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Sobrevivência da antiga religião galaica e concomitâncias na Europa atlântica. Xoán M. Paredes

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Sobrevivência da antiga religião galaica e concomitâncias na Europa atlântica Xoán M. Paredes IV Jornadas das Letras Galego-Portuguesas, 30-31 Maio 2015, Pitões das Júnias (Montalegre, Portugal) [Este texto foi publicado originalmente em 2018 nas actas das Jornadas das Letras Galego-Portuguesas 2015-2017, DTS, Università di Bologna e Academia Galega da Língua Portuguesa, pp. 51-63]

Introdução

Nas Jornadas das Letras Galego-Portuguesas de 2014 apresentei de forma resumida algumas razões do como e porquê a Galiza e Norte de Portugal podem ser considerados territórios tanto ou tão pouco 'celtas' com qualquer outro da Europa Atlântica e, acho que mais importante, para que é que isso tudo vale nos tempos que vivemos (Paredes, 2015).

Falei também de eufemismos, ou de como algumas palavras tabu podem ser usadas ou não em determinados contextos ou aplicadas a determinados territórios, como é o próprio adjectivo 'celta'. No muito esquemático resumo sobre a sobrevivência de antigas crenças galaicas na actualidade que pretendo realizar aqui, vou ter que falar outra vez desses eufemismos 'pré-romanos'.

Deste jeito, o objectivo principal deste texto é convidar à refexão tentando fornecer algumas informações sobre como focar a antiga religião galaica, e partilhar algumas ideias no estudo da sua pegada sobre a cultura galego-portuguesa actual. Não pretendo fazer uma listagem exaustiva de todos e cada um dos elementos idênticos ou equiparáveis nas crenças entre os distintos territórios célticos, nem cair em anedotas e curiosidades. Longe disso, faço esforço consciente por evitá-lo com excepção dalguns poucos exemplos ilustrativos, pois doutra forma derivaria em páginas sem fm, perdendo a focagem geral, de compreensão global embora sintetizada que pretendo atingir.

Um outro problema seria lidar com o que hoje em dia percebemos como religião, ou religião organizada, um conceito fundamente deturpado pelas religiões abraâmicas1, até o extremo de mesmo determinar quem se considera como ateu, ou não-crente, derivado da confusão que existe entre termos como religião, espiritualidade ou crença. Mas isso fca para um outro debate.

1 São as religiões monoteístas cuja origem comum é reconhecida na figura de Abraão ou o reconhecimento duma tradição espiritual identificada com ele. As três principais são o judaísmo, cristianismo e islamismo.

Figura 1

“Os Celtas do Oeste”

Novas evidências parecem corroborar as velhas teorias duma origem atlântica (não centro-europeia) dos povos celtas, ou quando menos dum dos principais galhos desses povos. Isto desmonta o paradigma “invasionista” clássico, colocando à Gallaecia (Galiza e Norte de Portugal) no centro dos acontecimentos como foco criador e emissor de cultura desde a mais remota antiguidade.

Fonte: Progael (Acesso 25 Maio 2015)

www.progael.com/en/tematicos/ver/ 13

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Que sabemos e como o sabemos?

As primeiras perguntas que nos podemos fazer sobre as crenças e cosmologia dos nossos e nossas antepassadas são como é que eram essas crenças? Que fca delas? Como podemos saber?

- Crónicas pré-cristãs, explicando comportamentos e crenças dos povos do noroeste peninsular, e comparando isto com o dito a respeito doutros povos europeus coetâneos.

Há que tratar estas crónicas com cuidado pois nem sempre eram informações de primeira mão e, em todo caso, eram vistas através do prisma de pessoas pertencentes a culturas muito diferentes e por vezes invasoras que, por lógica, também não sempre poderiam compreender o que estavam a assistir. Contudo, as descrições dos costumes e crenças dos galaicos e galaicas encontram múltiplos paralelismos com o resto da céltia, como o tabu do ferro aplicado sobre lugares e plantas sagradas. Segundo Justino (XLV 3, 6):

“Nos confns deste povo há um monte sagrado ao que se considera nefasto violar com ferro; mas se um raio fende a terra, o que nestes lugares é cousa frequente, permite-se-lhes apanhar o ouro descoberto, como um dom do deus.”

Este tabu encontra-se também presente nos relatos de Plínio 'O Velho' (HN XVI-249) sobre os galos e, ainda, forma parte do folclore popular contemporâneo dalguns lugares, como o Monte do Seixo (Terra de Montes, Galiza), onde o metal não podia tocar a terra (Solla, 2007; Bieites et al., 2009). De igual forma, os próprios Plínio e Sílio Itálico (livro III, 344-7) comparam os sacrifícios, métodos de adivinhação e castigos do povo galaico com outros, não duvidando em os qualifcar de célticos (Brañas, 2000).

- Gravados e restos materiais supostamente religiosos, incluindo decorações comuns à Europa Atlântica normalmente associadas a crenças religiosas noutros lugares, como os trísceles, labirintos e espirais. Mas ainda sendo as decorações praticamente iguais nas formas, resulta difícil conhecer qual era o seu signifcado exacto, entrando aqui no campo da opinião. Ora bem, encontramos uma outra série de elementos dos que sim temos mais dados e que não podem ser simples casualidade no seu conjunto, como a presença de espadas em leitos de rios e lagos2, as cabeças protectoras de casas talhadas em pedra - com feitura e colocação identifcável, diferentes às típicas gárgulas (ver Quintía, 2011), ou também as chamadas 'pedras de entronização' com podomorfos (marcas na rocha com forma de pé humano), pedras 'abaladoiras' ou 'pedras que falam'.

Daí conhecemos que esses elementos simbolizam, cada um à sua maneira, um sacrifício, oferenda e aliança com a terra no primeiro caso ou aliança com a terra que se queria governar na segunda (García Fernández-Albalat, 1996). Não é estranho pois que mitos medievais posteriores de origem celta, como a própria lenda de Excalibur, recompilem todos estes elementos: uma espada sagrada que é 2 A presença de espadas da Idade do Bronze em fundos fluviais e lacustres é um tema tradicionalmente pouco

estudado e pouco conhecido na Galiza e Norte de Portugal, embora seja uma prática com claro significado simbólico-religioso do mundo celto-atlântico. Contudo, a evidência vai-se impondo com a descoberta de novos achados e até de lendas populares esquecidas, como a 'Lenda de Brandomés' (incidentalmente, um nome céltico). Ver http://www.blogoteca.com/diverblogue/index.php?cod=128242 (Acesso 15 Maio 2015).

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dada (devolvida?) aos humanos desde as águas por uma dama (moura), objecto através do qual o verdadeiro e justo rei será conhecido uma vez libertada da pedra (a terra é juiz) e ferramenta com a qual poderá governar em sagrado pacto graças ao seu poder doutro mundo, susceptível, isso sim, a invejas, traições e defeitos do carácter humano (Mac Cana, 2011).

Na mitologia céltica o poder, a soberania, vem dada por deidades – nomeadamente Brighid, ou Brigantia para nós – que decidem quem deve ou não ser rei ou rainha, um pacto que deve ser solenemente ritualizado e onde por toda a Europa Atlântica céltica aparecem estes elementos. A investidura do candidato ou candidata feita sobre uma pedra sagrada que, dalguma forma, é capaz de comunicar se essa pessoa é digna do cargo, é comum entre a Galiza e outros territórios da chamada Céltica Atlântica (Brañas, 2000; García Quintela e Santos Estévez, 2000). Até detalhes como por exemplo o relacionamento do monarca com animais específcos como a carriça são comuns entre a Galiza e a Irlanda (Pena Graña, 2005). Mesmo o muito galego meigalho não deixa de ser um geis gaélico, uma maldição, feitiço ou castigo por desrespeitar uma norma ou quebrar um tabu ou promessa, que pode ser imposta por uma mulher (soberania) sobre um homem (ruptura do pacto sagrado do rei/herói) (MacKillop, 1998), exactamente como nos relatos de mouras (Solla, 2007; Bieites et al. 2009).

Assim, na opinião de García Quintela e Santos Estévez (2008), os paralelismos entre aspectos como a delimitação de espaços sagrados ou a articulação da paisagem social entorno a um conjunto de gravados, à sua vez com relação a uma contagem do tempo tipicamente céltica, são factores que assinalam uma religião comum.

- Epigrafa, com referências directas e explícitas à existência de “Dur-bedes”, isto é, druidas numa forma adaptada à Gallaecia. Aliás, este é um tema que apesar de ser conhecido há décadas foi poucas vezes explorado. Em detalhe:

druwid– “sacerdote, druida” (Matasović, 2009)

durwid– (metátese de /r/ em contacto com /u/ ou /w/, cf. Matasović s. v. *tawr-)

durbid– (cf. PIE *tawr- > PClt *tarw- > OIr. tarb “touro”; esta última evolução dá-se também na inscrição a MARTI TARBUCELI, de Braga, AE 1983, 562).

E posteriormente a forma galaica durbed– surgida seguramente a partir dum étimo dru-weyd– Figura 2

Podomorfo do Monte de Laxoso

Podomorfo achado pelo colectivo de intervenção cultural e histórica Capitán Gosende no Monte de Laxoso (Quireza, Cerdedo, Galiza) em Abril de 2015, junto com uma série de gravados rupestres. A comarca de Terra de Montes, onde se encontra o excepcional Monte do Seixo, é particularmente rica em restos pré-históricos e folclore popular de carácter simbólico-religioso.

Autor: Anjo Torres (Colectivo Capitán Gosende).

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Algumas inscrições conhecidas são:

D(IS) M(ANIBUS) S(ACRUM) / POS(UIT) IULI/A QUTI FI/LIO IULIO / FAUSTO {A} / AN(N)OR(UM) XXXIII / ET DURBE/DI(A)E NEP/TI SU(A)E CA/RISSIM{E}/IS MEIS (Vigo: HEp-15, 00307) (Jiménez Cano, 2006).

CELEA / CLOUTI / DEO D/URBED/ICO EX V/OTO A(NIMO) [L(IBENS?)] (Guimarães: AE 1984, 00458)3

LADRONU[S] / DOVAI BRA[CA]/RUS CASTEL[LO] / DURBEDE(NSE) [H]IC / SITUS ES[T] / AN(N)O/RU[M] XXX(?) / [S(IT) T(IBI)] T(ERRA) L(EVIS) (AE 1984, 458).

Onde DURBEDIE é um antropónimo feminino, é dizer, Druidesa (Druwidyā), DEO DURBEDICO um epíteto “ao deus dos druidas” ou “ao deus druídico” (Druwid-ik-) e DURBEDE um lugar nalgures perto de Braga (druwidī). Não resulta assim estranho que também vaiam aparecendo outras referências como o micro-topónimo do Caminho de Druidantes em Ogrobe (Fernández Soutullo, 2013).

Villar (2010) argumenta que dur- faz referência um hidrónimo num estudo de etimologia comparada a nível indo-europeu, mas apresentam-se aí uma série de problemas. O primeiro é que Villar explica só uma inscrição das citadas, não o conjunto. Igualmente, não há evidência de rios ou águas ou relação directa entre os lugares onde se encontraram todas estas inscrições com águas. Também não conhecemos nenhuma deidade no noroeste peninsular com base dur- consagrada às águas (mas sim que se repetem determinadas formas para rios, como Navia, Avia, Deva, etc). Igualmente, no 3 “Dedicação a Durbédico”, em Hispania Epigraphica, registo no. 11892. Disponível em

http://eda-bea.es/pub/record_card_1.php?rec=11892 (Acesso 2 Maio 2015).

Figuras 3 e 4 Epigrafia 'Druídica'

A primeira e segunda inscrições citadas acima.

A primeira ara foi catalogada como “epitáfio/sepulcral”. A segunda foi catalogada como “altar votivo/cultual”. Fonte: Hispania Epigraphica (2015).

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momento que cita como exemplos lugares fora do mundo céltico perde parte da validade, já que o marco geográfco relacional é fundamental; seguindo essa lógica poderíamos procurar, e até encontrar explicação, a qualquer cousa em qualquer sítio trazendo exemplos pontoais e descontextualizados que coincidiram com uma ideia preconcebida. Finalmente, também não fornece explicação à forma em feminino Durbedie.

- Documentação medieval e eclesiástica (comparando também com escritos bíblicos e contexto para saber o que é anterior e o que é dessa época), onde destaca para o caso galaico o episódio do bracarense Martinho de Dume no S. VI, numa autêntica teima anti-pagã recolhida, principalmente, na sua obra De correctione rusticorum ('Da Correcção dos Rústicos'). Na sua listagem dos “horrores” pagãos e do culto Priscilianista (uma forma de cristianismo primitivo misturado de forma clara com a religião precedente), Martinho de Dume está-nos a oferecer involuntariamente uma magnífca descrição da religiosidade galego-portuguesa da época, como por exemplo:

“O culto à água, ao lume, às pedras, árvores e astros, especialmente à Lua. A veneração que se tem por algumas ervas, utilizadas em esconjuros e exorcismos, assim como a determinados galhos de árvores. Além disso, os agoiros baseados nos dias do mês ou da semana, no canto dalguns pássaros, no encontro de determinadas pessoas, na rotura de objectos específcos, dentro ou fora da casa.” (Sá Bravo, de, 1991: 12).

De facto, como afrma De Sá Bravo (1991), todas estas crenças e ainda muitas outras encontram-se presentes a dia de hoje, embora camufadas nas mal chamadas 'superstições' ou misturadas com o supremacista culto católico em nome, mas não nas formas – a supervivência destes elementos é a própria demonstração. Em verdade, todos eles são parte de um código simbólico bem estabelecido e organizado, onde animais, plantas ou árvores não são reverenciadas por elas mesmas, mas representam características evocadoras de deidades, heróis, ou diversos aspectos da cosmologia céltica (García Fernández-Albalat, 1996). Diz Emerick (2013: 11-12):

“Sabemos que os costumes e folclore locais foram autorizados a continuar depois da conversão inicial ao catolicismo. De facto, há registos que demonstram que a táctica da Igreja foi a de simplesmente pintar os costumes pagãos com um verniz cristão [usando] a palavra 'demónios' para descrever os deuses pagãos europeus.”

- Comparativa: entre territórios e para cada período histórico. Como já deu para ver, é nessa análise comparada onde se observa que apesar de haver por um lado certa partilha trans-cultural e, por outro, as lógicas disparidades internas e múltiplas variantes locais, existem grandes grupos culturais singulares e identifcáveis, diferentes entre eles. Como diz Pena Graña (2005) para o nosso caso:

“A Céltica europeia consiste em realidade numa interminável rede de milhares de comunidades políticas autónomas independentes ou interdependentes … falando línguas relacionadas em maior ou menor grau … Mas essa rede multicor responde a um único impulso organizativo, a um

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compromisso territorial e partilha uma fé comum … A Religião Celta é fundamentalmente dogmática, com um sistema organizativo uniforme. A Céltica conformava-se dum modo comparável ao da Europa Cristã Medieval, fraccionada politicamente mas unida pela estrutura [religiosa] dando-lhe o sentido e a força da unidade [com um] clero internacionalmente coeso.” E ainda, falando sobre o relacionamento Galiza-Bretanha, Waggaman (1988: 491) afrma que:

“Se bem não existia uma unifcação política entre as diferentes ‘tuaths’ [Trebas] célticas, o mesmo não podia ser aplicado, porém, à sua unifcação baixo um sistema religioso comum … O Druidismo era a religião exclusiva dos Celtas e todas as ‘tuaths’ partilhavam um sistema religioso idêntico … O Druidismo não era uma instituição tribal mas dalguma forma um culto internacional seguido por todos os diversos grupos territoriais célticos”

Que tiramos dessas informações e comparativa?

Semelhanças nalguns aspectos de todas as religiões pré-cristãs da Europa ocidental, nomeadamente do mundo céltico, em relação à:

- Viagens do Além e supervivência da alma depois da morte, com múltiplas referências à transmigração da alma dum ente físico a outro. Daqui derivam tradições como a peregrinação a Teixido (norte da Galiza), onde fca proibido fazer dano a nenhuma criatura encontrada no caminho, especialmente aquelas a arrastarem pelo chão pois podem ser “alminhas” (Pena Graña, 2006) e, em geral, toda uma série de rotas e peregrinações (incluído o chamado 'Caminho de Santiago', em verdade pré-cristão; Charpentier, 2000) que viram arredor duma geografa sagrada que segundo García Fernández-Albalat (1999) demonstram a supervivência da religião celta na Galiza e Norte de Portugal actuais. É destacável também a forte semelhança entre os mecanismos de anunciação da morte, seja com a Estadea ou Santa Companha na Galiza, a Bean Shide (Banshee) irlandesa ou a Ankou bretã (Paredes, 2000), e como a morte marca uma última viagem ritual que apresenta características muito semelhantes – na forma e no fundo – em toda a Europa Atlântica. Em geral, a fuída relação vida-morte, a naturalidade como a morte é vista como uma continuidade da vida, como os mortos são honrados e queridos, é algo recorrente na cultura galaico-portuguesa tradicional e que encontra um eco directo na tradição celto-atlântica (Sá Bravo, 1991; Paredes, 1999, 2000). O próprio Júlio César escreveria sobre os galos e a sua convicção cega neste aspecto, até como se lhe estranhasse tanta convicção (Bellum Gallicum VI, 17).

- Códigos éticos e de conduta similares, onde no mundo céltico prima o sentido da responsabilidade pessoal. As deidades interagem connosco mas nós somos os principais responsáveis das nossas vidas e do mundo no que vivemos, tendo que aceitar as consequências dos nossos actos. Outro aspecto a destacar é o carácter heroico das sociedades (García Fernández-Albalat, 1990, 1996; Brañas, 2000), onde existe uma narrativa comum, até um estilo identifcativo através do qual prima a fgura do 'herói' como modelo a seguir, como a pessoa a ser imitada, um dos elementos simbólicos arredor do qual devia virar uma sociedade próspera em base a qualidades como a coragem, astúcia, honra ou

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força, algo que as deidades veriam com simpatia pois é indicativo de indivíduos capazes de contribuírem de forma decisiva e positiva ao conjunto da sua comunidade (Sjoestedt, 2000).

- Politeísmo e panteísmo: com múltiplas deidades que apresentam diversas características, por vezes complementares ou paralelas, que pelo geral não entram em oposição directa. Assim, a diferença doutras religiões nativas europeias, o panteão (a falta duma palavra melhor) céltico-galaico não reproduz necessariamente uma hierarquia familiar ou de poder (embora sim funcional) nem confitos internos salientáveis (García Fernández-Albalat, 1990, 1999; Brañas, 2000), relacionando-se de forma fuída com os ciclos naturais e exemplifcando as próprias ambiguidades da vida, revelando rasgos de arcaísmo em relação a outras religiões indo-europeias (García Fernández-Albalat, 1996).

Ao tempo, existe a ideia infundada no mundo ocidental de o politeísmo ser uma fase primitiva e intermédia na evolução religiosa, proveniente do ainda mais rústico animismo, e que só pode acabar por culminar no 'evoluído' monoteísmo, que à sua vez sempre conta com um ente criador supremo e externo ao resto do Cosmos. Isto acompanha-se frequentemente com o perverso axioma que equipara a evolução do pensamento religioso com o grau de evolução ou progresso cultural da sociedade a tratar. Esta visão linear da religião é de facto falsa, e em absoluto partilhada noutras culturas, sistemas de crenças, religiões ou flosofas.

- Nomes de deidades e funções comuns ou partilhadas, isto é, existe um contínuo céltico claro enquanto a nomes e atributos das deidades principais, como Lugh/Lugus4 por exemplo, representações, calendário de festividades (as celebrações coincidem no calendário em países diferentes), ritos, superstições, fguras lendárias e simbologia, tabus, organização em tríades, remédios curativos naturais, inexistência da dualidade “bem-mal”5, etc (García Fernández-Albalat, 1996; Brañas, 2000). Tece-se assim uma estrutura, um modelo único, que embora com diferenças internas não é, à vez, assimilável no seu conjunto por qualquer outro modelo de referência estabelecido para outras religiões nativas europeias. Mesmo a geografa sagrada, os santuários, apresentam semelhanças entre eles que os fazem peculiares na comparativa com o resto da Europa (de novo García Fernández-Albalat, 1999), como por exemplo na concepção dos limites terra/água como territórios sagrados e de trânsito ao Além. Mesmo quando estes santuários tentam ser ré-apropriados por cultos posteriores nunca são abolidos, não podem sê-lo (García Quintela e Santos Estévez, 2008). Como diz Emerick (2013: 12): “permitiu-se que a religião popular continuara a existir sob denominação católica”.

4 Lugus, “o brilhante”, “o esplendoroso”, “o luminoso”, é frequentemente cristianizado por São Lourenço, figura associada ao sol e que, sem surpresa, tem o seu dia no mês de Agosto, época tradicional de Lugus (Lugnasad). Também não é estranho encontrar capelas a este santo católico em cumes e altos da Galiza e Norte de Portugal, com certeza ocultando anteriores lugares com vinculação a Lugus.

5 A culpa ou o pecado são conceitos estranhos no celtismo. O que está “bem” ou “mal” vem determinado por esse sentido de responsabilidade e honra citado antes, dando lugar a aparentes dualidades éticas recolhidas em ditos populares posteriores como “Deus é bom mas o Demo não é mau”; aparente só, pois o juízo moral último virá sempre da comunidade onde uma pessoa está inserida, sendo a desonra o pior castigo.

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Conclusões

O que de facto fca entre nós da antiga religião e crenças célticas encontra-se de forma fragmentada e por vezes muito misturada com outros elementos culturais de diversas épocas históricas. Mas não por acaso a Galiza e Norte de Portugal – a antiga Gallaecia ou Callaecia – são terras vistas como especialmente orgulhosas destas suas tradições, onde são vividas de forma muito natural e presente na vida quotidiana. De Sá Bravo (1991) afrma que o folclore galaico aparece enriquecido com um conjunto extraordinário de lendas pré-cristãs, nas que perduram crenças e práticas de carácter religioso.

Podem-se fltrar os elementos mais claros dessa época pré-cristã, podem-se investigar desenvolvimentos de elementos de crença posteriores de possível origem pré-cristã, pode-se estabelecer uma hipótese razoada de como era no conjunto com o suporte da sempre necessária investigação comparada a nível internacional. Contudo, é possível encetar um trabalho de reconstrução parcial que, embora complexo pela falta de fontes primárias, também não é feito às cegas graças às investigações já existentes. Existe assim um fo condutor desde a antiguidade, por muito fno que este for.

Um outro passo é determinar um nome para esta religião, longe de eufemismos, que por paralelismo com o resto do mundo céltico bem pode ser chamado de Druidaria (ou Druidismo)6, mais quando dispomos na Galiza e Norte de Portugal de epigrafa única na Europa que o indica claramente. Ou dito doutra forma, existe já um nome para esta religião pré-cristã dentro do nosso entorno cultural de referência que é usado sem problema até este momento, pois há elementos pré-cristãs ainda presentes na cultura e religiosidade popular actuais. Como diz Emerick (2013: 15):

“A maioria da população … só tinha um conhecimento fraccionado da religião [cristã] baseado no que ouvia na igreja, as crenças do povo comum eram uma mistura do velho e do novo [permitindo] a continuidade de elementos de paganismo [até dia de hoje]”

Portanto, o que fca agora de “pré-cristão” é “Druídico”, em concomitância com a Europa Atlântica. Como resume García Quintela (1999: 259), estamos a falar em todo caso de “sistemas religiosos, éticos e culturais complexos e homologáveis com tudo o que conhecemos do resto do mundo indo-europeu ocidental.”

6 Ambas formas Druidaria e Druidismo estão espalhadas e são usadas e entendidas, mas tende-se a perceber a religião druídica contemporânea como algo fluido, que recolhe a prática ademais da crença, uma dedicação e não um algo rígido muitas vezes associado ao sufixo “-ismo”. A mesma dicotomia existe entre os termos em inglês Druidry (a -aria) e Druidism (o -ismo), falando-se normalmente de Druidry e não de Druidism.

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Figura 5 Paralelismos incontestáveis

Sobre a Fig. 5: Pena Granha é um dos autores que tem comparado e exemplificado em múltiplas ocasiões as concomitâncias óbvias entre determinadas crenças, ritos, e mesmo os objectos usados neles, entre a Galiza, Norte de Portugal e resto da Europa céltica. Desde pedras e bronzes de entronização até talhas que podem representar um velho sacerdote (Durvede), ou a recorrente figura da moura, com diferentes nomes mas mesmas funções, comportamento e simbolismo em cada lugar.

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[Este texto foi publicado originalmente em 2018 nas actas das Jornadas das Letras Galego-Portuguesas 2015-2017, DTS, Università di Bologna e Academia Galega da Língua Portuguesa, pp. 51-63]

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Referências

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