COLlN ROWE E FRED KOETTER • CIDADE-COLAGEM
Uma dasteorias urbanas norte-americanas de maior influência no período pós-mo-derno é aque Colin Rowe e Fred Koetter desenvolveram no livro Col/age City [Cidade-colagem], escrito em 1973 epublicado em 1978. O excerto incluído neste capítulo foi publicado na revista mensal britânica Architectural Review, em 1975, e contém as seguintes seções: "Depois do milênio", "As crises do objeto: o irn-passe da textura", "Cidade-colisão e a política da bricolagem" e "Cidade-colagem eareconquista dotempo". Os problemas do urbanismo moderno tratados na pro-postados autores foram posteriormente resumidos por Rowe em termos pseudo-psica-nalíticosnas expressões "fixação noobjeto, culto do Zeitgeist, inveja da física (ou pseudo-ciência)e stradaphobia".'
O"diagnóstico" de Rowe e Koetter baseou-se numa pesquisa que um grupo de alunos e professores da Universidade de Cornell realizou em Roma, cidade muito admirada como modelo do urbanismo tradicional. A adoção do dualismo figura/fundo como instrumento de análisedourbano despertou um novo interesse pela planta deRoma feita em 1748 porNolli. Os desenhosdeNolli ressaltam o papel dos espaços público eprivado na determinação do caráter da cidade. A principal descoberta do grupo de pesquisadores de Cornell foi que a arquitetura moderna havia invertido a proporção entre espaço" livre" e espaço construído, produzindo resultados desastrosos no nível da rua. Privilegiando a construção de objetos, o modernismo criou áreas sem vida no espaço urbano, as quais dividiram vizinhanças, iso-laram pessoas e isoiso-laram asedificações de seu entorno. Apesar de convenientes para os automóveis,faltavaaessas áreas desabitadas as características defechamento e deescala humanatãotípicas dos espaços públicos daEuropa pré-moderna (cap.9).
Acrítica de Rowe e Koetter prossegue com uma revisão dos modelos de utopia ur-banavigentes por volta de 1965, que variavam do "nostálgico" ao "profético". Esses di-ferentesmodelos são importantes quando considerados em relação uns aos outros, mas vistos separadamente são rejeitados por serem demasiadamente radicais. Em lugar deles, Rowee Koetter propõem anoção da colagem como umatécnica eum "estado de espírito" tingido deuma certa ironia. Os autores propõem esse método fragmentário como solução parao problema do "novo", sem sacrificar a possibilidade de um pluralismo democrático:
a cidade-colagem [...Jpoderia ser um meio de admitir a emancipação e de permitir a todos Osparticipantes de uma situação pluralista sua expressão legítima" 2
Politicamente, a teoria de Rowe e Koetter éinfluenciada pelos escritos
pró-democráti-cosdo fi ló f ' , . .
so o austnaco do seculo XX KarlPopper, que defendem a necessidade de evitar mOdeloscoercitivos e totalizantes. Essa concepção antitotalitária liga os autores a
pensa-dorespó d ..
s-mo ernos como Jurgen Habermas, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard. Opensamento de Rowe e Koetter de que construir inevitavelmente envolve juízos de valorerevela" o conteúdo ético da boa sociedade" é reiterado por Philip Bess e Karsten
Har-lesícap 8). Se "Cidade-colagem" e o livro de Venturi Complexidade e contradição (cap.1)
contêm argumentos inclusivos (ordem/desordem, "acomodação e coexistência", "tant como" etc.), é preciso distinguir o enfoque pluralista de Rowe e Koetter daabordage de Venturi. A forma e a intenção das oposições (resumidas na expressão "acornodaÇã
e coexistência") são similares nas duas obras. Rowe, Koetter e Venturi foram igualrne nte influenciados pela concepção de ambivalência dateoria da Gestalt, que permite urnarnult i-plicidade de leituras.
Mas as diferenças afloram com mais nitidez nolivro posterior de Venturi, Aprendendo com Las Vegas, escrito em parceria com Denise Scott Brown eSteven Izenour (ver um
fragmento neste capítulo). A posição populista destes últirr;os evita deliberadamente as implicações políticas de sua pesquisa, na medida em que recusa todo juízo devalor sobre o corredor comercial de Las Vegas. Já Rowe e Koetter, mais comprometidos com as
questões éticas, vêem com entusiasmo ahipótese de uma sociedade pluralista e de um urbanismo que admite a mudança.
1. Colin Rowe, "The Present Urban Predicament'; Cornel! Journal of Architecture 1, 1981, p.17. 2.Ibid., pp. 17-18.
COLlN ROWE E FRED KOETTER
Cidade-colagem
DEPOIS DO MILÊNIOA cidade da arquitetura moderna, que já se tornou uma realidade quase irresistível começou a atrair muitas críticas e suscitou dois estilos bem diferentes de reação, ne -nhum deles recente. Em suas origens, pode ser que essa cidade tenha sido uma re&': posta simbólica às rupturas sociais e psicológicas provocadas pela Primeira Gue . Mundial e pela Revolução Russa; e um estilo de reação foio de declarar ainsuficiên~ do gesto inicial. A arquitetura moderna não foi longe o bastante. Talvez aruptura seja um valor em si; talvez devêssemos ter mais rupturas; quem sabe abraçando espe çosamente a tecnologia. Hoje, devemos nos preparar para uma espécie de surfec~ putadorizado sobre e por entre as marés do tempo hegeliano em direção aum pOSS1V porto supremo de emancipação.
Esta poderia ser uma inferência aproximada da imagem do Archigram; mas q remos compará-Ia com uma imagem cuja inferência é justo o oposto. Como U
294
resentação da paisagem urbana, a praça do Harlem é uma tentativa consciente cep lacar e conso arI . Apnmelra. .. Imagem e ostensivamente,. prospec tirva, a segun da de'ntapencionalmente nostálgica, e se ambas são totalmente a eatonas,
I
,
.
a a eatoneI
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a eé
1uma pretende sugerir toda a vitalidade de um futuro imaginário sem preconceitos, de nto a aleatoriedade da outra pretende aludir a todas as diferenciaçõesocasio-enqua . . .
is ue poderiam ter sido provocadas pelos acidentes do tempo. A segunda Imagem nasugereq um mercado inglês (que também po er.la ser nad . Escandinávia)m~vI~ que, apesar
de atual(a atualidade correspondendo a1950, mais ou menos), tambem e o produto de todasas acumulações e vicissitudes da história.
Com isso, não estam os fazendo uma apreciação da qualidade de cada uma dessas imagens, nem propondo qual delas é mais necessária, mas introduzindo uma compa -caçãode certo modo análoga. As duas partes são, em um dos casos, italianas; no outro, americanas:o Admirável Mundo Novo (os temas importunos da emancipação e do amor encenados num deserto, com uma fantástica montanha ao fundo) e o Admirável Mundo Velho (uma cena forjada que insiste em que as coisas hoje são muito mais parecidas do
quejamais o foram). Uma é um produto do Superstudio, recentemente exibido pelo Museu de Arte Moderna, e a outra é uma maquete para a Main Street da Disneylândia.
E oargumento pode ser muito simples. O Superstudio reconhece publicamente queidealiza todas as formas físicas artificiais, objetos, edifícios, como coercitivos e tirânicos, destinados a restringir uma provável liberdade marcusiana de escolha. Ob -jetos, edifícios, formas físicas são e devem ser considerados dispensáveis, e a vida ideal deveser irrestrita e nômade - tudo o que precisamos é de um grupo de coordenadas cartesianas (representantes de uma estrutura eletrônica universal); depois, estando conectados a essa rede de liberdade (ou viajando aleatoriamente através dela); a con -seqüência natural será, ipso facto, uma existência feliz e harmoniosa.
Pois bem, se isso traduz razoavelmente a poesia da imagem do Superstudio, não a distorce seriamente. Liberdade significa liberdade em relação às coisas - liberdade re -lativamente a toda a desordem de Veneza, Florença, Roma; liberdade para explorar um eterno Arizona imaginário, estender-se na esperança de tirar sustento do cacto ocasio-nal- e a idéia de tal absoluta simplicidade só pode ser sedutora. Todos aqueles edifícios engraçados de Le Corbusier desapareceram, todas aquelas extravagâncias tecnológicas do grupo Archigram foram declaradas obsoletas. Em compensação, aqui estamos nós cOmorealmente somos, nus, verdadeiros, sem culpas e sem ofensas - tirante, é claro, a certeza de que, ali pertinho, existe um excelente restaurante e um Lamborghini pronto para nos levar até lá.
Dados os pressupostos da imagem italiana, podemos aceitar sua lógica; mas, como um cabedal básico da ficção científica, a imagem ainda autoriza a consideração da Dis-neylândia como um reductio ad absurdum da paisagem urbana. Pois este não é um Ari -Zonade fantasia, trágico apesar de tudo, mas uma Main Street de comédia musical.
Apare~temente, a privação pode assumir diversas formas, e seja láo que signifi
qu~ uma lIb.erdade abstrata (Não me confinem ou Por favor, me confinem sóumpou qumho), aliberdade em Florença talvez não seja a mesma coisa que aliberdade e
Dubuque. Mas isso é mera intuição de que, assim como há um senso de abundânc~ na Itália, há um senso de privação em Iowa, pois nos lugares em que há muito tem a prepondera a realidade de uma rede perfeitamente cartesiana de cidades, de estra:~ rurais ou de campos, e onde essa rede contém um mínimo de interpolações, rede e interpolações assumem conseqüências diversas do que poderiam realizar em outros lugares. A rede deixa de ser um ideal desejável, as interpolações deixam de ser uma
realidade desagradável - a primeira se torna um fardo um tanto cansativo da vida,as
interpolações uma complicação já esperada. Se esse argumento for admissível, pod
e-ríamos, talvez, chegar a duas conclusões:
1. que o sucesso da Walt Disney Enterprises reside em proporcionar interpolações significativas e especiais em uma rede abrangente e igualitária; e
2. que o mundo de utopia proposto por uma organização como o Superstudio so-mente pode funcionar como uma espécie de sinal aberto para futuros empresá -rios do estilo Disney.
Em outras palavras, a rede fundamental da liberdade - que se assemelha àrede
fundamental de Nebrasca ou do Kansas -, quer seja proposta como uma idéia ou por
conveniência, produzirá uma reação mais ou menos previsível, e a proposital elim
i-nação do detalhe local, de ordem espacial ou psicológica, provavelmente será contr
a-balançada por sua simulação. Isso nos sugere que imagens do gênero daquelas duas
seligam em seqüência (como uma Universidade Livre de Berlim eum Port Grimaud) numa cadeia decausa e efeito.
Contudo, isso não elimina uma questão importante, aquestão importante da e
x-clusividade das duas imagens, a presunção de profecia de uma, a suposta nostalgia de outra. Tal como as duas imagens inglesas anteriormente observadas, uma équase
toda antecipação; a outra, quase toda recordação; e, a essa altura, não resta dúvida so
-bre a relevância de aludir ao enorme absurdo dessa divisão, que parece ser muito mais
uma questão de postura heróica do que qualquer outra coisa.
Trata-se, certamente, deum tipo de cisão,tanto mais flagrante quanto, de cadalado. háuma hipótese psicológica inteiramente falsa- umtipo de cisão que não ajuda em nada. Dado que a fantasia da cidade universal de emancipação levou a uma situação abominá
-vel,permanece oproblema do que fazer. Os modelos utópicos reducionistas certamente
submergirão no relativismo cultural em que, para obem ou para omal, estamos me
r-gulhados, e somente seria razoável abordar esses modelos com muita circunspecção- as
fragilidades inerentes a qualquer status quo institucionalizado (mais deLevittown. mais
de Wimbledom, ainda mais de Urbino e Chipping Campden) também parecem indicar que nem o mero "dêem-lhes oquequerem" nemapaisagem urbana nãomodificada têm
296
uficienteconvicção para oferecer mais que respostas parciais. Sendo esta a situação de
s d osmodelos eminentes, é necessário inventar uma estratégia capaz de acomodar
-w~
.
-seque semcalamidades - oideal e que seja capaz de responder, plausivelmente e
espera .
desprezo, aoque se poderia imaginar como arealidade,
semFrancis Yates, num livro recente, The Art of Memory [A arte damemon' .a,
]1
men -. as catedrais góticas como artifícios mnemônicos. Bíblias e enciclopédias, paracJOnou ...
i1etradose para letrados, esses edifícios destinavam-se aslstema:lzar pensamentos, aJ,u -dando a lembrá-Ios, e,na medida em que operavam como auxiliares de aula de escolas
-• cOI·possível tratá-los como teatros dememória. Essadenominação éútil porque, se
tIca,11
hoie em dia somente conseguimos pensar nos edifícios como necessariamente profé ti-J essemodo alternativo de pensar talvez sirva para corrigir nossa ingenuidade inde -cos,
vidamente preconceituosa. O edifício como teatro deprofecia, o edifício como teatro de memória- se somos capazes de imaginá-lo como uma coisa também o somos como a
outra. E, embora reconhecendo que, sem o apoio da teoria acadêmica, são estes osdois modos pelos quais habitualmente interpretamos osedifícios, adistinção entre teatro de profecia e teatro dememória poderia ser transportada para a esfera do urbanismo.
Essas observações bastam para evidenciar que os defensores da cidade como tea -tro de profecia provavelmente serão considerados radicais, enquanto os expoentes dacidade como teatro de memória serão quase sempre vistos como conservadores. Mas,sealguma verdade existe nessas suposições, também deve ser possível afirmar que esses conceitos, em bloco, não têm realmente muita utilidade. Provavelmente, em qualquer época, amaior parte da humanidade é,ao mesmo tempo, conservadora e radical, preocupa-se com ofamiliar e se perturba com o inesperado, e,se nós vivemos nopassado tanto quanto confiamos no futuro (o presente não passando de um e pi-sódio no tempo), parece razoável aceitar essa condição. De fato, senão há esperança semprofecia, sem memória não pode haver comunicação.
Poróbvio, trivial elacônico que issopareça, feliz ou infelizmente, foium aspecto do espíritohumano negligenciado pelos primeiros proponentes da arquitetura moderna -felizmente para eles, infelizmente para nós. Mas, se sem essa distinção psicológica su -perficial "o novo modo de construir" jamais teria surgido, não há mais justificativa
para nãoreconhecer arelação complementar, que é fundamental para os processos de antecipação e retrospecção. Não podemos realizar atividades interdependentes sem o exercício de ambas, enenhuma tentativa desuprimir uma nointeresse da outra poderá dar certo durante muito tempo. Podemos receber a energia da novidade da profecia, mas o nível dessa energia deve ser estritamente referido aocontexto conhecido, quiçá banale necessariamente carregado de memória do qual emerge.
A dicotomia memória-profecia, tão importante para a arquitetura moderna, pode
ser considerada, por isso mesmo, totalmente ilusória, útil até certo ponto, mas acade -micamente absurda se bem esmiuçada. E,seisso for admissível e parecer plausível que
/
a cidade ideal que temos na cabeça se amolde à nossa constituição psicológica, p se pensar que a cidade ideal, agora possível de ser postulada, deve comportar-se a só tempo como teatro de profecia e teatro de memória.
AS CRISES DO OBJETO: O IMPASSE DA TEXTURA
Até aqui, tentamos especificar duas versões da idéia utópica: autopia como um ob -jeto implícito de contemplação e a utopia como instrumento explícito de mudança social. Depois, confundimos de propósito essa distinção introduzindo as fantasias da arquitetura como antecipação e como retrospecção, mas, de modo sucinto, para esquecer essas questões secundárias: não seria responsável alimentar especulações no terreno das utopias sem passar os olhos primeiramente nas considerações de Karl Popper. Para esse efeito, há dois ensaios datados de fins da década de 1940: "Utopia and Violence" [Utopia e violência] e "Towards a Rational Theory ofTradition" [Por uma teoria racional da tradição]. 2Ésurpreendente que nenhum desses ensaios tenha
sido até o momento citado por seus comentários sobre os problemas da arquitetura e do urbanismo contemporâneos.'
Como era de esperar, Popper é severo com autopia e indulgente com atradição, mas esses ensaios deveriam também ser analisados no contexto de sua contínua crítica pesada às visões indutivas simplistas da ciência, a todas as doutrinas do determinismo histórico e a todos os teoremas sobre a sociedade fechada, que começa a ser vista como uma das construções mentais mais importantes do pensamento filosófico do século xx. Popper, um liberal vienense, que residiu na Inglaterra durante muitos anos eque usou o que parecia uma teoria do Estado própria dos Whigs [membros do Partido Liberal in-glês] como a ponta de lança de um ataque a Platão, Hegel e, não por acaso, ao Terceiro Reich, deve ser entendido como crítico da utopia e expoente da utilidade datradição.
Para Popper, a tradição é indispensável- a comunicação baseia-se na tradição, que está ligada à percepção da necessidade de haver um ambiente social estruturado; a tra-dição é o veículo crítico de um aperfeiçoamento da sociedade; a "atmosfera" de uma sociedade relaciona -se com a tradição; e a tradição é de certa maneira afimcom o mito-ou, em outras palavras, tradições específicas são de certa forma teorias incipientes, cujo valor é o de ajudar a explicar a sociedade, ainda que o façam imperfeitamente.
Mas essas afirmações devem também ser entendidas paralelamente à concepção de ciência da qual provêm, um modo de compreender a ciência que não avêtanto corno agregação de fatos, mas como crítica rigorosa dehipóteses. Ashipóteses éque revelaJJl os fatos e não o inverso. Assim entendida, prossegue a argumentação, op~pel das.: dições na sociedade é mais ou menos equivalente ao das hipóteses na ciência. Ist~
é.
mesma maneira que a formulação de hipóteses ou teorias resulta dacrítica do ml~o.SÓDe maneira semelhante, as tradições têm a importante dupla função de naO
298
criaruma determinada ordem ou algo parecido com uma estrutura social, mas ta m-bémadenos dar alguma coisa com que possamos trabalhar; algo que possamos criti-care modificar. [E] talcomo ainvenção do mito ou das teorias no campo da ciência natural tem uma função - ade nos ajudar a pôr ordem nos acontecimentos da n atu-reza-, a criação detradições faz o mesmo no âmbito da sociedade.'
Devem ser essas as razões pelas quais Popper contrasta uma abordagem racio -naldatradição com a tentativa racionalista de transformar a sociedade pela ação de proposições abstratas e utópicas, que ele considera "perigosas e perniciosas". Auto -piapropõe um consenso em torno de objetivos, e "é impossível determinar cientifi -camente objetivos. Não há nenhum modo científico de escolher entre dois fins [...]" Sendoassim,
oproblema de construir um projeto utópico não pode ser resolvido somente pela ciên-cia; desde que não podemos determinar cientificamente os fins últimos das ações po-líticas [00'] elas terão, pelo menos até certo ponto, o caráter de divergências religiosas. Enão pode haver nenhuma tolerância entre essas diferentes religiões utópicas [00'] o utopista tem dederrotar ouesmagar seus competidores."
Emoutras palavras, se a utopia propõe a realização de bens abstratos em vez da erradi -caçãode males concretos, tende a ser coercitiva, pois é bem mais fácilhaver consenso sobreos males concretos do que sobre os bens abstratos. E se, por outro lado, a utopia se apresenta como um projeto para o futuro, é duplamente coercitiva porque nós
não po
-dem
os
conhecer o futuro. Mas, alémdisso, a utopia é especialmente perigosa porque sua invenção tende a Ocorrer em períodos de rápida mudança social, e os projetos urbanos utópicos provavelmente se tornarão obsoletos antes de serem postos em prática. Dessa forma, os formuladores de utopias tenderão a inibir a mudança por meio da propaganda política, pela supressão da opinião dissidente e, se preciso for, pela força física.O
que se pode lamentar em tudo isso é que Popper não tenha feito nenhuma distinção entre a utopia como metáfora e a utopia como prescrição. Mas, levando issoem conta, o que nos é apresentado (apesar da abordagem da tradição ser des -necessariamente complexa e o tratamento da utopia, com certeza, um pouco rígido e abrupto) é, por inferência, uma das críticas mais devastadoras do arquiteto e do planejador do século xx.A crítica de uma determinada "ortodoxia" contemporânea também é bastante co-nhecida. A posição popperiana que, em face do cientificismo e do historicismo, insiste na falibilidade de todo conhecimento deveria ser razoavelmente difundida' mas se
p , ,
~pper está obviamente preocupado com certas atitudes e procedimentos muito irra-Cionais, devido a suas conseqüências práticas, a condição intelectual que ele se sentiu COmpelido a rever é fácil de demonstrar.
o
anúncio feito pela Casa Branca, em 13de julho de 1969, da criação do NationGoals Research Staffdeclarava o seguinte:
o
número de instituições públicas e privadas dedicadas a realizar previsõesvemau tando muito, já constituindo um corpo crescente de informações que servem de ;:: -para a formação de juízos acerca da provável evolução dos fatos no futuro esobre asescolhas disponíveis agora.
Há uma necessidade urgente de estabelecer uma conexão mais direta entre aspre_ visões cada vez mais complexas que hoje são feitas e o processo de tomada dedecisões. A importância prática de criar essas conexões é acentuada pelo fato de que pratica_ mente todos os grandes problemas nacionais dehoje poderiam ter sido antecipados
bem antes de atingirem proporções críticas.
Uma extraordinária quantidade de instrumentos e técnicas foi desenvolvida,
pos-sibilitando a realização de projeções de tendências e permitindo com issofazer o tipo
de escolhas bem fundadas de que necessitamos para dominar oprocesso demudança. Esses instrumentos e técnicas vêm sendo crescentemente utilizados nas ciências
so-ciais e naturais, mas não foram aplicados de modo sistemático na ciência dogoverno.
Chegou omomento, em que podemos e devemos usá-Ios.?
"Ciência do governo", "instrumentos e técnicas" que
"devem
ser usados", "previsõescomplexas", "o tipo de escolhas bem fundadas de que necessitamos para dominar o
processo de mudança": isto é [Claude-Henri] Saint-Simon e Hegel, os mitos da
so-ciedade potencialmente racional e da história inerentemente lógica instalados no
mais improvável dos centros de poder. Com esse tom ingenuamente conservador e
ao mesmo tempo neofuturista, uma tradução popular do que hoje já éfolclore, esse
discurso poderia ter sido criado sob medida para servir de alvo às estratégias críticas
de Popper. De fato, se "dominar o processo de mudança" parece grandioso, a rigorosa
falta de sentido dessa idéia só pode ser acentuada, porque para haver "domínio sobre
o processo de mudança" é preciso eliminar toda mudança, salvo asde menor impor
-tância e menos essenciais. Esta é a idéia central de Popper. Na medida emque aforma
do futuro depende de futuras idéias, talforma não pode ser antecipada; portanto, as
muitas fusões futuristas do utopismo com o historicismo (o curso atual da história
sujeito a um controle da razão) somente podem resultar numa restrição de toda
evo-lução progressista, toda verdadeira emancipação. Talvez seja este oponto que nos
permite efetivamente distinguir a essência de Popper, o crítico partidário da
liberta-ção do determinismo histórico e das concepções estritamente indutivas do método
científico, o qual, mais que qualquer outro, esquadrinhou e discriminou o complexO
de fantasias histórico-científicas que, para o bem ou para o mal, foi um elemento
mo-bilizador do século xx. 300
declaração da Casa Branca de 1969 (que foi tão ironicamente falsificada pelos
A
d·
C·) tálonge de ser mero absurdo. Éotipo de declaração que po ena serleito por
fatOS eS b ., . )
d s os governos atuais (dá para imaginar suas versões francesa e ntamca.
uaseto o . .
q
"decisionismo" é uma afirmação muito próxima, por seus pressupostos~~re~' .
, . do espírito geral da arquitetura moderna e, portanto, das atitudes
correspon-baslcos,
dentes dos planejadores. ...
Os caminhos para o futuro estarão, enfim, bem pavimentados elivres de aciden-_ . tirão mais quebra-molas escondidos nem ziguezagues erráticos: a verdade
tes,nao exis . _ ' . ,
finalfoi divulgada. Livres de pressuposiçoes dogmáticas nos agora consultamos, do
onto de vistalógico, apenas os "fatos", e consultando-os, estam~s, fi~a~mente, ap~os p . t a solução fundamental universalmente abrangente e Jamais interrompida
aproJe ar '. .. ..
do
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gn total
.
Algo um pouco parecido com ISSO fOIe contmu~ a ser o=r:
da arquitetura moderna; e se tudo o que o liga à sociedade for obviamente emgmatlC~,podemos, mesmo assim, continuar meditando sobre os laços de parentesco da
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coma arquitetura tota
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Ébem provável que, quando a explicação for enfim apresentada, sedescubra que
elasestão namesma situação e que algo da política total eda arquitetura total está ine -vitavelmente presente em todas as projeções utópicas. Autopia nunca oferece opções.
Insisto:os cidadãos da
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opia
de Thomas Morusnão podiam não se
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am esco
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tra coisa senão ser bons.
A idéia de habitar na bondade, sem ca -pacidade de fazer uma escolha moral, tende a estar presente na maioria das fantasias,metafóricas ou literais, sobre a sociedade ideal.
Endossar a utopia da sociedade ideal é uma coisa, fazer-lhe a crítica é outra, mas,
parao arquiteto, o conteúdo ético da boa sociedade sempre foi algoque a construção d e-viatornar evidente. A bem dizer, é muito provável que essa tenha sempre sido a referência primordial do arquiteto, pois, a despeito de outras fantasias de controle que porventura
tenham se misturado para socorrê-lo - antiguidade, tradição, tecnologia -, estas foram invariavelmente concebidas como ajuda e estímulo a uma ordem social considerada de
certa forma salutar ou decente.
Assim, para não termos de recuar até Platão, mas pegando um trampolim bem
maisrecente, no
Quattrocento,
a Sforzinda, de [Antonio Averlino] Filarete, contémtodas as premonições de uma situação pensada como inteiramente suscetível ao con -trole.Lá há uma hierarquia de edificações religiosas, a
regia
principesca, o palácio daaristocracia, o estabelecimento mercantil, a residência particular. Nos termos dessa
gradação _ uma ordenação absoluta de
status
ede funções - é que a cidade bem go -vernada se tornou imaginável.No entanto, ela continuou a ser uma idéia e não se pôs em questão sua aplicação
imediata eliteral. Éque a cidade medieval representava um núcleo não suscetível ao
hábito e ao interesse, e que não podia de maneira alguma ser diretamente transgre-301
o
o
diagrama do projeto de Filarete paraa cidade de Sforzinda (do Codex Maglia Beccianus) éumantigo símbolo da ordem humanista,cujo suposto équetodas as situações humanas eram suscetíveis aregras que asseguravam uma cidade hierárquica e bem organizada.
-
-
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I(
Enquanto Versalhes é a versão construída de uma idéia, a VillaAdriana, emTívoli, éoacúmulo de várias idéias. A Villa Adriana ao mesmo tempo expõe asexigências do ideal easnecessidades d adhoc. Nisso está o começo dacolagem.
dido. Dessa forma, o problema do novo passou a ser uma interjeição subversiva no
interior da cidade - o Palazzo Massimo, oCampidoglio etc. -, ou manifestações pol ê-micas fora da cidade - o jardim revela o que acidade deveria ser.
O jardim como uma crítica da cidade - crítica que a cidade mais tarde
reconhe-ceu com fartura - ainda não recebeu suficiente atenção; mas se, fora de Florença, por exemplo, esse tema é profusamente representado, sua afirmação mais extrema só ode encontrar-se em Versalhes, essa crítica seiscentista da Paris medieval que [Eu-zéneGeorges] Haussmann e Napoleão III levaram tão a sério muitos anos depois.
g Visão profética da cidade, uma versão em tamanho grande da utopia à moda de
Filarete, com as árvores no lugar dos edifícios, num exagero literal do decoro utó
-pico,Versalhes nos serve agora como uma espécie de caixa de câmbio para dar início
a uma nova fase da argumentação. Temos então a Versalhes impassível, destituída
de ambigüidades. O padrão ético se anuncia ao mundo, e o anúncio evidentemente não é refutado. Isto é controle total e sua brilhante ilustração. Éa vitória da gene -ralidade, aprevalência da idéia irresistível, o cancelamento da exceção, e a analogia óbviacom que cotejá-Ia, para nossos fins, éa Villa Adriana, em Tívoli. Se Versalhes podeser vista como um esboço para o design total num contexto de política total, a VillaAdriana tenta dissimular toda referência a uma idéia de controle. Uma é toda
unidade e convergência; a outra é toda disparidade edivergência. Uma se apresenta
comoorganismo inteiro e completo; aoutra, como dialética viva dos elementos que a compõem: comparado com a obstinação de propósito de Luís XIV, Adriano, que pro -põeo oposto de qualquer "totalidade", só parece precisar de um acúmulo dos mais variados fragmentos.
Ambas são evidentemente aberrações, produtos do poder absoluto, mas são os
produtos - quase ilustrações clínicas - de psicologias completamente diferentes. O confronto entre Luís XIV eAdriano poderia ser mais bem interpretado por uma cita-ção de Isaiah Berlin. Em seu famoso ensaio, Berlin distingue duas personalidades: o
ouriço e a raposa. A raposa conhece muitas coisas, mas o ouriço conhece uma grande
coisa. Eisotexto que foiescolhido para ser trabalhado e servir de pretexto para a
con-tinuação do argumento:
há um grande abismo entre, de um lado, aqueles que relacionam todas as coisas a
umasónoção fundamental, um sistema mais ou menos coerente ou articulado, em
cujostermos eles compreendem, pensam e sentem - um só princípio universal de
organização emfunção do qualtudo o que eles sãoedizem temsignificação; dooutro
lado, existem aqueles queperseguem muitos fins,nãoraro desvinculados e até
contra-ditórios; sealguma conexão existe, é apenas de facto, por conta de alguma causa psi
-cológica oufisiológica. Desvinculados de qualquer princípio moral ouestético, estes últimos vivem, realizam açõesealimentam idéias mais centrífugas do que centrípetas;
seupensamento édisperso ou difuso, move-se entre muitos níveis, apreendendo a essência de grande variedade de experiências e objetos pelo que são emsi,sem buscar, consciente ou inconscientemente, ajustar-se aeles ou excluí-Ias de qualquer noção interior unitária, imutável e, às vezes, até fanática. O primeiro tipo de personalidade intelectual e artística pertence à categoria dos ouriços; o segundo, à dasraposas.'
Entre essas duas categorias, as grandes personalidades do mundo se distribuem de modo mais ou menos eqüitativo: Platão, Dante, [Fiódor] Dostoiévski, [Mareei] Proust são,não precisa dizer, ouriços; Aristóteles, [William] Shakespeare, [Aleksandr] Pushkin, [James] Ioyce são raposas. Essa é distinção elementar; mas podemos estender o jogo a outras áreas, se o que nos interessa são os representantes da literatura eda filosofia. [Pablo] Picasso éuma raposa; [Piet] Mondrian, um ouriço, as figuras começam atomar seu lugar e,quando nos voltamos para a arquitetura, as respostas são quase inteiramente pre visí-veis. Palladio é um ouriço; Giulio Romano, uma raposa; [Nicholas] Hawksmoor, [Iohn] Soane, Philip Webb provavelmente são ouriços. Équase certo que [Christopher] Wren, [John] Nash e Norman Shaw sãoraposas; mais recentemente, se [Frank Lloyd] Wrighté, sem sombra de dúvida, um ouriço, [Edwin] Lutyens com certeza éuma raposa.
Mas, aprofundando um pouco mais alógica dessas categorias, àmedida que nos aproximamos da arquitetura moderna começamos areconhecer aimpossibilidade de chegar a uma distribuição simétrica. Pois se [Walter] Gropius, Mies, Hannes Meyer, Buckminster Fuller são obviamente ouriços, onde estão as raposas para completar o rol? A preferência é evidentemente uma só.A visão central prevalece. Há uma predo-minância de ouriços, mas, se às vezes temos aimpressão de que ostemperamentos do tipo raposa são marcados pela dubiedade e,portanto, não tendem a se revelar, ainda assim resta atarefa de atribuir um lugar a Le Corbusier, "quer sejaele um monista ou
um pluralista, quer sua visão tenda ao um oua muitos, quer ele tenha uma só substân -cia ou uma mistura de elementos heterogêneos'P
Berlin faz essas mesmas perguntas a respeito de [Liev] Tolstói - perguntas que ele mesmo afirma não serem detodo relevantes; e, em seguida, arrisca sua hipótese:
que Tolstói - uma raposa por natureza, mas que acreditava ser um ouriço; porque seusdons e realizações sãouma coisa, enquanto suas crenças e,por conseqüência, sua interpretação das próprias realizações, são outra; eque, conseqüentemente, seusideais induziram-no, bem como aqueles que foram levados por seu talento para a persuasão, aum sistemático mal-entendido acerca do que ele e os outros estavam fazendo ou deviam estar fazendo."
Como tantas outras teses da crítica literária transpostas para o contexto da arquitetura, atipologia parece dar certo e,mesmo sem forçar muito a barra, ela nos fornece uma
304
explicação parcial. De um lado, temos o Le Corbusier arquiteto, com sua "inteli gên-cia arguta econtraditória", como odefiniu William [ordy.'? Éapessoa que constrói com requinte supostas estruturas platônicas sópara enchê-Ias com uma igualmente caprichada simulação de detalhe empírico, o Le Corbusier das múltiplas digressões, referências cerebrais e complicados scherzi. De outro lado, temos oLe Corbusier ur-banista, oprotagonista enfadonho de estratégias completamente diferentes das pri-rneiras, que, num espaço público amplo, usa minimamente os truques dialéticos e as involuções espaciais que normalmente considerava serem adornos adequados auma situação privada. Omundo público é simples, o mundo privado é complexo. E,se o rnundo privado aparenta uma preocupação com a contingência, a possível persona-lidade pública sustentou por muito tempo um desdém quase arrogante por qualquer laivo do específico.
Mas, se a combinação de casa complexa e cidade simples parece estranha (oinverso seria mais lógico) e separa explicar adiscrepância entre aarquitetura e ourbanismo de Le Corbusier podemos sugerir que ele fosse uma raposa fingindo-se de ouriço para fins públicos, o que fizemos foiconstruir uma digressão dentro dadigressão. Jáobservamos anteriormente a relativa ausência de raposas na atualidade; voltaremos a essa segunda digressãomais adiante. Por ora, cabelembrar que odesvio para aquestão da raposa ver
-s
u
s
ouriço teve outros propósitos: odedefinir Adriano e LuísXIVcomo representantes mais oumenos autárquicos desses dois tipos psicológicos, possuidores de poderes auto-cráticospara cultivarem suas propensões inatas edepois indagarem dos seus produtos: qualdelespoderia ser visto como omelhor modelo para os dias dehoje - aacumulação disparatada defragmentos ideais ou a exibição deum todo coordenado?A Villa Adriana éuma Roma em miniatura. Elareproduz demaneira plausível to-dosconflitos entre peças ideais disparatadas e todos os acontecimentos empíricos ale-atóriosque Roma exibia em profusão. Éum endosso conservador de Roma, enquanto Versalhes é uma crítica radical de Paris. Em Versalhes, tudo éprojeto, total e comple-tamente, mas emTívoli, assim como na Roma de Adriano, o projetado e o não-proje-tado modificam eamplificam suas respectivas mensagens. Adriano é um dos "cultu-ralistas"de Françoise Choay, preocupado com o emocional e ousável; mas, para Luís
XIV, o "progressivista" (com aajuda de [Jean-Baptiste] Colbert), a exigência éque
presente e futuro sejam explicáveis pela razão. Idiossincrasias aleatórias, diversidade
local têm . fl A· • d d ..
_' pouca m uencia nessa atitu e, equan o as racionalizações de um Colbert sao transmitidas por intermédio de [Anne-Robert-Jacques] Turgot a Saint-Simon e AugusteCom te, é que se começa a perceber a enormidade profética de Versalhes.
.Não há dúvida de que ali, em Versalhes, estão prefigurados todos os mitos da SOCiedaderacionalmente organizada e "científica", a sociedade em que não há lugar para o acidental, a sociedade governada pelo conhecimento epela informação, na qual todo debate se tornou supérfluo. Seem seguida saturamos esse mito de
sias sobre a evolução histórica e, ainda mais, daameaça da condenação eterna ou do culto da crise, podemos chegar perto de um estado de espírito não muito distante do que norteou os primórdios da arquitetura moderna. Mas, se é ca~a .vezmais difícil conter o riso ante a velha história de que, para evitar odesastre iminente, ahuma_ nidade deve conduzir-se em estreita sintonia com as forças inelutáveis do destino,
então, se nos emancipamos por nosso riso, talvez seja o caso de (a sugestão éfeita com a devida hesitação) consultar oque fomenta, em primeiro lugar, ogosto e, em
segundo lugar, o senso comum. .
O gosto não émais - e talvez nunca tenha sido - uma questão séna ou substancial, e falar em senso comum deve inspirar igualmente certa reserva. Apesar detoscos, es
-ses conceitos podem ser úteis como instrumentos rudimentares para ~ma outra abor-dagem da Villa Adriana. Dada a igualdade de condições no qu~ re~pelta, ~otamanh~ e à perenidade em Versalhes e Tívoli, équase certo que a ~referenCl~ e~tetlca.es po~ta-nea dos dias dehoje recai nas descontinuidades estruturais e nas múltiplas vibrações sincopadas que a Villa Adriana apresenta. Da mesma forma, a despeito da e~ c~upu-losa preocupação contemporânea com
um
princípio central,
c~m uma cO~~lçao .de total, holística e original continuidade, é evidente que as multlfacetadas. disjunções da Villa Adriana, a inferência admitida deque ela foi construída por muitas pessoas (ou regimes políticos) em diferentes épocas históricas, seu aspecto de c~mbinação ~~ contraditório com o racional, poderia recomendá-Ia à atenção das sOCledades políti-cas em que o poder muda de mãos com freqüência etolerância. .
Levando em conta acontroversa atitude antiutópica de Karl Popper e, basica-mente, a insinuação antiouriço de Isaiah Berlin, o favoritismo do argumento jáde~e ter se tornado claro: é melhor pensar numa acumulação depequenas peças formais,
ainda que contraditórias (como produtos de diferentes regimes) do que alimenta~ fantasias sobre soluções totalizadoras e "sem falhas", que a estrutura política acabara , . d odelo abortando. Isso implica estabelecer a Villa Adriana como uma especie em. . que demonstra as exigências do ideal e as necessidades do
ad hoc;
uma outra Impli-, . d ponto cação é que esse tipo de instalação está começando a se tornar necessana o
de vista político. 'te
-Mas a Villa Adriana não se reduz, decerto, amera colisão física de obras arqut
bé
enta umatônicas. Ela não éuma simples reprodução de Roma, porque tam em apres .
. c " E' t ali parece
iconografia tão complexa quanto sua planta. Aqui uma rererencia ao gl o,
. . b
f
i'
men
t
e a
que estamos na Síria, e mais adiante podena ser Atenas. Assim, em ora
sica
. . I bé t como uma
villa
se apresente como uma versão da metrópole impena ,tam em a ua , 'e. . I I " como uma sen
ilustração ecumênica da mistura promovida pe o mpeno e, quase, S
. V'U Ad . fora
o
de recordações das viagens de Adriano. Isso quer dizer que, na I a riana, a ed . d na pr
conflitos físicos (ainda que dependendo deles) estamos, antes e mais na a, . o
c' .. bóli EIsS
sença de uma condição extremamente condensada de relerenClas sim o icas.
306
nos leva a introduzir um outro argumento cujo desenvolvimento temos de postergar
umpouco: que naVilla Adriana estamos na presença de algoparecido com que o hoje se costuma chamar de
colagem.
CIDADE-COLISÃO E A POLíTICA DA BRICOLAGEM
o
culto da crise no período entre as duas guerras mundiais: antes que seja tarde a sociedade deve livrar-se de sentimentos, pensamentos etécnicas obsoletas; e se, no intuito de se preparar para sua iminente libertação, ela estiver pronta para fazertábula
rasa,
o arquiteto, figura-chave dessa transformação, deve estar pronto para assumir aliderança histórica. Porque o mundo construído da habitação edos empreendimen -tos humanos é o berço da nova ordem, e se o arquiteto há de acalentá-lo como deve,
precisa estar preparado para se colocar na linha de frente da batalha a favor da huma
-nidade. Embora o arquiteto alegue ser um cientista, épossível que nunca tenha traba
-lhado antes em circunstâncias psicológicas e políticas tão fantásticas. Mas, setudo'isso
são digressões, vemos as razões - razões do coração, como diz Pascal - que fizeram a
cidade ser pensada como mero resultado de descobertas "científicas" ede uma cola
-boração "humana" absolutamente ditosa. Eis em que se transformou autopia ativista do design total. Talvez seja uma visão irrealizável; para aqueles que estão esperando há cinqüenta ou sessenta anos (muitos já devem ter morrido) o estabelecimento dessa
cidadeutópica, já deveter setornado claro que a promessa -talcomo foi formulada - não podeser mantida. Ou, então, poder-se-ia pensar que, se amensagem do design total
teve uma trajetória um tanto suspeita emuitas vezes provocou ceticismo, ela continua
a ser,quem sabe até hoje, o substrato psicológico da teoria urbana ede sua aplicação
prática. A verdade é que essa mensagem tem sido tão pouco reprimível que, nos úl -timos anos, surgiu uma versão renovada eliteral dela na forma de interpretações da
abordagem "sistêmica" e outros achados "metodológicos".
Introduzimos as idéias de Karl Popper principalmente para referendar um argu -mento antiutópico com o qual absolutamente não concordamos; no entanto, a dívida
q.uetemos com Popper deve ter ficado patente em nossa interpretação da utopia ati -Vista.De fato, é difícil escapar do ponto de vista de Popper, principalmente quando
extensamente desenvolvido como em
The
Logic of Scientific Discovery
(1934) eThe
Poverty ofHistoricism
(1957).11 Poderia ter nos ocorrido que aidéia da arquitetura mo -~erna como ciência, integrada a uma ciência total e unificada, cujo modelo ideal é a~Islca(a melhor de todas as ciências), dificilmente sobreviveria num mundo que inclui
Justamente a cn ica poppenanaíti . a essas rantasias. Mas pensar assC· i•m não leva em conta
adequadamente quanto o debate na arquitetura é hermético e atrasado. Nas áreas em
quea c íti . d hecid '
~" n ica poppenana parece ser escon eci a e onde tambem se presume que a
clencia" dos pnmor" diIOS da arca arquiurtetura mo erna é amentavelmented I deficiente, nem
é preciso dizer que os métodos propostos para a solução de problemas são complica_
díssimos e demorados.
Basta observar atentamente a minuciosa exatidão do processo descrito em
Notes
on th
e
Synthesis of Form'
?
para ter uma idéia disso. Trata-se evidentemente de Ulllprocesso "limpo", que lida com dados "limpos", atomizados, purificados e nova_
mente purificados; tudo é obviamente salutar e higiênico. Mas, por resultarem das
características inibidoras do compromisso, sobretudo do compromisso com a física, o resultado nunca parece tão importante quanto o processo.
E
algo semelhante podeser dito sobre a produção correlata de ramos, redes, diagramas e colméias que, em fins
dos anos 1960, se tornaram procedimentos tão conspícuos. Ambos são tentativas de
evitar qualquer imputação de desvio tendencioso; e se, no primeiro caso, existe a
su-posição de que os fatos são verificáveis e isentos de valor, no segundo, atribui-se igual
imparcialidade às coordenadas de um diagrama. Écomo se houvesse a crença de que,
tal como os paralelos de longitude e latitude, as coordenadas do diagrama eliminarão
toda e qualquer tendenciosidade, ou mesmo responsabilidade, na especificação do
detalhe de preenchimento.
Se o observador neutro ideal é sem dúvida uma ficção; se, entre a multiplicidade
dos fenômenos que nos cercam, nós observamos o que queremos observar; se nossos
julgamentos são inerentemente seletivos, porque é impossível assimilar toda a
quan-tidade de informações factuais; e se todo uso literal de um diagrama "neutro" tem
Â
ENTIRE VILLAGE
A
8
C
D
~~~~
AI A2 A3
81 82 B3 B4
CI C2
DI D2 D3
A1contém os requisitos 7, 53, 57, 59, 60, 72, 125, 126,128. A2contém os requisitos 31, 34, 36, 52, 54,80, 94, 106, 136. A3contém os requisitos 37, 38, 50, 55,77.91.103. 81 contém os requisitos 39, 40, 41, 44, 51.118, 127, 131,138. 82 contém os requisitos 3D, 35,46, 47,61, 97, 98.Diagrama publicado em Notes on the Synthesis of Form, de Christopher Alexander.
308
dificuldades para dar conta de problemas semelhantes, o mito do arquiteto como
fi-lósofo natural do século XVIII - com suas pequenas varetas de medir, suas balanças e
retortas, ao mesmo tempo Messias e cientista, Moisés e [Isaac] Newton (um mito que ficoU ainda mais ridículo depois de sua anexação pelo primo pobre do arquiteto, o
planejador) - deve agora ser confrontado com O
pensamento
selvagem
e com tudoo que a bricolagem representa.
"Subsiste entre nós", escreveu Claude Lévi-Strauss,
uma forma de atividade que, no plano técnico, nos permite compreender muito bem o que,
no plano da especulação, podia ter sido uma ciência que preferimos chamar de "primeira", em vez de "primitiva". Éo que se costuma chamar, em francês, de "bricolagern"."
Lévi-Strauss prossegue fazendo uma minuciosa análise dos diferentes objetivos da
bricolagem e da ciência, dos diferentes papéis do
bricoleur
e do engenheiro.Emseu sentido antigo, o verbo
bricoler
se aplicava ao jogo de bola e do bilhar, à caça eàequitação, mas sempre para evocar um movimento incidental: o da bola que ri-cocheteia, do cão que corre ao acaso, do cavalo que se desvia da linha reta para evitarum obstáculo. E, em nosso tempo, o
bricoleur
ainda é uma pessoa que trabalha com asmãos, usando meios divergentes em comparação com os do artesão."
Não é nosso propósito apoiar toda argumentação que se segue nas observações de
Lévi-Strauss. O que pretendemos é tão-somente incentivar uma identificação que se
mostre de certa forma útil, de modo que, se nos inclinarmos a reconhecer Le Corbu
-sier como uma raposa disfarça da de ouriço, também podemos imaginar uma tentativa análoga de camuflagem: o
bricoleur
disfarçado de engenheiro.Os engenheiros fabricam as ferramentas do seu tempo. Nossos engenheiros são sau-dáveis e viris, ativos e úteis, equilibrados e felizes no seu trabalho [... ] nossos enge
-nheiros fazem arquitetura porque empregam um cálculo matemático que deriva da
lei natural."
Eisuma afirmação quase cabal do mais conspícuo preconceito dos primórdios da
ar-quitetura moderna. Comparemos com o que diz Lévi-Strauss:
O
bricoleur
é capaz de executar grande número detarefas diversificadas, mas, ao con-trário do engenheiro, ele não subordina cada uma delasàobtenção de matérias-primas e ferramentas concebidas e arranjadas sob medida deseu projeto. Seu universo de ins-trumentos é fechado e as regras do seu jogo sempre implicam arranjar-se com o queestiver "à mão", isto é, com um conjunto de ferramentas e materiais que é sempre finito e também heterogêneo, porque a composição do conjunto não tem nenhuma relação
com o projeto do momento, nem sequer com qualquer projeto em especial, mas é o
resultado contingente de todas as ocasiões que se apresentaram para renovar ou
enri-quecer o estoque, ou para conservar-lhe os resíduos de construções ou dedestruições
anteriores. Portanto, o conjunto de meios do
bricoleur
não pode ser definido por umprojeto (o que pressuporia, ademais, como no caso do engenheiro, que houvesse tantos
conjuntos instrumentais quantos fossem os tipos de projetos, pelo menos emtese). Só
podemos defini-Ia por sua instrumentalidade [...] porque os elementos são colhidos ou
guardados devido ao princípio de que "sempre podem servir para alguma coisa".Esses
elementos são de certo modo especializados, apenas o suficiente para que o
bricoleur
não necessite do equipamento e do conhecimento de todos os ofícios e profissões, mas
não o suficiente para que cada um deles se restrinja a um uso definido e predetermi-nado. Cada elemento representa um conjunto de relações concretas e possíveis; são "operadores", mas utilizáveis em quaisquer operações do mesmo tipo."
Infelizmente para nós, Lévi-Strauss não se presta a citações razoavelmente lacônicas. Pois o
brico/eur,
que certamente encontra um representante no "homem de seteinstrumen-tos", é muito mais que isso. "Todo mundo sabe que o artista tem alguma coisade cientista
e de
bricoleur?"
Mas, se a criação artística está a meio caminho da ciência e dabricolagem,isso não quer dizer que o
bricoleur
seja "atrasado". "Pode-se dizer que o engenheiroques-tiona o universo, enquanto o
bricoleur
focaliza uma coleção de sobras produzidas pelaatividade humana"." Mas também é preciso repetir que não há nisso nenhuma questão
de primazia. O cientista e o
brico/eur
simplesmente devem ser distinguidos. .' t t a como
pelas funções inversas que eles atnbuem aos aconteCimentos e a es ru ura, .
... . ] . d t seo
brlco'
meios e fins, o Cientista cnando aconteCimentos [... por meio e estru ura
. d . t 19
leur
crindo estruturas por meio os aconteClmen os." .,
."
. 1
cada vez maisJá nos afastamos muito da noção de uma ciência exponenCla,b . .
·0como
es-exata (uma lancha de corrida que a arquitetura e o ur anismo segUlra _
•• • •• ó uma co
n
quiadores muito mexpenentes). Mas, em compensaçao, temos nao s
"
d
meS
frontação entre o "pensamento selvagem" do
bricoleur
e o pensamento. odo
s
ticado" do engenheiro, mas também uma útil indicação de que esses dOIS ~o tra
. ,. ( engenheiro Ilus
de pensar não representam uma progressao em sene em que o .
,.. dicê necessar1
um aperfeiçoamento do
bricoleur
etc.). Ao contrano, sao con lçoes al"mente coexistentes e complementares do pensamento. Em outras palavr~s, t
d
.
.
do "
'I
ique au ntveau
estejamos prestes a alcançar uma aproxlmaçao o
pensee
agIsensible", de que fala Lévi-Strauss.
Se pudermos nos despojar das ilusões do
amour propre
profissional e da teoriaacadêmica estabelecida, a descrição do
bricoleur
é muito mais próxima da realidade doque faz o arquiteto-urbanista que qualquer fantasia "sistêrnica" e "metodológica". Na
verdade, o impasse da arquitetura é que, por estar sempre, de uma forma ou de outra,
preocupada em melhorar, em fazer melhor as coisas segundo algum critério, mesmo
queimpreciso, em como as coisas devem ser, ela está sempre irremediavelmente
en-volvida com juízos de valor e nunca alcança uma resolução científica - pelo menos
nos termos de uma teoria empírica simples dos "fatos". Se é assim na arquitetura, no
urbanismo (que nem ao menos se preocupa em fazer as coisas resistirem) a
ques-tão de uma solução científica dos problemas só pode piorar. Afinal de contas, se a
noção de solução "final" mediante uma acumulação definitiva da totalidade dos
da-dos é, evidentemente, uma quimera epistemológica; se certos aspectos da informação
nunca serão discriminados ou revelados, e se o inventário dos "fatos" não pode nunca
estarcompleto devido às taxas de mudança e obsolescência, então, aqui e agora,
de-veria ser possível afirmar que os horizontes do planejamento científico da cidade só
podem ser entendidos como equivalentes aos horizontes da política científica.
Considerando que o planejamento não pode ser mais científico do que a
so-ciedade política da qual é uma instância, nem na política nem no planejamento é
possível adquirir informações suficientes antes que uma ação se torne necessária.
~m ~enhum dos casos, a ação pode esperar a definição do problema num futuro
idealizado para ser afinal resolvido; e se a causa disso é que a possibilidade mesma
desse. futuro., onde afinal se pusesse fazer tal definição, depende de uma ação
im-perfeita realizada no presente, então tudo isso anuncia, mais uma vez, o papel da
bncolagem , com que a po
lí .
ítica tanto se assemelha e o planejamento urbanocerta-mente deveria parecer-se .
.Mas será que a alternativa entre o design total "progressista" (estimulado pelos
ounçosi') e a,..
bri
ICOagem1
"1
eu tura ista1·
"(.
impulsionada.
pelas raposas?) é, em últimaanaItse só o q, ue nos res a para escot lheri Néer? Nos achamos que SIm, e, na nossa opinião, as.
conse ..,. , . .
quencias políticas do design total são realmente devastadoras. Não a condição
atual de compro mISSO e converuencia,. ., . de vo içao e arbítrio,1·· , . mas uma combinação
sumamente irresi. . IS Ivetí 1d "e ClenCla e-Ó»; ." "destmo" - é este o mito não confesso da utopia.
ahVIstaou
hi
IS oricista.t .. E 'e nesse sentido que o design total foi e é uma mistificação. No. . .mundo pratílCO, esign to ta nao pode significar outra coisa senão controle total e umdesi 1· ..
Controle btid - - '
m o ti o nao por abstraçoes acerca do valor absoluto da ciência ou da história,
as pelos go . d 1
m vemos cna os pe o homem. Esse argumento não precisa ser enfatizado
as nunca ' d . di _. )
se e ernais izer que a execuçao do design total (por mais amado que seja)
c mpre pressupõe algum nível de centralização do controle político e econômico
Ontrole e tI'
m
s e que, evando em conta os poderes ora existentes em qualquer lugar doUndo, nos parece totalmente inaceitável.
"Ogoverno mais tirânico de todos, o governo de ninguém, o totalitarismo da téc_ nica" - essa imagem do horror, de Hannah Arendt, nos vem à mente nesse momento
,
e, nesse contexto, o que dizer da bricolagem "culturalista"? Épossível antecipar seUs perigos, mas na qualidade de um reconhecimento deliberado da tortuosidade da his_ tória e da mudança, da inevitabilidade de um futuro de profundas cesuras temporais,
dos vários matizes da expressão societária, uma concepção da cidade como intrínsecae idealmente obra de bricolagem começa a merecer uma séria atenção. Seo design
total parece representar uma capitulação do empirismo lógico a um mito nada empí_
rico, e se parece imaginar o futuro (onde tudo será conhecido) como uma espécie de
dialética do não-debate, é porque o bricoleur (como a raposa) não pode alimentar tais expectativas de síntese conclusiva, já que sua ação se realiza não só num mundo inf
i-nitamente extenso, embora sujeito às mesmas generalizações, mas implica uma
dispo-sição e uma capacidade de lidar com uma pluralidade de sistemas fechados finitos (a
coleção de sobras deixadas pela atividade humana) da qual, pelo menos por enquanto,
seu comportamento oferece um importante modelo.
Se estivermos dispostos a reconhecer os métodos da ciência e da bricolagem como
propensões concomitantes, se nos dispusermos a reconhecer que ambas são formas
de tratar os problemas, se quisermos (e não é nada fácil) aceitar a igualdade entre o pensamento "civilizado" (com seus pressupostos de seriação lógica) e o pensamento "selvagem" (com seus saltos analógicos), então, restituindo à bricolagem um lugar ao
lado da ciência, talvez se torne possível imaginar a possibilidade de preparar uma dia -lética futura verdadeiramente útil.
Dialética verdadeiramente útil? A idéia é tão-só a do conflito entre poderes con-correntes, o conflito quase fundamental entre interesses claramente definidos, a
legí-tima suspeição acerca dos interesses dos outros, da qual provém o processo
demo-crático, tal como é; e então o corolário dessa idéia é meramente trivial: sefor esse o caso, isto é, se a democracia se compõe de entusiasmo libertário e dúvida legalista, se é inerente a ela uma colisão de pontos de vista e aceitável como tal, então por que não admitir que uma teoria dos poderes concorrentes (todos eles visíveis) fosse capaz de
definir uma cidade ideal mais completa do que as inventadas até hoje?
Recordando a Villa Adriana, essa proposição nos induz automaticamente (com
os cães de Pavlov) à situação da cidade de Roma no século XVII, aquela inextricável são de imposição e acomodação, aquele congestionamento flexível e resistente, moi bem-sucedido de intenções, uma antologia de composições fechadas e objetos inte
ticiais ad hoc, que é, ao mesmo tempo, uma dialética de tipos ideais, somada a u
dialética entre tipos-ideais e contexto empírico. E a consideração da Roma doséc XVII (a cidade completa com a identidade assertiva de suas subdivisões: Traste\'" Sant'Eustacchio, Borgo, Campo Marzo, Campitelli ...) instiga-nos a uma interpreta
equivalente da cidade que a precedeu, onde os prédios do fórum e das termas
c
312
A Roma do século XVIIexemplifica a dialética de tipos ideais urbanos. É uma cidadecompleta, onde as partes integradas afirmam suaidentidade.
viviam numa relação de interdependência, independência e múltiplas possibilidades de interpretação. A Roma imperial é, de longe, uma afirmação ainda mais dramá-tica.Porque, com suas colisões mais abruptas, disjunções mais agudas, edificações
formais ainda mais expansivas, com sua matriz discriminada de modo mais radical e
uma ausência geral de inibição "sensível", a Roma imperial, muito mais que acidade do alto barroco, é a melhor ilustração do espírito do bricoleur em toda sua generosi-dade - um obelisco daqui, uma coluna dali, uma fileira de estátuas de outro lugar, até ~o detalhe, esse espírito se revela inteiramente. A esse respeito, é divertido lembrar a lllfiuência de toda uma escola de historiadores que, em certa época, se empenhou com
afinco em apresentar os antigos romanos como engenheiros do século XIX,
precurso-resde Gustave Eiffel, que por alguma razão haviam infelizmente perdido o rumo.
Assim, propomos aqui pensar a Roma, imperial ou papal, hard ou soft, como
~ma espécie de modelo alternativo ao desastroso urbanismo da engenharia social e
odesign total. Apesar de reconhecermos que o que temos aqui são produtos de uma
tOPografia específica e de duas culturas particulares, ainda que não completamente
separáveis, estamos também supondo estar diante de um estilo de argumento que não
carece de universalidade. Isto é: embora a estrutura física e política de Roma mostrem
CIDADE-COLAGEM E A RECONQUISTA DO TEMPO
o que talvez seja o exemplo mais explícito de campos colidentes e ruínas intersticia' existem versões mais tranqüilas.
Por exemplo, Roma - se você quiser vê-Ia assim - é uma versão implodida de Lo
dres, e o modelo Roma-Londres pode inclusive ser ampliado a outras comparações, Co
Houston ou Los Angeles. Mas acrescentar detalhes poderia alongar indevidamente a
gumentação. Só para concluir o assunto: mais que um "elo [hegeliano] indestrutível entr
beleza e verdade", mais que as idéias sobre uma unidade futura permanente, preferim
pensar nas possibilidades complementares da consciência e do conflito sublimado.
E,
precisamos urgentemente tanto da raposa como do bricoleur, também pode ser que, e~
face do cientificismo prevalecente e do laissez aller que salta à vista,as atividades deambot
bem poderiam proporcionar a verdadeira e constante Sobrevivência pelo Design.
A tradição da arquitetura moderna - que sempre professou uma aversão pela art
- entendeu a sociedade e a cidade de modo muito convencional, mediante conceito
de unidade, continuidade, sistema. Mas há um método alternativo e aparentement
bem mais favorável à "arte" que, até onde se sabe, nunca teve necessidade deaderir
modo tão literal a princípios "básicos". Essa outra tradição demodernidade - estam
pensando em Picasso, [Igor] Stravinsky, [T. S.] Eliot, Joyce - está aléguas dedistânci
do ethos da arquitetura moderna. Fazendo da ambigüidade e da ironia uma virtu
não se julga em absoluto dona de um canal de comunicação seja com asverdades
ciência, seja com os padrões da história.
"Nunca fiz ensaios ou experiências"; "Não consigo entender a importância que a
buem à palavra pesquisa"; "A arte é a mentira que nos permite compreender a y,
dade, pelo menos a verdade que nos é dada compreender"; "O artista deve conhecer
maneira de convencer os outros da veracidade de suas mentiras"." Declarações co
essas de Picasso nos fazem lembrar a definição de [Samuel Taylor] Coleridge para
obra de arte bem-sucedida (também poderia servir para definir um feitopolítico) co
aquela que estimula "uma suspensão voluntária da descrença". Talvez Coleridge use
tom mais inglês, mais otimista, menos impregnado da ironia espanhola, mas a idéi
a mesma, fruto de uma percepção da realidade como algo difícil delidar. Éclaro
q
logo que começamos a pensar nas coisas dessa maneira, todos nós, anão ser o
rn
empedernido pragmático, começamos a nos afastar do estado de espírito alardeado
das afortunadas certezas do que às vezes se define como o mainstream da arquite
moderna, pois este é um território do qual a maior parte dos arquitetos eurbanistaS
excluíram. O estado de espírito muda completamente: continuamos no século xX,
a ofuscante crença moralista na unidade foi, enfim, posta ao lado de uma apreen
mais trágica da alucinante multiformidade das experiências, que dificilmente se des
314
Estamos assim em condições de caracterizar, em parte, as duas formulações de
Jllodernidade, e, admitindo que existem dois modos contrastantes de"seriedade", po -demos agora pensar no Bicycle Seat [Cabeça de touro] (1944), de Picasso, segundo as
palavrasdopróprio artista:
Você selembra daquela cabeça de touro que euexpus recentemente? Com o guidão
e oassento deuma bicicleta eufizuma cabeça de touro que todo mundo reconheceu
comouma cabeça detouro. Isso completou uma metamorfose, e agora eugostaria de
outrametamorfose na direção oposta. Suponhamos quea cabeça detouro fossejoga
-da no ferro-velho. Talvez, um dia, um operário se aproxime ediga:"Olha só, tem uma
coisa ali que serve bem para guidon de minha bicicleta [...]"e assim, teria ocorrido
uma dupla metamorfose."
Lembrança da função e do valor anteriores (bicicletas eminotauros); mudança de
contexto; uma atitude que estimula o compósito; exploração ereciclagem do sen -tido (jáse fez disso obastante?); desuso da função com acorrespondente concreção
de referências; memória; antecipação; elo entre memória e espírito - eis aí uma lista de possíveis reações àproposta de Picasso. Levando em conta que aproposta
se dirige obviamente ao "povo", é em palavras desse tipo, em termos que falam de
prazereslembrados e valores desejados, de uma dialéÚca entre passado efuturo, do
impacto de um conteúdo iconográfico, de um conflito simultaneamente temporal e espacial, que, para resumir um argumento anterior, sepoderia começar adefinir
uma cidade ideal do espírito.
Partindo da imagem dePicasso, nos perguntamos: oque é "falso" e o que é "ver -dadeiro", oque é "antigo" e o que é "de hoje"? E por causa da impossibilidade de dar uma resposta conciliatória a essa agradável dificuldade é que nos vemos obrigados,
por.fim,aidentificar o problema da presença do compósito (já prefigurado na Villa
Adnana) em termos de colagem. A colagem e a consciência do arquiteto, colagem
~omo técnica e colagem como estado de espírito: Lévi-Strauss nos diz que "a moda
lIltermitente di'
. as co agens, que surgIU quando o artesanato estava morrendo, não
:de deIXarde ser [...]outra coisa senão a transposição da bricolagem para a esfera
contemplação".22
A
reCUsados it t d .1
.
.
l
i
arqui e os o secu o xx a pensar em SI mesmos comobricoleurs
ex-P
ca SUaindif das mai .faJ. erença a uma as mais Importantes descobertas do século xx; pareceu
tarslllcerid d' 1
ul _ a e a co agem, como se fosse um atentado aos princípios morais, uma
teraçao d 1 B
, e es. asta pensar na Natureza morta com cadeira de palha (1911-l2), de
casso su " .
A '. a pnmeIra colagem, para começar a entender por quê.
nahsando essa obra, Alfred Barr diz o seguinte:
[...)o fragmento da palha doassento da cadeira não énem real nem pintado m
, asUllJ.
p~daço ~e lona colada ~a tela edepois ~arcialm~nte p.intado. Numa única pintura,
Pícasso Joga com a realidade e a abstraçao em dois meIOS e quatro diferentes ' .
_ nlvelS
ou proporçoes. [E) separamos para pensar noque émais "real", nos fiagramos d
I· d ' . e
s-~zan ~ entre aestética e a cont~m~lação metafís~ca,pois oque nos parece mais real
e o mais falso e o que parece mais distante da realidade cotidiana é omaisreal "
. • . 23 'Ja que
menos irmtatrvo. .
o
fac-símile em lona da palha da cadeira, um objet trouvé apanhado no submundo da"baixa" cultura e alçado ao ~u~do superior da :'alta" arte, ilustra o dilema do arqui_
teto, uma vez que a colagem e Simultaneamente mocente e astuciosa.
De ~ato, entre os arqu~tetos,.somente Le Corbusier, um grande indeciso, ora raposa,
ora ounço, demonstrou simpatia por esse tipo de trabalho. Seus edifícios, embora não
os projetos urbanos, seguem um processo mais ou menos equivalente ao da colage
m.
Objetos e episódios são obviamente importados e, apesar de conservarem osindícios
de suas origens e fontes, adquirem um efeito inteiramente novo devido àmudança de
contexto. No ateliê Ozenfant, por exemplo, encontramos um grande número de
alu-sões e referências que parecem ser basicamente agregadas pelo sentido de colagem.
Objetos díspares reunidos por meios variados, "físicos, óticos,psicológicos",
a lona, com o detalhe em fac-símile muito evidente e a superfície que parece áspera,
mas na realidade élisa;[...)parcialmente absorvida na superfície pintada enasformas
pintadas por deixá-Ias sobrepostas [...]24
.:.com pequeníssimas modificações (substituindo-se o fac-símile de lona pela tinta
in-dustrial, a superfície pintada pela parede), as observações de Alfred Barr podiam ser
usadas para interpretar o ateliê Ozenfant. Não é difícil encontrar outros exemplos de
Le Corbusier como colagista: a óbvia cobertura De Beistégui; as paisagens vistas dos
telhados - navios e montanhas - de Poissy e Marselha, pedregulhos espalhados na
Porte Molitor eno Pavilhão Suíço; um interior em Bordeaux-Pessac; e,especialmente. o pavilhão da exposição Nestlé de 1928.
Entretanto, é evidente que, à exceção de Le Corbusier, indicações desse estado
de espírito são esparsas e raras vezes foram bem recebidas. Penso em [Berthold
Lubtetkin, em Hightpoint 2,com suas cariátides Erectheion e pretensas imitações
pintura imitando madeira; penso em Moretti, na Casa delGirasole e seus fragment
de falsos antigos no piano rústico; e lembro ainda de [F~ancoJ Albini, no seu pal
Rosso. Pode-se pensar também em Charles Moore. Mas alista não émuito longa.
sua curta extensão é um admirável testemunho, um comentário sobre a exclus
i
dade. A colagem, freqüentem ente um método de dar atenção às sobras domundo, 316
o
terraço dacobertura De Beistégui do colagista LeCorbusier.preservar sua integridade e conferir-lhes dignidade, de combinar o informal com o
cerebral, a convenção e a quebra da convenção, opera necessariamente demodo ines
-perado. Um método rudimentar, "uma espécie de discordia concors, uma combina -ção deimagens dessemelhantes, ou uma descoberta de semelhanças ocultas emcoisas
aparentemente díspares" - esses comentários de Samuel Iohnson sobre apoesia de
[ohnDonne, que seriam igualmente aplicáveis aStravinsky, Eliot, Ioyce, a boa parte
do programa do cubismo sintético, indicam até que ponto a colagem se baseia num jogo de normas erecordações, num olhar retrospectivo que, na opinião dos que p
en-samahistória e ofuturo como uma progressão exponencial para uma simplicidade
cadayezmais perfeita, somente inspira a conclusão de que a colagem, apesar de todo
seuvirtuosismo psicológico (Anna Livia, toda aluvial), éum entrave deliberadamente
interposto ao rígido curso da evolução.
Evidentemente, a argumentação lida com duas concepções de tempo. Por um lado, otempo se torna o metrô no mo do progresso, atribuindo-se aos seus aspectos
seqüenciais um caráter dinâmico e cumulativo; por outro lado, embora a seqüência
e acronologia sejam reconhecidas pelo que são, admite-se que o tempo, privado de
alguns de seus imperativos lineares, se reorganize em função de esquemas experimen -tais.De umlado, a perpetração de um anacronismo é o maior detodos os pecados. De
Outro, a idéia de data édesomenos importância. As palavras de [Filippo JMarinetti no
M
'Canltesto Futurista de 1909:
Quando vidas têm de ser sacrificadas, não nos entristecemos sebrilha diante denós a colheita magnificente deuma vida superior que sobrevirá ànossa morte [...)Estamos