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A telenovela como uma forma de ritual na sociedade brasileira 1

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Academic year: 2021

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A telenovela como uma forma de ritual na sociedade brasileira

1 ALMEIDA, Regina Célia Bichara Varella de (doutoranda em Comunicação) 2 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio/Rio de Janeiro

Resumo: Este trabalho de investigação se propõe a refletir sobre a possibilidade da sociedade brasileira

realizar uma espécie de ritual ao assistir, diariamente, aos capítulos de uma telenovela veiculada em horário considerado nobre por um canal de televisão aberto. Para empreender essa pesquisa, partimos dos conceitos de ritual desenvolvidos por Émile Durkheim, Roberto DaMatta e outros antropólogos e sociólogos citados ao longo do texto. Examinamos também, o papel da televisão no Brasil, especialmente da Rede Globo por ser a maior produtora de teledramaturgia no país. Através de um histórico da telenovela buscamos entender como ela se transformou num dos programas símbolos da cultura de massa sendo consumida pelas diversas classes que formam a nossa sociedade.

Palavras-chave: televisão; telenovela; ritual.

Corpo do texto

“Uma sociedade é o mais poderoso feixe de forças físicas e morais cujo espetáculo a natureza nos oferece.” (1996, pág. 497). A partir desse pensamento de Émile Durkheim, pretendo lançar um olhar sobre a sociedade brasileira através do que considero uma espécie de ritual que há mais de 40 anos junta milhões de pessoas em torno de uma deusa chamada televisão. O mágico ou feiticeiro que conduz esse ritual, capaz de tal proeza, é o autor da telenovela que consegue atingir, praticamente, todas as classes sociais através de histórias recheadas com amor, drama, comédia, suspense e muita emoção.

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do 10º Encontro Nacional de História da Mídia, 2015.

2 Doutoranda de Comunicação da PUC-Rio. Professora da Universidade Estácio de Sá há 15 anos além de experiência profissional de 18 anos na Rede Globo de Televisão na área de Programação e Mídia. reginavarella@globo.com

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Para Radccliffe Brown,

“... A sociedade consiste de uma quantidade de indivíduos ligados numa rede de relações sociais. Existe relação social entre duas ou mais pessoas quando se verifica alguma harmonização de seus interesses individuais, por alguma convergência de interesses e pela limitação ou ajuste de interesses divergentes.” (1973, p. 175)

Ao longo de sua história de mais de 60 anos em nosso país, a televisão desempenha um papel extremamente importante na sociedade brasileira. Através de uma programação que os produtores de TV dizem abranger toda a realidade nacional, temos a sensação de estarmos juntos na construção simbólica dessa mesma realidade. Assim, podemos dizer que a televisão se tornou o “terreno cultural” comum do brasileiro e suas práticas culturais se apresentam como narrativas.

Mas, porque narrar é importante? O pensamento só é elaborado na medida em que é narrado. Podemos entender que vivemos a vida como uma grande narração. Definimos nossa identidade individual e coletiva através de histórias e nossa história individual se tece a partir de outras narrativas. Com o avanço das tecnologias de comunicação, grande parte da nossa subjetividade passa a ser composta pelo nosso consumo de mídia, especialmente pela televisão.

Não podemos negar que, ainda hoje em dia, a televisão integra a população brasileira numa ordem social, reforça os valores dominantes oferecendo modelos de pensamento e comportamento. Para Dominique Wolton, “... a televisão é um fator de identidade cultural e de integração nacional, devido à dupla condição de ser uma televisão assistida por todas as classes sociais e de ser um espelho da identidade nacional.” (1996).

Toda a tradição das artes aponta para uma característica comum do ser humano: o gosto de contar histórias. Nesse sentido, a narrativa da telenovela se insere dentro de uma tradição muito antiga. Para Walter Benjamin, em seu texto O narrador “... contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo.” (2012, p.205)

No século XX o avanço tecnológico das comunicações no Brasil gera questões importantes pelo fato de não haver uma simultaneidade, também social, do país com o resto do mundo. Para Milton Santos (2000), uma técnica nunca é só uma

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técnica. Ela vai alterar toda a sociedade que vai se mover buscando atingir pessoas que não vivem a mesma realidade social.

Programa símbolo da cultura de massas, no seu viés televisivo, a telenovela consegue obter sucesso de audiência, desde o seu surgimento até os dias de hoje, por ser uma narrativa melodramática que além de se preocupar com a recepção, se alimenta dessa recepção e só existe se satisfizer, em vários sentidos, essa recepção.

Hoje a telenovela brasileira é um produto cada vez mais distante do modelo tradicional do qual se originou. Ao diminuir a influência do folhetim melodramático cubano através de uma atualização dessa estrutura e escolher os temas da realidade nacional, a telenovela se transforma de tal maneira que passa a estabelecer os programas mínimos de aspirações de todas as classes sociais (seja o encontro de um amor verdadeiro ou uma aspiração financeira).

Segundo Renata Pallottini (1998), a telenovela herda do romance-folhetim uma de suas principais características: a redundância. No século XIX, ela foi usada na recapitulação da história para os leitores esquecidos ou de primeira viagem e, atualmente, a redundância é uma arma na disputa pela atenção do telespectador.

Como uma narrativa audiovisual a telenovela se estrutura em capítulos que por sua vez são semelhantes a um conto. O clímax encontra-se normalmente no final de cada capítulo, induzindo o espectador a assistir no dia seguinte a continuação da trama. O gênero ficcional da telenovela é uma mediação com a nossa realidade, possibilitando um diálogo inserido em uma narrativa de momentos vividos pelo público, com a situação que os personagens vivem na história.

Entendemos que o gênero é uma mediação entre o produtor (o texto) e o receptor. Quando se trabalha com gênero, estamos trabalhando com graus de repetições. É pela semelhança, pela repetição de determinadas características que se define o gênero. No caso da cultura de massa, o gênero é sempre um mecanismo de reconhecimento. Segundo Paul Ricoeur, “... uma estética de recepção não pode incluir o problema da comunicação sem incluir também o de referência. O que é comunicado é, em última instância, para além do sentido de uma obra, o mundo que ela projeta e que constitui seu horizonte” (2010).

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A telenovela tornou-se um objeto de estudo importante na observação de como ela influencia as pessoas e como se tornou um dos produtos de maior prestígio da televisão. A telenovela é capaz de interferir sobre comportamentos, valores, hábitos e até mesmo a linguagem do espectador. A narrativa da telenovela cria um mundo onde as pessoas participam da vida alheia. Mesmo vivendo dentro de nossas casas, temos a sensação de participar do mundo ficcional criado pela telenovela. O público é apresentado aos personagens, sabe de suas vidas e de seus problemas e a cada ação deles, o comentário sobre essa ação é discutido por uma grande parte da sociedade brasileira.

Para Dominique Wolton (1996), esse comentário gerado pelo consumo da telenovela é chamado de “laço social”, ou seja, conversa-se sobre o conteúdo da telenovela não só em família e com amigos, mas esse consumo comum possibilita também uma conversa entre desconhecidos e até entre pessoas de classes sociais diferentes que, a princípio, não teriam algo em comum.

A percepção da enorme audiência conquistada pela telenovela, desde o momento em que passou a ter a exibição diária de seus capítulos (a partir dos anos 1960), até os dias de hoje nos leva a considerar esse fato social como um ritual realizado por, praticamente, todas as classes na sociedade brasileira.

Mas, o que é um ritual? Para Roberto DaMatta, “... o ritual é um dos elementos mais importantes não só para transmitir e reproduzir valores, mas como instrumento de parto e acabamento desses valores, do que é prova a tremenda associação – ainda não devidamente estudada – entre ritual e poder.” (1997, p.30).

Segundo Mariza Peirano,

... Rituais podem ser vistos como tipos especiais de eventos, mais formalizados e estereotipados, mais estáveis e, portanto, mais suscetíveis à analise porque já recortados em termos nativos – eles possuem uma certa ordem que os estrutura, um sentido de acontecimento cujo propósito é coletivo, uma eficácia sui generis, e uma percepção de que são diferentes. (2006, p.10)

Para Adriane Rodolpho, “... os rituais podem ser uma ferramenta conceitual importante para a compreensão e interpretação de determinado grupo social, de seus valores e suas crenças” (2004, p.140). Vistas essas definições, entendo que acompanhar a exibição diária de um capítulo de telenovela, na sociedade brasileira,

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sempre teve a força de um ritual.

Incontáveis vezes, ao longo de sua história, a telenovela, especialmente a das oito da noite (exibida hoje às nove) veiculada pela Rede Globo, pautou as conversas em todo o Brasil. Algumas tramas chegaram a modificar o horário das sessões de cinemas e teatros. Os encontros de amigos, de casais, as festas eram marcadas para “depois da novela”. Quem matou Odete Roitman? (Vale Tudo) Como seria o fim de Maria de Fátima? (Vale Tudo) Quem matou Lineu? (Celebridade) Qual o final de Bebel, a garota de programa que se tornou a mocinha? (Paraíso Tropical) Será que Totó morreu mesmo? (Passione) E Nazaré, continuará a matar impunemente? (Senhora do

Destino). O que acontecerá com Carminha e Tufão? E com Nina e Jorginho em Avenida Brasil? Essas e outras questões foram amplamente discutidas, debatidas por milhares

de pessoas como se tratassem de pessoas reais que faziam parte do nosso cotidiano. Gilberto Braga, Silvio de Abreu, Agnaldo Silva, Manoel Carlos e João Emanuel Carneiro foram alguns dos mágicos ou feiticeiros que colocaram o país na frente da televisão, paralisado com suas tramas emocionantes e envolventes. O seleto e pequeno grupo de autores da telenovela das oito da Rede Globo ganha status de verdadeiros deuses que criam mundos, fazem nascer, morrer, amar, sofrer, enfim viver na tela da televisão uma infinidade de personagens que farão parte da vida de milhões de brasileiros. Como responsáveis pela condução desses rituais, eles são os atuais contadores de histórias tal qual uma Scherazade moderna.

Uma reportagem no final da edição do Jornal Nacional do dia da exibição do último capítulo de Avenida Brasil, mostrou várias cidades do país completamente desertas como numa final de Copa do Mundo de futebol. Não foi um fato isolado, mas apenas mais um final de telenovela que praticamente “parou” o Brasil numa espécie de ritual em que grande parte do país venerou no altar da deusa televisão.

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Referências

BALOUGH, Ana Maria. O discurso ficcional na TV. São Paulo: EDUSP, 2002.

BENJAMIN, Walter. I Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2012.

_______________. O narrador. In: I Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e

Política. São Paulo: Brasiliense, 2012.

DaMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema

brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Editora Livraria, 1996.

GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2011. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

LOPES, Maria Immacolata Vassalo; BORELLI, Silvia Helena Simões; RESENDE,Vera da Rocha. Vivendo com a telenovela. Mediações, recepção, teleficcionalidade. São Paulo: Summus Editorial, 2002.

MARTIN-BARBERO, Jésus. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.

_____________________. Os exercícios do ver: hegemonia audiovisual e ficção

televisiva. São Paulo: SENAC, 2004.

PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Moderna, 1998.

PEIRANO, Mariza. Temas ou teorias? O estatuto das noções de ritual e de

performance. In: Campus – Revista do PPGAS da Universidade Federal do Paraná.

Paraná, 2006.

RADCLIFFE-BROWN. Estrutura e função na sociedade primitiva. In: Coleção Antropologia. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1973.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 2 - A configuração do tempo na narrativa de

ficção. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

RODOLPHO, Adriane Luisa. Rituais, ritos de passagem e de iniciação: uma revisão da

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2004.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência

universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

WOLTON, Dominique. O elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996.

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