• Nenhum resultado encontrado

TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE TERRITÓRIO: COMPETIÇÃO E MOBILIDADE NA CIDADE

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE TERRITÓRIO: COMPETIÇÃO E MOBILIDADE NA CIDADE"

Copied!
8
0
0

Texto

(1)

GEOUSP Espaço e Tempo, São Paulo, N° 15, pp. 119 - 126, 2004

TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE TERRITÓRIO:

COMPETIÇÃO E MOBILIDADE NA CIDADE

Rodrigo Ramos Hospodar Felippe Valverde*

RESUMO:

Esse artigo almeja reavaliar o significado da terriorialidade nas grandes cidades brasileiras. Das proposições de Ratzel a territorialidade de hoje, esse conceito passou por diversas mudanças que podem renovar as interpretações do urbano. Acreditam os que o estudo da competição e da mobilidade nas cidades pode torná-las mais claras

PALAVRAS-CHAVE:

Território, política, competição e mobilidade.

ABSTRACT:

This article aims to reavaliate the meaning of territoriality in Brazil's largest cities. From Ratzel's proposions to today's territoriality, this concept has passed by several changes that could renew urban intepretations. We believe that the study of competition and mobility in the cities could make them clear to us.

KEY WORDS:

Territory, politics, competition and mobility.

O estudo do território vem se constituindo em uma tradição do pensamento geográfico nos últimos 100 anos. Desde as proposições de Ratzel, inspiradas na ecologia, no romantismo alemão e no imperialismo do final do século XIX, esse conceito tem sido utilizado para conferir uma d im e n sã o política de m o b ilid a d e e de competição à lógica espacial. Nesse sentido, qualquer discussão da geografia que tenha o território como objeto deveria, primeiramente, reavaliar as c aracterísticas essenciais desse conceito, na medida em que, no mundo atual, as dinâmicas de mobilidade e de competição se tornam cada vez mais desenvolvidas. Dessa forma, o objetivo desse artigo é realizar tal ta re fa , que m u ita s v e z e s , é ig n o ra d a ou s im p le s m e n te m e n o s p re z a d a nos tra b a lh o s geográficos.

I - Do boden ao território descontínuo

Segundo a seminal "antropogeografia" de Ratzel, o território seria a expressão legal e moral do Estado, a conjunção do solo (Boden) e do povo, na qual se organizaria a sociedade. Sua te rrito ria lid a d e associa uma identidade e s p e c ífic a , p re s u m in d o que não e x is tiria m s u b d iv is õ e s ou c o n tra d iç õ e s internas a um Estado determinado, fixo no tempo e no espaço, características que só poderiam ser modificadas sob o uso da força (Raffestin, 1990; Souza, 1995). O movimento de expansão dos territórios assumiria caráter quase orgânico, como um ser vivo que se desenvolve e precisaria de uma área maior para ocupar. Nas palavras de Ratzel:

"Nesta poderosa ação do solo que se m anifesta através de todas as fases da História, bem como de todas as esferas da

(2)

vida presente, há alguma coisa misteriosa que angustia o espírito; pois a aparente liberdade do homem parece aniquilada.

Vemos, com efeito, no solo a fonte de toda servidão. S em pre o m esm o e sem pre situado no mesmo ponto do espaço, ele serve como suporte rígido aos humores, às aspirações mutáveis dos homens, e quando lhes acontece esquecer este substrato, ele os faz sentir seu p od er e lhes recorda, através de sérias advertências, que toda vida do Estado tem suas raízes na terra. Ele regra os destinos dos povos com uma cega brutalidade. Um povo deve viver sobre o solo que recebeu do destino, deve morrer aí, deve suportar sua lei"1

Apesar desse famoso autor ter também estudado os "movimentos da humanidade sobre a Terra"2, é o estudo da fixação territorial que é reconhecido mais freqüentemente como a sua herança: a geografia. De fato, a geopolítica dos an o s 50 s e g u iu os m e s m o s p r in c íp io s de te rritó rio e n c o n tra d o s na teoria ratzelian a , estendendo a sua influência até os anos 80. A lim en tad as pelas dispu tas g e o p o lítica s por zonas de exclusividade de fluxos militares e e c o n ô m ic o s de um dos p ó lo s id e o ló g ic o s , capitalista ou comunista, as áreas periféricas de d e s e n v o lv i-m e n to s erviram com o palcos da tensão e da disputa por territórios. O continente africano, por exemplo, ficou marcado como uma im ensa fro n te ira do a v a n ço de s se s blocos, c o n s t it u in d o uma in f in id a d e de p e q u e n o s episódios da história da guerra fria.

Porém, nos últimos 20 anos, o território ganhou um sentido diferente, mais amplo, para abordar uma infinidade de questões pertinentes ao controle físico ou simbólico de determinada áre a . Hoje um o lh a r g e o g r á f ic o s o b re as fronteiras que separam os homens do século XXI irá necessariamente revelar a pluralidade das suas diferenças e a diversidade de suas formas de associação entre pessoas e espaços. O estudo dos territórios voltou a ser valorizado na década de 90 por diversas razões. O fim do mundo bipolarizado dos pontos de vista militar e econômico também foi fundame ital para o desenvolvimento de novos pactos federativos

que legitimariam as novas políticas e suas áreas de influência. Portanto, o conceito de território assumiu um papel importante, uma vez que poderia servir como base para compreensão dos inúmeros processos de fragmentação e união entre as nações.

De forma análoga, a partir dos anos 80, os territórios passaram a ser aplicados para representar as atividades de movimentos sociais u rb a n o s . Com o in c h a m e n t o das c id a d e s brasileiras na década anterior, aum entaram também os problemas relativos à superpopu­ lação, a falta de justiça social, a baixa qualidade de vida, a violência e a desigualdade econômica. O crescimento caótico que derivou dessa soma de fatores trouxe uma pluralidade de atores e cenários para o espaço público. Nesse sentido, o discurso sobre o território passa a envolver novas possibilidades ao se tornar um elemento crucial das reivindicações nas cidades.

Para isso, foi necessário realizar uma rediscussão da validade do estudo territorial. As su a s b a s e s t e ó r ic a s t iv e r a m de ser reno vadas para que esse con ceito pudesse realmente realizar um estudo mais rico das cidades. Como vimos, no passado a geografia trabalhou o conceito de território associado apenas a escala do território nacional, sendo este inteiriço, limitado apenas pelas fronteiras com outros países, tendo o poder público como única fonte de poder em relação ao controle espacial e sendo este controle permanente no te m p o . Os n o v o s e s t u d o s e x ig ir a m a c o m p r e e n s ã o de que os f e n ô m e n o s da o rganização s ó c io -e sp a c ia l da política eram muito mais ricos do que a mera associação ao território nacional. As novas interpretações do território permitem uma visualização da cidade em disputa, dividida entre o poder público e os grupos organizados, sendo a expressão mais concreta e dramática da metáfora da guerra. Para e n t e n d e r m o s c o m o isso é p o s s ív e l, escolhem os os trabalho s de dois geógrafos: Sack3 e Souza4

Souza vê o território como um "(...) espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder"5, definição que possibilita o início da compreensão do território como uma área de

(3)

Transform ações no conceito de Território, pp. 118 126 121

influência e sob o domínio de um grupo. Para Sack, o conceito de território constitui a expressão de uma área dominada por um grupo de pessoas e, através desse domínio, a possibilidade de controlar, dominar ou influenciar o comportamento de outros.

Seguindo esse raciocínio, a territorialidade para Sack seria ju s ta m e n t e as e s tra té g ia s espaciais usadas para obter esse controle. Ela seria constituída por 3 aspectos fundamentais: se ria s im u l t a n e a m e n t e uma fo rm a de classificação de área, uma forma de controle de acesso e ainda um modo de comunicação. Ao dizer que a territorialidade seria uma forma de se fazer uma classificação de área, Sack se refere ao fato de que ao se e x e r c e r uma estratégia de controle de uma área, cria-se instantaneamente uma limitação para o contato com quaisquer objetos ou pessoas dentro dos lim ites em q u estão, sem a n e ce ssid a d e de e n u m e r á - lo s . Isso se to rn a p o s s ív e l ao estabelecer um controle direto de acesso, seja por barreiras físicas ou simbólicas, como guaritas ou placas. A terceira e última característica da t e r r it o r ia l id a d e e s tá p r e s e n t e na sua necessidade de comunicar o controle exercido, e n v o lv e n d o uma d e c la r a ç ã o de p o sse ou exclusão e às vezes tam bém de direção no espaço.

Atento às proposições de Sack, Souza critica as limitações da geografia e propõe um novo modo de se usar esse conceito. Segundo ele, uma nova forma de abordagem:

"(...) pressupõe uma flexibilização da visão de território. Aqui, o território será um campo de forças, uma teia ou uma rede de r e la ç õ e s s o c ia is q u e , a p a r de sua complexidade interna, define, ao mesmo tem po, um lim ite , um a a lte r id a d e : a diferença entre nós (o grupo, os membros da coletividade ou 'comunidade' os insiders) e os ’outros' (os de fora, os estranhos, os outsiders)"6

A s s im , ele d e m o n s t r a uma p o s s ív e l articulação entre os conceitos de território e de rede, que superaria as limitações da geografia clássica, to rn a n d o viável a ap licação desse conceito sobre o espaço da cidade, como é o caso

desse trabalho. De fato, a com preensão da complexidade da atuação dos grupos organizados exige uma abordagem na qual seja possível perceber a cidade em disputa e retalhada por diversos fenômenos territoriais que podem se superpor no tempo e/ou no espaço, pois eles se dividem em hierarquias de poder para realizar o maior controle territorial possível. Através dessas hierarquias, eles multiplicam as suas ações no espaço da cidade, aumentando também o conflito pelo poder.

Vejamos brevemente dois exemplos das hierarquias desses grupos na cidade do Rio de Janeiro: o primeiro trata-se do tráfico de drogas, que é dividido em grandes facções que dominam morros e disputam a hegemonia do tráfico como o Comando Vermelho, os Amigos dos Amigos, C o m a n d o V e r m e lh o Jo v e m e o T e r c e iro C o m a n d o ; o s e g u n d o e x e m p lo está nas dinâmicas das torcidas organizadas de futebol, que se d iv id e m em g r u p o s e s u b g r u p o s ("Pelotões", "Com andos", "Esquadrões", etc) que alteram o c o tid ia n o das m e tró p o le s e entram em conflito (Valverde, 2002). Dentro d e s s a s d u a s e s t r u t u r a s de p o n to s (ou subgrupos) espalhados pela cidade e unidos por flu x o s de m e r c a d o r ia s , p e s s o a s e informações, podemos encontrar a essência da associação dos conceitos de território e rede proposta por Souza (1995), o qual ele chamou de "território descontínuo"

Se o b s e rv a rm o s as fro n te ira s d esses territórios - possivelmente, seus aspectos mais claros tanto no nível simbólico quanto no nível concreto que comunicam a posse ou a exclusão - nós v e re m o s que suas d in â m ica s geram m o v im e n to s c o n s t a n t e s de fro n te ira s , que surgem e d e s a p a re c e m , se expandem e se retraem , e tam bém se o rg a n iza m segundo hierarquias. Moura7 faz um expressivo relato desses fenômenos nas grandes cidades:

"Transparentes ou ostensivam ente cercadas, as fronteiras refletem o exercício da dominação e da autoridade de um povo em particular. (...). Cada vez mais presente n a s r e la ç õ e s c o t id ia n a s d a s v á ria s espacialidades, a fronteira tornou-se um sím bolo claustrofóbico de lim ites (...) o

(4)

mundo nunca viveu tanto controle sendo exercido em seus tantos fragm entos"

Dessa forma, a dinâmica da constituição e destruição diária de inúmeros territórios no espaço público do Rio de Janeiro parece ser s in t o m á tic a do c h o q u e de p e r c e p ç õ e s do significado da política e do espaço. Devido a isso acreditamos que o conceito de território é capaz de tra zer ele m e n to s de im portância inigualável na construção de novas concepções sobre as cidades.

É justamente nesse sentido que Gomes propõe o n o m o e s p a ç o e o g e n o e s p a ç o . O primeiro seria um conceito que assume um pacto territorial fundado no cumprimento de um contrato social nos moldes daquele proposto por Rosseau. Ele parte do princípio que todos os indivíduos dentro desse acordo que envolve espaço e política são autônomos e infinitamente diferentes entre eles. Isso significaria que seus interesses dentro do Estado seriam bastante d iv e r s o s e que só se p o d e r ia g a r a n t ir a segurança de todos através de um equilíbrio do conjunto ditado pelo cumprimento de suas leis na área em questão. Nessa concepção se admite até mesmo que o sucesso de qualquer interesse (seja ele privado ou público) dentro do conjunto depende de uma postura correta em relação às leis. Tal declaração está fundada na crença de que o desvio de conduta pode garantir um ganho imediato, mas compromete os maiores benefícios desse modelo, como a liberdade e os direitos e, portanto, age em d e t r im e n t o dos s e u s p r ó p r io s in t e r e s s e s privados.

A prod u çã o do es p a ço esta ria então v o lt a d a para e s t a b e le c e r um e q u ilíb r io normalmente não muito bem definido entre o bem-estar público e os direitos privados, mas que está por princípio vinculado a idéias de e quivalên cia e isonom ia. O te rritó rio seria apenas a área na qual esse conjunto de regras universais estaria sob vigor e o espaço público seria a grande arena da política e de todas as relações sociais, significando a essência e o sucesso do nomoespaço.

Já o g e n o e s p a ç o e s ta ria fu n d a d o na crença de que todos os indivíduos de um grupo (usa-se também a palavra comunidade) têm interesses iguais, uma vez que são cultural­ mente originários de uma combinação única, com u m e n tre e le s e o t e r r it ó r io . A única diferenciação possível é entre cada um dos grupos, desconsiderando qualquer outro nível de análise. O território expressaria muito mais do que a relação formal de pertencimento e de le g a lid a d e p r e s e n t e na d e f in iç ã o do nomoespaço, sendo, antes de tudo, o "solo no qual floresceu " tal relação. O inegável teor ecológico é proposital, pois revela uma ligação m ais p a s s io n a l com o t e r r e n o e p ro c u ra "naturalizar" o intrincado processo social de formação da coletividade. Nessa concepção, to m a -se por lei a tra d iç ã o e os costu m e s presentes nesses grupos e que são e n c o n ­ tra d o s nessa e x te n s ã o de área (e apenas nela). Portanto, as leis são bastantes informais e depend em da c o n tin u id a d e dos laços de unidade e solidariedade expostos.

No p a s s a d o a lg u n s s o c ió lo g o s com o T õ n i e s 8 trab alh a vam essas diferenças de associação entre pessoas e espaço de maneira s im p lif ic a d a , c o m o se e la s e x p r e s s a s s e m somente as diferenças de desenvolvimento do campo e da cidade, ou do antigo e do novo. Mas nos dias de hoje podem os o b servar a presença dessas duas concepções de relação entre indivíduos e espaço nas grandes cidades, como o Rio de Janeiro. Para o nosso trabalho tal c o n s ta ta çã o é fu n d a m e n ta l ao asso ciar d ia le t ic a m e n t e o recuo da c id a d a n ia e as transformações do espaço público a fenômenos que têm o controle territorial como característica comum. Estando a cidade totalmente tomada por e s s a s d in â m ic a s t e r r it o r ia i s , e x is te claramente um imaginário de guerra no qual podem os observar: a recusa a partilhar, a aceleração do processo de privatização dos espaços públicos.

Ao que parece, o "reencantam ento do mundo" proposto por Maffesoli (1997), no qual ele proclama que nós vivemos em um momento histórico de renovação do pacto territorial que traria uma "nova harmonia", ainda está um

(5)

Transform ações no conceito de Território, pp. 119 126 123

tanto distante. Acreditamos que o territorialismo não significa hoje uma necessidade válida do ponto de vista moral para os diversos grupos s o c ia is . A f in a l, os g r u p o s não são necessariamente os veículos de expressão de revolta e procura de um mundo mais justo, pois eles se m ostram cada vez mais como uma possibilidade de se lucrar de diferentes formas do imaginário do caos das infinitas formas de s u p e r p o s iç ã o e j u s t a p o s iç ã o t e r r it o r ia l. O domínio dos territórios, nesse caso, parece estar mais próximo a uma ausência de ação do Estado e da falta de reconhecimento de sua legitimidade que, ao invés de gerar bases para um novo sistema de relações entre os indivíduos, está a p en a s re fo rç a n d o os d e fe it o s do sistem a democrático e capitalista.

Definitivamente, a capacidade interpre- tativa do conceito de território ainda tem uma importância subestimada nos dias de hoje, pois a maior parte de suas formulações não é capaz de expressar o movimento de suas ações com a devida fidelidade. Entre o Boden, território- solo de Ratzel, enraizando a identidade nacional alemã a um território; a geopolítica dos anos de 1950, marcada pelas disputas de mercados consumidores e zonas de influência militares e econômicas; e as múltiplas representações da te rrito ria lid a d e nos anos 1980 e 1990, nós vemos, justamente, a compreensão de que as t r a n s f o r m a ç õ e s do c o n c e it o de t e r r it ó r io almejam conferir atualidade a ele a partir da percepção do seu movimento.

De fato, nos dias de hoje, ao contrário dos e x e m p lo s de t e r r it ó r io s a b o r d a d o s anteriormente, os territórios são mais marcados pelo movimento contínuo do que propriamente pela fix a ç ã o , t o r n a n d o os la ço s de p e r t e n c im e n t o com o s o lo m u ito m en o s significativos do que antes. A justificativa para tal constatação estaria na intensidade das suas dinâmicas de competição.

II- A competição pelos territórios

Acreditamos que uma outra limitação ao e s tu d o dos t e r r i t ó r i o s está lig a d a a sua excessiva vinculação aos fenôm enos relacio­ nados à identidade. Novamente ligados à obra

de Ratzel, muitas vezes esperamos associar ao território uma represen tação ontológica que confira um sentido subjetivo que seja capaz de co n tê-lo e e x p lic á -lo . Mas, nas m e tró p o le s brasileiras, encontramos exemplos e evidências da relação do atual fenômeno do territorialismo com a competição pelo espaço. Aliás, a partir de um olhar histórico, é justamente nos momen­ tos de crescimento excessivo da percepção da competição e de maior fraqueza da capacidade política de negociação, que o discurso sobre o território ganha maior dimensão.

Ao c o n t r á r io do que a r g u m e n t a v a m muitos pensadores como Fukuyama (1992), o fim do embate ideológico da guerra fria não representou o "fim da história" e muito menos o fim da geografia. Dissociada dos limites da dicotom ia nos circu itos do com unism o e do capitalismo, a competição pelo território ganhou novas fo rm a s e novos se n tid o s. Na esfera po lítica , tal c o m p e tiç ã o no te rritó rio , pelo território e através do território, abre caminho para uma nova in terpretação das re p re s e n ­ tações sociais na cidade.

Nesse sentido, acreditamos que, no Brasil, alguns fatores como a violência urbana e o avan ço das d in â m ic a s de p riv a tiz a ç ã o dos esp aço s p ú b lico s são fu n d a m e n ta is para o e n t e n d im e n t o da c id a d e sob a ló g ica da competição. Para vermos como isso acontece, d evem o s p rim e ira m e n te a c e ita r a segu in te afirmativa: a multiplicação dos grupos territoriais significa, n e c e s s a ria m e n te , a existência de novos atores e que, tendo estes interesses bastante diversos, acabam por exigir a formação de um novo equilíbrio urbano.

Mas o que p o d e r ia s er a p e n a s um processo de reorganização é interpretado por m u ito s c o m o uma a m e a ç a c o n s t a n t e aos direitos dos cidadãos por estabelecer regras de convívio que muitas vezes alteram a efetividade das leis fo r m a is . De fa to , a lg u n s g ru p o s territoriais se valem desse expediente como uma estratégia de ação na cidade, como é o caso da ação dos g rupo s que prom ovem o tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro. Como essa forma criminal avança procurando estabelecer enclaves de domínio exclusivo que

(6)

vem se multiplicando em número e em tamanho, nos sentimos tentados a pensar todo o espaço da cidade como objeto de disputa constante entre o poder público e o poder paralelo dos grupos organizados.

Seguindo na análise desse exemplo, tal quadro tem como conseqüência a mudança no equilíbrio das forças na cidade que, se persistir instável, acabará influenciando os moradores e pode causar o rompimento dos valores urbanos como a civilidade e a cidadania. O primeiro valor perdido é a concepção da cidade como o "lugar da segurança", uma vez que esta imagem é talvez a mais frágil de todas aquelas ligadas, já que qualquer evento extremo e ao acaso podem significar o seu abandono. Na sua duração, é capaz de induzir e de permitir a existência de formas de interações sócio-espaciais que não podem ser vistas quando essa imagem se perde. Quando a imagem da segurança é deixada de lado, significa que alguns outros laços divididos entre habitantes da cidade podem ser cortados e reorganizados sobre outras bases. Na nossa concepção, a recusa à partilha e a insegurança na cidade é justamente o primeiro passo para a v a n ç a r no d e s c a r t e s u c e s s iv o dos o u tro s " lu g a r e s " A f in a l, se não há a ilu s ã o da segurança, pouco a pouco as dinâmicas sociais c o m e ç a m a se r e t r a ir e a d im i n u i r su a s a m p lit u d e s , t e n t a n d o g a r a n t ir os seu s interesses privados (Valverde, 2002).

Seguindo no esclarecimento dessa cadeia de eventos, podemos lembrar que a expansão dos t e r r it ó r io s da c r im in a lid a d e e/ou da s o c ie d a d e civil, sig n ific a m um processo de " c o is if ic a ç ã o " do e s p a ç o . Ao c o n t r á r io do argumento "culturalista" de Maffesoli (1997), que credita a existência de novos territórios a um processo de "reencantam ento do mundo" no qual as pessoas e n c o n tra ria m nas suas novas dinâmicas territoriais o "amor perdido" e a sua identidade no caos das metrópoles do século XX e XXI, nós acre d ita m o s que, por exemplo, o foco do territorialismo nas grandes cidades brasileiras, e, em especial, a cidade do Rio de Janeiro, está mais concentrado na relação de posse dos e s p a ç o s p ú b lic o s com o uma estratégia de defesa, ao invés de uma ligação

subjetiva entre terrenos e habitantes.

Enfim, a multiplicação dos grupos territo­ riais promove direta e indiretamente um recuo acelerado do espaço público, ao potencializar os processos de privatização e de segregação nos e s p a ç o s da c id a d e , e le v a n d o - o s a patamares poucas vezes vistos. Ela promove o recuo do espaço público através do controle de sua extensão ou mesmo da ameaça do controle, dim inuindo o número de fóruns políticos ao expo r a in u tilid a d e d e s sa s ações fren te às dinâmicas de apropriação. Nesse sentido, para nós, as a t u a is fo r ç a s de m o d ific a ç ã o dos e s p a ç o s na c id a d e têm um c a r á t e r e x c e s s iv a m e n te e x a c e rb a d o de segurança: m u ito m ais do que a m era e x p r e s s ã o do sentimento de insegurança ou a necessidade de proteção, este caráter revela um processo de autodestruição progressiva ao minar tanto as relações ilegais entre seus cidadãos quanto as legais, a partir do avanço de um planeja­ mento quase "antiespacial" para as cidades.

Na nossa in te r p r e t a ç ã o , essas ações te r r it o r ia is p re ju d ic a m a p e rm a n ê n c ia e o desenvolvimento da comunicação e da circulação dos habitantes da cidade. Tal perspectiva pode ser comprovada através da multiplicação de muros, armas, cercas, placas, bandeiras etc que vem tornando a cidade inacessível como um todo. Aos poucos, como vimos, as barreiras tornam a vivência pública uma mera questão coletiva, ou da impossibilidade da dissociação total, e acreditam os que em seguida podem estimular a um maior rompimento com a política a t r a v é s da n e g a ç ã o da v a lid a d e e da legitimidade dos fóruns públicos.

Dentro de tudo isso, nós consideramos que uma das conseqüências mais evidentes do t e r r it o r ia l is m o u rb a n o co m o um v e to r de mudança das cidades estaria na associação do espaço público como espaço do conflito e da competição, rompendo parcialmente o sentido de cid a d e a b erta , d e m o c rá tic a e capaz de combinar de maneira harmoniosa as diferentes representações sociais. Esse sentido ideal está se tornando cada vez menos visível nas cidades, restrito a certas áreas e horários, tornando a experiência urbana cada vez mais complexa.

(7)

Transform ações no conceito de Território, pp. 118 126 125

III - Os territórios em movimento

Para sobreviver às dinâmicas territoriais de competição nas metrópoles brasileiras e a sua te n d ê n cia de d e s re g u la ç ã o do binôm io identidade-território, os seus habitantes são fo rça d o s a c o m p r e e n d e r e a in te ra g ir com t e r r it ó r io s em c o n s t a n t e m o v im e n to . Isso significa que, em um mesmo dia, em um mesmo lugar, dependendo da hora ou de circunstâncias especiais, um cidadão pode perceber diversos sinais de territorialização. Mas, além da mera constatação da superposição dos territórios nas metrópoles, ou das dificuldades de se viver em uma d in â m ic a u rb a n a que e x ig e um cosmopolitismo suficientem ente desenvolvido para permitir a circulação por diferentes pontos da cidade, somos tentados a pensar que os próprios territórios podem ser forçados a se deslocar.

Tal afirmação não é banal: a possibilidade da inversão do movimento, saindo da figura dos hom ens e p assa n d o para os lim ites de um território, representa um rompimento cada vez mais a c e n tu a d o no p rin cíp io da fixação do espaço . A c r e d it a m o s que tal p ro p o s iç ã o é aceitável na medida em que a competição força as dinâmicas territoriais a se contraírem, às vezes sumirem e reaparecerem, e também a projetarem as suas relações de poder em uma área diferente e distante da área original. Nosso ponto aqui é d e s ta ca r que essa m obilidade e s tim u la f u n d a m e n t a lm e n t e d u a s g ra n d e s transformações: a ) transformação do sentido do território; e b ) transformação do sentido de cidade.

Podemos apontar mudanças de sentido no conceito de território na medida em que o movimento se torna cada vez mais o fim, e não o meio de se constituir o território. Um bom exemplo está na territorialidade das torcidas organizadas de futebol na cidade do Rio de Janeiro. Suas dinâmicas de confrontação são fortemente limitadas nos estádios hoje em dia, controladas pela Polícia Militar e o GEPE (Grupo Especial de Policiamento dos Estádios). Com isso, aparentemente, o poder de territorialização desses grupos estaria bem mais restrito do que era no

passado. Porém, os estádios não são mais os únicos palcos de representação da territorialidade das torcidas, que, como colocou Gomes (2002), "transbordou" os limites dos estádios e avançou na apropriação no espaço da cidade.

Nesse sentido, não é mais no ponto de fix a ç ã o que se dá a p le n it u d e do seu comportamento territorial: é no trajeto que os leva aos estádios em que seus participantes alcançam esse clímax. De diversos pontos da cidade partem pequenos grupos de torcedores, sub-grupos das torcidas organizadas que se dividem de acordo com a c o n tig ü id a d e dos bairros (são os com andos, pelotões, fam ílias, núcleos etc), rumo ao Estádio do Maracanã. Muitas vezes, tais grupos se valem do poder de intimidação para não pagar as passagens nos ô n ib u s e/ou nos t r e n s e ta m b é m te n ta m convencer o motorista a ignorar as paradas de ô n ib u s e as e s ta ç õ e s de trem . O meio de tra n s p o rte se torna a e x p re s s ã o te rrito ria l d a q u e le s u b - g ru p o , no qual os t o r c e d o re s expõem suas bandeiras e faixas nas janelas, cantam e coagem os torcedores adversários que passam pelas ruas ( V a l v e r d e , 2 0 0 2 ) . Isso não s ig n ific a que os ô n ib u s e os tre n s seja m conservados como áreas de afinidade: essas lotações são constantemente depredadas, pois não é a fixação que confere o valor, e sim o movimento.

Esse exemplo radical da territorialidade em m o v im e n t o é a p e n a s um em m eio ao mosaico de representações que dominam os e s p a ç o s p ú b lic o s das g r a n d e s c id a d e s brasileiras. Alguns se fixam no território, outros se movem constantemente, de acordo com o grau de com p etitiv id ad e e de resistência às dinâmicas.

D essa fo r m a , a c r e d it a m o s que tal c o n ju n ç ã o de t e r r i t o r i a l i d a d e s e n g e n d r a conseqüências para o sentido de cidade, pois elas se chocam e se superpõem no tempo e no espaço, e vem definindo uma nova forma de se pensar a experimentação do urbano. A cidade, mais do que nunca, é o palco de representações das diferenças, mas o movimento contínuo de p e s s o a s t e n t a n d o f u g ir das d in â m ic a s territoriais ou, ao contrário, tentando

(8)

garanti-Ias, dá à circulação significações mais ricas e mais relevantes do que antes. Portanto, circular em certas áreas, em certas direções e em certos horários podem ser atos muito significativos. Ao aceitarm os que a circulação ganha um papel

destacado na com preensão da cidade atual, abrimos caminho para novas interpretações do sentido de cidade, pois será nesses movimentos que irem os tra n sp a re ce r a riqueza de nossa organização sócio-territorial.

Notas

2 Apud Gom es, Paulo C esar C. G eo g ra fia e modernidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996. p.186.

3 Apud Gomes, op. cit, p. 185.

4 Sack, Robert. Human territoriality - its theory and history. Cambridge, Cambridge University Press,

1986. 400p.

5 Souza, Marcelo J.L. "O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento" In: CASTRO,

Iná E. (et alli) Geografia: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995. pp.77-116 6 Souza, op.cit., p.78.

7 Souza, op.cit., p.86.

8 Moura, Rosa. "Fronteiras invisíveis: o território e os seus limites" In: Território - ano V, n°9. Rio de Janeiro, UFRJ, 2000. p.86.

9 Sobre esse debate, ver GOMES, op. cit., 2002.

Bibliografia

FUKUYAMA, Francis. O fim da história. São Paulo, Editora Gradiva, 1992. 384 p.

GOMES, Paulo C.C. A condição urbana. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 2002. 326 p.

______ , Geografia e modernidade. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1996. 366 p.

MAFFESOLI, Michel. A transfirguração do político. Porto Alegre, Editora Sulina, 1998. 288 p.

MOURA, Rosa. "Fronteiras invisíveis: o território e os seus limites" In: Território - ano V, n°9. Rio de Janeiro, UFRJ, 2000. pp.85-101.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo, Editora Ática, 1980. 269 p.

RATZEL, Friedrich. Géographie politique. Paris, Editions Economica, 1988. 385 p.

______ , "O povo e seu território" In: MORAES, Antônio Carlos R. (org.). Ratzel. São Paulo,

Editora Ática, 1990. pp. 73-82.

, "Posição, configuração e grandeza da hum anidade" In: MORAES, Antônio Carlos R.

(org.). Ratzel. São Paulo, Editora Ática, 1990. pp.

112- 1 21.

, "As leis do crescim ento espacial dos Estados" In: MORAES, Antônio Carlos R. (org.). Ratzel. São Paulo, Editora Ática, 1990. pp. 175- 192.

SACK, Robert. The human territoriality its theory and history. Cambridge, Cambridge University

Press, 1986. 400 p.

SOUZA, Marcelo J.L. O desafio metropolitano - Um estudo sobre a problemática sócio-espacial nas metrópoles brasileiras. Rio de Janeiro, Editora Betrand Brasil, 2000. 366 p.

______ , "O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvim ento" In: Geografia: C on ceito s e Tem as. Rio de Jan eiro , Editora Bertrand Brasil, 1995. pp.77-116.

VALVERDE, Rodrigo Ramos H.F A metáfora da guerra. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado em geografia UFRJ/PPGG, 2002. 105 p.

Trabalho enviado em novembro de 2003.

Referências

Documentos relacionados

São eles, Alexandrino Garcia (futuro empreendedor do Grupo Algar – nome dado em sua homenagem) com sete anos, Palmira com cinco anos, Georgina com três e José Maria com três meses.

Homes e Sustein (2005) alertam que a manutenção do oferecimento de direitos fundamentais pelo Estado é contingente à alocação do problema da escassez de

Declaro que fiz a correção linguística de Português da dissertação de Romualdo Portella Neto, intitulada A Percepção dos Gestores sobre a Gestão de Resíduos da Suinocultura:

O estudo buscou também contribuir para o desenvolvimento científico, disponibilizando para a sociedade os impactos acerca da saúde mental, social e corporal dos

[r]

Esses índices, destinam-se a avaliar aspectos não financeiros, que envolvem a atividade pecuária. O índice de fertilidade representa a relação do número de fêmeas que foram

Assim como pudemos perceber através da análise do Programa Gerenciador de Educação on-line Blackboard, há ainda pouco espaço para a interação entre aluno - aluno, entre professor

Dois termos têm sido utilizados para descrever a vegetação arbórea de áreas urbanas, arborização urbana e florestas urbanas, o primeiro, segundo MILANO (1992), é o