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Fredric Jameson - Pós-modernidade e sociedade de consumo

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Academic year: 2021

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Tradução Vinicius Dantas Tradução Vinicius Dantas

  Nota do tradutor 

  Nota do tradutor — Este tex-— Este tex-to foi originalmente to foi originalmente apresen-tado como uma conferência tado como uma conferência no Whitney Museum, em no Whitney Museum, em 1982. Fredric Jameson 1982. Fredric Jameson am-pliou e desenvolveu seus pliou e desenvolveu seus principais tópicos no longo principais tópicos no longo ensaio "Postmodernism or ensaio "Postmodernism or the Cultural Logic of Late the Cultural Logic of Late Capitalism", recentemente Capitalism", recentemente pu-blicado na

blicado na   New Left Review  New Left Review (n.º 146, julho-agosto 1984). (n.º 146, julho-agosto 1984).

ós-modernidade" é até hoje um ós-modernidade" é até hoje um conceito pouco aceito ou conceito pouco aceito ou com-preendido. Algumas das preendido. Algumas das resis-tências a ele podem ser tências a ele podem ser atri-buídas à falta de familiaridade com as buídas à falta de familiaridade com as obras que abrange e que são encontráveis obras que abrange e que são encontráveis em todas as artes: a poesia de John em todas as artes: a poesia de John Ashbery, por exemplo, mas também a Ashbery, por exemplo, mas também a poesia conversacional, muito mais poesia conversacional, muito mais sim-ples, lançada nos anos 60 como reação ples, lançada nos anos 60 como reação à ironia e complexidade do modernismo à ironia e complexidade do modernismo acadêmico; a reação à arquitetura acadêmico; a reação à arquitetura mo-derna e, em particular, aos monumentais derna e, em particular, aos monumentais edifícios do

edifícios do   International Style,  International Style,bembem como as construções

como as construções pop pop e os tetos dee os tetos de vidro decorado elogiados por Robert vidro decorado elogiados por Robert Venturi em seu manifesto

Venturi em seu manifesto  Aprendendo Aprendendo com

com  Las Las Vegas;Vegas; AndyAndy WarholWarhol e e aa pop pop

art 

art mas também o mais mas também o mais recente Hiper-rea-recente Hiper-rea-lismo; em música, o apogeu de John lismo; em música, o apogeu de John Cage, assim como a posterior síntese dos Cage, assim como a posterior síntese dos estilos clássico e "popular" de estilos clássico e "popular" de compo-sitores como Philip Glass e Terry Riley sitores como Philip Glass e Terry Riley ou, ainda, o rock

ou, ainda, o rock new wavenew wave ee punk  punk dede grupos tais como Clash, Talking Heads grupos tais como Clash, Talking Heads e Gang of Four; no cinema, tudo o que e Gang of Four; no cinema, tudo o que deriva de Godard — filme e vídeo deriva de Godard — filme e vídeo con-temporâneos de vanguarda — além de temporâneos de vanguarda — além de um novo estilo de filmes comerciais ou um novo estilo de filmes comerciais ou ficcionais, cujo equivalente no romance ficcionais, cujo equivalente no romance contemporâneo são as obras de William contemporâneo são as obras de William Burroughs, Thomas Pynchon e Ishmael Burroughs, Thomas Pynchon e Ishmael Reed, de um lado, e o

Reed, de um lado, e o nouveau romannouveau roman

francês, de outro, que merecem ser francês, de outro, que merecem ser cita-dos como variedades do que se pode dos como variedades do que se pode chamar pós-modernismo.

chamar pós-modernismo.

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Uma lista como esta esclarece duas Uma lista como esta esclarece duas coisas ao mesmo tempo: primeiro, os coisas ao mesmo tempo: primeiro, os casos de pós-modernismo citados acima casos de pós-modernismo citados acima aparecem, na sua maioria, como reações aparecem, na sua maioria, como reações específicas a formas canônicas da específicas a formas canônicas da mo-dernidade, opondo-se a seu predomínio dernidade, opondo-se a seu predomínio na Universidade, nos museus, no circuito na Universidade, nos museus, no circuito das galerias de arte e nas fundações. Estes das galerias de arte e nas fundações. Estes estilos, que no passado foram agressivos estilos, que no passado foram agressivos e subversivos — o Expressionismo e subversivos — o Expressionismo Abs-trato, a grande poesia de Pound, Eliot e trato, a grande poesia de Pound, Eliot e Wallace Stevens, o

Wallace Stevens, o   International Style  International Style

(Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, (Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Mies), Stravinsky, Joyce, Proust e Mies), Stravinsky, Joyce, Proust e Tho-mas Mann —, que escandalizaram e mas Mann —, que escandalizaram e chocaram nossos avós, são agora, para a chocaram nossos avós, são agora, para a geração que entrou em cena com os geração que entrou em cena com os anos 60, precisamente o sistema e o anos 60, precisamente o sistema e o ini-migo: mortos, constrangedores, migo: mortos, constrangedores, consa-grados, são monumentos reificados que grados, são monumentos reificados que precisam ser destruídos para que algo precisam ser destruídos para que algo novo venha a surgir. Isto quer dizer que novo venha a surgir. Isto quer dizer que serão tantas as formas de serão tantas as formas de pós-modernis-mo quantas foram as formas pós-modernis-modernas, mo quantas foram as formas modernas, uma vez que as primeiras não passam, uma vez que as primeiras não passam, pelo menos de início, de reações pelo menos de início, de reações especí-ficas e locais

ficas e locais contracontra os seus modelos.os seus modelos. Obviamente isto não facilita em nada a Obviamente isto não facilita em nada a discussão da pós-modernidade como algo discussão da pós-modernidade como algo coerente, porque a unidade deste novo coerente, porque a unidade deste novo impulso — se é que tem alguma — não impulso — se é que tem alguma — não se funda em si mesma mas em relação se funda em si mesma mas em relação ao próprio modernismo contra o qual ela ao próprio modernismo contra o qual ela investe.

investe.

O segundo traço desta linha de O segundo traço desta linha de pós-modernismos é

modernismos é a dissolução de algumasa dissolução de algumas fronteiras e divisões fundamentais, fronteiras e divisões fundamentais, nota-damente o desgaste da velha distinção damente o desgaste da velha distinção entre cultura erudita e cultura popular entre cultura erudita e cultura popular (a dita cultura de massa). Possivelmente (a dita cultura de massa). Possivelmente esta é, entre todas, a mais desalentadora esta é, entre todas, a mais desalentadora manifestação da pós-modernidade, sob o manifestação da pós-modernidade, sob o ponto de vista universitário — o qual ponto de vista universitário — o qual tem tradicionalmente interesses tem tradicionalmente interesses declara-dos tanto na preservação de um dos tanto na preservação de um domí-nio de cultura qualificada e de elite nio de cultura qualificada e de elite con-tra o cerco de filistinismos, do kitsch, tra o cerco de filistinismos, do kitsch, da porcaria, da cultura de

da porcaria, da cultura de SeleçõesSeleções ouou dos seriados de TV, quanto na dos seriados de TV, quanto na transmis-são de técnicas de leitura, audição e são de técnicas de leitura, audição e modos de ver difíceis e complexos a seus modos de ver difíceis e complexos a seus iniciados. Porém, muitos dos mais iniciados. Porém, muitos dos mais re-centes pós-modernismos têm se centes pós-modernismos têm se deslum-brado precisamente com todo esse brado precisamente com todo esse uni-verso da propaganda e dos motéis, dos verso da propaganda e dos motéis, dos luminosos de Las Vegas, do espetáculo luminosos de Las Vegas, do espetáculo noturno e do filme classe B de noturno e do filme classe B de Holly-wood, da chamada paraliteratura, com wood, da chamada paraliteratura, com seus vários gêneros padronizados de seus vários gêneros padronizados de li-vros de bolso (terror, romance vros de bolso (terror, romance

sentimen-tal, biografia popular, mistério policial, tal, biografia popular, mistério policial, ficção científica ou visionária). Os ficção científica ou visionária). Os auto-res pós-modernos não "citam" mais tais res pós-modernos não "citam" mais tais "textos" como um Joyce ou um Mahler "textos" como um Joyce ou um Mahler fariam, mas os incorporam a ponto de fariam, mas os incorporam a ponto de fi-car cada vez mais difícil discernir a linha car cada vez mais difícil discernir a linha entre arte erudita e formas comerciais. entre arte erudita e formas comerciais. Outro indício completamente diverso Outro indício completamente diverso da dissolução dessas velhas categorias de da dissolução dessas velhas categorias de gênero e linguagem pode se encontrar gênero e linguagem pode se encontrar naquilo que, às vezes, se denomina teoria naquilo que, às vezes, se denomina teoria contemporânea. Na geração passada ainda contemporânea. Na geração passada ainda existia o rigor de linguagem da filosofia existia o rigor de linguagem da filosofia profissional — os grandes sistemas de profissional — os grandes sistemas de Sartre, ou dos fenomenólogos, a obra de Sartre, ou dos fenomenólogos, a obra de Wittgenstein, a filosofia analítica ou a Wittgenstein, a filosofia analítica ou a filosofia da linguagem —, ao lado da filosofia da linguagem —, ao lado da qual se podia distinguir o discurso qual se podia distinguir o discurso intei-ramente diferente das demais disciplinas ramente diferente das demais disciplinas universitárias — da ciência política, por universitárias — da ciência política, por exemplo, da sociologia ou da crítica exemplo, da sociologia ou da crítica lite-rária. Hoje, se pratica mais e mais uma rária. Hoje, se pratica mais e mais uma espécie de escrita simplesmente espécie de escrita simplesmente denomi-nada "teoria" que, ao mesmo tempo, é nada "teoria" que, ao mesmo tempo, é todas e nenhuma dessas matérias. Esta todas e nenhuma dessas matérias. Esta nova espécie de linguagem, associada em nova espécie de linguagem, associada em geral à França e à teoria à francesa, tem geral à França e à teoria à francesa, tem se difundido amplamente, marcando o se difundido amplamente, marcando o fim da filosofia como tal. Como, por fim da filosofia como tal. Como, por exemplo, deve ser chamada a obra de exemplo, deve ser chamada a obra de Michel Foucault — filosofia, história, Michel Foucault — filosofia, história, teoria social ou ciência política? É teoria social ou ciência política? É "in-decidível", como se diz nos nossos dias; decidível", como se diz nos nossos dias; o que estou insinuando é que esse tal o que estou insinuando é que esse tal "discurso teórico" pode perfeitamente "discurso teórico" pode perfeitamente ser incluído entre as manifestações da ser incluído entre as manifestações da pós-modernidade.

pós-modernidade.

Cabem aqui algumas palavras sobre o Cabem aqui algumas palavras sobre o emprego apropriado deste conceito: ele emprego apropriado deste conceito: ele não é apenas mais um termo para a não é apenas mais um termo para a des-crição de determinado estilo. É também, crição de determinado estilo. É também, pelo menos no emprego que faço dele, pelo menos no emprego que faço dele, um conceito de periodização cuja um conceito de periodização cuja prin-cipal função é correlacionar a cipal função é correlacionar a emergên-cia de novos traços formais na vida cia de novos traços formais na vida cul-tural com a emergência de um novo tipo tural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem de vida social e de uma nova ordem eco-nômica — chamada, freqüente e nômica — chamada, freqüente e eufe-misticamente, de modernização, misticamente, de modernização, socieda-de pós-industrial ou sociedasocieda-de socieda-de de pós-industrial ou sociedade de consu-mo, sociedade dos mídia ou do mo, sociedade dos mídia ou do espe-táculo, ou capitalismo multinacional. táculo, ou capitalismo multinacional. Podemos datar esta nova fase do Podemos datar esta nova fase do capi-talismo a partir do crescimento talismo a partir do crescimento econô-mico do pós-guerra nos Estados Unidos, mico do pós-guerra nos Estados Unidos, no final dos anos 40 e começo dos 50, no final dos anos 40 e começo dos 50, ou então, na França, a partir da ou então, na França, a partir da insti-tuição da Quinta República, em 1958. tuição da Quinta República, em 1958. A década de 60, sob muitos aspectos, é A década de 60, sob muitos aspectos, é o período-chave de transição, um o período-chave de transição, um perío-

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perío-do em que a nova ordem internacional do em que a nova ordem internacional (neocolonialismo, a Revolução Verde, a (neocolonialismo, a Revolução Verde, a informatização e a mídia eletrônica) não informatização e a mídia eletrônica) não só se funda como, simultaneamente, se só se funda como, simultaneamente, se conturba e é abalada por suas próprias conturba e é abalada por suas próprias contradições internas e pela oposição contradições internas e pela oposição externa. Gostaria de esboçar aqui alguns externa. Gostaria de esboçar aqui alguns modos pelos quais a pós-modernidade modos pelos quais a pós-modernidade nova expressa a verdade interior desta nova expressa a verdade interior desta ordem social emergente do capitalismo ordem social emergente do capitalismo tardio. Vou limitar a descrição a tardio. Vou limitar a descrição a somen-te dois de seus traços mais te dois de seus traços mais significati-tivos, os quais passo a denominar tivos, os quais passo a denominar pas-tiche e esquizofrenia; eles oferecem tiche e esquizofrenia; eles oferecem ocasião para sentirmos a especificidade ocasião para sentirmos a especificidade da experiência pós-moderna do espaço e da experiência pós-moderna do espaço e do tempo, respectivamente.

do tempo, respectivamente.

ma das práticas ou traços mais ma das práticas ou traços mais importantes da importantes da pós-modernida-de hoje é

de hoje é o pastiche. Precisoo pastiche. Preciso primeiro explicar este termo primeiro explicar este termo que as pessoas tendem em geral a que as pessoas tendem em geral a con-fundir ou a assimilar ao fenômeno fundir ou a assimilar ao fenômeno ver-bal afim que é a paródia. Tanto pastiche bal afim que é a paródia. Tanto pastiche quanto paródia envolvem imitação ou, quanto paródia envolvem imitação ou, melhor ainda, o mimetismo de outros melhor ainda, o mimetismo de outros estilos, particularmente dos maneirismos estilos, particularmente dos maneirismos e tiques estilísticos de outros estilos. É e tiques estilísticos de outros estilos. É óbvio que a literatura moderna em geral óbvio que a literatura moderna em geral oferece campo especialmente fértil para oferece campo especialmente fértil para a paródia, visto que os grandes a paródia, visto que os grandes escrito-res modernos têm em sua totalidade se res modernos têm em sua totalidade se sobressaído pela invenção ou produção sobressaído pela invenção ou produção de estilos preferencialmente singulares: de estilos preferencialmente singulares: cite-se a frase longa faulkneriana ou o cite-se a frase longa faulkneriana ou o conjunto de imagens da natureza tão conjunto de imagens da natureza tão ca-racterístico de D. H. Lawrence; cite-se racterístico de D. H. Lawrence; cite-se o modo peculiar de Wallace Stevens o modo peculiar de Wallace Stevens em-pregar abstrações; citem-se também os pregar abstrações; citem-se também os maneirismos dos filósofos, de maneirismos dos filósofos, de Heideg-ger, por exemplo, ou de Sartre; citem-se ger, por exemplo, ou de Sartre; citem-se os estilos musicais de Mahler ou os estilos musicais de Mahler ou Proko-fiev. Estes estilos todos diferem um do fiev. Estes estilos todos diferem um do outro e, contudo, são comparáveis nisto: outro e, contudo, são comparáveis nisto: cada um é absolutamente inconfundível; cada um é absolutamente inconfundível; uma vez identificado provavelmente não uma vez identificado provavelmente não se deixa mais confundir com qualquer se deixa mais confundir com qualquer outro.

outro.

Assim sendo, a paródia se aproveita Assim sendo, a paródia se aproveita da singularidade destes estilos para da singularidade destes estilos para incor-porar suas idiossincrasias e porar suas idiossincrasias e singularida-des e criar uma imitação que simula o des e criar uma imitação que simula o original. Não estou querendo dizer que original. Não estou querendo dizer que o impulso satírico seja deliberado em o impulso satírico seja deliberado em todas as formas de paródia. De qualquer todas as formas de paródia. De qualquer maneira, um bom parodista precisa ter maneira, um bom parodista precisa ter uma certa simpatia tácita pelo original, uma certa simpatia tácita pelo original, tal como

tal como um um excelente mímico excelente mímico precisaprecisa

ter a capacidade de se colocar na pessoa ter a capacidade de se colocar na pessoa imitada. Todavia, o efeito geral da imitada. Todavia, o efeito geral da pa-ródia é — quer simpática quer ródia é — quer simpática quer maledi-cente — ridicularizar a natureza privada cente — ridicularizar a natureza privada destes maneirismos estilísticos bem destes maneirismos estilísticos bem co-mo seu exagero e sua excentricidade em mo seu exagero e sua excentricidade em relação ao modo como as pessoas relação ao modo como as pessoas nor-malmente falam e escrevem. Assim, malmente falam e escrevem. Assim, sub-  jaz à paródia o sentimento de que existe   jaz à paródia o sentimento de que existe uma norma lingüística, por oposição à uma norma lingüística, por oposição à qual os estilos dos grandes modernistas qual os estilos dos grandes modernistas podem ser arremedados.

podem ser arremedados.

Porém, o que aconteceria se ninguém Porém, o que aconteceria se ninguém mais acreditasse na linguagem normal, mais acreditasse na linguagem normal, na fala comum, na norma lingüística na fala comum, na norma lingüística (uma espécie de precisão e de força (uma espécie de precisão e de força co-municativas elogiadas por Orwell em seu municativas elogiadas por Orwell em seu famoso ensaio)? Podemos considerar famoso ensaio)? Podemos considerar esta situação da seguinte maneira: esta situação da seguinte maneira: tal-vez a imensa fragmentação e vez a imensa fragmentação e privatiza-ção da literatura moderna — sua ção da literatura moderna — sua explo-são em um bando de estilos privados e são em um bando de estilos privados e maneirismos distintos — prefigurem maneirismos distintos — prefigurem tendências mais gerais e profundas da tendências mais gerais e profundas da vida social como um todo. Suponhamos vida social como um todo. Suponhamos que realmente a arte moderna e o que realmente a arte moderna e o mo-dernismo — longe de serem uma dernismo — longe de serem uma curio-sa especialização estética — tenham sa especialização estética — tenham antecipado desenvolvimentos sociais antecipado desenvolvimentos sociais nes-ta direção; e que nas décadas que se ta direção; e que nas décadas que se seguiram à emergência dos grandes seguiram à emergência dos grandes esti-los modernos a sociedade tenha los modernos a sociedade tenha começa-do a se fragmentar neste senticomeça-do — cada do a se fragmentar neste sentido — cada grupo passando a falar uma curiosa grupo passando a falar uma curiosa lin-guagem privada própria, cada profissão guagem privada própria, cada profissão passando a desenvolver seu ideoleto ou passando a desenvolver seu ideoleto ou código privado e, por fim, cada código privado e, por fim, cada indiví-duo passando a ser uma espécie de ilha duo passando a ser uma espécie de ilha lingüística, cindido dos demais. Se este lingüística, cindido dos demais. Se este for o caso, a própria possibilidade de for o caso, a própria possibilidade de uma norma lingüística por meio da qual uma norma lingüística por meio da qual pudéssemos escarnecer as linguagens pudéssemos escarnecer as linguagens pri-vadas e os estilos idiossincráticos teria vadas e os estilos idiossincráticos teria sumido, e só disporíamos então da sumido, e só disporíamos então da diver-sidade e da heterogeneidade estilísticas. sidade e da heterogeneidade estilísticas. É este o momento em que o pastiche É este o momento em que o pastiche aparece e a paródia se torna impossível. aparece e a paródia se torna impossível. O pastiche é, como a paródia, a imitação O pastiche é, como a paródia, a imitação de um estilo singular ou exclusivo, a de um estilo singular ou exclusivo, a uti-lização de uma máscara estilística, uma lização de uma máscara estilística, uma fala em língua morta: mas a sua prática fala em língua morta: mas a sua prática desse mimetismo é neutra, sem as desse mimetismo é neutra, sem as moti-vações ocultas da paródia, sem o vações ocultas da paródia, sem o impul-so satírico, sem a graça, sem aquele so satírico, sem a graça, sem aquele sen-timento ainda latente de que existe uma timento ainda latente de que existe uma

norma,

norma, em comparação com a qual aqui-em comparação com a qual aqui-lo que está sendo imitado é, sobretudo, lo que está sendo imitado é, sobretudo, cômico. O pastiche é paródia lacunar, cômico. O pastiche é paródia lacunar, paródia que perdeu seu senso de humor: paródia que perdeu seu senso de humor: o pastiche está para a paródia assim o pastiche está para a paródia assim co-

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co-mo aquela coisa curiosa, a prática co- mo aquela coisa curiosa, a prática mo-derna de uma espécie de ironia branca, derna de uma espécie de ironia branca, está para o que Wayne Booth chama as está para o que Wayne Booth chama as ironias cômicas e estáveis, isto é, as ironias cômicas e estáveis, isto é, as iro-nias do século XVIII.

nias do século XVIII.

gora, porém, convém gora, porém, convém introdu-zir uma nova peça neste zir uma nova peça neste que-bra-cabeça que pode nos bra-cabeça que pode nos auxi-liar a explicar por que a liar a explicar por que a mo-dernidade clássica é coisa do passado e dernidade clássica é coisa do passado e por que a pós-modernidade ocuparia seu por que a pós-modernidade ocuparia seu lugar. Este componente novo é o que lugar. Este componente novo é o que geralmente se costuma chamar a "morte geralmente se costuma chamar a "morte do sujeito" ou, em expressão mais do sujeito" ou, em expressão mais tra-dicional, o fim do individualismo como dicional, o fim do individualismo como tal. Os grandes modernismos estavam, tal. Os grandes modernismos estavam, como dissemos, ligados à invenção de como dissemos, ligados à invenção de um estilo pessoal e privado, tão um estilo pessoal e privado, tão incon-fundível como a nossa impressão digital, fundível como a nossa impressão digital, tão incomparável como nosso próprio tão incomparável como nosso próprio corpo. Porém, isto significa que a corpo. Porém, isto significa que a esté-tica da modernidade estava, de certo tica da modernidade estava, de certo modo, organicamente vinculada à modo, organicamente vinculada à con-cepção de um eu singular e de uma cepção de um eu singular e de uma identidade privada, uma personalidade identidade privada, uma personalidade e uma individualidade únicas, das quais e uma individualidade únicas, das quais se podia esperar o engendramento de sua se podia esperar o engendramento de sua visão singular de mundo, forjada em seu visão singular de mundo, forjada em seu próprio estilo, singular e inconfundível. próprio estilo, singular e inconfundível.

Contudo, hoje, a partir das mais Contudo, hoje, a partir das mais dis-tintas perspectivas, os teóricos sociais, tintas perspectivas, os teóricos sociais, os psicanalistas, mesmo os lingüistas, os psicanalistas, mesmo os lingüistas, para não mencionar aqueles que como para não mencionar aqueles que como nós trabalham na área da cultura e das nós trabalham na área da cultura e das mudanças formais e culturais, estão mudanças formais e culturais, estão todos investigando a hipótese de que todos investigando a hipótese de que esse tipo de individualismo e de esse tipo de individualismo e de identi-dade pessoal é coisa do passado; de que dade pessoal é coisa do passado; de que o antigo indivíduo ou o sujeito o antigo indivíduo ou o sujeito indivi-dualista está "morto"; de que podemos dualista está "morto"; de que podemos considerar o conceito de indivíduo considerar o conceito de indivíduo sin-gular e a própria base teórica do gular e a própria base teórica do indi-vidualismo como ideológica. De fato, vidualismo como ideológica. De fato, existem duas posições sobre esta existem duas posições sobre esta ques-tão, uma mais radical que a outra. A tão, uma mais radical que a outra. A primeira se contenta em afirmar: sim, primeira se contenta em afirmar: sim, em tempos idos, na era clássica do em tempos idos, na era clássica do capi-talismo competitivo, no apogeu da talismo competitivo, no apogeu da fa-mília nuclear e na ascensão da burguesia mília nuclear e na ascensão da burguesia como classe social hegemônica, existia como classe social hegemônica, existia isso que se chama individualismo, isso que se chama individualismo, exis-tiam sujeitos individuais. Mas hoje, na tiam sujeitos individuais. Mas hoje, na era do capitalismo corporativo, do assim era do capitalismo corporativo, do assim chamado homem-da-organização, das chamado homem-da-organização, das bu-rocracias empresariais e estatais, da rocracias empresariais e estatais, da explosão demográfica — hoje não mais explosão demográfica — hoje não mais existe o velho sujeito individual burguês. existe o velho sujeito individual burguês.

Há também uma segunda posição, a Há também uma segunda posição, a mais radical, que pode ser considerada mais radical, que pode ser considerada a posição pós-estruturalista. Acrescenta: a posição pós-estruturalista. Acrescenta: o sujeito individual burguês não é o sujeito individual burguês não é so- so-mente coisa do passado como também mente coisa do passado como também não passa de um mito, antes de mais não passa de um mito, antes de mais nada ele

nada ele nuncanunca existiu realmente; nuncaexistiu realmente; nunca existiram sujeitos autônomos desse tipo. existiram sujeitos autônomos desse tipo. Este construto não passaria, mais Este construto não passaria, mais preci-samente, de uma mistificação filosófica samente, de uma mistificação filosófica e cultural que procurava persuadir as e cultural que procurava persuadir as pessoas de que elas "tinham" sujeitos pessoas de que elas "tinham" sujeitos individuais e possuíam tal identidade individuais e possuíam tal identidade pessoal singular.

pessoal singular.

Para nossos propósitos, não é Para nossos propósitos, não é parti-cularmente importante decidir qual cularmente importante decidir qual des-sas posições é a correta (ou melhor, qual sas posições é a correta (ou melhor, qual delas é mais produtiva e interessante). delas é mais produtiva e interessante). Ao invés, o que precisamos reter é um Ao invés, o que precisamos reter é um dilema estético: se está esgotada a dilema estético: se está esgotada a expe-riência e a ideologia do eu singular, uma riência e a ideologia do eu singular, uma experiência e uma ideologia que experiência e uma ideologia que susten-tavam a prática estilística da tavam a prática estilística da moderni-dade clássica, já não fica claro o que dade clássica, já não fica claro o que artistas e escritores do período atual artistas e escritores do período atual afi-nal estariam fazendo. Fica claro, nal estariam fazendo. Fica claro, con-tudo, que os modelos mais antigos — tudo, que os modelos mais antigos — Picasso, Proust, T. S. Eliot — não Picasso, Proust, T. S. Eliot — não fun-cionam mais (ou são propriamente cionam mais (ou são propriamente no-civos), visto que ninguém mais possui civos), visto que ninguém mais possui essa espécie de mundo privado e único, essa espécie de mundo privado e único, nem um estilo para expressá-lo. E isto nem um estilo para expressá-lo. E isto talvez não seja uma questão apenas talvez não seja uma questão apenas "psicológica": temos também de levar "psicológica": temos também de levar em conta o peso imenso de setenta ou em conta o peso imenso de setenta ou oitenta anos da própria modernidade oitenta anos da própria modernidade clássica. Há mais uma razão pela qual clássica. Há mais uma razão pela qual os artistas e os escritores do presente os artistas e os escritores do presente não conseguirão mais inventar novos não conseguirão mais inventar novos estilos e mundos — é que todos estes estilos e mundos — é que todos estes   já foram inventados; o número de   já foram inventados; o número de com-binações possíveis é restrito; os estilos binações possíveis é restrito; os estilos mais singulares já foram concebidos. mais singulares já foram concebidos. Assim, a influência da tradição estética Assim, a influência da tradição estética de modernidade — agora morta — de modernidade — agora morta — "pe-sa como um pe"pe-sadelo sobre o cérebro sa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos", como dizia Marx em dos vivos", como dizia Marx em con-texto diferente.

texto diferente.

Daí, repetimos, o pastiche: no Daí, repetimos, o pastiche: no mun-do em que a inovação estilística não é do em que a inovação estilística não é mais possível, tudo o que restou é mais possível, tudo o que restou é imi-tar estilos mortos, falar através de tar estilos mortos, falar através de más-caras e com as vozes dos estilos do caras e com as vozes dos estilos do mu-seu imaginário. Mas isto significa que a seu imaginário. Mas isto significa que a arte pós-moderna ou contemporânea arte pós-moderna ou contemporânea de-verá ser arte sobre a arte de um novo verá ser arte sobre a arte de um novo modo; mais ainda, isto significa que modo; mais ainda, isto significa que uma de suas mensagens essenciais uma de suas mensagens essenciais impli-cará necessariamente a falência da cará necessariamente a falência da

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esté-tica e da arte, a falência do novo, o tica e da arte, a falência do novo, o encarceramento no passado.

encarceramento no passado.

Como isto talvez pareça muito Como isto talvez pareça muito abstra-to, desejo apresentar alguns exemplos, to, desejo apresentar alguns exemplos, um dos quais é tão presente que, um dos quais é tão presente que, rara-mente, ocorreria relacioná-lo às várias mente, ocorreria relacioná-lo às várias manifestações da arte erudita aqui manifestações da arte erudita aqui dis-cutida. Esta prática específica do cutida. Esta prática específica do pasti-che não é "culta", mas existe no próprio che não é "culta", mas existe no próprio interior da cultura de massa e é interior da cultura de massa e é generi-camente conhecida como o "filme de camente conhecida como o "filme de nostalgia" (o que os franceses com nostalgia" (o que os franceses com pre-cisão denominam

cisão denominam la mode rétro).la mode rétro). TemosTemos de imaginar esta categoria da maneira de imaginar esta categoria da maneira mais ampla possível: não há dúvida que, mais ampla possível: não há dúvida que, em termos estritos, ela consiste em termos estritos, ela consiste tão-mente de filmes sobre o passado e mente de filmes sobre o passado e so-bre momentos geracionais deste passado. bre momentos geracionais deste passado. Assim, um dos filmes que inauguraram Assim, um dos filmes que inauguraram este novo "gênero" (se chegar a tanto) este novo "gênero" (se chegar a tanto) foi

foi  American Graffiti,  American Graffiti, de George Lucas,de George Lucas, que, em 1973, procurou resgatar toda que, em 1973, procurou resgatar toda a atmosfera e as singularidades a atmosfera e as singularidades estilísti-cas dos anos 50 nos Estados Unidos, dos cas dos anos 50 nos Estados Unidos, dos Estados Unidos da era Eisenhower. Estados Unidos da era Eisenhower. Chi- Chi-natown,

natown, o conhecido filme de Polanski,o conhecido filme de Polanski, procede da mesma maneira em relação procede da mesma maneira em relação aos anos 30, assim como faz

aos anos 30, assim como faz O Confor-O Confor-mista

mista de Bertolucci para o contexto ita-de Bertolucci para o contexto ita-liano e europeu da mesma época — a liano e europeu da mesma época — a era fascista na Itália — etc. Poderíamos era fascista na Itália — etc. Poderíamos passar horas enumerando estes filmes: passar horas enumerando estes filmes: por que chamá-los pastiche? Não seriam por que chamá-los pastiche? Não seriam antes obras pertencentes a um gênero antes obras pertencentes a um gênero mais tradicional, conhecido como filme mais tradicional, conhecido como filme histórico — obras que talvez pudessem histórico — obras que talvez pudessem ser mais facilmente analisadas pela ser mais facilmente analisadas pela am-pliação desta outra forma bastante pliação desta outra forma bastante co-nhecida que é a do romance histórico? nhecida que é a do romance histórico? enho minhas razões para enho minhas razões para jul-gar que precisamos de novas gar que precisamos de novas categorias para tais filmes. categorias para tais filmes. Permitam-me, antes, cometer Permitam-me, antes, cometer um disparate: digamos que eu seja de um disparate: digamos que eu seja de opinião que

opinião que Guerra nas EstrelasGuerra nas Estrelas éé tam- tam-bém um filme de nostalgia. O que bém um filme de nostalgia. O que signi-ficaria isto? Presumo que possamos estar ficaria isto? Presumo que possamos estar de acordo quanto ao fato de que ele de acordo quanto ao fato de que ele não é um filme histórico sobre nosso não é um filme histórico sobre nosso próprio passado intergaláctico. próprio passado intergaláctico. Permi-tam-se colocá-lo de modo um pouco tam-se colocá-lo de modo um pouco di-ferente: uma das experiências culturais ferente: uma das experiências culturais mais importantes para as gerações que mais importantes para as gerações que cresceram entre os anos 30 e 50 era o cresceram entre os anos 30 e 50 era o seriado da vesperal de sábado tipo Buck seriado da vesperal de sábado tipo Buck Rogers — vilões de mundos Rogers — vilões de mundos desconcidos, verdadeiros heróis americanos, cidos, verdadeiros heróis americanos, he-roínas em apuros, o raio da morte ou a roínas em apuros, o raio da morte ou a

caixa do fim do mundo, e a atribulação caixa do fim do mundo, e a atribulação à beira do abismo, no instante final, cujo à beira do abismo, no instante final, cujo miraculoso desenlace haveria de ser visto miraculoso desenlace haveria de ser visto no sábado seguinte.

no sábado seguinte. Guerra nas EstrelasGuerra nas Estrelas

reinventa esta experiência sob a forma reinventa esta experiência sob a forma do pastiche: isto é, não mais existe do pastiche: isto é, não mais existe qual-quer motivação para uma paródia de tais quer motivação para uma paródia de tais seriados, pois eles acabaram há muito seriados, pois eles acabaram há muito tempo.

tempo. Guerra nas Estrelas,Guerra nas Estrelas, ao contrá-ao contrá-rio de uma sátira insossa dessas formas rio de uma sátira insossa dessas formas   já mortas, satisfaz um anseio profundo   já mortas, satisfaz um anseio profundo (talvez dissesse mesmo reprimido) de (talvez dissesse mesmo reprimido) de vivê-las novamente: é um objeto vivê-las novamente: é um objeto com-plexo através do qual, em um plano plexo através do qual, em um plano pri-meiro, crianças e adolescentes podem meiro, crianças e adolescentes podem fruir plenamente as aventuras, enquanto fruir plenamente as aventuras, enquanto o público adulto pode saciar um desejo o público adulto pode saciar um desejo mais profundo e propriamente mais profundo e propriamente nostálgi-co de retornar àquele período antigo, de co de retornar àquele período antigo, de viver uma vez mais suas estranhas viver uma vez mais suas estranhas enge-nhocas estéticas do passado. Este é, pois, nhocas estéticas do passado. Este é, pois,

metonimicamente,

metonimicamente, um filme de nostalgiaum filme de nostalgia ou um filme histórico: não reinventa, ou um filme histórico: não reinventa, diferentemente de

diferentemente de   American Graffiti,  American Graffiti,

uma imagem do passado em sua uma imagem do passado em sua totali-dade vivida; ao contrário, ele reinventa dade vivida; ao contrário, ele reinventa a sensação e a forma dos objetos de arte a sensação e a forma dos objetos de arte característicos de uma época passada (os característicos de uma época passada (os seriados), procurando despertar um seriados), procurando despertar um sen-tido do passado que se associa a tais tido do passado que se associa a tais objetos. Por sua vez,

objetos. Por sua vez, Caçadores da ArcaCaçadores da Arca Perdida

Perdida ocupa uma posição intermediá-ocupa uma posição intermediá-ria: em certa medida é

ria: em certa medida é sobresobre os anos 30os anos 30 e 40, mas na verdade também concebe e 40, mas na verdade também concebe metonimicamente esse período, metonimicamente esse período, medi-ante suas mais características estórias ante suas mais características estórias de aventura (que não são mais as de aventura (que não são mais as nossas).

nossas).

Permitam-me, agora, discutir mais Permitam-me, agora, discutir mais uma interessante anomalia que pode nos uma interessante anomalia que pode nos levar adiante nesta compreensão do levar adiante nesta compreensão do fil-me de nostalgia em particular e do me de nostalgia em particular e do pas-tiche em geral. Nesta anomalia tiche em geral. Nesta anomalia inclui-se um filme recente chamado

se um filme recente chamado CorposCorpos   Ardentes (Body Heat),

  Ardentes (Body Heat),o qual, como foio qual, como foi bastante assinalado pelos críticos, é uma bastante assinalado pelos críticos, é uma espécie de refilmagem remota de

espécie de refilmagem remota de OO  Des-  Des-tino Bate à Porta (The Postman Always tino Bate à Porta (The Postman Always   Rings Twice)

  Rings Twice) ouou Pacto de Sangue (Dou-Pacto de Sangue (Dou-ble Indemnity)

ble Indemnity) (a cópia alusiva e factí-(a cópia alusiva e factí-cia de velhas tramas não passa de outro cia de velhas tramas não passa de outro traço de pastiche). Além disso,

traço de pastiche). Além disso, CorposCorpos  Ardentes

 Ardentes não é, rigorosamente, um fil-não é, rigorosamente, um fil-me de nostalgia, uma vez que se passa me de nostalgia, uma vez que se passa em cenário contemporâneo, numa em cenário contemporâneo, numa peque-na cidade da Flórida, perto de Miami. na cidade da Flórida, perto de Miami. Por outro lado, sua contemporaneidade Por outro lado, sua contemporaneidade no detalhe específico é

no detalhe específico é , , no fundo, aindano fundo, ainda mais ambígua: os créditos — sempre mais ambígua: os créditos — sempre nossa primeira pista — estão nossa primeira pista — estão

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desenha-dos com letras em estilo

dos com letras em estilo art-décoart-déco dosdos anos 30, o que não pode senão anos 30, o que não pode senão estimu-lar reações nostálgicas (primeiramente a lar reações nostálgicas (primeiramente a

Chinatown,

Chinatown, sem dúvida, mas também asem dúvida, mas também a alguma referência histórica além do alguma referência histórica além do fil-me). Afinal, o próprio estilo do herói me). Afinal, o próprio estilo do herói é ambíguo: William Hurt é um novo é ambíguo: William Hurt é um novo astro, mas que não tem nada do astro, mas que não tem nada do incon-fundível estilo da geração precedente de fundível estilo da geração precedente de superestrelas (Steve McQueen ou superestrelas (Steve McQueen ou mes-mo Jack Nicholson), melhor ainda, sua mo Jack Nicholson), melhor ainda, sua máscara aqui é uma espécie de mescla máscara aqui é uma espécie de mescla de características desses últimos com o de características desses últimos com o papel mais antigo de um tipo em geral papel mais antigo de um tipo em geral associado a Clark Gable.

associado a Clark Gable.

Há, portanto, uma tênue sensação de Há, portanto, uma tênue sensação de arcaísmo em relação a tudo. O arcaísmo em relação a tudo. O especta-dor começa a se perguntar por que esta dor começa a se perguntar por que esta estória, que poderia se passar em estória, que poderia se passar em qual-quer parte, ambienta-se em uma quer parte, ambienta-se em uma cidade-zinha da Flórida, a despeito de suas zinha da Flórida, a despeito de suas re-ferências contemporâneas. Após um certo ferências contemporâneas. Após um certo tempo, começa-se a perceber que o tempo, começa-se a perceber que o cená-rio intecená-riorano tem uma função rio interiorano tem uma função estraté-gica crucial: permitir que o filme gica crucial: permitir que o filme pres-cinda da maioria dos sinais e referências cinda da maioria dos sinais e referências que pudessem ser associados ao mundo que pudessem ser associados ao mundo contemporâneo, à sociedade de consumo contemporâneo, à sociedade de consumo —

— utensílios, artefatos, utensílios, artefatos, especulações, oespeculações, o mundo material do capitalismo mundo material do capitalismo avança-do. Em termos precisos, então, seus do. Em termos precisos, então, seus obje-tos

tos (carros, (carros, por por exemplo) exemplo) são são produtosprodutos dos anos 80, mas tudo no filme conspira dos anos 80, mas tudo no filme conspira para borrar essa referência imediata e para borrar essa referência imediata e contemporânea, possibilitando sua contemporânea, possibilitando sua aceita-ção como uma obra de nostalgia também ção como uma obra de nostalgia também —

— como uma como uma ambientação da narrativaambientação da narrativa em algum passado nostálgico indefinível, em algum passado nostálgico indefinível, uma década de 30 eterna, digamos, fora uma década de 30 eterna, digamos, fora da história. Parece-me extremamente da história. Parece-me extremamente sintomático constatar que o estilo dos sintomático constatar que o estilo dos fil-mes de nostalgia esteja invadindo e mes de nostalgia esteja invadindo e colo-nizando até mesmo os filmes atuais que nizando até mesmo os filmes atuais que têm cenários contemporâneos: como se, têm cenários contemporâneos: como se, por alguma razão, fôssemos hoje por alguma razão, fôssemos hoje incapa-zes de focalizar nosso próprio presente, zes de focalizar nosso próprio presente, como se tivéssemos nos tornado inaptos como se tivéssemos nos tornado inaptos para elaborar representações estéticas de para elaborar representações estéticas de nossa própria experiência corrente. Se for nossa própria experiência corrente. Se for este o caso, trata-se de uma terrível este o caso, trata-se de uma terrível incri-minação à própria sociedade capitalista de minação à própria sociedade capitalista de consumo — ou, quando menos, de um consumo — ou, quando menos, de um sintoma alarmante e patológico de uma sintoma alarmante e patológico de uma sociedade

sociedade que que se se tornou tornou incapaz incapaz de de sese relacionar com o tempo e a história. relacionar com o tempo e a história.

Voltemos, assim, à questão: por que Voltemos, assim, à questão: por que o filme de nostalgia ou o pastiche o filme de nostalgia ou o pastiche preci-sam ser distinguidos do filme ou romance sam ser distinguidos do filme ou romance histórico antigo? (O melhor exemplo histórico antigo? (O melhor exemplo literári

literário o para toda essa para toda essa discussão teridiscussão teriaa

sido, a meu ver, os romances de E. L. sido, a meu ver, os romances de E. L. Doctorow —

Doctorow —  Ragtime, Ragtime, com sua atmos-com sua atmos-fera de passagem de século, e

fera de passagem de século, e Loon Lake, Loon Lake,

cuja maior parte transcorre nos anos 30. cuja maior parte transcorre nos anos 30. Mas estes, a meu ver, não são Mas estes, a meu ver, não são roman-ces históricos senão pela aparência. ces históricos senão pela aparência. Doc-torow é

torow é um artista sério e um dos pou-um artista sério e um dos pou-cos romancistas radicais, genuinamente cos romancistas radicais, genuinamente de esquerda, em ação hoje em dia. Não de esquerda, em ação hoje em dia. Não é nenhum desserviço a ele, contudo, é nenhum desserviço a ele, contudo, su-gerir que suas narrativas representam gerir que suas narrativas representam menos o nosso passado histórico do que menos o nosso passado histórico do que as nossas idéias ou estereótipos culturais as nossas idéias ou estereótipos culturais sobre esse mesmo passado.) A produção sobre esse mesmo passado.) A produção cultural foi empurrada para o interior da cultural foi empurrada para o interior da mente, para dentro do sujeito monádico: mente, para dentro do sujeito monádico:   já não mais fita diretamente, com seus   já não mais fita diretamente, com seus próprios olhos, o mundo real à procura próprios olhos, o mundo real à procura do referente; como na caverna de Platão, do referente; como na caverna de Platão, ela é forçada a buscar as suas imagens ela é forçada a buscar as suas imagens mentais do mundo nas paredes de seu mentais do mundo nas paredes de seu confinamento. O realismo que nos resta confinamento. O realismo que nos resta é um "realismo" que decorre da captação é um "realismo" que decorre da captação —

— chocante — deste confinamento e chocante — deste confinamento e dada consciência viva de que, por razões consciência viva de que, por razões espe-ciais de algum tipo, nos vemos ciais de algum tipo, nos vemos conde-nados a buscar o passado histórico nados a buscar o passado histórico atra-vés de nossas imagens

vés de nossas imagens pop pop e de nossose de nossos estereótipos a seu respeito, sendo que o estereótipos a seu respeito, sendo que o próprio passado permanece, para sempre, próprio passado permanece, para sempre, fora de alcance.

fora de alcance.

esejo agora retornar ao que esejo agora retornar ao que considero o segundo traço considero o segundo traço bá-sico da pós-modernidade, a sico da pós-modernidade, a sa-ber, sua específica relação com ber, sua específica relação com o tempo — o que se poderia chamar de o tempo — o que se poderia chamar de "textualidade" ou

"textualidade" ou écritureécriture — mas que— mas que eu prefiro discutir em termos das teorias eu prefiro discutir em termos das teorias correntes da esquizofrenia. correntes da esquizofrenia. Antecipada-mente quero refutar possíveis equívocos mente quero refutar possíveis equívocos quanto ao emprego feito aqui desta quanto ao emprego feito aqui desta pa-lavra: sua intenção é descritiva, e não lavra: sua intenção é descritiva, e não diagnóstica. Nunca me ocorreu que diagnóstica. Nunca me ocorreu que alguns dos artistas pós-modernos mais alguns dos artistas pós-modernos mais significativos — John Cage, John significativos — John Cage, John Ashbe-ry, Philippe Sollers, Robert Wilson, ry, Philippe Sollers, Robert Wilson, Andy Warhol, Ishmael Reed, Michael Andy Warhol, Ishmael Reed, Michael Snow e mesmo o próprio Samuel Beckett Snow e mesmo o próprio Samuel Beckett —

— sejam de sejam de alguma maneira esquizofrê-alguma maneira esquizofrê-nicos. Nem se trata de um diagnóstico nicos. Nem se trata de um diagnóstico do tipo cultura-e-personalidade de nossa do tipo cultura-e-personalidade de nossa sociedade e de sua arte: obviamente há sociedade e de sua arte: obviamente há coisas mais comprometedoras a dizer coisas mais comprometedoras a dizer con-tra o nosso sistema social do que permite tra o nosso sistema social do que permite o uso de uma psicologia de almanaque. o uso de uma psicologia de almanaque. Nem estou seguro de que a teoria da Nem estou seguro de que a teoria da esquizofrenia que vou esboçar — uma esquizofrenia que vou esboçar — uma teoria amplamente desenvolvida na obra teoria amplamente desenvolvida na obra

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do psicanalista francês Jacques Lacan — do psicanalista francês Jacques Lacan — é clinicamente precisa; o que pouco é clinicamente precisa; o que pouco importa aos meus propósitos.

importa aos meus propósitos.

A originalidade do pensamento de A originalidade do pensamento de La-can neste campo está no fato de haver can neste campo está no fato de haver considerado a esquizofrenia considerado a esquizofrenia substancial-mente como uma desordem de mente como uma desordem de lingua-gem, associando-a a toda uma teoria da gem, associando-a a toda uma teoria da aquisição da linguagem como o elo aquisição da linguagem como o elo esque-cido da concepção freudiana da formação cido da concepção freudiana da formação do psiquismo adulto. Para tanto, ele nos do psiquismo adulto. Para tanto, ele nos dá uma versão lingüística do complexo dá uma versão lingüística do complexo de Édipo, segundo a qual a rivalidade de Édipo, segundo a qual a rivalidade edipiana é interpretada não em termos edipiana é interpretada não em termos do indivíduo biológico, o rival das do indivíduo biológico, o rival das aten-ções maternas, mas em termos daquilo ções maternas, mas em termos daquilo que ele chama Nome-do-Pai, a autoridade que ele chama Nome-do-Pai, a autoridade paterna agora considerada como função paterna agora considerada como função lingüística. O que precisamos extrair lingüística. O que precisamos extrair disso é a idéia de que a psicose e, mais disso é a idéia de que a psicose e, mais particularmente, a esquizofrenia se particularmente, a esquizofrenia se for-mam a partir da deficiência infantil em mam a partir da deficiência infantil em aceder plenamente ao domínio da fala e aceder plenamente ao domínio da fala e da linguagem.

da linguagem.

Quanto à linguagem, o modelo Quanto à linguagem, o modelo laca-niano é um modelo estruturalista niano é um modelo estruturalista orto-doxo, baseado em uma concepção do doxo, baseado em uma concepção do signo lingüístico dotada de dois (ou signo lingüístico dotada de dois (ou tal-vez três) componentes. Um signo, uma vez três) componentes. Um signo, uma palavra, um texto são aqui modelizados palavra, um texto são aqui modelizados conforme o relacionamento de um conforme o relacionamento de um signi-ficante — uma materialidade, o som de ficante — uma materialidade, o som de uma palavra, a escrita de um texto — uma palavra, a escrita de um texto — com um significado, o

com um significado, o sentidosentido da materia-da materia-lidade da palavra ou do texto. O terceiro lidade da palavra ou do texto. O terceiro componente seria o assim chamado componente seria o assim chamado "refe-rente", o objeto "real" do mundo "real" rente", o objeto "real" do mundo "real" ao qual o signo remete — o gato real ao qual o signo remete — o gato real em oposição ao conceito de gato ou ao em oposição ao conceito de gato ou ao som "gato". Ocorre porém que existe em som "gato". Ocorre porém que existe em geral no estruturalismo uma tendência de geral no estruturalismo uma tendência de tratar está referência como uma espécie tratar está referência como uma espécie de mito, de tal modo que ninguém possa de mito, de tal modo que ninguém possa mais falar sobre o "real" de forma mais falar sobre o "real" de forma obje-tiva e exterior. Assim, o que nos resta tiva e exterior. Assim, o que nos resta é o próprio signo e seus dois é o próprio signo e seus dois componen-tes. Ao mesmo tempo, o estruturalismo tes. Ao mesmo tempo, o estruturalismo trata de refutar a velha concepção da trata de refutar a velha concepção da linguagem como nomeação (e.g. Deus deu linguagem como nomeação (e.g. Deus deu a linguagem a Adão com a finalidade de a linguagem a Adão com a finalidade de nomear os animais e as plantas do Éden), nomear os animais e as plantas do Éden), a qual envolve uma correspondência a qual envolve uma correspondência ter-mo-a-termo de cada significante com cada mo-a-termo de cada significante com cada significado. Ao adotar uma visão significado. Ao adotar uma visão estru-tural, com razão notamos que frases não tural, com razão notamos que frases não funcionam desse modo: não traduzimos funcionam desse modo: não traduzimos uma a uma as palavras ou significantes uma a uma as palavras ou significantes em termos de seu significado. Pelo em termos de seu significado. Pelo con-trário, o que lemos é

trário, o que lemos é a frase inteira, ea frase inteira, e é do

é do interrelaciinterrelaci onamento onamento de suas de suas pala-

pala-vras ou significantes que se deduz uma vras ou significantes que se deduz uma significação mais global — denominada significação mais global — denominada agora um "efeito-de-sentido". O agora um "efeito-de-sentido". O signifi-cado — talvez mesmo a ilusão ou a cado — talvez mesmo a ilusão ou a mi-ragem do significado e do sentido em ragem do significado e do sentido em geral — é um efeito produzido pelo geral — é um efeito produzido pelo interrelacionamento das materialidades interrelacionamento das materialidades significantes.

significantes.

Tudo isso nos coloca em condições de Tudo isso nos coloca em condições de compreender a esquizofrenia como um compreender a esquizofrenia como um distúrbio do relacionamento entre distúrbio do relacionamento entre signi-ficantes. Para Lacan, a experiência da ficantes. Para Lacan, a experiência da temporalidade, da temporalidade humana temporalidade, da temporalidade humana (passado, presente e memória), a (passado, presente e memória), a persis-tência da identidade pessoal através de tência da identidade pessoal através de meses e anos — a própria sensação meses e anos — a própria sensação vivi-da e existencial do tempo — são também da e existencial do tempo — são também um efeito de linguagem. Porque a um efeito de linguagem. Porque a lin-guagem possui um passado e um futuro, guagem possui um passado e um futuro, porque a frase se instala no tempo, é que porque a frase se instala no tempo, é que nós podemos adquirir aquilo que nos dá nós podemos adquirir aquilo que nos dá a impressão de uma experiência vivida e a impressão de uma experiência vivida e concreta do tempo. Mas já o concreta do tempo. Mas já o esquizofrê-nico não chega a conhecer dessa maneira nico não chega a conhecer dessa maneira a articulação da linguagem, nem a articulação da linguagem, nem conse-gue ter a nossa experiência de gue ter a nossa experiência de continui-dade temporal tampouco, estando dade temporal tampouco, estando con-denado, portanto, a viver em um denado, portanto, a viver em um pre-sente perpétuo, com o qual os diversos sente perpétuo, com o qual os diversos momentos de seu passado apresentam momentos de seu passado apresentam pouca conexão e no qual não se pouca conexão e no qual não se vislum-bra nenhum futuro no horizonte. Em bra nenhum futuro no horizonte. Em outras palavras, a experiência outras palavras, a experiência esquizofrê-nica é uma experiência da materialidade nica é uma experiência da materialidade significante isolada, desconectada e significante isolada, desconectada e des-contínua, que não consegue encadear-se contínua, que não consegue encadear-se em uma seqüência coerente. O em uma seqüência coerente. O esquizo-frênico não consegue desse modo frênico não consegue desse modo reco-nhecer sua identidade pessoal no nhecer sua identidade pessoal no refe-rido sentido, visto que o sentimento de rido sentido, visto que o sentimento de identidade depende de nossa sensação da identidade depende de nossa sensação da persistência do "eu" e de "mim" persistência do "eu" e de "mim" atra-vés do tempo.

vés do tempo.

Por outro lado, o esquizofrênico Por outro lado, o esquizofrênico viven-cia mais do que nós, e com nitidez, uma cia mais do que nós, e com nitidez, uma experiência muito mais intensa de um experiência muito mais intensa de um definido instante do mundo, pois nosso definido instante do mundo, pois nosso próprio presente é sempre parte de algum próprio presente é sempre parte de algum conjunto mais amplo de projetos, o que conjunto mais amplo de projetos, o que nos obriga a focalizar e a selecionar nos obriga a focalizar e a selecionar nos-sas percepções. Em outras palavras, não sas percepções. Em outras palavras, não receptamos o mundo exterior receptamos o mundo exterior globalmen-te como uma visão indiferenciada: te como uma visão indiferenciada: esta-mos sempre empenhados em utilizá-lo, mos sempre empenhados em utilizá-lo, sempre enveredamos por ele, sempre sempre enveredamos por ele, sempre atentamos neste ou naquele objeto ou atentamos neste ou naquele objeto ou pessoa que nele está. Contudo, o pessoa que nele está. Contudo, o esqui-zofrênico não só é "ninguém" por não zofrênico não só é "ninguém" por não ter uma identidade pessoal, como seu ter uma identidade pessoal, como seu desempenho é nulo, pois ter projeto desempenho é nulo, pois ter projeto

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sig-nifica estar apto a se envolver com nifica estar apto a se envolver com algu-ma continuidade futura. O esquizofrênico ma continuidade futura. O esquizofrênico está sujeito desse modo a uma visão está sujeito desse modo a uma visão indi-ferenciada do mundo no presente, uma ferenciada do mundo no presente, uma experiência que não é de modo algum experiência que não é de modo algum agradável:

agradável:

Eu me lembro muito bem o dia em Eu me lembro muito bem o dia em que aconteceu. Passávamos uma que aconteceu. Passávamos uma tempo-rada no campo e eu tinha ido sozinha rada no campo e eu tinha ido sozinha   passear como sempre fazia. De repente,   passear como sempre fazia. De repente, ao passar pela escola, ouvi uma canção ao passar pela escola, ouvi uma canção alemã, as crianças estavam tendo uma alemã, as crianças estavam tendo uma aula de canto. Fiquei escutando parada aula de canto. Fiquei escutando parada e naquele instante um estranho e naquele instante um estranho sentimen- sentimen-to me percorreu, um sentimensentimen-to difícil to me percorreu, um sentimento difícil de precisar mas parecido com aquilo que de precisar mas parecido com aquilo que depois eu haveria de conhecer muito bem depois eu haveria de conhecer muito bem

— uma desnorteante sensação de irreali-uma desnorteante sensação de irreali-dade. Eu me sentia como se nunca tivesse dade. Eu me sentia como se nunca tivesse visto a escola, ela se tornara tão grande visto a escola, ela se tornara tão grande quanto um quartel; as crianças que quanto um quartel; as crianças que tavam eram prisioneiros, forçados a tavam eram prisioneiros, forçados a can-tar. Era como se a escola e a canção tar. Era como se a escola e a canção das crianças estivessem separadas do das crianças estivessem separadas do resto do mundo. Ao mesmo tempo meu resto do mundo. Ao mesmo tempo meu olhar se deparou com um trigal cujos olhar se deparou com um trigal cujos limites não dava para discernir. A limites não dava para discernir. A vasti-dão amarela, ofuscando ao sol, dão amarela, ofuscando ao sol, juntamen-te com a cantiga das crianças te com a cantiga das crianças aprisiona-das no quartel-escola de pedra lisa das no quartel-escola de pedra lisa enche-ram-me de tal angústia que eu desatei ram-me de tal angústia que eu desatei a chorar. Voltei correndo para nosso a chorar. Voltei correndo para nosso jar- jar-dim e comecei a brincar de "transformar  dim e comecei a brincar de "transformar  as coisas naquilo que elas são", brincar  as coisas naquilo que elas são", brincar  de voltar à realidade, em suma. Foi a de voltar à realidade, em suma. Foi a   primeira manifestação daqueles   primeira manifestação daqueles elemen-tos que viriam sempre a estar presentes tos que viriam sempre a estar presentes em posteriores sensações de irrealidade: em posteriores sensações de irrealidade: vastidão sem limites, luz brilhante, vastidão sem limites, luz brilhante, su-  perfície lisa e cintilante das coisas.   perfície lisa e cintilante das coisas.

(Re-nee Sechehaye,

nee Sechehaye, Autobiografia de umaAutobiografia de uma Moça Esquizofrênica.)

Moça Esquizofrênica.)

Notem como as continuidades Notem como as continuidades tempo-rais são quebradas, a experiência do rais são quebradas, a experiência do pre-sente torna-se assoberbante e sente torna-se assoberbante e poderosa-mente vivida e "material": o mundo mente vivida e "material": o mundo sur-ge ante o esquizofrênico com alta ge ante o esquizofrênico com alta inten-sidade, contendo uma misteriosa sidade, contendo uma misteriosa sobre-carga afetiva, resplandecendo de energia carga afetiva, resplandecendo de energia alucinatória. Porém, o que parecia uma alucinatória. Porém, o que parecia uma experiência das mais desejáveis — um experiência das mais desejáveis — um aumento de nossas percepções, uma aumento de nossas percepções, uma intensificação libidinal ou alucinógena de intensificação libidinal ou alucinógena de nosso ramerrão normal e de nossas nosso ramerrão normal e de nossas situa-ções comuns — é sentido aqui como ções comuns — é sentido aqui como per-da, como "irrealidade".

da, como "irrealidade".

O que desejo sublinhar, contudo, é O que desejo sublinhar, contudo, é precisamente o modo pelo qual o precisamente o modo pelo qual o

signi-ficante isolado se torna sempre mais ficante isolado se torna sempre mais ma-terial — ou, melhor ainda,

terial — ou, melhor ainda, literalliteral —,—, sempre mais vívido em termos sensórios, sempre mais vívido em termos sensórios, quer a nova experiência seja atraente quer a nova experiência seja atraente quer atemorizante. A mesma coisa pode quer atemorizante. A mesma coisa pode ser demonstrada no domínio da ser demonstrada no domínio da lingua-gem: o que o distúrbio esquizofrênico da gem: o que o distúrbio esquizofrênico da linguagem faz a cada palavra linguagem faz a cada palavra remanes-cente é reorientar o sujeito ou o falante cente é reorientar o sujeito ou o falante a dirigir uma atenção ainda mais a dirigir uma atenção ainda mais litera- litera-lizante para cada uma delas. Ao passo lizante para cada uma delas. Ao passo que, na fala normal, procuramos penetrar que, na fala normal, procuramos penetrar a materialidade das palavras (suas a materialidade das palavras (suas estra- estra-nhas sonoridades, sua aparência nhas sonoridades, sua aparência impres-sa, meu timbre de voz e especial acento, sa, meu timbre de voz e especial acento, e assim por diante) em direção ao seu e assim por diante) em direção ao seu sentido. Ultrapassado o sentido, a sentido. Ultrapassado o sentido, a mate-rialidade das palavras se torna obsessiva, rialidade das palavras se torna obsessiva, como ocorre quando crianças repetem como ocorre quando crianças repetem sem cessar uma mesma palavra até seu sem cessar uma mesma palavra até seu sentido desaparecer e ela adquirir um sentido desaparecer e ela adquirir um fascínio ininteligível. Para retomar nossa fascínio ininteligível. Para retomar nossa descrição anterior — um significante que descrição anterior — um significante que perdeu seu significado se transforma com perdeu seu significado se transforma com isso em imagem.

isso em imagem.

sta longa digressão sobre sta longa digressão sobre esqui-zofrenia nos permite zofrenia nos permite acrescen-tar agora um dado que não tar agora um dado que não podia ser tratado em nossa podia ser tratado em nossa exposição anterior — a saber, a própria exposição anterior — a saber, a própria temporalidade. Para tanto, devemos temporalidade. Para tanto, devemos des-viar nossa discussão da pós-modernidade viar nossa discussão da pós-modernidade das artes visuais para as artes temporais das artes visuais para as artes temporais — para música, poesia e certas — para música, poesia e certas modali-dades de textos narrativos como os de dades de textos narrativos como os de Beckett. Alguém que já ouviu a música Beckett. Alguém que já ouviu a música de John Cage pode perfeitamente ter de John Cage pode perfeitamente ter vivenciado uma experiência similar vivenciado uma experiência similar àque-las que acabamos de evocar: frustração las que acabamos de evocar: frustração e desespero — a audição de um único e desespero — a audição de um único acorde ou nota seguidos de um silêncio acorde ou nota seguidos de um silêncio tão longo que a memória não pode mais tão longo que a memória não pode mais reter aquilo que acabou de ouvir; enfim, reter aquilo que acabou de ouvir; enfim, um silêncio condenado ao esquecimento um silêncio condenado ao esquecimento a cada novo e estranho presente sonoro, a cada novo e estranho presente sonoro, o qual também vai desaparecer. Esta o qual também vai desaparecer. Esta experiência podia ser ilustrada com experiência podia ser ilustrada com mui-tos tipos de produção cultural tos tipos de produção cultural contem-porânea. Selecionei um texto de um porânea. Selecionei um texto de um poeta mais jovem, em parte porque seu poeta mais jovem, em parte porque seu "grupo" ou "escola", conhecido como "grupo" ou "escola", conhecido como Poetas da Linguagem, tem feito Poetas da Linguagem, tem feito experi-mentos de várias naturezas com a mentos de várias naturezas com a des-continuidade temporal (aqui descrita em continuidade temporal (aqui descrita em termos da linguagem esquizofrênica), o termos da linguagem esquizofrênica), o que é fundamental tanto para sua que é fundamental tanto para sua expe-rimentação lingüística quanto para aquilo rimentação lingüística quanto para aquilo que eles gostam de chamar "Frase que eles gostam de chamar "Frase

Referências

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