• Nenhum resultado encontrado

A NOVA RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN: Considerações sobre a racionalidade, a tensão decisionismo/legalismo, e o Estado Democrático de Direito

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A NOVA RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN: Considerações sobre a racionalidade, a tensão decisionismo/legalismo, e o Estado Democrático de Direito"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

1

A NOVA RETÓRICA DE CHAÏM PERELMAN:

Considerações sobre a racionalidade, a tensão decisionismo/legalismo, e o Estado Democrático de Direito

Marco Antônio Sousa Alves

Bacharel em Direito, Mestre e Doutorando em Filosofia pela UFMG Professor da Faculdade de Direito Milton Campos

Introdução

Comecemos este capítulo por uma breve apresentação do autor que será analisado neste momento. Chaïm Perelman (1912-1984) nasceu em Varsóvia e transferiu-se para Bruxelas em 1925, naturalizando-se belga. Em seus primeiros passos intelectuais, Perelman recebeu uma formação jurídica, escrevendo uma tese de doutoramento em direito concluída em 1934, juntamente com uma formação em lógica formal, ocorrida no decorrer da década de trinta sob a influência do neopositivismo, defendendo uma tese de doutoramento em 1938 sobre o lógico alemão Gottlob Frege. Nesse período, voltou à Polônia para estudar na famosa Escola Polonesa de Lógica, Matemática e Filosofia Positivista, onde foi aluno de Kotarbinski e Lukasiewicz. Com o advento da Segunda Guerra, toda essa formação logicista acabou se voltando contra ela mesma. Perelman, de origem judaica, não concordou em entregar o discurso sobre os valores ao arbítrio, que seria a conseqüência natural de uma posição neopositivista, e interessou-se pela possibilidade de uma lógica dos juízos de valor, com o fim de subtrair este âmbito do domínio do irracional. A partir de 1948 e durante dez anos de pesquisas em conjunto com Lucie Olbrechts-Tyteca, estudiosa de ciências econômicas e sociais, Perelman abandonou seu estudo anterior de uma lógica específica dos juízos de valor, concluindo pela sua inexistência, e se voltou para as técnicas de argumentação e persuasão estudadas pelos antigos e, em particular, por Aristóteles. Os resultados dessa nova reflexão estão, sobretudo, em duas obras: Retórica e Filosofia (Rhétorique et Philosophie), de 1952, e Tratado da Argumentação: a nova retórica (Traité de l’Argumentation: La nouvelle rhétorique), de 1958.

Além do desenvolvimento da nova retórica, Perelman aprofundou seus estudos em algumas repercussões que a teoria da argumentação trazia para a filosofia, o direito, a moral e a justiça. Seus escritos possuem natureza fragmentária, com exceção do Tratado da Argumentação, e estão espalhados em uma grande quantidade de artigos. Perelman lecionou Lógica, Moral e Filosofia na Universidade de Bruxelas até 1978, foi o diretor de importantes centros de pesquisa na Bélgica e também professor visitante em diversas universidades pelo mundo. Em dezembro de 1983, Perelman recebeu o título de Barão do rei Balduíno da Bélgica em reconhecimento à sua obra, vindo a morrer logo depois, em 1984.

Após estas breves notas biográficas, é hora de adentrar em seu pensamento. A proposta de Chaïm Perelman de uma nova retórica ainda pode ser considerada, mesmo depois de mais de cinqüenta anos de sua elaboração, a teoria mais completa e uma referência indiscutível em todos os estudos em teoria da argumentação e retórica. Aliás, Perelman deve a isso a posição única e fundamental que ocupa na história do pensamento filosófico, sendo seu nome geralmente associado à revalorização da retórica. Ao pretender desenvolver uma teoria da argumentação, Perelman se deu conta da importância dos antigos estudos de Aristóteles e, Citar:

ALVES, Marco Antônio Sousa. A nova retórica de Chaïm Perelman: considerações sobre a racionalidade, a tensão decisionismo/legalismo, e o Estado Democrático de Direito. Trabalho apresentado no Seminário Teoria da Argumentação e Nova Retórica, PUC-MG, Belo Horizonte, 2009. Disponível em http://ufmg. academia.edu/MarcoAntonioSousaAlves/Papers/898214/

A_nova_retorica_de_Chaim_Perelman_Consideracoes_sobre_a_racionalidade_a_tensao_decisionismo_leg alismo_e_o_Estado_Democratico_de_Direito. Acesso em: [data de acesso]

(2)

ampliando o campo da lógica, admitiu na esfera do racional também os raciocínios retóricos. Filiando-se claramente entre os neo-aristotélicos, Perelman só pode ser bem compreendido à luz de algumas idéias de Aristóteles, que convém apresentar rapidamente.

Em Aristóteles, assistimos a uma sistematização de fôlego do problema retórico, sendo o estagirita considerado o pai da teoria da argumentação. No conjunto da teorização aristotélica, ciência, sabedoria, arte, dialética e retórica compõem uma série extremamente rica de formas de racionalidade, dotadas de diferentes graus de exatidão, de rigor ou de precisão, mas todas igualmente caracterizadas pelo argumentar. Podemos tratar os textos aristotélicos dos Analíticos, dos Tópicos, das Refutações Sofísticas, da Retórica e da Poética como um conjunto, uma teoria da argumentação no sentido mais geral, uma verdadeira doutrina dos logoi (ou das diferentes formas de se usar a razão). Aristóteles sustentava que é próprio do homem buscar a precisão, em cada gênero de coisa, apenas à medida que o admite a natureza do assunto.1 Nos Analíticos, o estagirita expõe a concepção geral do raciocínio humano a partir do silogismo e estabelece as bases da lógica formal e da racionalidade lógico-dedutiva. Complementando a demonstração, Aristóteles introduz nos Tópicos a racionalidade dialética, assentada na prática do diálogo, ou seja, na arte de argumentar através de questões e respostas. O raciocínio dialético se move entre um pólo científico e outro construído sobre opiniões, sendo sua função comprovar a força de uma tese através de uma prática de discussão. Enquanto a lógica realiza uma demonstração irrefutável, pelo método das evidências, os entimemas ou silogismos retóricos partem do convincente (provas, exemplos, verossimilhanças e sinais), que não possui o rigor das premissas lógicas e apresenta grau de certeza variável. Na Arte Retórica, Aristóteles vai além das meras listas de receitas retóricas, recolhidas da empiria e da rotina, e desenvolve uma verdadeira teoria retórica, assentada nos princípios gerais da argumentação. Acentua-se o elemento argumentativo, ou seja, os meios de prova, o raciocínio empregado, o silogismo aproximativo, que era até então negligenciado em favor da produção de emoção no auditório. A retórica é definida como a “faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão” (Arte Retórica, 1355b25) e passa a ocupar um posto intermediário entre a poética e a filosofia, em uma escala que é ascendente no sentido intelectualista. Assim, Aristóteles provê uma fundamentação mais sólida à retórica, privilegiando não o seu poder de dominar, mas a capacidade de defender-se.2 A erística, por sua vez, é uma falsificação da dialética e da retórica, pois se assenta em opiniões que na aparência são prováveis, mas na realidade não o são. Ela é a prática do puro contestar (de eris, que significa contestação, litígio) que não é uma verdadeira forma de racionalidade, pois não tem em mira o exame crítico de uma tese, mas apenas o sucesso na discussão, obtido por qualquer meio, ainda que desleal. E a poética, por fim, aproxima-se da retórica e da dialética não pelo estudo dos meios de prova ou do interesse persuasivo, mas por outros aspectos do discurso, como o problema do estilo, da expressividade e da linguagem.

Após Aristóteles, a retórica é alçada à condição de ciência, passando a compor organicamente a filosofia ao lado da dialética. Não é exagerado dizer que foi da leitura atenta

1 Aristóteles deixa essa sua visão bem clara na Ética a Nicômaco (1094b24) e na Metafísica (α, 3, 995a15). 2 Quanto à complexa relação entre retórica e dialética em Aristóteles, em uma passagem (Arte Retórica, 1354a1)

a retórica é descrita como uma contraparte (antistrophos) da dialética, em outra (Arte Retórica, 1356a31-32) é tida por uma parte da dialética similar a ela (homoiõma). Temos assim uma dupla conexão entre retórica e dialética. A retórica aproxima-se da dialética ao se valer de seus resultados, métodos e objetivos, mas difere ao se endereçar a auditórios particulares contingentes, possuindo objetivos práticos mais específicos (cf. Arte Retórica, 101b3-4; 1356a26).

(3)

dos textos aristotélicos que nasceu o programa da nova retórica e o que podemos chamar de um renascimento dos estudos em teoria da argumentação. Segundo Perelman, a tradição filosófica ocidental atrofiou a noção de razão na modernidade e preservou de Aristóteles apenas sua lógica formal, sendo o principal projeto da nova retórica justamente ampliar novamente as possibilidades do uso da razão, permitindo ao homem ser “racional” em outros domínios, como o direito e a moral.

O presente estudo da proposta de Perelman da nova retórica será dividido em quatro partes. Em um primeiro momento, será realizada uma apresentação dos traços gerais da teoria da argumentação ou nova retórica de Perelman. Em seguida, serão abordados os três temas-problema que movem a reflexão deste livro: a questão da racionalidade, a relação entre decisionismo e legalismo, e o Estado Democrático de Direito. Pretendemos situar essas questões no interior do pensamento do Perelman e acreditamos que, embora alguns desses temas não constituam o centro de suas preocupações, podemos encontrar em Perelman interessantes elementos para pensarmos uma nova concepção de racionalidade, mais pragmática, e também uma superação da tensão entre decisionismo e legalismo, através da descoberta da esfera intermediária do razoável.

1. A teoria da Argumentação ou nova retórica de Perelman

Antes mesmo de se falar em teoria da argumentação, convém deixar claro o que se entende por tal termo. Para Perelman, a argumentação é compreendida de forma intimamente ligada à adesão, pois só há argumentação no campo em que há liberdade de adesão. Perelman & Olbrechts-Tyteca definem o objeto de uma teoria da argumentação como “o estudo das técnicas discursivas permitindo provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses que se apresentam ao seu assentimento”.3

A concepção de Perelman é, dessa forma, uma típica teoria centrada no auditório, ou seja, naqueles de quem se visa ganhar a adesão, e, por esta razão, a relação com a retórica é bastante estreita. Mas a argumentação não é mera prática persuasiva, pois, apesar de visar a adesão do auditório, ela pretende conquistá-la por via de argumentos, de razões. Dessa forma, o argumentar, ou seja, o participar de uma argumentação, é definido por Perelman como “fornecer argumentos, ou seja, razões a favor ou contra uma determinada tese”.4

Após essa definição prévia, convém agora relacioná-la com a retórica, tendo em vista que Perelman chamou de nova retórica o seu estudo da argumentação. Ao abandonar sua formação lógica neopositivista, Perelman encontrou nos antigos tratados de retórica, e em especial a Retórica e os Tópicos de Aristóteles, a possibilidade de colocar os juízos de valor na esfera do racional. Os raciocínios tratados por Aristóteles nos Tópicos são por ele chamados de dialéticos e nos forçam a colocar uma questão: porque Perelman nomeia sua teoria de nova retórica e não nova dialética? Logo na introdução do Tratado da Argumentação, Perelman

3

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l’Argumentation: La nouvelle rhétorique. 2ªed. Bruxelles: Editions de l’Institut de Sociologie, 1970, p.5. Tradução nossa.

4 PERELMAN, Chaïm. Argumentação. In: Enciclopédia Einaudi. vol. 11. Imprensa nacional – casa da moeda,

(4)

procura justificar a escolha do termo retórica em detrimento de dialética, em uma passagem que, apesar de extensa, achamos por bem citar:

Nossa análise concerne às provas que Aristóteles chama de dialéticas, examinadas por ele nos Tópicos, e cuja utilização mostra na Retórica. Essa evocação da terminologia de Aristóteles teria justificado a aproximação da teoria da argumentação à dialética, concebida pelo próprio Aristóteles como a arte de raciocinar a partir de opiniões geralmente aceitas (eulogos). Várias razões, porém, incentivaram-nos a preferir a aproximação à retórica. A primeira delas é o risco de confusão que essa volta a Aristóteles poderia trazer. Pois se a palavra dialética serviu, durante séculos, para designar a própria lógica, desde Hegel, e por influência de doutrinas nele inspiradas, ela adquiriu um sentido muito distante de seu sentido primitivo, geralmente aceito na terminologia filosófica contemporânea. Não ocorre o mesmo com a palavra retórica, cujo emprego filosófico caiu em tamanho desuso, que nem sequer é mencionada no vocabulário de filosofia de A. Lalande. Esperamos que nossa tentativa fará reviver uma tradição gloriosa e secular. Mas outra razão, muito mais importante, a nosso ver, motivou nossa escolha: é o próprio espírito com o qual a Antiguidade se ocupou de dialética e de retórica. O raciocínio dialético é considerado paralelo ao raciocínio analítico, mas trata do verossímil em vez de tratar de proposições necessárias. A própria idéia de que a dialética concerne a opiniões, ou seja, a teses às quais se adere com uma intensidade variável, não foi aproveitada. Dir-se-ia que o estatuto do opinável é impessoal e que as opiniões não são relativas às mentes que a elas aderem. Em contrapartida, essa idéia de adesão e de mentes visadas pelo discurso é essencial em todas as teorias antigas da retórica. Nossa aproximação desta última visa a enfatizar o fato de que é em função de um auditório que qualquer argumentação se desenvolve. O estudo do opinável dos Tópicos poderá, nesse contexto, inserir-se em seu lugar.5

A escolha pelo termo retórica deve ser entendida apenas como uma tentativa de enfatizar a importância do auditório na argumentação. Mas, apesar da explícita adoção do termo retórica, em alguns momentos Perelman fala em nova dialética, o que indica que ele não pretende tomar rigidamente tal separação6. Intimamente associada à retórica e à dialética está a teoria da argumentação. Mas, enquanto a retórica goza de uma rica tradição na antiguidade greco-romana, a teoria da argumentação, tomada nesses termos, é recente. Segundo Perelman, o estudo da adesão provocada pelo discurso não evidente englobaria todos esses rótulos e, assim, a nova retórica é tanto uma teoria da argumentação quanto uma teoria retórica e

5 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l’Argumentation: La nouvelle rhétorique. 2ªed.

Bruxelles: Editions de l’Institut de Sociologie, 1970, p.6-7. Tradução nossa.

6 Tende-se a separá-las dizendo que a retórica refere-se aos discursos longos e auditórios silenciosos enquanto a

dialética se refere ao diálogo feito de perguntas, respostas e refutações. Entendida nesses termos, ela seria, sem dúvida, uma distinção menor e sem interesse para um estudo mais amplo da argumentação. Não convém, realmente, deter-se em demasia nessa separação, posto que Perelman aborda a questão retórica e dialética como algo intimamente relacionado. Nesse mesmo sentido interpretam DEARIN, Ray D. Chaïm Perelman’s theory of

rhetoric. Urbana, Illinois: University of Illinois, 1970, p. 85, 90, 93; KLUBACK, William & BECKER, Mortimer.

The significance of Chaim Perelman’s philosophy of rhetoric. Revue Internationale de Philosophie. n.127-128, 33e Année, 1979, p.34; e JOHNSTONE Jr., Henry W. Validity and rhetoric in philosophical argument: an outlook in transition. The Dialogue Press of Man & World, 1978, p. 92.

(5)

dialética, sendo todas elas meta-teorias preocupadas com o processo da adesão. A adesão permite unificar toda forma argumentativa, pois não existe discurso sem auditório, sem efeito retórico. Segundo Perelman: “A teoria da argumentação, concebida como uma nova retórica (ou uma nova dialética), cobre todo o campo do discurso visando convencer ou persuadir, qualquer que seja o auditório ao qual se dirige e qualquer que seja a matéria sobre a qual ele trate”.7 Resumindo, o objeto da teoria da argumentação de Perelman é extremamente amplo, pois abrange todos os aspectos relacionados com a adesão (tipicamente retóricos) e também com o processo de justificação.

Apesar da amplitude concedida à teoria da argumentação, Perelman não deixa de limitar o campo de estudo na nova retórica. Ela não se interessa pelo discurso enquanto fala ou recitação, mas sim pelo seu aspecto lógico, enfatizando a troca argumentativa assentada em razões, ou seja, a persuasão e o convencimento. A nova retórica se afasta assim do ponto de vista da literatura e da oratória, ou seja, de todos aqueles preocupados com a forma do discurso, seu estilo e beleza, aproximando-se do ponto de vista estritamente argumentativo, ou seja, daquele preocupado com a estrutura e força persuasiva ou conclusiva dos argumentos. A nova retórica afasta-se também dos estudos psicológicos e sociológicos relacionados com a argumentação. O ponto de vista psicológico coloca ênfase no assentimento mental, no processo subjetivo da adesão e nos mecanismos de sugestão, ou seja, naquilo que ocorre na mente quando se decide ou se é conduzido e aceitar determinada tese. A abordagem sociológica, por sua vez, caracteriza-se por analisar a argumentação enquanto processo social, procurando compreender como determinado grupo, em determinado momento, argumenta, estudando temas como o impacto que o discurso tem sobre grupos sociais e a influência da propaganda em uma sociedade de massa. Distanciando-se dessas abordagens, a nova retórica volta-se mais para a dimensão lógica, ou seja, para o estudo de todos os meios de prova e a preocupação com a força, a intensidade e a solidez de um argumento. Apesar desse interesse mais propriamente lógico, a nova retórica distancia-se das tradicionais abordagens nesse domínio ao enfatizar o estudo empírico das diferentes técnicas argumentativas, deixando em segundo plano a dimensão normativa da lógica, que pretende estabelecer as leis do raciocínio correto. O Tratado da Argumentação não pretende criar cânones ou padrões de avaliação e nem estabelecer regras para guiar nossas argumentações, o que fica claro ao percebermos a quase ausência nele do problema das falácias. Perelman está muito mais interessado em descobrir a que tipo de argumento as pessoas efetivamente aderem e como esse processo ocorre.

2. A racionalidade em Perelman

A proposta da nova retórica pode ser entendida como um grande esforço intelectual que visa ampliar os horizontes da racionalidade, conferindo o status de racional ou razoável a uma imensa gama de formas de raciocinar. O objetivo da nova retórica não é refutar ou criticar a lógica formal tradicional, mas simplesmente desenvolver um estudo complementar. Segundo Perelman:

7 PERELMAN, Chaïm. L’Empire Rhétorique: rhétorique et argumentation. Paris: Librairie J. Vrin, 1977, p.19.

(6)

A nova retórica não pretende remover ou substituir a lógica formal, mas acrescentar a ela um campo de raciocínio que, até agora, escapou a todo esforço de racionalização, a saber, o raciocínio prático. Seu domínio é o estudo do pensamento crítico, da escolha razoável e do comportamento justificado. Ela se aplica sempre que a ação estiver ligada à racionalidade.8

O problema não está na lógica formal ela mesma, a qual Perelman reconhece grande valor e importância. O que é alvo de crítica é a atrofia que se operou na noção de racionalidade, que passou a se aplicar apenas aos raciocínios formais, demonstrativos, típicos da matemática. Perelman pretende retirar do âmbito do irracional os outros diversos tipos de raciocínios que caracterizam a argumentação prática humana, aquela que se dá no domínio da praxis ou da ação humana. Nossas decisões jurídicas ou escolhas morais não são certamente conclusivas e formalmente válidas, embora possam ser ditas razoáveis se ampliamos o espectro da racionalidade. Nas palavras de Perelman & Olbrechts-Tyteca:

Nós esperamos que o nosso tratado provoque uma salutar reação, e que sua simples presença impeça que no futuro se reduzam todas as técnicas de prova à lógica formal e que se veja como racional apenas a faculdade calculadora. Se uma concepção estreita da prova e da lógica acarretou uma concepção limitada da razão, o alargamento da noção de prova e o enriquecimento da lógica dela decorrente devem provocar uma reação, por sua vez, sobre a maneira pela qual é concebida nossa faculdade de raciocinar.9

Visando acentuar essa ampliação da noção de racionalidade é que Perelman ressalta a distinção entre demonstração (lógica em sentido estrito, ou seja, os meios de prova que permitem concluir, a partir da verdade de certas proposições, aquela de outras proposições) e argumentação (que inclui a dialética e a retórica, ou seja, o conjunto das técnicas discursivas permitindo provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses que se apresentam ao seu assentimento), que é apresentada logo no primeiro capítulo do Tratado da Argumentação. Assim como a violência está fora do campo da argumentação, uma vez que impede a liberdade de adesão, também a demonstração e a evidência estão. Se traçarmos uma linha de intensidade de adesão, teremos, em um extremo, a decisão puramente arbitrária, injustificada, que se impõe pela violência, e, no outro extremo, a prova irrefutável, absolutamente evidente. Em nenhum desses dois extremos poderíamos falar em argumentação propriamente dita, entendida como uma prática discursiva dirigida ao livre assentimento. O afastamento da evidência é feito porque, na demonstração, a prova é evidente, ela obriga a mente a aderir, não deixando qualquer espaço para a liberdade de assentimento, para a escolha justificada, que é essencial na concepção perelmaniana da argumentação. Segundo Perelman & Olbrechts-Tyteca, “demonstrações são intemporais e não há motivo para distinguir os auditórios aos quais se dirige, uma vez que se presume que todos se inclinam diante daquilo que é objetivamente válido”.10

Vemos assim que nesse domínio está ausente a dimensão retórica, ou seja, não é

8 PERELMAN, Chaïm. The New Rhetoric. In: BAR-HILLEL, Yehoshua. Pragmatics of natural languages.

Dordrecht-Holland/ Boston-USA: D. Reidel, 1971, p.148. Tradução nossa.

9

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l’Argumentation: La nouvelle rhétorique. 2ªed. Bruxelles: Editions de l’Institut de Sociologie, 1970, p.676. Tradução nossa.

10 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l’Argumentation: La nouvelle rhétorique. 2ªed.

(7)

relevante a análise do auditório, posto que o argumento formal se apresenta como intrinsecamente válido e suas premissas como necessariamente verdadeiras.11 Para uma melhor visualização dessa distinção, apresentamos o quadro comparativo abaixo:

Demonstração Argumentação

Origem histórica Os Analíticos de Aristóteles e sua

teoria silogística Os Tópicos e a Retórica de Aristóteles

Tipo de prova

Impessoal, independe do auditório (ad rem): trata da verdade ou da coisa mesma, abstraindo do auditório e do orador.

Pessoal, dirigida a um auditório (ad

hominem ou ex concessis): insere-se

num movimento questão-resposta que depende do orador e do interlocutor, e por isso é dito pessoal.

Tipo de adesão Evidência (imposição da razão

com assentimento necessário).

Assentimento mental com intensidade variável (domínio das opiniões).

Avaliação da argumentação

Validade: o bom argumento é aquele sólido, conclusivo, que respeita as regras de inferência necessária (caráter intrínseco).

Eficácia: o bom argumento é aquele ao qual o auditório adere de fato (a aceitabilidade é um critério externo, dependente do auditório).

Domínio de racionalidade

Racional: universal, evidente, demonstrável e indubitável.

Razoável: contextual, aceitável, não arbitrário, meio termo entre o racional e o irracional.

Tipo de linguagem

Artificial, sistema formalizado com regras explícitas e signos desprovidos de ambigüidade.

Língua natural, em que as regras são geralmente implícitas e há ambigüidade.

Pontos de partida

Axiomas que são colocados fora da discussão (o raciocínio analítico não pode demonstrar seus próprios princípios).

Topoi ou lugares-comuns: pontos

aceitos pelo auditório e que podem a qualquer momento ser postos em questão.

Procedimento

Cálculo: deduz conseqüências necessárias de certas premissas (ex: raciocínio matemático).

Justificação: pesa os argumentos pró e contra (ex: raciocínio jurídico)

Final da argumentação

Conclusão: conseqüência lógica necessária.

Decisão: escolha justificável, aceitável, convincente.

Além de ampliar o domínio da racionalidade para além da demonstração, mostrando a especificidade da argumentação, a nova retórica leva mais além suas reflexões e repensa em termos retóricos a própria noção de razão. Quando pensada pela perspectiva retórica e dialética, a razão coincide com a adesão de um auditório universal ideal, composto por todos os seres racionais, que só daria seu assentimento à verdade. Segundo Perelman:

11 A noção de evidência é bastante problemática em Perelman, pois ela pode significar tanto o raciocínio

formalmente válido (a evidência estaria na inferência) quanto o assentado em premissas indubitáveis (a evidência estaria no axioma). Perelman reconhece que, na lógica moderna, o lógico é livre para elaborar seus axiomas e obrigado apenas a concluir necessariamente e, em certa medida, distingue o raciocínio formalmente válido, chamado de demonstração formal ou lógica formal, do raciocínio evidente, chamado de método racional ou

demonstração clássica, que guardam em comum o rigor, mas diferem no fato de o método racional ambicionar

garantir a evidência de suas premissas. Cf. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de

l’Argumentation: La nouvelle rhétorique. 2ª

ed. Bruxelles: Editions de l’Institut de Sociologie, 1970, p. 41, 670; PERELMAN, Chaïm. The New Rhetoric: a theory of practical reasoning. In: The new rhetoric and the

humanities: essais on rhetoric and its applications. Dordrecht-Holland / Boston-USA / London-England: D.

(8)

A argumentação filosófica se apresenta como um apelo à razão, que eu traduzo na linguagem da argumentação, ou aquela da nova retórica, como um discurso que se dirige ao auditório universal. Uma argumentação racional se caracteriza por uma intenção de universalidade, ela visa convencer, ou seja, persuadir um auditório que, na mente do filósofo, encarna a razão.12

Ao conceber a própria razão como um auditório, a tese de que a filosofia pode ser compreendida como um discurso dirigido a um auditório ganha sustentação. Segundo Perelman, os filósofos teriam, ao pretenderem apelar à razão, explícita ou implicitamente se dirigido ao auditório universal. A argumentação filosófica, que se pretende racional e universal, difere das demais argumentações humanas não pela ausência do elemento retórico. O fato de a razão ter sido considerada, ao longo da tradição ocidental, uma faculdade humana inata, iluminada por Deus, determinou, em grande medida, a rejeição da retórica. Perelman reconhece que os filósofos procuraram, quase sempre, negar que visavam convencer algum auditório com a sua argumentação. Querer se adaptar a um auditório convinha ao sofista, ao demagogo, ao retórico, e não ao filósofo sério, que deveria estar preocupado com a verdade, e não com a eficácia de sua argumentação. Ao invés da adesão de um auditório, os filósofos preferiram buscar uma espécie de ascese, para melhor atingir a verdade. Ao invés de opor filosofia e retórica, Perelman sustenta que a filosofia também pode ser compreendida retoricamente. Mas isso não significa que devemos abrir mão da idéia de razão e da pretensão de universalidade. Isso acontece porque, para Perelman, a argumentação filosófica difere dos outros argumentos retóricos por causa do auditório ao qual ela se dirige. Ao invés de um discurso ad hominem, o filósofo se dirige a toda humanidade e seu discurso é antes ad humanitatem, através de uma argumentação que, segundo Perelman, pode-se qualificar de racional.

3. Decisionismo e legalismo em Perelman

Deixando os fundamentos filosóficos um pouco de lado e entrando no domínio do direito, o presente tópico pretende localizar e apresentar a visão de Perelman acerca de um típico tema da hermenêutica e das teorias da argumentação jurídicas: o problema da tensão entre o decisionismo e o legalismo. A partir dos anos sessenta do século XX, Perelman desenvolveu um consistente estudo sobre a argumentação moral e jurídica, que consistiu em uma espécie de aplicação da nova retórica ao domínio da argumentação prática. O resultado desse trabalho infelizmente não recebeu uma forma mais sistemática e está publicado em diversos artigos fragmentários e repetitivos. Grande parte desse material foi incluída na obra póstuma intitulada Ética e Direito. Outra importante fonte para estudar a argumentação jurídica são as notas publicadas originalmente por Perelman em 1979 sob o título de Lógica Jurídica.

O debate acerca do legalismo e do decisionismo começou a se colocar no direito ainda no século XIX, quando do esgotamento das escolas hermenêuticas dogmáticas que se seguiram ao movimento da codificação na Europa. Os grandes e pretensamente completos documentos legais do início do século XIX, como o famoso Código Civil de Napoleão de 1804,

12 PERELMAN, Chaïm. Logique formelle et logique informelle. In: MEYER, Michel (ed.) De la métaphysique à

(9)

mostravam-se caducos e anacrônicos depois de mais de meio século de vida. O apego à letra da lei apregoado pela Escola da Exegese e o respeito irrestrito à vontade originária do legislador defendido pela Escola Histórica conduziram o direito a uma grande defasagem em relação à realidade social. A supervalorização do poder legislativo em detrimento do judiciário, reduzido a uma função meramente declaratória (“a boca da lei”), e o discurso fervoroso em nome da segurança jurídica engessaram de modo insustentável o direito. Em resposta a esse legalismo extremado surgiu o movimento do direito livre e a livre pesquisa científica, pleiteando uma ampliação das fontes do direito para além da lei e defendendo a atribuição de mais poder e liberdade para os juízes, para que os mesmos pudessem exercer papel criativo, eqüitativo, permitindo a constante e necessária atualização do direito, sempre em sintonia com as demandas da sociedade. Nesse contexto do final do século XIX e início do século XX, a tensão era pensada em termos de maior ou menor liberdade para os juízes. Os legalistas reduziam ao máximo o poder de arbítrio dos juízes, condenando-os à condição de escravos da lei, sem qualquer poder criativo ou constitutivo, de forma a garantir o máximo de segurança jurídica, ou seja, de previsibilidade e estabilidade das decisões. Por outro lado, os decisionistas concediam amplos poderes aos juízes, que podiam julgar inclusive contra legem, de forma a permitir uma constante atualização do direito. O legalismo extremo conduzia à petrificação do direito e ao monopólio do poder pelo legislador. O decisionismo radical, por sua vez, levava à ditadura togada, à incerteza jurídica e ao anarquismo, posto que o texto legal via-se suplantado pela duvidosa equidade dos juízes.

Colocado nesses termos, pode parecer que estamos diante de um debate datado, já superado pelas novas teorias jurídicas. Em parte sim, mas se analisarmos mais a fundo perceberemos algumas importantes implicações. Em primeiro lugar, é preciso observar que estamos diante de uma tensão entre duas intuições ligadas ao papel do direito. Por um lado, ele deve ser previsível, certo, de modo a garantir uma ordem duradoura. Por outro, ele deve ser atual, de modo a responder adequadamente aos conflitos sociais. Cumprir essa dupla exigência não constitui tarefa simples, o que fica visível na constante oscilação que verificamos no seio do pensamento jurídico a esse respeito. Ora se pede por mais ordem e segurança. Ora por mais liberdade e evolução.

Perelman, ao abordar o raciocínio jurídico e a especificidade da argumentação no direito, voltada para a justificação de uma decisão, percebe claramente essa oscilação e desenvolve uma teoria que pretende responder adequadamente a essa dupla exigência. Nem legalismo, nem decisionismo. Assim como ocorreu na análise da racionalidade, a nova retórica indica uma via média para o raciocínio jurídico, um uso da razão que não é demonstrativo nem arbitrário, não é racional nem irracional, não conduz necessariamente a uma conclusão nem entrega a decisão ao capricho dos juízes. Podemos dizer que Perelman situa o campo da argumentação jurídica em um espaço intermediário entre o determinismo legalista e o arbítrio decisionista. Para o decisionista, as decisões jurídicas decorrem de puros atos de vontade dos juízes, sendo impossível qualquer justificação racional de escolhas que envolvam juízos de valor. Já para o legalista determinista, a decisão jurídica é o resultado de simples aplicações de normas gerais procedentes de uma autoridade legítima, ou seja, a decisão decorre silogisticamente das leis, de forma lógica e necessária. Em nenhum desses casos há espaço para a argumentação, para a justificação razoável, posto que ou a decisão é considerada cientificamente determinada e necessária, ou é tomada por arbitrária e meramente volitiva.

Uma postura teórica que ilustra bem essa oscilação é a apresentada por Hans Kelsen no último capítulo da Teoria Pura do Direito. Ao tratar do problema hermenêutico, Kelsen critica

(10)

as posturas positivistas do século XIX, indicando sua insuficiência metodológica e sua crença ingênua na possibilidade de se chegar cientificamente a uma “única solução correta”. Kelsen ressalta o papel constitutivo realizado pela decisão judicial, que cria e não apenas declara o direito, e reduz a pretensão de segurança jurídica a algo que pode ser atingido apenas aproximativamente, posto que sempre permanece uma margem de criação e escolha livre por parte do aplicador do direito. Uma vez que a decisão jurídica não se reduz simplesmente à aplicação de um método científico, Kelsen então rejeita o legalismo estrito e defende o caráter político e volitivo da tomada de decisão jurídica, uma vez que a mesma cria direito. Como assevera Kelsen:

A idéia, subjacente à teoria tradicional da interpretação, de que a determinação do ato jurídico a pôr, não realizada pela norma jurídica aplicanda, poderia ser obtida através de qualquer espécie de conhecimento do direito preexistente, é uma auto-ilusão contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de uma interpretação. A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a “correta”, não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema de teoria do direito, mas um problema de política do Direito. A tarefa que consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas). Assim como da Constituição, através de interpretação, não podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças corretas.13

Em razão desse caráter ao mesmo tempo político e jurídico da decisão jurídica, Kelsen ressalta a necessidade de uma complementação do ato cognoscitivo, científico, que estabelece a moldura aberta ao aplicador pelas normas superiores, por um ato volitivo, de pura vontade da autoridade competente, que poderá escolher livremente entre as possibilidades reveladas pela ciência. Percebemos assim que Kelsen oscila entre um momento racional e outro irracional presentes no raciocínio jurídico. Até determinado ponto, a decisão é determinada cientificamente, a partir daí é puro arbítrio.

Em um artigo intitulado A Teoria Pura do Direito e a argumentação, publicado originalmente em 1964 e depois incluído no livro Ética e Direito, Perelman observa essa oscilação presente no pensamento de Kelsen e considera seu principal erro o fato de ter renunciado à razão prática. Kelsen teria percebido corretamente a impossibilidade de uma prova demonstrativa no campo das normas e valores, mas a conseqüência retirada dessa constatação foi a inclusão do arbítrio na decisão jurídica, abraçando assim uma perigosa postura decisionista. Segundo Perelman, a teoria pura do direito deriva de uma teoria do conhecimento limitada, que só dá valor à prova demonstrativa ou empírica e despreza totalmente o papel da argumentação. Como foi visto anteriormente, a nova retórica defende justamente a ampliação da racionalidade, de modo a tornar possível uma escolha justificada e uma decisão razoável para além do campo restrito da lógica formal ou demonstrativa. Nas palavras de Perelman: “Se uma ciência do direito pressupõe posicionamentos, tais

13 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins

(11)

posicionamentos não serão considerados irracionais quando puderem ser justificados de uma forma razoável, graças a uma argumentação cuja força e pertinência reconhecemos”.14 É claro que o razoável não remete a uma solução única, não serve como um método objetivo e preciso, mas funciona como uma restrição à liberdade de julgar, impedindo o arbítrio, como deixa claro Perelman ao dizer que “o inaceitável, o desarrazoado constitui um limite para qualquer formalismo em matéria de direito”.15

Aos olhos de Perelman, a superação da tensão entre legalismo e decisionismo passa por uma interpenetração desses dois elementos. Mas não como pensou Kelsen, para quem havia um momento legalista (o ato cognoscitivo de fixação da moldura) e outro decisionista (o ato volitivo do aplicador do direito). O elemento legalista, pensado como o respeito às instituições e ao sistema de regras, deve conviver com o elemento decisionista, entendido como a busca da equidade, sem que um exclua o outro. Em suma, o respeito às leis não deve conduzir à injustiça e ao socialmente inaceitável, assim como o senso de equidade também não deve ser empregado ao arrepio da lei e em prejuízo da ordem e da segurança. Mas como conciliar e articular essas exigências? Apenas uma prática argumentativa aberta, porosa às demandas da sociedade e às exigências institucionais, é capaz de conduzir a uma decisão convincente. Segundo Perelman: “É a dialética entre o legislativo e o poder judiciário, entre a doutrina e a autoridade, entre o poder e a opinião pública, que faz a vida do direito e lhe permite conciliar a estabilidade e a mudança”.16

A argumentação jurídica não deve se limitar ao texto legal, nem confiar apenas no senso de justiça do juiz. Ao invés disso, deve acolher em suas discussões justificações formais ou internas (decorrentes da lei e do sistema jurídico em vigor) e também justificações materiais ou externas (assentadas naquilo que é socialmente aceitável e razoável). O direito é um instrumento flexível e capaz de se adaptar aos valores sociais de seu tempo, sendo sua missão conciliar esses valores com as leis e instituições estabelecidas. Como deixa bem claro Perelman:

O direito se desenvolve equilibrando uma dupla exigência, uma de ordem sistemática, a elaboração de uma ordem jurídica coerente, a outra, de ordem pragmática, a busca de soluções aceitáveis pelo meio, porque conformes ao que lhe parece justo e razoável. 17

Levando adiante uma típica abordagem retórica, Perelman se pergunta sobre qual é o auditório visado pela argumentação jurídica. Para determinar o alcance e a qualidade dos argumentos empregados no direito, é preciso saber qual o conjunto daqueles a quem se quer convencer ou persuadir. Perelman entende que ao motivar ou fundamentar uma tomada de decisão jurídica, o juiz oferece razões que pretendem ser convincentes para as partes em litígio, para os juristas ou profissionais do direito, e também para a sociedade em geral ou opinião pública. Uma decisão aceitável apenas para as partes pode ser juridicamente e socialmente

14

PERELMAN, Chaïm. A Teoria Pura do Direito e a argumentação. In: Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 480.

15 PERELMAN, Chaïm. O razoável e o desarrazoado em direito. In: Ética e Direito. Tradução de Maria

Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 436.

16

PERELMAN, Chaïm. A interpretação jurídica. In: Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 631.

17 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins

(12)

inaceitável. Uma decisão que é apenas juridicamente e tecnicamente fundamentada pode ser socialmente inaceitável e ineficaz para as partes. E uma decisão que conta com a aceitação social e o apoio da opinião pública pode ser juridicamente insustentável. Em suma, cabe ao juiz a tarefa de realizar esse equilíbrio, sendo capaz de elaborar uma argumentação que cumpra com essas exigências, ou seja, ele deve tomar uma decisão em nome do que considera o direito (o sistema de regras) e a justiça (o senso de equidade). O direito está condenado a uma atualização incessante (na busca de soluções viáveis e adaptadas às circunstâncias), sendo assim preciso conceder ao juiz um poder criativo e normativo complementar, que deve contudo ser utilizado de forma justificada, socialmente e juridicamente convincente. Só assim afastamos o fantasma do arbítrio, como diz Perelman: “motivar é justificar a decisão tomada, fornecendo uma argumentação convincente, indicando a legitimidade das escolhas feitas pelo juiz. É esta justificação (...) que deve convencer as partes de que a sentença não resulta de uma tomada de posição arbitrária”.18

Ao assumir essa abordagem retórica da decisão jurídica, Perelman rejeita enfaticamente o modelo formal de raciocínio jurídico conhecido como teoria do silogismo jurídico. Esse modelo camuflaria o papel do juiz, fazendo crer que sua função é meramente lógica e consiste simplesmente em demonstrar como a sentença decorre dos axiomas estabelecidos (as leis em vigor). Essa visão legalista ignora o elemento retórico presente na argumentação jurídica, ou seja, a busca da aceitação social da decisão. Perelman sustenta que a razoabilidade ou aceitabilidade social é um valor muito mais importante para o direito do que a verdade ou a coerência lógica. De que serve um sistema jurídico completo e coerente, com sentenças logicamente consistentes e válidas, se ao final somos conduzidos a decisões socialmente inaceitáveis e desarrazoadas? Resumindo, Perelman ressalta a necessidade de se chegar a uma solução aceitável aos conflitos, por razões de bom senso, eqüidade e interesse geral. Contudo, a paz judicial só se restabelece quando a solução mais aceitável socialmente é acompanhada de uma argumentação jurídica suficientemente sólida. Este deve ser o esforço da doutrina e da jurisprudência.

4. Estado Democrático de Direito em Perelman

A questão da democracia e do Estado Democrático de Direito não constituem um tema trabalhado por Perelman, ao menos não diretamente e com profundidade. Sendo assim, o esforço deste tópico é mais modesto e pretende apenas abordar a questão de forma tangencial, traçando algumas considerações e buscando situar o pensamento de Perelman nesse debate.

Em primeiro lugar, é preciso observar que a biografia de Perelman revela alguém aberto às críticas e um defensor da tolerância e das práticas de inclusão. Sua postura crítica em relação ao nazismo, sua resistência contra a discriminação aos judeus (que sofreu na própria pele na Polônia dos anos trinta) e suas objeções à criação de um Estado Judeu Sionista permitem que vejamos em Perelman um democrata engajado.

Para além de sua postura e ações políticas, importa avaliar suas idéias sobre a questão. Nesse sentido, Perelman abraça uma concepção filosófica que é fundamentalmente compatível

18 PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins

(13)

com a defesa da democracia e do Estado Democrático de Direito. Em um artigo intitulado Filosofias primeiras e filosofia regressiva, que veio a público originalmente em 1949 (um dos primeiros textos publicados por Perelman), encontramos uma defesa enfática de uma postura filosófica aberta, tolerante, humilde, sensível às diferenças de perspectiva e capaz de autocrítica. As chamadas filosofias regressivas concebem a filosofia como um empreendimento argumentativo no qual ninguém detém a verdade absoluta e definitiva, um diálogo infindável, imperfeito mais perfectível, no qual nada está fora de questão. Perelman afirma não haver coisa julgada em filosofia e rejeita toda forma de fundamentação metafísica última para o conhecimento ou a moral. Perelman se afasta assim da chamada filosofia primeira, posto que seu pensamento filosófico baseia-se em pontos de partida considerados suficientemente seguros para assentar a reflexão, e não em fundamentos evidentes. Como conclui Perelman: “um partidário da filosofia regressiva é obrigado a certa modéstia em suas afirmações: o futuro não lhe pertence, seu pensamento permanece aberto à experiência imprevisível”.19

Essa base filosófica claramente condena qualquer fundamentação absolutista para o poder político e convida a um grande e infindável diálogo.

Essa ênfase no diálogo, na discussão aberta e inclusiva, será objeto de maior desenvolvimento no Tratado da Argumentação, no momento em que Perelman distingue a argumentação da violência. A argumentação só pode ocorrer no campo onde há liberdade de adesão. Segundo Perelman & Olbrechts-Tyteca:

Pode-se, de fato, tentar obter um mesmo efeito seja pelo recurso à violência seja pelo discurso visando à adesão das mentes. É em função dessa alternativa que se concebe mais claramente a oposição entre liberdade mental e coação. O uso da argumentação implica que se tenha renunciado a recorrer unicamente à força, que se dê valor à adesão do interlocutor, obtida com a ajuda de uma persuasão racional, que não o trate como um objeto, mas que se apele à sua liberdade de juízo. O recurso à argumentação supõe o estabelecimento de uma comunidade das mentes que, enquanto dura, exclui o uso da violência.20

Toda a argumentação visa a adesão e, dessa forma, argumentar significa querer persuadir ou convencer, o que excluí necessariamente a violência. Quem impõe sua opinião ou vontade não argumenta, a ele não importa a adesão (o convencimento ou persuasão) do auditório ao qual se dirige. Como reforça Perelman ao escrever o verbete argumentação para uma enciclopédia:

Querer persuadir um auditor significa, antes de mais, reconhecer-lhe as capacidades e as qualidades de um ser com o qual a comunicação é possível e, em seguida, renunciar a dar-lhe ordens que exprimam uma simples relação de força, mas sim procurar ganhar a sua adesão intelectual.21

19 PERELMAN, Chaïm. Filosofias primeiras e filosofia regressiva. In: Retóricas. Tradução de Maria Ermantina

Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.151.

20

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l’Argumentation: La nouvelle rhétorique. 2ªed. Bruxelles: Editions de l’Institut de Sociologie, 1970, p.73. Tradução nossa.

21 PERELMAN, Chaïm. Argumentação. In: Enciclopédia Einaudi. vol. 11. Imprensa nacional – casa da moeda,

(14)

Para que a argumentação seja possível, é necessário que haja uma espécie de comunhão entre as mentes, de contato intelectual, que é uma condição prévia para a comunicação. Perelman chega a estipular algumas condições que uma comunidade efetiva das mentes exige, como a existência de uma linguagem comum, o desejo de estabelecer uma conversação, a valorização da adesão do interlocutor (seu consentimento mental) e a possibilidade de ser escutado com atenção (o que envolve a disposição para uma eventual admissão do ponto de vista do falante). Perelman infelizmente não aprofundou a análise das condições de possibilidade da comunicação e nem extraiu daí conseqüências normativas. Diferentemente de Habermas, o pensamento de Perelman não caminhou nesse sentido e não deu origem a construções teóricas mais sólidas nos domínios moral, político e jurídico, como ocorreu com o desenvolvimento da ética do discurso, da democracia deliberativa e da teoria discursiva do direito. Apesar desses limites, a nova retórica e as análises do raciocínio jurídico feitas por Perelman constituem um importante e consistente solo para analisarmos nossas práticas argumentativas e para pensarmos um direito que cumpra convenientemente seu papel na sociedade.

Bibliografia

ARISTÓTELES. Rhétorique. Tradução de Mederic Dufour. Paris: Les Belles Lettres, 1932. ARISTÓTELES. Topiques. Tme I. Livres I-IV. Tradução e introdução de Jacques Brunschwig. Paris: Les Belles Lettres, 1967.

ARISTÓTELES. La Métaphysique. Tome I. Tradução, introdução e notas de J. Tricot. Paris: J. Vrin, 1986.

ARISTÓTELES. Éthique à Nicomaque. Tradução, introdução e notas de J. Tricot. 6a ed. Paris: J. Vrin, 1987.

DEARIN, Ray D. Chaïm Perelman’s theory of rhetoric. Urbana, Illinois: University of Illinois, 1970. (Tese de doutorado em Philosophy in Speech apresentada à University of Illinois). JOHNSTONE Jr., Henry W. Validity and rhetoric in philosophical argument: an outlook in transition. The Dialogue Press of Man & World, 1978.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

KLUBACK, William; BECKER, Mortimer. The significance of Chaim Perelman’s philosophy of rhetoric. Revue Internationale de Philosophie. n.127-128, 33e Année, 1979, pp.33-46.

PERELMAN, Chaïm. The New Rhetoric. In: BAR-HILLEL, Yehoshua. Pragmatics of natural languages. Dordrecht-Holland/ Boston-USA: D. Reidel, 1971, pp.145-149.

PERELMAN, Chaïm. The New Rhetoric: a theory of practical reasoning. In: The new rhetoric and the humanities: essais on rhetoric and its applications. Dordrecht-Holland / Boston-USA / London-England: D. Reidel, 1979, pp.1-42.

PERELMAN, Chaïm. Logique formelle et logique informelle. In: MEYER, Michel (ed.) De la métaphysique à la rhétorique. Ed. de l'Université de Bruxelles, 1986, pp.15-21.

PERELMAN, Chaïm. Argumentação. In: Enciclopédia Einaudi. vol. 11. Imprensa nacional – casa da moeda, Lisboa, 1987, pp.234-265.

(15)

PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

PERELMAN, Chaïm. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Rhétorique et Philosophie: pour une théorie de l’argumentation en philosophie. Paris: PUF, 1952.

PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Traité de l’Argumentation: La nouvelle rhétorique. 2ªed. Bruxelles: Editions de l’Institut de Sociologie, 1970.

Referências

Documentos relacionados

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

O diálogo entre o eu lírico e seu suposto interlocutor no poema de Álvaro de Campos narra justamente uma sequência entrecortada, um entrecruzamento no tempo de ideias díspares,

- A criança apresenta mais iniciativa para ajudar o adulto, por vontade própria (r=.258; p=.035). Quadro 7), verificamos que os comportamentos de colaboração e de facilitador de

Apesar dos esforços para reduzir os níveis de emissão de poluentes ao longo das últimas décadas na região da cidade de Cubatão, as concentrações dos poluentes

Um estudo de caracterização foi conduzido para amostras mineralizadas em terras raras dos cinco principais litotipos do depósito de Catalão: Foscorito, Flogopitito,

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

Poder Judiciário Poder Social - povo.. Fontes do Direito Fontes do direito Leis Costumes Doutrina Jurisprudência Fontes Estatais.. Fontes Não -

Ao meu colega de PROGRAU e LabUrb, Marcus Vinícius Pereira Saraiva, o “Bagé”, que, além de ser o programador responsável pela tradução de minhas ideias em linguagem