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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia 14º SNHCT

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Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

“É um completo idiota, não faz nada.”: discussões acerca dos diagnósticos de crianças e jovens internados no Hospital Colônia Sant’Ana (1942-1944)

Bruna da Silveira Viana*

Resumo: Idiotia, imbecilidade e oligofrenia são diagnósticos recorrentes nos prontuários de crianças e jovens internados no Hospital Colônia Sant’Ana, hoje Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina, nos primeiros anos da década de 1940. Chama atenção que de acordo com os tratados de psiquiatria do período, consultados na própria biblioteca que pertenceu ao Hospital, esses diagnósticos não eram classificados como doenças mentais, o que necessariamente refletia nas recomendações para seu tratamento. Este trabalho busca discutir as características e determinações suscitadas por estes tratados médicos, levando em conta que discursos médicos são capazes de criar sujeitos e identificações. Também é objetivo buscar compreender o contexto que permitiu que, mesmo contrariando o discurso médico em voga para o período, para o qual tais crianças e jovens não eram classificados como doentes, eles fossem encaminhados e aceitos à internação em um hospital psiquiátrico. Para a pesquisa e análise foram utilizados prontuários das décadas de 1942 a 1944 e livros medicina das primeiras décadas do mesmo século.

O Hospital Colônia Sant’Ana (HCS) foi inaugurado em 1941, durante o governo de Nereu Ramos, no município de São José, Santa Catarina, e em 4 de janeiro de 1942 recebeu os seus primeiros pacientes, transferidos do Hospital de Azambuja, instituição particular localizada na cidade de Brusque, seguidos dos doentes do Hospício Municipal Oscar Schneider, em Joinville. Diferente destas duas instituições, que até então prestavam assistência aos alienados em Santa Catarina, em sua fundação, o HCS seria destinado a um tratamento com respaldo científico, de acordo com os estudos na área da medicina psiquiátrica do período.

A criação do HCS obedeceu a um processo de modernização e higienização da cidade de Florianópolis, contribuindo para a segregação e normatização da conduta da população. Neste processo, foram criadas outras instituições na capital, cuja proposta previa o isolamento, tais como o Abrigo para Menores (1940), o Leprosário Santa Tereza (1940) e o Hospital Nereu Ramos (1943), este último destinado aos tuberculosos e portadores de outras doenças infectocontagiosas.

Apesar do que determinava a legislação vigente no período, segundo a qual menores de idade não deveriam ser internados junto a adultos1, nos primeiros anos de funcionamento do HCS tal prática foi recorrente. Para esta pesquisa foram consultados os prontuários dos

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O Decreto nº 24.559, de 3 de julho de 1934, especifica: “§ 2º Os menores anormais somente poderão ser recebidos em estabelecimentos psiquiátricos a êles destinados ou em secções especiais dos demais estabelecimentos especiais dos demais estabelecimentos dêsse gênero.”

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499 indivíduos internados no HCS de 1942 a 19442, desse total 32 são menores de idade, constituindo 6,4% das internações. Considerando o elevado número de crianças e jovens internados em uma instituição não preparada para recebê-los, procurou-se analisar a partir dos prontuários pesquisados quem eram estes sujeitos, ou melhor, como eram descritos nos tratados de psiquiatria do período.

No transcorrer do processo de análise dos prontuários chamaram atenção os diagnósticos encontrados, que em muitos momentos pareciam não corresponder ao que a bibliografia médica indicava ser classificado como doença mental. Os diagnósticos encontrados para os 28 casos aqui analisados foram os seguintes: encefalopatia infantil; epilepsia; esquizofrenia; idiotia; imbecilidade; neura-sífilis; oligofrenia; paralisia geral; psicose maníaco depressiva. É difícil precisar a distribuição deles entre os menores, a quantidade exata de crianças e jovens com cada um dos diagnósticos, afinal alguns pacientes receberam mais de um diagnóstico ao longo de sua permanência na instituição.

Mesmo assim, podemos identificar que se sobressaem entre os diagnósticos, casos do que hoje o próprio discurso médico classifica como retardo mental3. São eles: idiotia, imbecilidade; oligofrenia e paralisia geral. Também é recorrente o diagnóstico para epilepsia, doença hoje mais voltada para o campo da neurologia. A respeito destes diagnósticos, que na documentação mostraram-se imprecisos e móveis, é que iremos tratar agora, levando em conta que a forma de lidar com diferentes enfermidades e deficiências foram constituídas a partir do discurso médico e se transformaram ao longo do tempo.

Conforme colocado anteriormente, não é intenção deste trabalho corroborar ou refutar tais diagnósticos. Aos historiadores cabe a tarefa de perscrutar estas experiências da loucura, problematizando as questões em jogo quando se trata de definir um lugar para os menores tidos como loucos neste período e para isso torna-se necessário compreender como tais patologias eram compreendidas na época.

Com o objetivo de nos aproximarmos dos significados que esses termos abrangiam, enquanto diagnósticos médicos, foram consultados alguns livros pertencentes ao acervo de livros do CEDOPE. Esses livros são provenientes da antiga Biblioteca Médica do HCS e

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Os prontuários datados de 1940 a 1970 estão sob guarda do Centro de Documentação e Pesquisa do Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina, localizado na própria instituição. O centro foi criado em 2011 e tem por objetivo salvaguardar e disponibilizar para pesquisa os documentos remanescentes do antigo Hospital Colônia Sant’Ana. A pesquisa foi realizada inicialmente para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso da presente autora, que acabou por se desdobrar em projeto de mestrado.

3 Atualmente o Retardo Mental consta no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV) (2002, p. 73) como sendo basicamente “[...] um funcionamento intelectual significativamente inferior à média [...]”, sendo dividido em diferentes níveis, conforme a gravidade do retardo.

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constituem um acervo de grande importância para todos aqueles que pesquisam a história da psiquiatria e se deparam com documentos que remetem a discursos e práticas médicas de décadas passadas. A referida biblioteca foi inaugurada juntamente com a fundação do hospital e certamente reflete boa parte do discurso psiquiátrico da época.

Durante a pesquisa, não foram encontrados livros das décadas de 1920, 1930 ou 1940 que tratassem dos diagnósticos psiquiátricos4. Por conta disso, foram selecionados livros que mais se aproximassem do período estudado, com o objetivo de que eles nos apontem os caminhos para compreender os diagnósticos encontrados.

Datado de 1914, o livro L’enfant et son médecin, de autoria de Dr. Albert B. Ball, apresenta algumas definições para os termos.

Idiotia, Imbecilidade e Debilidade Mental: Parada mais ou menos absoluta no

desenvolvimento da inteligência. Idiotia congênita: devido à degeneração hereditária por alcoolismo parental, cruzamento de neuróticos, alienados. Idiotia

adquirida: por alteração das meninges e do cérebro, conseqüência de problemas

nutricionais de origem digestiva ou doenças infecciosas, hereditárias ou adquiridas, tais como febre tifóide, febres eruptivas, sífilis. Imbecilidade: fraqueza mental congênita, porém superior ao idiota, as faculdades de relacionamento são mais desenvolvidas, o imbecil pode ser auto-suficiente se for guiado. Debilidade mental: casos ainda menos acentuados. (BALL, 1914, p. 215, tradução nossa)

Vemos pela citação que tanto a idiotia quanto a imbecilidade – a debilidade mental não consta nos prontuários pesquisados - eram caracterizadas considerando o desenvolvimento da inteligência das crianças e jovens, sendo que, em um escala de desenvolvimento, o idiota estaria mais atrasado que o imbecil. O livro traz ainda indicações para prevenção e tratamento:

1. Prevenção: tratar os problemas digestivos crônicos, isolar os doentes contagiosos, tratar a sífilis hereditária. 2. Cura: pouco satisfatório, exceto a imbecilidade e a debilidade mental, onde o tratamento por educação física e moral, em casas especiais, dão resultados apreciáveis. Higiene em todas as formas. (BALL, 1914, p. 215, tradução nossa)

Quase três décadas antes da criação do HCS e o livro já tratava da improvável cura dos idiotas, e para o caso de imbecis e débeis mentais, a importância de casas especiais, onde o tratamento se daria por educação física e moral. Entretanto, as trajetórias dos indivíduos aqui estudados, apresentadas por seus prontuários, mostram que o lugar disponível para eles

4 Cabe salientar que foram consultadas outras bibliotecas, como a Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina e nada a este respeito foi encontrado.

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naquele momento era o hospital psiquiátrico, onde o tratamento esteve longe de estar voltado para educação que visasse seu desenvolvimento.

O livro também apresenta considerações a respeito da caracterização e sintomas da epilepsia, que constitui seis dos diagnósticos apresentados para os menores: “[...] crises de convulsão desde os primeiros anos; raiva violenta sem causa; [...] acesso de tiques convulsivos; fugas, ausências, sonambulismo freqüente, [...] incontinência urinária noturna, ocorrendo a intervalos relativamente longos.” (BALL, 1914, p. 186, tradução nossa). A descrição sintomática parece englobar os mais diferentes comportamentos, porém, as convulsões aparecem como central.

De acordo com Maria Clementina P. Cunha (1986, p. 128): “Ao lado dos “idiotas” e “imbecis”, os sifilíticos e, sobretudo, os epiléticos constituem os principais contingentes de internos cujo diagnóstico obedece estritamente à matriz organicista da “afecção”.” Tratando a respeito das duas primeiras décadas do século XX no Hospício Juquery, a autora defende que a presença de idiotas, imbecis e epiléticos no hospital confirmava a “existência de um substrato orgânico que a psiquiatria no período tentava atribuir à “doença mental”.” (CUNHA, 1986, p. 128).

No Dicionário de Têrmos [sic] Médicos (1962), de autoria de Dr. Pedro A. Pinto, também pertencente ao acervo de livros do HCS, encontramos as definições para alguns dos diagnósticos acima. Apesar de ser datado de um período posterior, duas décadas, ao recorte do presente estudo, ajuda a nos aproximarmos do significado que tinham em meados do século XX. Vamos aos termos e significados encontrados.

Para encefalopatia encontra-se a seguinte definição, apenas: “Doença do encéfalo5.” (PINTO, 1962, p. 163). Trata-se de um diagnóstico generalizante, que pouco diz sobre do que o paciente sofria realmente, podendo abarcar as mais diversas doenças psíquicas ou neurológicas.

Epilepsia: “Psicose epiléptica, psicose que se manifesta por acessos, sem convulsões, ou com elas, com perturbações psíquicas, perda dos sentidos ou da consciência.” (PINTO, 1962, p. 172). Classificada atualmente como uma doença neurológica (COCKERELL; SHORVON, 1997), a epilepsia naquele momento foi também um dos alvos do saber psiquiátrico.

A oligofrenia foi o único diagnóstico não encontrado nos livros pesquisados. Porém, no dicionário consultado, constam os seguintes termos: Frenologia: “Estudo, pelo exame da

5 “Parte do sistema nervoso contida na cavidade do crânio e que compreende o cérebro, o cerebelo e o bulbo raquiano.” (BUENO, 1996, p. 237).

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conformação exterior do crânio, das disposições inatas do indivíduo. Literalmente, significa estudo do espírito. De fren, enos, espírito, e logos, estudo, discurso.” (PINTO, 1962, p. 212), e Oligo: “Palavra grega que significa pouco, diminuição.” (PINTO, 1962, p. 319). A partir dos dois significados, é possível arriscar ao que atribuía o diagnóstico oligofrenia: uma diminuição, pouca quantidade, de crânio, espírito, ou mesmo inteligência.

Para idiotia o dicionário apresenta a seguinte definição: “Idiotismo. Forma de deficiência intelectual. Anea. Condição em que as faculdades mentaes não se manifestam.” (PINTO, 1962, p. 252), é possível perceber que, ao menos na década de 1960, ele já aparece nos livros de medicina como uma forma de deficiência.

Por fim, para o termo imbecil, da qual deriva imbecilidade, consta: “Fraco; fraco de inteligência. Der. Imbecilidade.” (PINTO, 1962, p. 253). Estranho pensar que tal definição, pautada unicamente no nível de inteligência, possa ser o diagnóstico de algum tipo de doença, considerando que foi o motivo que levou muitas das crianças e jovens deste estudo a serem internadas. Porém é preciso, claro, compreender que se trata de apropriações e práticas de outra época.

Em um primeiro momento esse dado causa certo estranhamento, por aparentar-se incoerente com as práticas pautadas na medicina mais moderna, como defendido nos discursos dos fundadores do HCS. As autoridades baseavam-se na aquisição de uma série de equipamentos, como o aparelho de Raio X, na organização do espaço, com salas para cada atividade, como os blocos cirúrgicos e dentários e na figura de especialistas, para apresentar o hospital como lugar de conhecimento e práticas científicas. (FONTOURA, 1997).

A caracterização, e posterior distinção, de retardo mental e loucura, assim como muitas das classificações dentro do campo de saber da psiquiatria, transformaram-se ao longo do tempo. Nunes Filho (1996) traz algumas considerações sobre o assunto, focando no trabalho de Esquirol6:

Até o século XVIII, o termo “idiotismo” englobava o conjunto de problemas deficitários. O médico francês Esquirol foi o primeiro a fazer a distinção entre demência e retardo mental.

Os termos retardo mental, oligofrenia, deficiência mental, subnormalidade mental, amência são freqüentemente utilizados por diversas correntes para designar pessoas que apresentam déficit intelectivo. (NUNES FILHO, 1996, p. 57)

6 Jean Étienne Dominique Esquirol (1772-1840), foi um psiquiatra francês, discípulo de Pinel. Entre suas principais obras está Des maladies mentales considerées sous les rapports médical, hygiénique e médico-légal (1838). Ver: ALEXANDER ; SELESNICK. História da Psiquiatria. São Paulo: IBRASA, 1968.

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É preciso considerar que a internação dos menores em uma instituição psiquiátrica estava inserida dentro de práticas em um momento específico, que se relacionam com o seu presente e as visões de mundo suscitadas por ele. A discussão de Foucault (2006) a respeito da psiquiatrização da infância pode auxiliar nessa compreensão, ainda que tratando de local e período diferentes7.

Para Foucault (2006) a difusão do poder psiquiátrico se realizou a partir da psiquiatrização da infância. Segundo ele, no século XIX, a criança foi o maior “suporte” para a difusão do poder psiquiátrico. O autor descarta a possibilidade de a psiquiatrização da infância ter se iniciado pela descoberta da criança louca ou da infância como o local de origem da doença mental do adulto. Para ele, e isso interessa especificamente a este estudo:

Eu diria então – é essa hipótese que quero considerar – que a psiquiatrização da criança, por mais paradoxal que seja, não passou pela criança louca ou pela loucura da infância, pela relação constitutiva entre a loucura e a infância. Parece-me que a psiquiatrização da criança passou por outro personagem: a criança imbecil, a criança idiota, a que logo será chamada de criança retardada, isto é, uma criança que se tomou o cuidado [...], desde o início, desde os trinta primeiros anos do século XIX, de especificar bem que não era louca. Foi por intermédio da criança não-louca que se fez a psiquiatrização da criança e, a partir daí, que se produziu essa generalização do poder psiquiátrico. (FOUCAULT, 2006, p. 257)

Segundo o autor, até o final do século XVIII, o que se chamava de imbecilidade, estupidez e idiotia nos tratados de nosografia, não se distinguiam da loucura em geral, por serem considerados uma variação dentro de uma grande família de delírios. No início do século XIX, com as definições de Esquirol e Belhomme8, é que serão elaboradas distinções entre as noções de idiotia, retardo mental e imbelicidade. (FOUCAULT, 2006, p. 260). Para Esquirol: “A idiotia não é uma doença, é um estado no qual as faculdades mentais nunca se manifestaram ou não puderam se desenvolver suficientemente...” (ESQUIROL apud FOUCAULT, 2006, p. 260). Em Belhomme se tem a seguinte definição: “a idiotia é [...] um estado constitucional no qual as funções intelectuais nunca se desenvolveram...” (BELHOMME apud FOUCAULT, 2006, p. 260).

A partir dessas definições, Foucault (2006) coloca que as diferenças entre a idiotia e a loucura vão ser pautadas na noção de desenvolvimento. Por exemplo, tomamos a noção de desenvolvimento orgânico: o autor coloca que o idiota esteve ligado a vícios orgânicos de constituição, quanto à demência a lesões que ocorrem a partir de certo momento. Ou seja, no decorrer do seu desenvolvimento, sendo que o idiota nem chega a desenvolver-se.

7 Foucault (2006) trata sobre a psiquiatria na França no século XIX.

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O desenvolvimento é tomado como norma, comum a todos, com um ponto ideal de chegada.

Daí – e esta é a quarta coisa importante -, vemos esboçar-se uma dupla normatividade. De um lado, na medida em que o idiota é alguém que parou em certo estágio, a amplitude do idiota vai ser medida em relação a uma certa normatividade, que será a do adulto. O adulto vai aparecer como o ponto ao mesmo tempo real e ideal do término do desenvolvimento; o adulto vai funcionar portanto como norma. E, de outro lado – o texto de Seguin diz isso com muita clareza-, a variável lentidão é definida pelas outras crianças: um retardado é alguém que se desenvolve mais lentamente que os outros. (FOUCAULT, 2006, p. 264)

Dessa forma, o idiota ou o retardado não são caracterizados como doentes. Não se trata de alguém que saiu da normalidade, mas de alguém que se situa num grau inferior dentro da própria norma. Segundo Foucault (2006) o idiota passa a pertencer a categoria infância, não mais à doença, sendo caracterizada como a criança anormal. A tomada dessa categoria de anomalia pela psiquiatria é a discussão principal do autor, identificando a psiquiatrização da criança anormal como “princípio de difusão do poder psiquiátrico.” (FOUCAULT, 2006, p. 267). Isso porque, apesar de no domínio teórico a idiotia e doença mental serem descoladas, diferenciadas, na prática viu-se a colocação do idiota no interior do espaço psiquiátrico, “uma colonização da idiotia por este.” (FOUCAULT, 2006, p. 267).

De acordo com o autor, a lei francesa de 1838, reguladora do regime para alienados, determinava que o preço do internamento no asilo deveria ser pago pelo departamento ou coletividade local de onde provinha o interno. Isso fez com que os médicos tivessem de atestar os idiotas como perigosos, para que as coletividades aceitassem pagar sua assistência. “[...] vocês vêem se desenvolver pouco a pouco toda uma literatura médica que vai se levar cada vez mais a sério, que vai, digamos assim, estigmatizar o débil mental e fazer dele efetivamente alguém perigoso.” (FOUCAULT, 2006, p. 278).

No Brasil, com o surgimentos dos hospitais psiquiátricos no final do século XIX, percebe-se grande influencia da psiquiatria europeia, principalmente francesa, e nesta perspectiva, entendia-se que não poderia haver nenhum sintoma de loucura que não atingisse a inteligência (MACHADO, 1978, p. 392). Tratando especificamente do Brasil, em seu livro Os infames da história (2008), Lilia Ferreira Lobo vai discutir como se deram as práticas de assistência aos menores anormais. Segundo a autora, ao longo de todo século XIX pouco se produziu de práticas e instituições que disseminassem a assistência à criança pobre. Sobre isso:

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Ao menos até o final do século XIX, pauperismo, infância e invalidez para o trabalho não eram ainda considerados questões de Estado ou objeto das práticas médico-filantrópicas, assim como a prevenção e, principalmente, a recuperação não se generalizavam às camadas mais pobres. (LOBO, 2008, p. 334)

Já no início do século XX a institucionalização do idiota pela psiquiatria faz nascer a criança anormal. Segundo Lobo (2008, p. 350), Esquirol foi referência para boa parte das teses brasileiras a respeito da definição de idiotia, não considerada uma doença, mas sim, “abolição das faculdades intelectuais.”. Porém:

Em comparação ao louco, o alienismo livresco dos médicos brasileiros pouco se interessou diretamente, no século XIX, em ao menos descrever ou reproduzir com mais detalhes o que encontravam nos manuais estrangeiros, notadamente franceses, sobre o idiota. Poucas linhas resumiam a obra de Esquirol, suas classificações (mania, monomania, idiotia e demência), as distinções entre idiotia e demência, às rápidas menções a incurabilidade do idiota e observações sobre seu comportamento moral. (LOBO, 2008, p. 350)

De acordo com a autora as discussões estabelecidas na França, e as poucas entre os médicos brasileiros, sobre a diferenciação do idiota e do louco não foram suficientes para mantê-los em espaços asilares diferentes, como já alertara Foucault (2006). Podemos comprovar a psiquiatrização da infância anormal a partir dos menores aqui analisados, que além de serem inseridos dentro de um espaço asilar destinado ao tratamento psiquiátrico, encontravam-se junto aos adultos.

Lobo (2008) coloca que na segunda metade do século XIX no Brasil, considerando o contexto de criação do Hospício Pedro II, a distinção entre os alienados em geral e os idiotas e imbecis era a sua curabilidade ou não. Os reconhecidos como idiotas e imbecis eram considerados incuráveis, diferente dos alienados em geral. Isso se relaciona com a própria definição de idiotia e imbecilidade, tomada como uma parada no desenvolvimento considerado normal, como ressalta Foucault, o que fazia com que o sujeito permanecesse no mesmo nível de desenvolvimento para o resto da vida.

Em Danação da norma, Roberto Machado (1978) coloca que a criação dos hospícios obedece a perceptiva de somente receber loucos tidos como curáveis, e portanto não receber idiotas, imbecis, epiléticos ou paralíticos dementes, que são incuráveis e podem conviver com suas famílias. Apesar da diferenciação entre loucos “incuráveis” e loucos “curáveis”, eles permaneceram confinados nas mesmas instituições. O HCS não estava isolado nesse processo, sendo algo recorrente na psiquiatria brasileira também em outros estados9. Isso

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aconteceu, segundo Lobo (2008), por conta da inexistência de outros espaços que pudessem oferecer assistência ao idiota. Até o início de século XX, quando da criação do Pavilhão-Escola Bourneville para Crianças Anormais, as instituições que existiam voltadas para as “separações dos indivíduos considerados defeituosos em espaços físicos diferentes” (LOBO, 2008, p. 393) eram o Hospício de Pedro II, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos e o Instituto dos Surdos-Mudos.

Stanislau Krynski (1969) coloca que foi no período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial que houve uma ampliação nos estudos e na assistência aos deficientes mentais10. Em 1963, é criada no Brasil a Federação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), seguida, em 1966, pela Associação Brasileira para o Estudo Científico da Deficiência Mental.

Conforme colocado anteriormente, consta no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV) (2002) a definição para Retardo Mental. Isso demonstra que o Retardo Mental, também nos dias de hoje, está associado ao campo do saber médico. Maria T. E. Mantoan (1989), aborda essa questão:

A história da deficiência mental é marcada pela hegemonia das ciências médicas e paramédicas. Esse fato influiu significativamente na explicação do significado da deficiência e encaminhou sua abordagem para uma linha mais terapêutica que educacional. (MANTOAN, 1989, p. 12)

Ainda sobre isso, em um outro trecho: “A retrospectiva histórica mostra que da educação de deficientes mentais ocuparam-se muito mais os médicos, os psicólogos, do que os professores.” (MONTOAN, 1989, p. 13). A autora defende, a educação de deficientes mentais como campo de “inteira e fundamental competência” (MONTOAN, 1989, p. 13) da Pedagogia.

Não se trata aqui de optarmos por um dos lados e defender a que ciência pertence legitimamente o campo de conhecimento sobre a deficiência mental, afinal, trata-se sem dúvida de um assunto que precisa ser tratado em uma perspectiva interdisciplinar. Porém, é possível questionar até que ponto a internação dos menores diagnosticados com oligofrenia, imbecilidade, idiotia e paralisia geral, foi motivada pelo objetivo de disponibilizarem a eles um tratamento.

10 O autor cita algumas instituições criadas em determinados países neste período, como a Associação Nacional para Crianças Retardadas (NARC), em 1951 e o Conselho de Deficiência Mental, em 1961, nos EUA; na Grã-Bretanha, em 1955, o Ministério da Educação levantou as necessidades educacionais dos mentalmente retardados. Em 1962 foi criada a Liga Internacional de Sociedades de Amparo aos Deficientes Mentais, e em 1964 a organização da Associação Internacional para o Estudo Científico da Deficiência Mental. Em 1965, a Comissão de Investigação sobre a Deficiência Mental, na Irlanda, deu as diretrizes nas quais os países deveriam se basear para o tratamento dos cidadãos deficientes mentais.

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O Hospital parece atuar mais como uma instituição de caridade, não atendendo aos pressupostos que marcaram sua criação como espaço destinado ao que havia de mais moderno na psiquiatria da época. Como vimos, já em 1914 o Dr. Albert B. Ball postulava que o tratamento dos mesmos só poderia ser realizado em instituições especiais de educação. Como sabemos, o HCS não era voltado a essa função, logo, desprovia de funcionários e recursos para funcionar como instituição educacional.

Assim, os primeiros anos de funcionamento do HCS colaboram para refletirmos a respeito de uma sociedade em constante produção de exclusões, que se estenderam dos adultos loucos, criminosos, leprosos, vagabundos, menores abandonados aos menores “anormais”. São traços de um período de valorização do trabalho e do ensino, lugares onde os menores “anormais” não conseguiriam se enquadrar, e de avanço do poder psiquiátrico, capaz de ditar as regras da normalidade e as regras de correção.

Referências

BUENO, Francisco da Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD: LISA, 1996.

COCKERELL, O. Charles; SHORVON, Simon D. Epilepsia: conceitos atuais. São Paulo: Lemos Editorial, 1997.

CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. 217 p.

FONTOURA, Arselle de Andrade da. Por entre luzes e sombras: Hospital Colônia Santana: (re)significando um espaço de loucura. 1997. 160 f. Dissertação (Mestrado) - Ufsc, Florianópolis, 1997.

FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KRYNSKI, Stanislau. Deficiência mental. Rio de Janeira: Livraria Atheneu S. A., 1969.

LOBO, Lilia Ferreira. Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.

MANTOAN, Maria Teresa Egler. Compreendendo a deficiência mental: novos caminhos educacionais. São Paulo: Editora Scipione, 1989.

NUNES FILHO, Eustachio Portella. Psiquiatria e saúde mental: conceitos clínicos e terapêuticos fundamentais. São Paulo: Editora Atheneu, 1996.

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