• Nenhum resultado encontrado

MOVIMENTO LGBT E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL: A VOZ DOS MILITANTES

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "MOVIMENTO LGBT E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL: A VOZ DOS MILITANTES"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

MOVIMENTO LGBT E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL: A VOZ DOS MILITANTES

Rita de Cassia de Oliveira e Silva, SME Rio de Janeiro Ana Paula da Silva Santos, PUC-Rio

Resumo

O presente estudo tem como objetivo focalizar a experiência do movimento social LGBT, entendendo que o mesmo é fundamental para o desenvolvimento da perspectiva intercultural em educação. Partimos da afirmação de que os movimentos sociais constituem fenômenos históricos de caráter coletivo que expressam lutas sociais em contextos sociopolíticos determinados. São heterogêneos e estão marcados pela complexidade. No âmbito das ciências sociais têm sido objeto de diferentes teorias interpretativas. No que diz respeito à interculturalidade, a situamos no âmbito do multiculturalismo. Consideramos que este pode assumir várias perspectivas: assimilacionista, diferencialista e interativa ou intercultural Na busca de procurar compreender se e como as questões da interculturalidade vêm afetando a experiência deste movimento social, consideramos importante realizar entrevistas com integrantes do mesmo, que exerciam ou tinham exercido alguma função de coordenação e/ou liderança, no âmbito local, regional, ou nacional. Sendo assim, foram entrevistados seis integrantes do Movimento LGBT: dois gays, três lésbicas e uma travesti. Destacamos que a perspectiva intercultural vem se afirmando tanto na produção acadêmica quanto na prática dos movimentos sociais. No entanto, ainda está pouco explicitada, principalmente em relação a sua capacidade para intensificar e ampliar as relações tanto no interior do movimento social quanto entre diferentes movimentos. Para seguir avançando e tendo presente com maior força a potencialidade da perspectiva intercultural, enumeramos alguns desafios que consideramos importantes: discutir mais intensamente as relações dos movimentos sociais com o Estado; incorporar de modo explícito a perspectiva intercultural na dinâmica interna dos movimentos; promover relações interculturais mais sistemáticas entre diferentes movimentos, tendo por foco diferentes temáticas, construir e socializar práticas pedagógicas de educação intercultural e promover uma maior interlocução com a sociedade civil.

Palavras-chave: Interculturalidade, Movimento social, LGBT. 1. Introdução

Diferentes grupos socioculturais invadem os cenários públicos em diversos países latino-americanos e, particularmente, no contexto brasileiro. A afirmação das diferenças - étnicas, de gênero, orientação sexual, religiosas, entre outras - se manifesta em todas as suas cores, sons, ritos, saberes, crenças e modos de expressão. As problemáticas são múltiplas, visibilizadas pelos movimentos sociais, que denunciam injustiças, desigualdades e discriminações, reivindicando igualdade de acesso a bens e serviços e reconhecimento político e cultural. Esses movimentos nos colocam diante da construção histórica do continente, marcada pela negação dos “outros”, física e/ou simbólica, ainda fortemente presentes nas nossas sociedades. É neste universo de questões, conflitos e buscas que situamos a emergência da perspectiva intercultural na América Latina em

(2)

geral e, especificamente, no Brasil. O presente trabalho parte deste universo de preocupações, focaliza a experiência do movimento social LGBT por considerar seus militantes atores fundamentais no desenvolvimento da perspectiva intercultural em educação e procura privilegiar o olhar dos mesmos. Discute também alguns desafios que a temática da educação intercultural apresenta para os movimentos sociais.

2. Movimentos sociais e interculturalidade: breve aproximação conceitual

No que diz respeito aos movimentos sociais, partimos da afirmação de que constituem fenômenos históricos de caráter coletivo que expressam lutas sociais em contextos sociopolíticos determinados. São heterogêneos e estão marcados pela complexidade. No âmbito das ciências sociais têm sido objeto de diferentes teorias interpretativas.

A distinção entre os chamados “velhos” e “novos” movimentos é amplamente assumida pela literatura especializada. Podemos afirmar que a principal característica dos primeiros é ter a classe social como eixo fundamental. Quanto aos segundos, estão centrados em determinados sujeitos socioculturais, questões identitárias (étnico-raciais, de gênero, orientação sexual, de caráter religioso, etc.) e/ou temas específicos, como, por exemplo, a questão ambiental. Estes diferentes movimentos possuem também formas diferenciadas de atuação e organização. Atualmente começa-se a identificar o que alguns autores chamam “novíssimos” movimentos, a partir de mobilizações como a dos países árabes, do “movimento dos indignados” na Espanha, entre outros fenômenos contemporâneos que parecem apontar para novas configurações e formas de atuação.

Para Gohn (1997):

A presença dos movimentos sociais é uma constante na história política do país, mas ela é cheia de ciclos, com fluxos ascendentes e refluxos (alguns estratégicos, de resistência ou rearticulação em face à nova conjuntura e às novas forças sociopolíticas em ação). O importante a destacar é esse campo de força sociopolítico e o reconhecimento de que suas ações impulsionam mudanças sociais diversas. O repertório de lutas que eles constroem, demarcam interesses, identidades, subjetividades e projetos de grupos sociais. (p.1)

No que diz respeito à interculturalidade, a situamos no âmbito do multiculturalismo. Consideramos que este pode assumir várias perspectivas: assimilacionista, diferencialista e interativa ou intercultural (CANDAU, 2009).

Recentemente, na palestra de abertura do XII Congresso da Association pour la

Recherche Interculturelle (ARIC) realizado em Florianópolis em 2009, Catherine Walsh

(2009), educadora norte-americana radicada no Equador e especialista do tema, distingue três concepções principais de educação intercultural hoje na América Latina. A primeira

(3)

intitula relacional e a define como referida basicamente ao contato e intercâmbio entre culturas e sujeitos socioculturais, apresentando a tendência a reduzir as relações interculturais ao âmbito das relações interpessoais, minimizando os conflitos e a assimetria de poder entre pessoas e grupos pertencentes a culturas diversas. No que diz respeito às outras duas posições, descreve e discute as modalidades que intitula de funcional e crítica. A funcional é apresentada como estratégia para favorecer a coesão social, assimilando os grupos socioculturais subalternizados à cultura hegemônica. Está orientada a diminuir as áreas de tensão e conflito com os diversos grupos e movimentos sociais, sem afetar a estrutura e as relações de poder vigentes. No entanto, colocar estas relações em questão é exatamente o foco da perspectiva da interculturalidade crítica. Trata-se de questionar as diferenças e desigualdades construídas ao longo da história.

É na articulação destas aproximações conceituais de movimentos sociais e interculturalidade que situamos o presente trabalho.

3. Movimento LGBT e perspectiva intercultural

Movimento homossexual, movimento Gay e Lésbico, GLBT ou LGBT? A própria dificuldade de nomeá-lo faz com que se perceba o quanto esse é um movimento em permanente (re)construção. Entre diferentes modelos de organização e diferentes propostas político-identitárias, o movimento que hoje (e por enquanto) chamamos de LGBT vem se transformando e se mostra como um campo híbrido e farto de tensões (FACCHINI, 2005).

A despeito de grupos de convivência e espaços de socialização - e erotização- bem mais antigos, podemos dizer que o movimento homossexual, com uma intencionalidade política assim definida, surgiu no Brasil no final da década de 1970 (FACCHINI, 2005). Essa aparição tardia - se comparada com países com perfil semelhante, como México e Argentina, que viveram esse momento já nos finais dos anos 60 - pode ser justificada talvez pela repressão - política e moral - imposta pela ditadura militar brasileira, especialmente a partir de 1968.

Muito pouco tempo depois do seu florescer, o movimento homossexual brasileiro, ainda incipiente, vai ser fortemente atingido pela epidemia da AIDS. Mas, se por um lado a AIDS marcou violentamente a comunidade homossexual, tanto pelo estigma cultural quanto pelas mortes concretas de muitas pessoas, inclusive ativistas e lideranças, por outro ela trouxe uma visibilidade antes nunca alcançada. Falava-se, na televisão, nos jornais, nas revistas e nos documentos oficiais, sobre como e onde vivem e circulam os homossexuais, como eles fazem sexo, como eles se relacionam - e como sobrevivem

(4)

(TREVISAN, 2004). É a partir daí também, especialmente através das políticas e ações do Ministério da Saúde, que o movimento homossexual intensifica a sua relação com o Estado, alcançando financiamentos públicos para desenvolver ações de prevenção, encontros e materiais.

Já na década de 1990, o movimento volta a se ampliar. Aumenta o número de grupos, a periodicidade dos encontros, muitos deles agora acontecendo paralelamente a eventos de combate à epidemia de AIDS financiados com recursos públicos. Um outro e importante detalhe também aparece. Em 1995, o evento nacional passa a se chamar Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas. Dois anos depois, a palavra “Travesti” também passa a integrar a sigla. Essa mudança reflete um processo de diversificação (ou especialização) identitária, onde grupos antes invisibilizados sob a palavra homossexual - muito mais relacionada a um grupo específico de sujeitos que a uma universalidade - vão ganhando espaço político. Essa proliferação identitária e, para além dos nomes, a ordem em que eles aparecem na sigla oficial do movimento - GLBT, GTLB, LGBT - não acontece sem tensões.

Em 1995 é realizada também a primeira marcha reunindo gays, lésbicas, travestis, bissexuais e transexuais, no Rio de Janeiro, como finalização das atividades de um encontro internacional organizado na cidade. Desde o início o objetivo desta e de tantas outras marchas e paradas realizadas no Brasil foi, em especial, visibilizar os sujeitos LGBT, denunciar a violência homofóbica e defender bandeiras de luta do movimento, como o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, o reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais e a criminalização da homofobia.

Nos primeiros anos do século XXI as chamadas “paradas” ganham uma expressão que ultrapassa, no caso de Rio e especialmente de São Paulo, a cifra de um milhão de pessoas. Esse é um momento de intensificação da visibilidade do movimento LGBT, visibilidade que vai se expressar tanto na expansão de um mercado de consumo específico - agências de turismo, hotéis, revistas, bares, boates, lojas e marcas - quanto numa presença mais marcante e permanente - e talvez numa abordagem menos estereotipada – nos meios de comunicação, especialmente na televisão (TREVISAN, 2004).

Atualmente, uma preocupação ganha força: como as novas gerações vêm construindo suas identidades? A “sopa de letrinhas” LGBT (FACCHINI, 2000) - já problematizada na academia – será suficiente para contemplar essas novas vivências e experiências desses sujeitos? Que novos processos identitários estão em jogo? Que novas perspectivas políticas?

(5)

Em dezembro de 2011, foi realizada em Brasília a 2ª Conferência Nacional LGBT, que teve como tema: “Por um país livre da pobreza e da discriminação, promovendo a cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais”. O objetivo foi avaliar e propor diretrizes para a implementação de políticas públicas voltadas ao combate à discriminação e promoção dos direitos humanos e cidadania LGBT no país e propor estratégias para seu fortalecimento. É nesse quadro que vamos buscar, no hoje Movimento LGBT, como a perspectiva intercultural aparece – e se aparece – nas suas relações internas, com outros movimentos e com a sociedade em geral, através do olhar de alguns de seus militantes.

4. Caminhos da pesquisa de campo e caracterização dos/as entrevistados/as

Na busca de procurar compreender se e como as questões da interculturalidade vêm afetando a experiência deste movimento social, consideramos importante realizar entrevistas com integrantes do mesmo, que exerciam ou tinham exercido alguma função de coordenação e/ou liderança, no âmbito local, regional, ou nacional.

Utilizar entrevistas como estratégia de investigação, supõe trabalhar com representações. Somos conscientes da complexidade do conceito de representação e das diferentes aproximações ao mesmo. No presente trabalho, assumimos a perspectiva de Hall (1997, p. 61) quando afirma:

Representação é o processo pelo qual membros de uma cultura usam a língua (amplamente definida como qualquer sistema que empregue signos, qualquer sistema significante) para produzirem significados. Esta definição já carrega a importante premissa de que as coisas – objetos, pessoas, eventos do mundo - não têm em si qualquer significado estabelecido, final ou verdadeiro. Somos nós - na sociedade, nas culturas humanas - que fazemos as coisas verdadeiras. Somos nós - na sociedade, nas culturas humanas - que fazemos as coisas significarem, que significamos.

Nesta perspectiva, entendemos que toda representação é socialmente construída e que os referentes culturais constituem um componente central, uma âncora básica, de sua configuração.

Segundo Brandão (2000), entrevista é trabalho e, sendo assim, “reclama uma atenção permanente do pesquisador aos seus objetivos, obrigando-o a colocar-se intensamente à escuta do que é dito, a refletir sobre a forma e o conteúdo da fala do entrevistado” (p.178).

Foram entrevistados seis integrantes do Movimento LGBT: dois gays, três lésbicas e uma travesti. Todos com forte compromisso com o movimento, vinculados a organizações com sede no Rio de Janeiro e ampla atuação na sociedade e articulações.

(6)

Uma das militantes, considerada “histórica” pelos entrevistados, está na faixa etária dos cinquenta e vinculada ao Movimento desde seu início. Os/as demais entrevistados/as se situam na faixa dos trinta anos, com uma única exceção que se situa nos vinte. Possuem uma vinculação ao Movimento que varia de três (um entrevistado) a sete a dez anos. Quanto à formação, três possuem curso superior concluído, dois estão realizando o ensino superior e um terminou o ensino médio. Todos têm ampla dedicação ao movimento, sendo este seu trabalho profissional e exercendo diferentes funções de coordenação de projetos específicos, agente multiplicadores/ou gestão da organização a que pertencem.

5. Movimento LGBT e Relações Interculturais

Este item tem por finalidade focalizar como os entrevistados/as se situam no que diz respeito às relações tanto entre os grupos que integram o Movimento, assim como aquelas que estabelecem com outros movimentos. Também pretende abordar como significam a diversidade cultural presente no contexto brasileiro e seu impacto na dinâmica do Movimento.

Quando perguntados/as sobre as relações com outros movimentos, todos/as os/as entrevistados/as afirmaram mantê-las especialmente com o movimento negro e o movimento das mulheres. Alguns/mas destacam que essas relações também se dão porque os sujeitos integrantes do Movimento têm identidades plurais, que se somam, no que diz respeito aos preconceitos e discriminações, gerando uma “acumulação de preconceitos” (Leonardo), e que dessa forma podem estar se fortalecendo.

Alguns depoimentos mencionaram, além das relações já destacadas, outros grupos e organizações específicas de diferentes naturezas, como por exemplo, o movimento de combate a AIDS, de promoção da saúde, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Caminhada pela Paz e contra a Intolerância Religiosa, a União Nacional de Estudantes (UNE), entre outras.

No âmbito do próprio Movimento, são muitos os grupos mencionados, tanto no plano local como nacional. Especial destaque é dado à ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais) e, no plano internacional são mencionadas a Rede Trans Latino-americana e do Caribe e a ILGA (Associação Internacional de Lésbicas e Gays).

Outro entrevistado afirma que “é uma busca incansável construir pontes” entre os movimentos, mas que elas não são fáceis porque o debate LGBT é novo, embora “a sexualidade seja uma coisa antiga”. Também salienta que as parcerias com outros grupos

(7)

e movimentos variam muito de estado para estado, que não é algo homogêneo em todo o país. Que com alguns movimentos num estado existe uma relação boa e em outros já nem tanto.

Entre as dificuldades apontadas nessas relações, um entrevistado menciona o perigo da guetificação, de ficar dialogando exclusivamente entre os interlocutores do mesmo grupo.

Outra dificuldade apontada por uma entrevistada é a questão de financiamento que hoje pressiona fortemente as ONGs e cria disputas entre os grupos:

Na verdade, cada grupo tem seus objetivos, tem as suas metas, ninguém consegue pensar igual.... Sem contar que a gente sabe que a briga também por financiamento [...] a questão de sobrevivência entre as ONGs, no Rio de Janeiro e no Brasil é muito difícil (Ângela).

Um terceiro aspecto também mencionado pelos entrevistados diz respeito à questão religiosa, que prejudica o movimento LGBT e se converte num forte entrave para a relação entre os movimentos:

Na medida em que as pessoas não conseguem entender de que forma se dá essa relação da sexualidade, isso muitas vezes acaba sendo um entrave e principalmente quando existe também aí a vertente religiosa que é, eu acho, que é uma das maiores causas do não entendimento dentro de todas as vertentes. A questão religião, ela ainda é muito forte e ela ainda é um entrave do movimento LGBT como um todo, não só o de lésbicas (Ângela).

Em relação ao impacto do caráter multicultural da realidade brasileira no Movimento, os entrevistados afirmam que está temática está presente, que se reconhece a riqueza da diversidade cultural do país - regional, linguística, étnica, de credos, entre outras - e que “isso faz com que nós tenhamos diversas formas de dialogar sobre diversos

assuntos em locais diferentes; então estudar e conhecer essas diversidades faz com que nós possamos falar, estudar, conhecer e aproximar os Direitos Humanos das pessoas”.

E continua a entrevistada: “a gente procura entender essa diversidade cultural da melhor

forma possível e utilizá-la a nosso favor. E justamente porque todos nós somos diferentes que temos de aceitar as nossas diferenças” (Carmen).

Quanto às relações interculturais, interrogados sobre se o Movimento promovia estes espaços, foram enumerados várias atividades e eventos que as propiciavam, por exemplo, paradas, marchas, passeatas, Dia da Consciência Negra, passeata contra a Intolerância Religiosa, Contra a Corrupção, pela Democracia, entre outras manifestações em que muitas vezes algum dos movimentos é o promotor, como as Paradas LGBT, mas outros apoiam. Estas ocasiões propiciam trocas e interações informais entre militantes de diferentes movimentos, aproximam pessoas e grupos e neles são feitos convites para

(8)

participação em seminários e palestras de iniciativa de algum dos grupos. É destacada a riqueza que estes encontros significam na perspectiva do reconhecimento dos outros. As articulações nacionais e internacionais também ocorrem em relação ao Movimento LGBT como um todo, assim como no âmbito de diversos grupos específicos que o integram.

Outro aspecto mencionado nos parece de especial importância para a promoção de relações interculturais, pois se refere à possibilidade de uma troca de saberes entre diferentes grupos. Referindo-se a um encontro de mulheres, uma entrevistada afirma:

De repente a companheira sentou ali e conversou comigo, “você cultiva mandioca desse jeito que cresce melhor. Lá no quilombo a gente faz assim, a gente utiliza isso”. É um conhecimento, não é um conhecimento acadêmico, mas é um conhecimento empírico que tem tanto valor quanto o acadêmico. Só que você tem que estar aberto para isso, você tem que estar disposto, porque de repente você se fecha, “não só acho que é isso e isso” e você está perdendo (Carmen).23

A partir da análise das entrevistas realizadas é possível constatar que as relações interculturais são vistas fundamentalmente como a participação de diferentes grupos em atividades que possuem uma temática aglutinadora entre eles ou como ocasiões em que uns são os que promovem a atividade e os demais são parceiros que reconhecem a importância do tema e apoiam a iniciativa. Emerge também a valorização do diálogo e do trabalho em rede e, fragilmente, a possibilidade de intercâmbio de diferentes saberes.

6. Relações do Movimento LGBT com a educação

Nesta categoria procuramos identificar o interesse do Movimento pela educação, que práticas promovem no âmbito da educação formal e se tem alguma incidência na formação de educadores.

Questionados/as sobre as estratégias de intervenção na educação formal, nossos/as entrevistados/as manifestaram grande interesse em promover atividades neste âmbito. Indicam, entre ações em andamento e projetos a serem desenvolvidos, articulações com diferentes órgãos governamentais, tanto federais, como estaduais e municipais. Esta convergência dos diferentes níveis de governo, como já foi salientada, é vista como um elemento positivo.

Em sua grande maioria, as estratégias de intervenção na educação formal estão relacionadas à produção e/ou reformulação de materiais didáticos, cursos de atualização de professores/as da educação básica e ações de colaboração no desenvolvimento de pesquisas. Das ações citadas apenas duas sinalizaram para uma atuação direta com os/as alunos/as da educação formal. Cabe salientar que estes projetos visam em geral

(9)

sensibilizar alunos/as, professores/as e diretores/as para as questões referentes à identidade homossexual.

O que se pode perceber a partir das entrevistas é que estas estratégias diretas com alunos são implementadas à medida que alguma situação de preconceito contra homossexuais ocorra no ambiente escolar, ou ainda em eventos pontuais desenvolvidos pela escola que tenham como tema a diversidade sexual. Em nenhuma das falas foi possível perceber uma relação efetiva com os planejamentos diretamente vinculados ao currículo escolar.

Quando perguntados/as sobre a importância da inserção da temática da diversidade de forma mais sistemática na escola, todos/as os/as entrevistados/as defenderam esta postura, à exceção de uma entrevistada que luta pelos interesses das transexuais e travestis, mas defende um modelo de escola em que esta temática não seja necessariamente contemplada e afirma: “Eu não faço questão de que a diversidade seja

incluída na escola” (Rita). Os demais entrevistados mostraram-se de acordo com a

introdução da temática da diversidade sexual na educação escolar. Palavras como respeito, reconhecimento, igualdade, diferença e diversidade são recorrentemente utilizadas por nossos/as entrevistados/as como princípios e/ou ideais fundamentais às relações entre pessoas e grupos. Esses termos citados nas entrevistas convergem discursivamente para a ideia de que o respeito às diferenças insere-se na busca pela igualdade de direitos. Este viés, que atravessa os diferentes discursos, pode ser resumido nas palavras da entrevistada Ângela: “todos somos iguais, todos temos o direito de ser

diferentes”.

Propostas de inserção no currículo escolar de temas como diversidade sexual e da história do movimento LGBT são citadas por nossos respondentes como iniciativas do movimento. Sobre a produção de material didático foi destacado o kit “Escola sem Homofobia1”, produzido pelo Ministério de Educação através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), em parceria com o Movimento LGBT. No contexto deste projeto foi elaborado um Kit didático com o objetivo de combater a homofobia e promover o respeito à diversidade sexual para ser distribuído às escolas de ensino médio do país. A polêmica causada pelo referido material, levantada particularmente por diferentes grupos políticos e religiosos conservadores e/ou fundamentalistas, a intervenção do poder legislativo na questão e a conjuntura política do país, levou a presidenta da república a suspender a distribuição do material. Este fato evidencia de forma muito expressiva a dificuldade de se tratar desta temática no âmbito da educação e da sociedade em geral.

(10)

Também foram mencionadas iniciativas de políticas públicas para a formação de professores/as acerca da diversidade sexual, que tem o apoio do Movimento LGBT. São realizados desta forma jornadas de educação, palestras, debates, para professores em exercício e para futuros professores. Porém é possível perceber, a partir dos depoimentos, a necessidade de introdução mais sistemática e efetiva da temática da diversidade sexual nos cursos de formação de professores/as.

No que diz respeito à educação intercultural, nos diversos depoimentos se percebe que não se trata de uma expressão familiar aos/às entrevistados/as. Eles/as tentam aproximar-se dela de uma maneira espontânea a partir das palavras que a constituem e de sua experiência, com ênfase na valorização da diversidade:

Isso é um termo complexo. Eu não sei como te definir... Entrevistadora: não faz parte do universo de vocês? Não? A gente sempre debateu outros conceitos como heteronormatividade, transversalidade da temática nas disciplinas, mas essa, especificamente, acho que a gente não tem... Eu por exemplo não tenho acúmulo de debate sobre isso para poder ter uma opinião formada (Maurício).

No entanto, quando perguntado se conheciam alguma experiência de educação intercultural, um entrevistado cita:

Na minha escola por ser uma escola técnica e conter o curso de Produção Cultural e Eventos a gente tem muitos eventos que debatem diversos temas e é muito comum ter eventos que debatem diversidade cultural, tem curso de Produção Cultural, Técnico em Produção Cultural lá dentro, então os cursos sobre diversidade cultural sobre valorização da cultura são muito fortes dentro dessa escola; a gente interdisciplinaliza muito a questão da cultura e a gente valoriza a questão da diversidade cultural através de diversos eventos, diversas ações, debates e palestras.

E caracteriza o seu grupo como trabalhando na perspectiva intercultural:

Sim, porque como a gente fala sobre homossexualidade, entendendo cultura como costumes e tradições de uma sociedade de uma comunidade, de um povo, o cidadão homossexual vai ter costumes e tradições diferenciados de um cidadão heterossexual assim como o cidadão carioca tem costumes e tradições diferentes de um cidadão capixaba. São características diferentes e entendendo esse conceito de cultura a gente fala que nós trabalhamos em diversas áreas do que se entende de cultura, então a gente trabalha dentro da saúde, a gente trabalha dentro da educação, a gente trabalha dentro da moda,

(11)

a gente trabalha dentro da música, a gente trabalha dentro das artes visuais, a gente trabalha dentro (Leonardo).

Nesta perspectiva, a educação intercultural é vista como valorização da diversidade cultural.

Algumas considerações

Longe de apresentarmos qualquer tipo de conclusão, a partir do presente estudo destacamos que a perspectiva intercultural vem se afirmando tanto na produção acadêmica quanto na prática dos movimentos sociais. No entanto, ainda está pouco explicitada, principalmente em relação a sua capacidade para intensificar e ampliar as relações tanto no interior do movimento social quanto entre diferentes movimentos. É na inter-relação, no diálogo, nos debates e confrontos entre diversas perspectivas que acreditamos podermos avançar em processos que articulem redistribuição e reconhecimento (FRASER, 2001), fortalecendo a democracia no nosso país.

Para seguir avançando e tendo presente com maior força a potencialidade da perspectiva intercultural, enumeramos alguns desafios que consideramos importantes: discutir mais intensamente as relações dos movimentos sociais com o Estado; incorporar de modo explícito a perspectiva intercultural na dinâmica interna dos movimentos; promover relações interculturais mais sistemáticas entre diferentes movimentos, tendo por foco diferentes temáticas, construir e socializar práticas pedagógicas de educação intercultural e promover uma maior interlocução com a sociedade civil.

Finalizamos este texto com estas palavras de Abdias do Nascimento, em depoimento dado em 2000, que situam com a força que lhe era/é própria o horizonte de sentido em que nos colocamos:

Um estado voltado para a convivência igualitária de todos os componentes de nossa população, preservando-se e respeitando-se as diversas identidades, bem como a pluralidade de matrizes culturais. A construção de uma verdadeira democracia passa, obrigatoriamente, pelo multiculturalismo e pela efetiva implantação de políticas compensatórias ou de ação afirmativa, para possibilitar a construção de uma democracia plena para todos os grupos discriminados.

Referências

BRANDÃO, Z. Entre questionários e entrevistas. In: NOGUEIRA, M. A., ROMANELLI, G.e ZAGO, N.(orgs.) Família & Escola. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

(12)

CANDAU, V. M. Educação Escolar e Cultura(s): multiculturalismo, universalismo e currículo; In: CANDAU. V. M. (org.). Didática: questões contemporâneas. Rio de Janeiro: Ed. Forma & Ação, 2009.

FACCHINI, Regina; FRANÇA, Isadora Lins. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento lgbt brasileiro. in Sexualidad, Salud y Sociedad Revista

Latinoamericana. n.3, p.54-81, 2000.

FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas?: movimento homossexual e produção de

identidades coletivas nos anos 1990. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

FRASER, Nancy Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista; In: SOUZA, Jessé (org.) Democracia hoje: novos desafios para a teoria

democrática contemporânea. Brasília: Editor Universidade de Brasília, 2001.

GOHN, M. da G. Teoria dos Movimentos Sociais. São Paulo: Loyola. 1997.

HALL, Stuart. The work of representation. In: Hall, S. (Org.) Representation: cultural

representation and signifying practices. London: Sage, 1997.

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso. São Paulo: Editora Record, 2004. WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: Perspectivas críticas y políticas. XII

Congreso da Association pour la Recherche Interculturelle. Florianópolis: UFSC,

Brasil, 2009.

1 O Projeto Escola Sem Homofobia, apoiado pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização e Diversidade (MEC/SECAD), tem como objetivo “contribuir para a implementação do Programa Brasil sem Homofobia pelo Ministério da Educação, através de ações que promovam ambientes políticos e sociais favoráveis à garantia dos direitos humanos e da respeitabilidade das orientações sexuais e identidade de gênero no âmbito escolar brasileiro”.

Referências

Documentos relacionados

Num plano de formação para professores, é comum a palavra competência ser usada como sinónima de objectivo; tudo converge para que se possa afirmar que tais palavras não

- Os modelos de dados são semanticainente pobres e as linguagens de coiisulta de alto nível são baseadas em coiiceitos matemáticos com os cluais os usuários não

Este trabalho teve como objetivo avaliar as propriedades mecânicas de compósitos de poliuretana derivada do óleo de mamona reforçados com fibras dispersas e

Recalculando a energia disponível no sistema, com base no novo poder calorífico e o ajuste na vazão de alimentação, estimou-se o fornecimento de energia no interior

interculturalidade e as migrações contemporâneas, seus impactos e desafios para a educação, a partir da perspectiva da filosofia intercultural.. Esse autor entende

Cabe destacar que das indicações feitas pelo coordenador da BR, apenas 2 eram mulheres, situação compreendida pelo fato de a enge- nharia elétrica ser uma área ainda

Crescimento em altura, diâmetro, produção de matéria seca da parte aérea (MSPA), matéria seca do sistema radicular (MSSR) e relação raiz/parte aérea (R/PA) de plantas de

1 Saída de relé, lógica: alarme ativo com um valor de corrente de carga superior ao limite definido para o tempo de OFF da saída de controle... (trl sens al.nr hrd.1