteriormente encontrados pela comunidade internacional. Assim, a partir de 1989, os conflitos étnicos foram “descobertos”, face o seu aumento quantitativo, ganhando maior

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visibilidade e importância (Wimmer, 2004, p. 3), apesar de sua origem ser anterior a este período. Com isso, minorias étnicas e projetos de independência passaram a alimentar disputas arrastadas e não resolvidas até adquirirem uma magnitude considerável que dificultava ações de prevenção de conflitos.

Kalevi Holsti (1996, p. 21) classifica estas novas formas de fazer a guerra como guerras de terceiro tipo, frutos dos enfrentamentos entre grupos políticos dentro do Estado. Estas guerras apresentam a característica de ocorrerem em função da fragilidade do Estado e do questionamento de sua autoridade sobre aquela comunidade pelo grupo desafiante. O aumento do número de Estados a partir de 1945, especialmente em razão da descolonização africana e asiática, contribuiu para a crescente percepção deste tipo de guerra. As comunidades políticas presentes no território destes novos Estados lutavam contra o governo estatal, sob a alegação de que esta elite governante não era seu representante legítimo. As novas guerras, para Holsti, tinham como motivação a busca por governança legítima.

Mary Kaldor (2001), por sua vez, vê as novas guerras como sendo diretamente afetadas pelos processos de globalização a partir da década de 1980, implicando na mudança dos objetivos, modos de fazer a guerra, sujeitos envolvidos e a forma como estas são financiadas. As novas guerras seriam choques entre identidades políticas, anteriores à formação do Estado, que iriam além de dicotomias como situação e oposição ou conservadores e radicais. Para Kaldor, estas identidades políticas remeteriam a características culturais e políticas referentes à formação dos grupos que comporiam o Estado e não mais a questões de política estatal. Isto acabaria por implicar em duas conseqüências: a primeira é em relação ao modo como as novas guerras são feitas, combinando elementos de guerrilha e contra-insurgência e levando os grupos em conflito a buscarem o controle político de uma região ao invés de procurar por vitórias militares. Da busca por controle político viria a segunda conseqüência deste choque de identidades: as identidades políticas seriam vistas como locais e globais, nacionais e transnacionais, sendo mobilizadas através dos avanços tecnológicos e dos fluxos de globalização, que transmitiriam seus valores para além das fronteiras da guerra. Esta mobilização garantiria apoio à causa e

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fomento às ações militarizadas dos grupos, garantindo os recursos necessários para que a guerra aconteça.

Apesar desta diferença nos pontos de partida para entender as novas guerras, há convergências nas visões de Holsti e Kaldor. Kaldor busca explicar as novas guerras com base em identidades anteriores à formação dos Estados e que levariam a choques políticos durante o seu desenvolvimento. Holsti, por sua vez, se dirige às questões acerca da legitimidade original que comprometeriam o seu desenvolvimento, levando grupos internos a lutarem contra o governo instituído. A forma esta luta se dá e as maneiras de sustentá-las são descritas por Kaldor, explicando o envolvimento de grupos que à primeira vista seriam estranhos ao conflito, através da mobilização de comunidades que compartilham a mesma identidade de uma das partes no conflito. Desta forma, a análise em conjunto dos dois autores permitiria um melhor entendimento das causas que deram origem ao conflito, proporcionando uma atuação mais compreensiva dos peacekeepers.

2.3.

As Novas Guerras

Apesar do seu predomínio por mais de três séculos, a forma clausewitziana de fazer guerra passou a se dissociar cada vez mais dos conflitos surgidos a partir de 1945, tornando-se incapaz de explicar sua dinâmica (Creveld, 1991; Holsti, 1996; Waldmann, 2004). Com o fim da II Guerra Mundial, uma nova organização do sistema internacional surgia, com a divisão política em dois blocos ideológicos opostos e o nascimento de diversos novos países. Isto se tornaria um problema ao longo prazo, pois as fronteiras estatais não representariam necessariamente o ideal de comunidade (Gurr e Harff, 1994, p. 1; Agnew, 2000, p. 4): as novas divisões políticas foram traçadas pelas grandes potências, ignorando disputas e contradições anteriormente existentes. Os problemas que existiam antes da criação destes novos Estados foram agravados pela convivência forçada entre diferentes grupos dentro de um território, já que nacionalismos particulares e os movimentos de comunidades políticas intra-estatais tinham sido

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reprimidos pelos grandes poderes desde o Concerto da Europa (Creveld, 1999; Agnew, 2000).

Como enfatizado por Neil Kritz (2001, p. 801), as guerras intra-estatais se tornaram mais freqüentes que as guerras tradicionais, alterando a forma como a paz e a guerra eram vistas: as guerras travadas entre as forças militares de dois Estados se tornariam a exceção6. Os “novos” conflitos assemelhar-se-iam a enfrentamentos não-institucionalizados envolvendo um ou mais grupos distintos do Estado em lados opostos, onde a divisão entre o governo, o exército e a população não era mais bem definida, tal como na tríade clausewitziana (Creveld, 1991, p. 51):

[t]he clear distinction between the state, the armed forces, and the society that is the hallmark of institutionalized war dissolves in “people’s war”. (...) In wars of the third kind, just as civilian/soldier distinction disappears, the role of outsiders becomes fuzzy. The laws of neutrality no longer apply because those who are militarily weak rely on outsiders for arms, logistical support and sanctuary (Holsti, 1996, p. 37).

Diferentemente das guerras tradicionais, onde os combatentes dos dois lados podiam ser identificados através de suas insígnias e uniformes, as novas guerras traziam entre seus combatentes indivíduos organizados de maneira informal, muitas vezes nem mesmo hierarquicamente. Os exércitos tradicionais se mostravam irrelevantes para os novos conflitos (Creveld, 1991, p. 32): as novas guerras tinham como característica a multiplicidade de atores, combinando agentes públicos e privados e de esferas estatais e não-estatais, como em um retorno ao medievalismo. Não mais apenas soldados lutariam nestas guerras, mas

a disparate range of different types of groups such as paramilitary units, local warlords, criminal gangs, police forces, mercenary groups and also regular armies including breakaway units of regular armies. In organizational terms, they are

6 As referências quanto ao número exato de guerras intra-estatais e interestatais variarão conforme

o autor e o banco de dados pesquisados, mas é notável o predomínio das novas guerras sobre as tradicionais a partir do fim da II Guerra Mundial. De acordo com o Correlates of War (“COW”), guerra é o conflito que envolve a morte de um mil ou mais indivíduos no espaço de um ano em função dos combates. Kalevi Holsti (1996, especialmente p. 22 e pp. 210-224) aponta uma proporção de 4:1 das novas guerras para os conflitos tradicionais; Charles Kegley Jr e Eugene Wittkopf (2001, especialmente p. 436) observam um total de 64 guerras civis entre os anos de 1816 e 1945, enquanto entre 1946 e 1998 houve 167; Kritz (2001, p. 801) estima em cerca de 9:1 a proporção das novas guerras para as tradicionais nos últimos anos. O COW indica um total de 23 guerras interestatais a partir de 1945 e 103 guerras intra-estatais neste mesmo período (uma relação de uma guerra tradicional para quase 4,5 guerras internas). Este banco de dados inclui também a ocorrência de 15 guerras “extra-estatais”, envolvendo como partes um Estado e um ator não-estatal, corroborando a tipologia trazida por Holsti.

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highly decentralized and they operate through a mixture of confrontation and cooperation even when on opposing sides (Kaldor, 2001, p. 8).

Os objetivos das guerras agora também seriam diferentes: as novas guerras não seriam apenas por segurança ou geopolítica como as guerras tradicionais, mas sobre governança, identidades políticas pré-estatais e o status destas no interior do Estado (Creveld, 1991; Holsti, 1996; Kaldor, 2001). Há o aumento da importância da identidade e dos processos de globalização nestes conflitos, motivando os choques entre identidades diferentes. Como haveria diferentes grupos com motivações distintas no interior dos novos Estados, as disputas entre eles por bens e força política geravam conflitos violentos. Os processos de globalização e as possibilidades decorrentes da interligação de seus fluxos acabam por aproximar os grupos em conflito de outros grupos que compartilham seus valores e/ou são simpatizantes de sua luta, facilitando a identificação com um dos lados do conflito e possibilitando o envio de ajuda política, militar e econômica. A busca pelo poder se dava por vias tradicionais, mas motivada por identidades menos tradicionais, representadas por etnias, tribos e religiões, e não mais por ideologias políticas ou interesses econômicos. Porém, como ressaltado por Roy Licklider (2001, p. 698), “[i]dentity conflicts may be harder to resolve, settlements do not seem to hold as well”. A solução, para o vencedor, passaria pela aniquilação, expulsão ou assimilação dos perdedores, numa tentativa de uniformizar este grupo. Daí o caráter de extrema violência que estes novos conflitos traziam consigo. Os combates eram travados por grupos privados alimentados por recursos vindo de atores estrangeiros – estatais e não-estatais. Com esta ajuda, os grupos em conflito buscariam atingir seus objetivos, inclusive rompendo com certas práticas utilizadas durante as guerras tradicionais. Dentre estes objetivos estariam, em escalas diferentes, a limitação da violência sofrida, a eliminação da oposição política e a acumulação de recursos econômicos (Keen, 2000, p. 2).

Em alguns casos, estas guerras tomaram a forma de lutas pela independência, especialmente na África; em outros, lutas entre grupos étnicos pela garantia da primazia de um deles e a erradicação do outro do território, como nos casos do Kosovo ou da Bósnia. Ainda que a principal arena destas novas guerras fossem os países que compunham o Terceiro Mundo (Ayoob, 1995; Acharya,

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1997; McWilliams e Piotrowski, 1997; Kaldor, 2001), elas acabariam por não se limitar a esta região apenas:

they are a global phenomenon not just because of the presence of global and global networks, nor because they are reported globally. The characteristics of the new wars (...) are to be found in North America and Western Europe as well. (…) [A]ll parts of the world are characterized by a combination of integration and fragmentation even though the tendencies to integration are greater in the North and the tendencies to fragmentation may be greater in the South and East (Kaldor, 2001, p. 11).

Percebe-se, pois, a ausência de institucionalização nestas guerras tal como costumava haver nas tradicionais. Através desta ruptura institucional e da erosão das diferenças entre o particular e o privado, o interno e o externo, o militar e o civil (Kaldor, 2001, p. 20), a separação entre paz e guerra ficou mais difícil de ser percebida. A “declaração de guerra”, outrora explícita e formal, passou a ser feita através de atos violentos, direcionados à população civil, seja através de um ataque direto a ela ou às instituições estatais e sociais que a representam; suas causas não seriam facilmente distinguíveis, mas se confundiriam em eventos recentes e um suposto rancor guardado entre os grupos (Kaldor, 2001; Hechter, 2004). A declaração de guerra se transformara na repetição em série destas posturas criminosas: “the new wars involve a blurring of the distinctions between war (...), organized crime (…) and large-scale violations of human rights” (Kaldor, 2001, p. 2). A leitura da prática proporcionou uma mudança na teoria, construindo a visão da guerra e da paz como uma região cujas fronteiras não seriam delimitadas, fazendo parte de um mesmo campo contínuo (Aggestam e Jönsson, 1997, p. 771).

As novas guerras seriam vistas, assim, como aquelas travadas por um ou mais grupos privados não-militares contra outros grupos de igual natureza ou, ainda, contra uma estrutura hierarquizada que se confundiria com a figura do Estado em seu território. Os combates se dariam através de formas não-clausewitzianas, com o inimigo não sendo tradicionalmente identificável como combatente: ele seria constituído por todo e qualquer indivíduo que representasse a diferença aos seus ideais culturais e políticos. Os atos de guerra se confundiriam com posturas criminosas, tornando ordinária a violência individual e a infração da ordem institucionalizada domesticamente, com as partes envolvidas rompendo o monopólio do uso da força pelo Estado.

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2.4.

A Manutenção da Paz ou Peacekeeping

Semanticamente, para se manter ou preservar algo, é necessário que o objeto exista. Com o peacekeeping não é diferente: deve haver paz no território onde se iniciará a operação (Richmond, 2004, p. 85), através de linhas mestras que possibilitem a sua manutenção, especialmente para assegurar as condições pelas quais ela foi acordada: “[p]eacekeeping is a way to help countries torn by conflict create conditions for sustainable peace” (ONU, 2004a, p. 1).

A idéia de peacemaking surgiria daí: as partes são induzidas a atingir um acordo de modo voluntário, através da atuação de terceiros, para levar o conflito a um fim. Isto se daria por meio de estruturas, instituições e padrões de comportamento que reduziriam o nível dos conflitos (Aggestam e Jönsson, 1997, p. 787) a partir de uma agenda ampla preocupada com questões como direitos humanos, tolerância étnica e preservação da sociedade civil, cultivando valores e práticas sociais elementares (Horowitz, 2004, p. 245). Segundo Miall e seus co-autores (1999, p. 22), o peacemaking consistiria em “the sense of moving towards settlement of armed conflict, where conflict parties are induced to reach agreement voluntarily”. Já a ONU o vê como “[an] action to bring hostile parties to agreement, essentially through such peaceful means as those foreseen in Chapter VI of the Charter of the United Nations” (ONU, 1992, p. 2), com suas lentes voltadas para os conflitos em andamento, tentando trazê-los a um desfecho utilizando a diplomacia e mediação. William Durch (1993, p. 3) ressalta o caráter de não-coercitividade dos terceiros envolvidos no peacemaking. Kegley Jr e Wittkopf (2001, p. 624) definem o termo como o processo de resolução dos conflitos utilizando-se da diplomacia, mediação, negociação ou outras formas de resolução pacífica de disputas, resolvendo as causas que deram origem ao conflito.

Nossa definição de peacemaking envolve a atuação de terceiros que, através do consentimento das partes envolvidas, oferecerão meios para que estas cheguem voluntariamente a um acordo de paz, levando ao encerramento do conflito. A lógica do peacemaking é oferecer condições para o fim dos conflitos numa perspectiva de curto prazo, cuidando dos sintomas, podendo – no acordo de

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paz – prescrever ações para a solução de suas causas, mas sem entrar nesta seara: isto caberia ao peacekeeping.

Todavia não é apenas através de medidas conciliadoras que terceiros podem influenciar na busca pela paz. Há a possibilidade de se valer da força e da coerção para fazer com que os beligerantes cheguem a um acordo. Tal recurso é o

peace enforcement, definido como a imposição, por meio da força, da paz por um

terceiro exterior ao conflito (Miall et al, 1999, p. 22). Isto é obtido através de medidas coercitivas que levariam às partes a assumirem a posição desejada pelo agente externo ao conflito. Kegley Jr e Wittkopf (2001, p. 518) sugerem o peace

enforcement como a utilização ou ameaça de uso de força militar, contando ou

não com autorização internacional, para forçar as partes a aceitarem e cumprirem resoluções internacionais ou acordos de paz, evitando, desta forma, o retorno ao conflito por aqueles nele envolvidos. Frente ao debate, trataremos o conceito como a ação coercitiva capaz de provocar mudanças efetivas no comportamento dos agentes, desempenhadas por terceiros exteriores ao conflito, sobre as partes nele envolvidas.

Alguns autores apontam o peacekeeping como a atuação de terceiros após a estabilização de situações de violência, a fim de eliminar as possibilidades de retorno de conflitos nas relações entre os grupos (Evans e Newhan, 1998, p. 425). Mas esta descrição não é suficientemente precisa para se compreender a magnitude e importância que este tipo de operação assumiu ao longo das décadas, em especial nas duas últimas. Igualmente, dizer que o peacekeeping é uma resposta dos Estados para tentar superar o self-help do sistema internacional e sua conseqüente instabilidade, através da ajuda desinteressada com fins de encerrar o conflito (Durch, 1993, p. 3), também não cobriria o seu verdadeiro significado.

Segundo a ONU,

[p]eacekeeping is a 50-year-old enterprise that has evolved rapidly in the past decade from a traditional, primarily military model of observing ceasefires and forces separations after inter-States wars, to incorporate a complex model of many elements, military and civilian, working together to build peace in the dangerous aftermath of civil wars (ONU, 2000, p. 3).

O peacekeeping nasceu durante a Guerra Fria como uma resposta dos Estados e da ONU aos constrangimentos que um sistema bipolar ocasionava à

(37)

ordem internacional (Berman e Sams, 2000, p. 26). Devendo ser autorizado pelo CS, ele se encaixaria dentro do instrumental de resolução de conflitos desenvolvido ao longo das últimas décadas para se referir a um conjunto de ações coordenadas dirigido ao foco das questões que levaram ao seu enfrentamento, não se tratando de um aparato que acabaria com os conflitos propriamente ditos; há necessariamente que se falar da existência de paz para que se possa falar de

peacekeeping: “[h]aving peacekeeping after peacemaking provides an escape

from peacekeeping’s inability to promote conflict resolution” (Diehl, 1994, p. 175).

O final da Guerra Fria teve grande significado para o desenvolvimento do

peacekeeping: com a redução da política de veto entre EUA e URSS, o processo

decisório no CS foi impulsionado, facilitando o consenso neste órgão (Herz e Hoffmann, 2004, p. 111). Acrescido a isso, havia ainda o “ressurgimento” dos conflitos locais, antes abafados pela tensão EUA-URSS. As mudanças ocorridas no sistema internacional trouxeram os novos conflitos para um plano de destaque, demandando novas estratégias para a sua abordagem, diferentes daquelas já existentes: “an organization designed to prevent or help settle wars between states faces fundamentally different types of problems in wars about and within states” (Holsti, 1996, p. 18). Deste contexto veio a transformação – ou evolução – do instrumental utilizado pelo campo teórico da resolução de conflitos: o

peacemaking, peacekeeping e o peacebuilding adquiriram maior complexidade,

pois os desafios submetidos a eles assim o exigiam. Não mais bastava promover apenas a separação dos grupos em conflito, evitando atritos, tal como feito pelo

peacekeeping tradicional, mas as preocupações se voltavam agora para a

superação e solução das causas da guerra, para que estas não ocorressem novamente. Como as partes conviviam em uma mesma sociedade, as medidas tomadas pelos peacekeepers deviam permitir que esta convivência fosse restabelecida, superando a tensão existente.

Referências

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