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ECLI:PT:STJ:2007:07B193

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ECLI:PT:STJ:2007:07B193

http://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2007:07B193

Relator Nº do Documento

Salvador Da Costa sj2007070501937

Apenso Data do Acordão

05/07/2007

Data de decisão sumária Votação

unanimidade

Tribunal de recurso Processo de recurso

Data Recurso

Referência de processo de recurso Nivel de acesso

Público

Meio Processual Decisão

Revista negada

Indicações eventuais Área Temática

Referencias Internacionais Jurisprudência Nacional Legislação Comunitária Legislação Estrangeira Descritores

arrendamento misto; arrendamento para comércio ou indústria; arrendamento para habitação; residência permanente; sub-arrendamento; cessão da posição contratual; lei aplicável; resolução;

(2)

Sumário:

1. O fim principal e o subordinado do contrato de arrendamento misto para a indústria e a habitação devem ser determinados por via da interpretação das declarações negociais das partes e das demais circunstâncias envolventes, essencialmente no confronto da lei substantiva vigente ao tempo da sua celebração.

2. À relação jurídica decorrente do contrato de arrendamento celebrado em 1963, a cuja

constituição são aplicáveis as pertinentes normas do Decreto nº 5 411, de 17 de Abril de 1919 e da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, mas cujo incumprimento é dito situado em 1998, são

aplicáveis as pertinentes normas substantivas do Código Cível de 1966 e do Regime do Arrendamento Urbano de1991.

3. Apurado ser o fim principal do contrato de arrendamento o exercício da actividade industrial, passa a ser-lhe aplicável o regime que lhe é próprio quanto às causas de resolução, com preterição do regime de resolução relativo ao fim subordinado habitacional.

4. Não ocorre o fundamento de resolução do contrato consubstanciado em ilegal cedência do gozo do locado ou falta de residência permanente se o arrendatário deixou de residir no prédio arrendado, mas continuou a explorar o salão de cabeleireiro por contra própria, através de outrem.

Decisão Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I

AA intentou, no dia 19 de Junho de 2002, contra BB, acção declarativa

constitutivo-condenatória, pedindo a declaração de ser proprietária de determinado prédio sito em Espinho, se declarasse resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre o seu avô, como senhorio, e o réu e o cônjuge, como inquilinos, no dia 1 de Julho de 1963, a parte da frente para a indústria de

cabeleireiro e a parte de trás para a habitação, e a condenação do primeiro a entregar-lho devoluto. Fundamentou a sua pretensão nas circunstâncias de o réu ter deixado de habitar o locado no dia 8 de Outubro de 2008 e de o salão de cabeleireiro estar a ser explorado pela nora dele, invocando o disposto no artigo 64º, nº 1, alíneas i) e f), do Regime do Arrendamento Urbano.

O réu, na contestação, afirmou não ter deixado de habitar no locado nos termos afirmados pela autora, não estar desabitado, não estar a parte onde funciona o salão de cabeleireiro ocupada pela nora por ser ele quem a explora, que essa parte é mais relevante do que a destinada à

habitação e que, por isso, esta deve considerar-se absorvida por aquela, nos termos do artigo 1028º, nº 3, do Código Civil.

Na resposta, a autora afirmou tratar-se de arrendamento predominantemente para habitação e que, mesmo a sê-lo para a indústria, como quem exerce a actividade de cabeleireiro é a nora do réu e não haver consentido na transmissão, haveria fundamento para a resolução.

Resolvido o incidente de fixação do valor da causa, realizou-se o julgamento e foi proferida sentença no dia 15 de Julho de 2005, por via da qual a autora foi declarada proprietária do prédio e resolvido o contrato de arrendamento na parte destinada à habitação, e condenado o réu a entregar o prédio à autora livre de pessoas e bens.

Apelaram a autora e o réu, e a Relação, por acórdão proferido no dia 22 e Junho de 2006, negou provimento ao recurso interposto pela primeira e deu provimento ao recurso interposto pelo último, absolvendo-o do pedido.

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Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:

- releva no contrato de arrendamento com pluralidade de fins a determinação da prevalência de um, quer decorra dele explicitamente ou se deva concluir das circunstâncias de facto que envolveram a sua celebração;

- releva essencialmente a intenção dos contraentes na determinação da parte principal, atendendo à finalidade do contrato, tendo em conta que para o legislador é mais importante o habitacional e, a haver concorrência abstracta de regimes, é aplicável o relativo à habitação; - a finalidade industrial do contrato em causa subordina-se à finalidade habitacional da família, dada a maior área do prédio que lhe foi destinada, implicando maior renda, tal como foi a vontade da recorrente, não relevando em contrário a circunstância de o cônjuge do recorrido e o fim da indústria figurarem no contrato em primeiro lugar;

- ao invés do decidido no acórdão, não releva a escritura pública nem a maior renda por cada metro quadrado da parte destinada à indústria, porque ela visava o lucro e porque o cônjuge do recorrido necessitava da legalização da sua actividade industrial e, por isso, que o arrendamento figurasse em seu nome e essa parte visava o lucro;

- a subordinação da parte industrial à parte habitacional do locado é revelada pela

existência da única casa de banho na parte destinada à habitação, por ser nesta que funcionam as actividades associadas à indústria e só existir uma porta de entrada;

- o nº 1 do artigo 1028º do Código Civil só é aplicável quando se não verificar a

subordinação de umas finalidades em relação a outras, ou quando estas não sejam solidárias, o que não é o caso, e a cláusula penal revela que o arrendatário mais depressa deixaria a parte do locado destinada à indústria do que a sua parte habitacional;

- é ilícita a cedência do arrendado pelo recorrido, violando o artigo 1038º, alínea f), do Código Civil, porque CC não passou a usufruí-lo sem limites, salvo os resultantes do próprio contrato;

- ocorre demissão ou renúncia, total ou parcial, ao uso e fruição do locado por parte do recorrido, implicando a resolução do contrato de arrendamento na parte destinada à habitação a da parte destinada à indústria, porque àquela subordinada;

- tem direito a resolver o contrato, nos termos da alínea f) do artigo 64º do Regime do

Arrendamento Urbano, porque faleceu a outra arrendatária, o recorrido não reside lá, o local destinado à indústria é ocupado por outrem, que lá a exerce, sem comunicação da mudança nem consentimento seu, pelo que a Relação violou os artigos 236º, 238º e 1028º do Código Civil.

Falecido o recorrido, responderam os seus sucessores, DD, EE e FF, aqueles na qualidade de descendentes e esta como herdeira testamentária entretanto declarados habilitados para os termos da causa, em síntese de conclusão de alegação:

- a parte habitacional do locado não está toda ela ligada funcionalmente à habitação porque também serve de apoio à parte industrial, o que significa a subordinação a esta daquela, do que decorre a sua predominância, conforme decorre da cláusula sexta do contrato;

- o seu cônjuge, cabeleireira, figura no contrato em primeiro lugar em tempo em que não era uso as mulheres casadas outorgarem nos contratos de arrendamento habitacional e em que a indústria de cabeleireiro era exercida por mulheres e em que não era exigida a forma escrita para os arrendamentos habitacionais;

- essas circunstâncias e o facto de o maior valor ser o parte locada para o fim industrial revelam que o fim principal querido pelas partes foi;

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- é um contrato de arrendamento com pluralidade de fins, em que o industrial prepondera em relação ao habitacional;

- se fosse secundário o fim industrial, não precisava de reconhecimento expresso do senhorio, pois essa faculdade resultava da lei, por ser indústria doméstica e não carecer de redução a escrito;

- a desproporcionalidade do valor da renda de cada uma das partes revela a importância do espaço industrial do imóvel, pois era este o espaço que tornava o arrendamento

viável.

II

É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:

1. A autora tem inscrito a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Espinho, através da inscrição G-1, o direito de propriedade relativo ao prédio urbano sito na Rua 00, n.ºs 000 a 000, freguesia e concelho de Espinho, composto de casa de rés-do-chão e andar, inscrita na matriz predial respectiva sob o artigo 461º e descrito na Conservatória referida sob o n.º 01847/261202. 2. Por escritura pública celebrada no dia 1 de Julho de 1963 no Cartório Notarial de Serzedo, concelho de Vila Nova de Gaia, HR, avô da autora, por um lado, e o réu e o seu cônjuge, MS – entretanto falecida – por outro, declararam:

- o primeiro dar de arrendamento aos últimos todo o 1.º andar do prédio mencionado sob 1, com entrada pelo portal n.º 269, com direito a um bocado de quintal, água do poço e tanque para lavar, um e outro situados no fundo das escadas do prédio, pelo prazo de um ano, renovado por períodos iguais e sucessivos, pela renda anual total de 11 400$, sendo 4 200$ pela parte destinada a

indústria e 7 200$ pela parte destinada a habitação, a pagar em prestações mensais de 950$ cada, sendo 350$ pela parte destinada a indústria e 600$ pela parte destinada a habitação;

- destinar-se a parte da frente do locado à indústria de cabeleireiro e a parte de trás à habitação; - no fim do arrendamento ou das suas prorrogações, se as houver, os arrendatários não poderão despedir-se da parte destinada à indústria sem ao mesmo tempo se despedirem da parte destinada a habitação, pois qualquer despedida ou rescisão abrange este arrendamento na totalidade.

3. O salão destinado à indústria de cabeleireiro ocupa toda a parte da frente do primeiro piso do prédio identificado sob 1 com as dimensões de 6,80 vezes 4,8 metros - 33,16 m2 - servindo o estabelecimento a escadaria de acesso, o hall, o quarto de banho, sendo que o serviço de lavagem, secagem e passagem da roupa usada no estabelecimento é feito na parte anterior, destinada à habitação.

4. A parte destinada à habitação - que inclui sala, cozinha, quartos e um sótão - ocupa 132 m2 e, no 1.º andar referido sob 2, apenas existe um quarto de banho, situado na parte destinada à habitação.

5. A entrada exterior situada no rés-do-chão é comum às partes destinadas à habitação e ao salão de cabeleireiro, as quais se situam no 1.º andar, sendo distintas e autónomas as entradas interiores para cada uma dessas partes.

6. A renda anual actual é de 1 235,76 €, paga em duodécimos mensais de 78,76 € pela parte destinada a indústria e 24,22 € pela parte destinada a habitação.

7. Desde cerca de Outubro de 1998, que o réu, na altura com cerca de 74 anos de idade, passou a residir num lar de pessoas idosas da Santa Casa da Misericórdia de Espinho, onde dorme

praticamente todos os dias, toma as refeições, convive com os outros residentes e recebe os seus amigos ou familiares, e donde sai apenas para passar alguns fins-de-semana com os seus

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familiares ou para almoçar com estes, deslocando-se numa cadeira de rodas.

8. No salão de cabeleireiro referido sob 3, MD, nora do réu e por conta deste, atende as respectivas clientes, fazendo ainda algumas encomendas de produtos a fornecedores.

III

A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não o direito de impor aos sucessores de HC a resolução do contrato em causa e o abandono da parte do prédio que dele foi objecto.

A resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática: - lei substantiva aplicável à formação do módulo contratual em causa; - natureza e efeitos jurídicos essenciais do mencionado contrato;

- sentido prevalente das declarações das partes e das demais circunstâncias quanto ao relevo principal ou secundário de cada um dos fins do contrato;

- há ou não fundamento legal para a resolução do contrato em causa? - síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.

Comecemos pela determinação da lei substantiva aplicável no caso vertente.

Nuns casos a lei toma por referência o momento em que o ocorreu o facto gerador dos efeitos jurídicos que são regulados pela lei que vigorava ao tempo da ocorrência do facto (artigo 12º, 1ª parte, do Código Civil).

Noutros, a lei toma ponto de referência a situação gerada pelo mencionado facto, abstraindo deste (artigo 12º, nº 2, 2ª parte do Código Civil).

Considerando que o contrato decorrente das declarações negociais mencionadas sob II 2 foi celebrado no dia 1 de Julho de 1963, a lei substantiva aplicável à determinação da sua natureza e conteúdo é o Decreto nº 5414, de 17 de Abril de 1919 e as Leis nºs 1368, de 21 de Setembro de 1922, 1662, de 4 de Setembro de 1924 e 2030, de 22 de Junho de 1948 (artigos 5º do Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de Novembro de 1966, e 12º, nº 1, do Código Civil de 1966).

Tendo em conta a estrutura das normas concernentes à determinação do sentido das referidas declarações negociais dos sujeitos outorgantes, são aplicáveis as que vigoravam aquando da celebração do mencionado contrato, ou seja, as do Código Civil de 1867.

No que concerne à relação jurídica derivada do mencionado contrato que se prolongou no tempo, é aplicável o regime geral da locação previsto no Código Civil, incluindo o que se prescreve no seu artigo 1028º e regime específico do contrato de arrendamento actualmente em vigor (artigo 12º, nº 2, do Código Civil).

Todavia, porque os factos que motivaram a pretensão formulada pela recorrente ocorreram antes do início da vigência do Novo Regime do Arrendamento Urbano, este não lhes é aplicável, sendo-o o regime do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro (artigos 12º, nº 1, do Código Civil e 59º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro).

2.

Atentemos agora na natureza e nos efeitos jurídicos do contrato celebrado entreHR, por um lado, e MS e HC, por outro.

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Expressava a lei em vigor aquando da celebração do referido contrato, por um lado, que se dava o contrato de arrendamento quando alguém transferia para outrem, por certo tempo e

mediante determinada retribuição, o uso de fruição de uma coisa imóvel (artigo 1º do Decreto nº 5411, de 17 de Abril de 1919).

E, por outro, que se entendia por prédio urbano o edifício incorporado no solo e o terreno que lhe servisse de logradoiro e que não fosse de valor superior; e por prédio rústico ou solo ou terreno que fizesse parte de um prédio urbano, e os edifícios que nele estivessem incorporados e que não fossem de valor superior (§ 1º do artigo 1º do Decreto nº 5411, de 17 de Abril de 1919). E, finalmente, que se o referido valor seria o que constasse da matriz e, na sua falta ou insuficiência, o mesmo seria determinado pela renda que os pactuantes eram, no caso, obrigados a atribuir à parte urbana (§ 2º do artigo 1º do Decreto nº 5411, de 17 de Abril de 1919).

Ademais, os contratos de arrendamento de prédios urbanos para habitação não careciam de ser reduzidos a escrito, entendendo-se que, na falta de título, eram arrendados para esse fim pelo prazo de seis meses (artigo 36º, nºs 1 e 2, da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948).

Por outro lado, os arrendamentos para comércio, indústria ou profissão liberal estavam sujeitos a escritura pública (artigo 37º, nº 1, da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948).

Para efeitos do referido diploma, considerava-se estabelecimento comercial ou industrial o prédio urbano ou parte dele que o comerciante ou o industrial tomassem de arrendamento para o exercício da sua profissão, e era tido por industrial a pessoa sujeita a contribuição industrial que não fosse comerciante (artigo 52º).

Era legalmente admitida a celebração de contratos mistos ao abrigo do princípio da

liberdade contratual, a que se reportava o proémio do artigo 672º do Código Civil de 1867, segundo o qual os contraentes podiam ajuntar aos contratos as condições e cláusulas que bem lhes

parecessem, sendo deles parte integrante e regendo-se, em regra, pelas mesmas normas. Aliás, na matéria ora em análise, a lei estabeleceu, com vista à determinação do rendimento colectável para efeitos de contribuição predial que se o prédio estivesse servindo em parte para habitação e em parte para estabelecimentos comerciais ou industriais ou suas dependências se aplicava a percentagem relativa e proporcional a cada uma dessas partes (artigo 25º, alínea b), § 1º, da Lei nº 1368, de 30 de Setembro de 1922).

A maioria da doutrina e da jurisprudência de então considerava, por um lado, a unidade e indivisibilidade do contrato de arrendamento constante do mesmo documento ainda que tivesse sido discriminada a renda correspondente a cada uma das concernentes partes do locado. E, por outro, que tal contrato, para efeito da definição do seu regime de cumprimento e incumprimento, não podia ser a um tempo de natureza comercial e civil stricto sensu, antes devendo prevalecer, à míngua de outro critério, o que resultasse do rendimento que cada das partes do locado fosse susceptível de produzir (JOSÉ PINTO LOUREIRO, “Manual do Inquilinato, volume I, Coimbra, 1941, páginas 84 a 93).

Ora, considerando a factualidade mencionada sob II 2, estamos perante um contrato de arrendamento urbano destinado à indústria designada cabeleireiro e à habitação, celebrado entre um dos antecessores da recorrente e os antecessores dos recorridos habilitados.

O seu objecto mediato é um primeiro andar de um prédio com um único acesso à via pública, única casa de banho, com vista ao exercício da actividade de cabeleireiro da arrendatária e à residência dela e do arrendatário, casados um com o outro.

Trata-se, assim, de um único contrato de arrendamento com dualidade de fins, um industrial e outro habitacional, com rendas diferenciadas atinentes a cada uma das partes do prédio afectadas

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a cada um deles.

Por via dele, HR vinculou-se a ceder a MS e HC o gozo do referido andar, e os últimos a pagar-lhe determinada renda diversificada no que concerne à parte do andar destinada à habitação e à parte do andar destinada à indústria de cabeleireira.

3.

Vejamos agora o sentido prevalente das declarações das partes e das demais circunstâncias quanto ao relevo principal ou secundário de cada um dos fins do contrato.

Os recorrentes alegaram que a Relação infringiu o disposto nos artigos 236º e 238º do Código Civil em razão de, por via da interpretação das declarações negociais mencionadas sob II 2, e do restante circunstancialismo envolvente, não considerar provado que a parte preponderante do contrato de arrendamento é a que se reporta ao fim habitacional.

Conforme acima se referiu, à determinação do sentido das declarações negociais em causa é aplicável o regime legal de pretérito, ou seja, o que prescreve o Código Civil de 1867.

A questão de saber se as referidas declarações negociais têm ou não o sentido afirmado pelos recorrentes tem, naturalmente, de ser resolvida à luz da sua interpretação.

Este Tribunal, não obstante a limitação legal de sindicância da matéria de facto fixada pela

Relação, pode aqui operá-la, por estar em causa a determinação do sentido juridicamente relevante de declarações negociais segundo critério estabelecido na lei substantiva (artigos 722º, n.º 2, e 729º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

Estabelecia a lei substantiva, aqui aplicável, por um lado, a nulidade do contrato sempre que dos seus termos, natureza e circunstâncias, usos, costume ou lei, se não pudesse depreender qual fosse a intenção ou vontade dos contraentes sobre o seu objecto principal (artigo 684º do Código Civil de 1867).

E, por outro, que se a dúvida recaísse sobre os acessórios do contrato e não pudesse resolver-se pela regra estabelecida no artigo antecedente se devia distinguir consoante os

contratos a interpretar fossem gratuitos ou onerosos, resolvendo-se no primeiro caso pela menor transmissão de direitos e interesses e, no último, pela maior reciprocidade de interesses (artigo 685º do Código Civil de 1867).

Este último artigo versa pois sobre a dúvida na interpretação de elementos diversos do objecto principal dos contratos, e só funciona desde que a dúvida não possa ser resolvida por via do critério constante do primeiro.

Dada a sua previsão e a estrutura dos elementos aqui objecto de interpretação, a conclusão é no sentido de que não tem a virtualidade de aplicação ao caso espécie. Quanto ao artigo primeiramente enunciado, dele resulta implicitamente que o sentido das

declarações das partes sobre o objecto principal dos contratos deve ser determinado com base nos seus termos e natureza, nas circunstâncias que o envolveram, nos usos, nos costumes e na lei. Confrontando as referidas normas de pretérito com as do presente, que constam nos artigos 236º a 238º do Código Civil, que as instâncias aplicaram no caso espécie, verifica-se que o conteúdo de umas e de outras não diverge no essencial.

A regra nos negócios jurídicos em geral é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.

A excepção ocorre nos casos em que não seja razoável imputar ao declarante aquele sentido declarativo ou em que o declaratário conheça a vontade real do declarante (artigo 236º do Código

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Civil).

O sentido decisivo da declaração negocial é, pois, o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente e capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações foram produzidas.

No que concerne aos negócios jurídicos formais, como ocorre no caso vertente, há, porém, o limite de a declaração não poder valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do Código Civil).

Assim, o sentido hipotético da declaração que prevalece no quadro objectivo da respectiva

interpretação, como corolário da solenidade do negócio, tem que ter um mínimo de literalidade no texto do documento que o envolve.

Estamos, pois, no caso vertente, perante um negócio jurídico oneroso e formal, pelo que o critério interpretativo segundo a impressão de um declaratário normal colocado na posição do real

declaratário está limitado por um mínimo literal constante do texto.

Mas na interpretação da vontade dos outorgantes podem relevar, além dos termos do contrato, as várias circunstâncias envolventes, incluindo as práticas concernentes à utilização do objecto mediato da contratação para um ou vários fins e a conduta das partes na própria execução. Na sentença proferida no tribunal da 1ª instância, ponderou-se, por um lado, a menor renda inicial da parte afectada à indústria face à destinada à habitação, a inversão posterior dessa situação, o funcionamento autónomo do valor locativo do imóvel em relação a cada uma destas afectações sem subordinação de uma à outra indiciada pela distinção e autonomia das entradas interiores para cada uma partes e a unidade de entrada exterior para as mesmas partes.

E, por outro, haver supremacia da parte habitacional em relação à parte industrial por a área da primeira corresponder ao quádruplo da última, estar o salão de cabeleireiro subordinado à casa de banho existente na área da habitação e indiciar a cláusula aposta no contrato a supremacia da parte destinada à indústria.

E concluiu-se no sentido de os factos não permitirem o apuramento, com toda a segurança, sobre se algum dos fins em causa tem supremacia em relação ao outro.

A Relação, por seu turno, na interpretação das declarações negociais e das circunstâncias de facto que as envolveram, ponderou, por um lado, não poderem os sujeitos ter querido que cada uma das partes do locado fosse autonomamente regulada, porque não poderiam ser negociadas separadamente com pessoas diferentes, porque a casa de banho que serve a parte relativa ao salão de cabeleireiro se situa na destinada à habitação e a entrada para esta implica a passagem pelo referido salão.

E, por outro, o conteúdo da cláusula da exclusão da despedida da parte destinada à indústria sem despedimento da parte destinada à habitação, abrangendo a mesma a rescisão de todo o arrendamento.

E concluiu, pelas circunstâncias apuradas e as concretas características do locado, acompanhadas pelo texto do contrato de arrendamento, haver subordinação de um fim ao outro. Ademais, a Relação, interpretando as declarações negociais das partes à luz dos critérios dos artigos 236º e 238º do Código Civil e das circunstâncias que disse permitirem determinar a vontade comum conjectural dos contraentes na altura do contrato, concluiu que o

fim principal do contrato de arrendamento em causa era o industrial, ao qual o fim habitacional estava subordinado.

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celebração do contrato por escritura pública, a desnecessidade de documento para formalizar o contrato de arrendamento para habitação, a possibilidade de exercício com base nele de indústria doméstica, ser o primeiro arrendatário mencionado ser a pessoa que trabalhava como cabeleireira, tratar-se de actividade de mulheres para mulheres e serem raros os contratos em que as últimas figuravam como outorgantes antes dos cônjuges.

E, por outro, teve em linha de conta as circunstâncias de o salão de cabeleireiro se situar na parte da frente da casa, de a renda por metro quadrado da casa a ele afecta ser

consideravelmente superior à renda por metro quadrado da casa afecta à habitação, de surgir no contrato o fim industrial em primeiro lugar e a proibição de despedimento quanto ao arrendamento para o exercício da indústria sem despedimento concernente ao arrendamento habitacional.

Perante este quadro, tendo em atenção o conteúdo da lei de pretérito e a actual relativa à interpretação das negociações negociais, bem como a factualidade disponível, considerada pela Relação, não tem este Tribunal fundamento para alterar o juízo de facto que esta formulou, no sentido de que o fim primário do contrato de arrendamento em causa foi o do exercício no locado da indústria de cabeleireiro e de que o fim secundário foi a ocupação habitacional.

Importa, por isso, considerar que se está perante um contrato de arrendamento de fim duplo, o industrial e o habitacional, em que o primeiro é o principal e o último o secundário.

4.

Atentemos agora se há ou não fundamento legal para a resolução do contrato em causa. Conforme resulta do exposto, estamos perante um contrato de arrendamento de duplo fim – industrial e habitacional – em que este se configura como subordinado em relação àquele. Na realidade, não se trata de um arrendamento habitacional com a faculdade de exercício da indústria de cabeleireiro, mas de arrendamento industrial e habitacional, com predomínio do primeiro em relação ao último.

Ora, resulta do nº 3 do artigo 1028º do Código Civil, inspirado pelo princípio da absorção no âmbito dos contratos mistos, que se um dos fins for principal e os outros subordinados,

prevalecerá o regime correspondente ao fim principal, sendo os outros regimes aplicáveis apenas na medida em que não contrariem ou se mostrem incompatíveis com o fim principal.

Em consequência, no quadro da prevalência do fim principal no confronto do fim

subordinado do contrato de arrendamento, o regime próprio do primeiro é o aplicável às causas de resolução do contrato de arrendamento e a outros pontos da relação jurídica envolvente.

Face à parte final do mencionado normativo, a aplicação do regime de incumprimento próprio de arrendamento habitacional é insusceptível de ser compatibilizado, em sede de aplicação, com o regime de incumprimento concernente ao arrendamento industrial.

A recorrente fundamenta a sua pretensão de resolução do referido contrato de arrendamento, além do mais, no disposto no artigo 64.º, n.º 1 alíneas f) e i) do Regime do Arrendamento Urbano.

A este propósito, está assente, por um lado que o antecessor dos recorridos – HC

-arrendatário em relação ao andar em causa, passou a residir, deste o último trimestre do ano de 1998, num lar de pessoas idosas, deixando assim de residir no andar arrendado.

E, por outro, que no salão de cabeleireiro, é MD, nora do referido HC que, por conta deste, atende as clientes e faz algumas encomendas de produtos aos respectivos fornecedores.

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o senhorio resolver o contrato se o arrendatário subarrendar ou emprestar, total ou parcialmente, o prédio arrendado, ou ceder a sua posição contratual, nos casos em que estes actos são ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o disposto no artigo 1049.º do Código Civil.

Este normativo está conexionado com o que se prescreve na alínea f) do artigo 1038º do Código Civil, segundo o qual o locatário não deve proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar.

Tal como foi considerado nas instâncias, os factos disponíveis não revelam que o antecessor dos recorridos haja subarrendado ou emprestado o andar objecto mediato do contrato de

arrendamento ou cedido a sua posição contratual.

Com efeito, o que os factos provados revelam é que, apesar de ele ter deixado de residir no local arrendado, continuou a explorar o mencionado salão de cabeleireiro através de MD, a sua nora.

É altura de analisar o mérito do outro fundamento invocado pela recorrente com vista a impor aos sucessores de HC a resolução do contrato de arrendamento.

Expressa a alínea i) do nº 1 do artigo 64º do Regime do Arrendamento Urbano poder o senhorio resolver o contrato de arrendamento se o arrendatário conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia.

Tendo em linha de conta o que se prescreve na alínea h) do nº 1 deste artigo, o segmento normativo em análise prédio desabitado há mais de um ano reporta-se a prédios arrendados para fins diversos da habitação, exercício do comércio, indústria ou profissão liberal (artigo 9º, nº 3, do Código Civil).

Importa considerar aqui a parte final do normativo em análise, segundo o qual o senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário habitacional não tiver no locado residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou arrendada.

Tendo em conta os factos provados disponíveis o antecessor dos recorridos deixou de ter residência permanente no andar arrendado desde o último trimestre de 1998, certo que passou a viver no referido lar em termos de lá passar a ter o centro da sua vida pessoal e social.

Todavia, como resulta do exposto, trata-se no caso espécie de um contrato de arrendamento de duplo fim, em que o industrial prevalece para efeito do regime legal aplicável sobre o fim habitacional, e, consequentemente, a resolução não pode operar por uma causa relativa a este último fim.

A conclusão é, por isso, no sentido de que não ocorre na espécie a causa de resolução do contrato de arrendamento invocada pela recorrente.

5.

Vejamos finalmente a síntese da solução para o caso, decorrente dos factos provados e da lei.

A interpretação do contrato de arrendamento em causa e das circunstâncias que o envolveram, à luz da lei de pretérito e da actual, implica a conclusão de que o mesmo é de duplo fim, o industrial e o habitacional, aquele a título principal e este a título subordinado.

A relação jurídica derivada do mencionado contrato é essencialmente regida pelas normas atinentes ao contrato de arrendamento urbano para o exercício da actividade industrial.

(11)

Não ocorre o fundamento de resolução do contrato consubstanciado em ilegal

subarrendamento, empréstimo ou cessão da posição contratual, porque o antecessor dos recorridos, por sua própria conta, embora através de uma afim, continuou a explorar o salão de cabeleireiro.

Embora o antecessor dos recorridos tenha deixado de residir no locado, cuja parte destinada ao fim habitacional continuou a ser utilizada instrumentalmente em relação à parte destinada ao estabelecimento, porque o regime unitário aplicável é o relativo à indústria, a referida falta de residência não pode servir de fundamento à resolução do contrato.

Improcede, por isso, o recurso.

Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 5 de Julho de 2007.

Salvador da Costa (relator) Ferreira de Sousa

Armindo Luis

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