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Comércio de escravos em Sant Anna de Mogy das Cruzes na segunda metade do século XIX

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na segunda metade do século XIX - 1864 - 1887

Armando de Melo Servo Constante PUC-SP

Na segunda metade do século XIX o tráfico de escravos ruma para o interior da nação. Uma série de transformações foram empreendidas em âmbito jurídico que modificaram as relações entre senhores e escravos, onde as elites de fazendeiros procuravam se adaptar, quando não controlavam essas mudanças. No sudeste escravista, o aproveitamento da mão-de-obra escrava se deu até os anos finais da escravidão, pois as elites valeparaibanas, em especial as do Vale do Paraíba paulista aderiram ao abolicionismo radical apenas em 1887; fato apontado como consenso historiográfico por Maria Aparecida Papali em sua tese Escravos, libertos e órfãos, a construção da liberdade em Taubaté1.

Sant’Anna de Mogy das Cruzes, município que no período analisado tinha parte de seu território no Vale do Paraíba, foi palco de adaptações e ações por parte das elites que se aproveitou de brechas nas leis, ou na fiscalização das mesmas. Porém, as tensões existentes em Mogi não dizem respeito apenas à manutenção da produção utilizando-se braços escravos. O comércio de escravos foi uma atividade empreendida com freqüência na região, e também com outras províncias, como o Paraná, conforme atestam as escrituras de compras e vendas que analisei.

Mogi não figurou entre os grandes produtores de café, visto que participou pouco das exportações, e manteve uma lavoura variada, com plantações de arroz, milho, feijão e algodão. Configurou-se, portanto, como área de retaguarda da produção cafeeira, sendo o comércio de alimentos uma atividade importante para os proprietários locais. Aliado a esse comércio encontravam-se as vendas de escravos realizadas pelos proprietários, que procuravam obter liquidez ou mesmo resgatar dívidas, pois a circulação de moedas era escassa no interior do município, uma vez que são inúmeras as notificações de dívidas, entre 1850 e 1888, referentes à compra dos mais variados bens, incluindo alimentos, e de empréstimos em dinheiro resgatados em espécie que constam do arquivo do Acervo do Fórum de Mogi das

1PAPALI, Maria Aparecida C. R. Escravos, libertos e órfãos - a construção da liberdade em Taubaté (1871

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Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

Cruzes (hoje sob tutela do Núcleo de Estudos Integrados em Ciências do Homem - Universidade Braz Cubas em Mogi das Cruzes).

Os Livros de Compras e Vendas de Escravos que analisei cobrem o período de 1864 a 1887, dois desses livros encontram-se no Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes e um no Acervo do Fórum de Mogi das Cruzes. A partir das escrituras de compras e vendas analisadas, constatei, em primeiro lugar, que as negociações são realizadas por proprietários que não vivem exclusivamente do comércio de escravos, ou seja, até o momento não se pode concluir que houveram traficantes de escravos na região no período analisado, mas sim proprietários e negociantes eventuais, sendo o comércio de escravos mais um elemento numa economia comercial que carecia de dinheiro.

O número de negociações analisadas é de 137, envolvendo 1 ou mais escravos, entre os anos de 1864 e 1887. Existem outras escrituras soltas entre os livros, assim como um Livro de Compras e Vendas anterior a 1864, mas infelizmente encontram-se indisponíveis para pesquisa. De qualquer modo, o perfil das negociações analisadas nos dão pistas sobre o significado do comércio de escravos intra-provincial para a economia local. O primeiro conjunto de escrituras (de 25 de agosto de 1864 a 18 de maio de 1869), de um total do 55 negociações, 35, mais de 60%, ultrapassa a casa dos 1:000$000, sendo a maior negociação uma garantia de pagamento de dívida no valor de 2:749$052. Esta negociação envolveu a venda de três escravos: Benedicto, 25 anos, Fidencio, 22 anos e Paulo, 20 anos. Ambos os negociantes são proprietários, o que atesta que mesmo os donos de escravos sofriam com a falta de dinheiro e recorriam um ao outro para obtenção de moeda. A relação entre a falta de moeda e as negociações de escravos em Sant’Anna de Mogy das Cruzes é visível em várias negociações de resgate ou garantia de pagamento de dívidas.

Já no segundo conjunto de escrituras (de 24 de maio de 1869 a 13 de março de 1876), encontra-se, dentre 51 negociações lavradas, também envolvendo a venda de um ou mais escravos, 31 que ultrapassam a casa dos 1:000$000, sendo as mais caras a venda da escrava Felicia, preta, crioula, de 30 anos e suas filhas menores, Benedita Bebiana e Innocencia, de João de Souza Mello Freire ao Alferes Joaquim d’Almeida Mello Freire, pela quantia de 3:400$000 em 03 de janeiro de 1871; e a permuta feita entre Belarmino Augusto de Aragão com Dona Francisca Maria da Conceição, da escrava Benedita, crioula, 18 anos, solteira, natural de Parahybuna, pela escrava Benedita, fula, solteira, natural de Mogi das Cruzes e seus dois filhos, Paulino, 7 anos, e Francisco, 1 ano meio, em 9 de dezembro de 1870. Nesta negociação Belarmino pagou a diferença de 575$000. Estas duas escrituras

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analisadas deixam pistas sobre uma série de elementos constitutivos do comércio de escravos local. Mesmo tendo sido estas negociações efetuadas por compradores e vendedores de Sant’Anna de Mogy das Cruzes, a escrava negociada por Belarmino Augusto de Aragão muito provavelmente já tenha sido negociada ao menos uma vez anterior a este negócio, visto que é natural de Parahybuna. Belarmino a utilizou como parte numa troca por três escravas, em data que a lei já não permitia mais a separação de famílias pelo comércio de escravos. Embora a lei de 1869 que proibia a separação de famílias em atos de compras e vendas fosse constantemente infringida, em muitos casos foram negociadas mães e filhos. Outra característica é a circulação de moeda, pois as negociações efetuadas entre membros de uma mesma família, como no caso do João de Souza Mello Freire ao Alferes Joaquim d’Almeida Mello Freire, pode apontar para a tentativa de se equilibrar finanças, buscando efetuar negócios que injetassem moeda e eventualmente ampliassem riquezas, ou mesmo possibilitassem outras aplicações.

A se concentrar nos conjuntos de escrituras de compras e vendas, com o número de informações que constam em cada uma, obtém-se um panorama amplo dos caminhos do comércio de escravos, pois são fontes ricas em informações. Discriminam: nome e naturalidade dos compradores e vendedores e eventualmente profissões; valor da venda e das custas adicionais, a meia sisa e o selo; qualificação dos escravos negociados, nome, naturalidade, cor, idade, profissão (quando há); além de constar se a venda é fruto de resgate de dívida ou de garantia de pagamento de dívida. É ainda, conforma atesta José Flávio Motta e Renato Leite Marcondes em artigo na Revista Brasileira de História (Duas fontes documentais para o estudo dos preços dos escravos no Vale do Paraíba paulista - vol. 21 nº 42, 2001) uma fonte que nos possibilita conhecer o valor de mercado do escravo.

O problema do preço do escravo, que gradativamente aumentou desde 1850, se tornou evidência de tensões após a criação do Fundo de Emancipação em 1871 e sua regulamentação em 1872. Segundo as análises de José Flávio Motta e Renato Leite Marcondes, houveram na Lista de Classificação para Emancipação em Cruzeiro e Lorena supervalorização no preço de cativos arrolados, visto que as juntas de classificação eram compostas por alguns dos beneficiários das indenizações que poderiam vir do Fundo. Para Sant’Anna de Mogy das Cruzes, analisei um Registro de escravos para serem libertados pelo fundo de emancipação de 1874 no Arquivo Histórico da cidade, e não encontrei o campo valor preenchido para nenhum dos 1098 escravos arrolados. Tenho, portanto, apenas os preços de mercado dos cativos. De

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Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

indenização. Já nas negociações haviam os problemas dos crescentes impostos, que afetavam as vendas, mas que parece não ter inibido negociações nos mais variados valores entre nas décadas de 1860 e 1870.

Como Sant’Anna de Mogy das Cruzes se configurava, como já dito, em uma área de retaguarda da produção cafeeira, o plantel arrolado para ser liberto pelo Fundo de Emancipação é extremamente feminino. Dos 1098 cativos registrados, 717 são do sexo feminino e 381 do sexo masculino, entre adultos e crianças. De acordo com um recenseamento que Robert Conrad aponta na sua obra Os últimos anos da escravatura no Brasil2, Mogi das Cruzes, em 1874 (ano da classificação) possuía1496

escravos, dos quais ainda não se pode saber qual a real porcentagem de mulheres e de homens. Entretanto, Mogi das Cruzes em 1872 contava, segundo recenseamento da Província existente no Arquivo do Estado de São Paulo, com uma população de 10301 livres e 1159 escravos. Houve, portanto, um aumento de 337 cativos entre 1872 e 1874. Não há elementos que comprovem fecundidade, sendo mais palpável esse aumento ter se produzido por vias comerciais. Esse número declinará em 1882, segundo Conrad, para 1048 escravos, uma queda de 448 cativos. Entre 1882 e 1887 analisei apenas 7 escrituras de compras e vendas mostrando a falência do sistema de vendas. Essa queda no volume dessas transações comerciais relacionava-se com os impostos para compra de escravos que subiram de 30$000 para 48$000, e o abolicionismo radical que avançava mais e mais, juntamente com o aumento das fugas e crimes contra senhores no Vale do Paraíba. Além disso haviam os processos de tutoria de ingênuos, que permitiam aos ex-senhores se aproveitarem da mão-de-obra de ex-cativos o filhos de escravas libertas, conforme demonstrado na pesquisa de Maria Aparecida Papali.

Durante as décadas de 1860 e 1870, onde ainda era visível para as elites valeparaibanas um abolicionismo gradual, pôde-se contar com fluxos de vendas de cativos que gerou uma média de 50 escrituras lavradas a cada 4 anos. O que não significa que as 137 escrituras compiladas nos livros analisados demonstrem todas as negociações ocorridas. Como já dito, existem escrituras soltas, e mesmo transações comerciais que não produziram escrituras, ou escrituras que se perderam, além de lavração efetuada em outros locais. Mas as 137 escrituras trazem indícios dos relacionamentos das elites locais com elites de proprietários de outros locais, e, por vezes, uma única escritura pode trazer questões sobre a vinda de outros escravos do mesmo local, ainda que não hajam documentos que falem diretamente a respeito.

2CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil (1850-1888). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. P 356

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Os maiores contatos, a partir de 1872, verificado nas escrituras é das elites mogianas com proprietários de Jacareí, Santa Branca e Santa Izabel. Em menor número figuram transações comerciais com proprietários moradores da corte, e de províncias como Paraná. Do litoral aparecem negociações com moradores de Santos. Os negócios mais freqüentes com outros municípios se deram no Vale do Paraíba paulista. As relações comerciais entre as elites valeparaibanas e mogianas se davam em torno do comércio de abastecimento e de escravos.

Houve contribuição por parte dos proprietários de Sant’Anna de Mogy das Cruzes com a demanda de braços da lavoura cafeeira valeparaibana, e em contrapartida houve injeção de moeda nas veias econômicas do município que vivia basicamente do comércio de abastecimento. A dependência de Mogi das Cruzes do comércio colocou o comércio de escravos como mais um elemento na estrutura comercial que se montou ao longo dos anos na cidade. Os contratos de trabalho realizados com as populações mais pobres, relacionadas em um Livro de registro de contratos de trabalho de 1869 a 1872, e as muitas dívidas em dinheiro existentes apontam para uma carestia e grande dificuldade por parte mesmo de camadas médias da população. A população local relacionava-se economicamente em cadeias de dívidas, muitas vezes cobradas em espécie, como já apontado anteriormente. Os contratos para prestação de serviços, muitas vezes se davam no resgate de dívidas, sendo estas pagas em serviços na lavoura, ou na ferrovia, que chega em Mogi das Cruzes em 1870. Em vista da carestia de moeda, o trabalho escravo se inseria num contexto viabilizador da exploração deste tipo de mão-de-obra. Porém, sendo o escravo também um bem negociável, poderia representar uma via de saída na tentativa de se obter moeda junto às elites que pretendiam ampliar seus plantéis, num momento onde o fim da escravidão se aproximava aos olhos das elites num lento caminhar.

O comércio de escravos não gerou fortunas no século XIX em Sant’Anna de Mogy das Cruzes, apenas fez parte delas, ou gerou possibilidades de outros investimentos quando as negociações revertiam em dinheiro. Porém, ainda restam muitas questões a se investigar sobre esse comércio. Necessita-se saber a quantidade de escravos negociados mais de uma vez, como a escrava Benedita, natural de Paraybuna, negociada por proprietários residentes em Mogi das Cruzes, e quem os negocia. Necessita-se saber com maior precisão quais famílias detinham maior número de escravos e como estas se relacionavam entre si. Pelas escrituras notam-se relações de parentesco entre negociantes, porém estas trilhas serão melhor

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Texto integrante dos Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP-UNICAMP. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

Estado de São Paulo. Até o momento, muitos negociantes analisados possuem algum grau de parentesco entre si, mas ainda necessita-se de mais dados a esse respeito.

Até o presente momento de minha pesquisa, ficam evidentes as relações comerciais das elites mogianas com as valeparaibanas, e o reflexo das mudanças ocorridas devido às tensões existentes nas relações entre senhores e escravos, e das adaptações ou infrações a leis que eram fiscalizadas por quem interessava descumprí-las. Foi o caso do comércio de cativos vindos da África após 1831 e que possuem escrituras lavradas. Há que se decifrar ainda inúmeras tensões, não somente entre senhores e escravos, mas também na própria elite conflitando no judiciário, e dos escravos lutando no judiciário pela consciência de se viver uma situação irregular. Se por um lado houveram escrituras lavradas de escravos em situação ilegal, por outro houve libertação de cativos pelo mesmo motivo. Foi o caso da africana Joaquina e seus filhos José e Gregório, declarados livres em 18 de novembro do 1876 devido a ação efetuada pelo promotor José Ignacio de Figueiredo, que verificou a irregularidade por ocasião da verificação de um inventário. Esta ação encontra-se no Arquivo do Estado (Ordem 8134).

Os caminhos do comércio de escravos intra-provincial revela as tensões e adaptações de um mundo de relações contraditórias. As relações econômicas e comerciais podiam ser ilegais por um lado e legais por outro conforme atestam as negociações de cativos vindos da África após 1831 e que possuem escrituras lavradas. Mais uma vez colocava-se, como nas Juntas de Classificação para o Fundo de Emancipação, a execução das leis conferidas a quem interessava infringi-las. O problema do comércio de escravos intraprovincial evidencia mais elementos do mandonismo local, e da relativa autonomia que as elites locais gozavam. As mudanças nas ações das elites mogianas, no que se relacionava com a economia local, representavam reflexos, reações e adaptações a mudanças no Vale do Paraíba paulista. Mudanças econômicas e políticas que poderiam atingir a escravidão, como a relação entre, já nos últimos anos da escravidão, a adesão política ao abolicionismo radical no Vale do Paraíba paulista e a falência do sistema de vendas de escravos em Mogi das Cruzes.

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