• Nenhum resultado encontrado

Jaldemir Vitorio, Jo, o Homem Que Colocou Deus Sob Suspeita

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Jaldemir Vitorio, Jo, o Homem Que Colocou Deus Sob Suspeita"

Copied!
16
0
0

Texto

(1)

Publicado por meio digital nos anais do 2º Congresso da ANPTECRE – BH, 24-27/08/2009 Tema: Fenomenologia e Hermenêutica do Religioso

ISSN 2175-9685

Jó: o homem que colocou Deus sob suspeita

Jaldemir Vitório SJ. Introdução.

Os discursos religiosos eivados de piedade podem, ao serem analisados detidamente, revelar uma total inconsistência. Falam de Deus a partir de chavões, slogans, discursos de segunda mão, sem se darem ao trabalho de verificar a veracidade das afirmações, confrontando-as com a vida real. Se “na prática, a teoria é outra”, urge refazer a teoria, de modo a se adequar à prática. Insistir numa teologia pouco aderente à realidade, por incapacidade ou medo de questioná-la, revela-se uma atitude inadequada para quem almeja ter uma fé adulta.

Jó teve a ousadia de se insubordinar contra as certezas religiosas de seu tempo, por julgar a doutrina da retribuição incapaz de oferecer uma luz para ajudá-lo a superar sua dramática situação de inocente punido por Deus. A doutrina da retribuição era taxativa ao explicar a situação em que se encontrava. Se fora acometido por males tão terríveis, só havia uma explicação: tratava-se de castigos por pecados atuais ou passados, embora desconhecidos ou imemoráveis.

Recusando aceitar essa explicação simplista, Jó é desafiado a pensar Deus para além das relações interesseiras promovidas pela teologia da retribuição. O caminho consistirá em estabelecer com Deus relações de pura gratuidade, sem esperar nada em troca. E, até mesmo, sendo vítima da pobreza, ser acometido por doenças e perdendo a inteira prole.

Jó compreende que a relação com Deus deverá ser a mais profunda possível. Entretanto, nada de barganhar com ele, transformando a relação numa espécie de comércio. Nada se deve esperar de material, senão a consciência de ser amado e valorizado por ele. A relação de total gratuidade com Deus previne o fiel de viver agitado por crises de dúvidas, ao lhe garantir certa distância em relação à dor e ao sofrimento. Jó foi capaz de por em xeque as imagens pré-fabricadas e facilitadas de Deus e, assim, abriu caminho para uma maneira diferente de fazer teologia.

A postura do autor de Jó abre espaço para a abordagem da fenomenologia e da hermenêutica do religioso, numa vertente bem peculiar. Trata-se, afinal de contas, de confrontar as variadas imagens de Deus, disponíveis no amplo mercado religioso, com a vivência real do ser humano, visando a desmascarar as falsas imagens de Deus. Ou seja,

(2)

aquelas que mantêm o ser humano cativo de um destino cruel, sempre em dívida com divindades caprichosas, às quais jamais será capaz de agradar. Ou, então, as que estabelecem com o ser humano uma relação de “toma lá dá cá”, em que o ser humano, quase sempre leva a pior. A teologia veiculada no livro de Jó segue a direção contrária: a verdadeira religião consiste em amar a Deus sem esperar nada em troca, nem riqueza, nem prole e nem vida longa. A Deus se ama porque é amável! Olvidar esta teologia fundamental terá como efeito fazer a religião, qualquer que seja, enveredar-se por caminhos perigosos.

1. Observações preliminares.

1ª – Jó é o personagem central de uma obra anônima. Não é o autor do livro. Não fala sobre a própria experiência. Outros falam a respeito dele. O livro é uma teologia narrativo-poética sobre o tema do sofrimento – “desgraça” – do justo. Subjacente está a questão da verdadeira religião. Como explicar o sofrimento do justo que teve conduta ilibada no trato com Deus?

Jó não é israelita. Logo, não professa a fé no Deus de Israel. De igual modo, os demais personagens são todos estrangeiros. Frisa-se, assim, o aspecto humano e universal da experiência de Jó. Apesar de estar na Bíblia, o livro não trata de algo exclusivo dos israelitas, mas da humanidade enquanto tal. Por outro lado, na literatura extrabíblica encontram-se personagens semelhantes a Jó. É possível que a tradição bíblica tenha se inspirado em tais personagens largamente conhecidos1.

2ª – Existem dois “Jós”: o da secção narrativa (Jó 1-2; 42,7-17) e o da secção poética (Jó 3,1-42,6) (WESTERMANN, 1983, p. 19-31). O primeiro é paciente e conformado; o segundo é inquieto e questionador. Um não se rebela contra o enigma do sofrimento do justo; o outro exige explicações vindas de Deus. Um enfrenta calado o sofrimento; o outro se envolve num bate-boca interminável com quem insiste em fazê-lo confessar pecados não cometidos. Ambos, porém, são exemplos de homens sábios e de fé comprovada.

O Jó crítico fala de si mesmo nestes termos: “Se recusei respeitar o direito de meu servo e de minha serva, quando reclamavam contra mim, que farei quando Deus se levantar para o julgamento, e que vou responder-lhe quando me interrogar?... Se neguei aos pobres o que eles queriam e fiz desfalecerem os olhos da viúva; se comi meu bocado de pão sozinho sem reparti-lo com o órfão... se desprezei a quem perecia por não ter roupa, e a um pobre sem cobertor; se não me agradeceram os seus ombros, por serem aquecidos com a lã de minhas ovelhas; se levantei a mão contra o órfão, ao ver que eu tinha apoio no tribunal... então, que meu ombro se desloque da clavícula e meu braço se desconjunte! Sim, porque o castigo de Deus seria o terror para mim, e eu nada poderia fazer

(3)

diante da sua grandeza” (Jó 31,12-23). É a descrição do ser humano plenamente fiel (CAESAR, 1999, p. 435-447).

3ª – A teologia da época tinha a justiça de Deus como um dado inquestionável. A fidelidade a Deus era penhor de “graça”. A infidelidade era causa de “desgraça”. Por isso, os sábios insistiam na necessidade de ser justo e piedoso, como forma de garantir o beneplácito divino. Evitava-se, assim, que o ser humano estivesse submetido à arbitrariedade da natureza. A “graça” era assegurada pela lei moral, garantida por Deus. Na direção contrária, qualquer deslize era suficiente para atrair o castigo divino. As opções morais funcionavam como instrumento para controlar e prever a história. A correlação entre ética e teologia era estreita: a ação de Deus, de certo modo, estava na dependência da ação humana. Resultava daí a teologia do Deus previsível, sempre pronto a dar às ações humanas a devida retribuição (OLIVEIRA, 2006; HAINEN, 1982).

4º – Colocar Deus sob suspeita significa questionar as imagens que se fazem de Deus. Afinal, ninguém se relaciona com Deus em si mesmo, de forma imediata, mas com as maneiras como a divindade é imaginada. Decorre, daí, a relação do ser humano com Deus. Uma imagem de Deus marcada pelo amor, pela misericórdia e pelo perdão nutrirá no coração humano uma postura de acolhida amorosa de Deus e disposição para ser caridoso, misericordioso e disposto a perdoar o semelhante. Na direção contrária, uma imagem de Deus fundada na punição e na vingança, mas, também, na retribuição, levará o ser humano a nutrir pavor em relação a Deus, a esperar retribuição pelo que faz de bem ou de mal e a agir da mesma forma na relação com o próximo. Pode-se, então, falar da conversão de Deus como transformação da imagem de Deus cultivada no coração humano.

2. Jó às voltas com uma questão teológica

O autor de Jó põe em xeque a teologia do Deus previsível, mostrando que a justiça retributiva – a doutrina da retribuição – não é o melhor caminho para se estabelecer uma relação saudável e autêntica com Deus. O motivo principal de sua inconveniência deve-se ao fato de pensar Deus na dependência do ser humano. Deus estaria cerceado e limitado em sua ação, impedido de agir para além dos limites estabelecidos pela ação humana, boa ou má2.

A questão subjacente ao livro do Jó pode ser formulada de variadas maneiras: É possível o ser humano amar a Deus por ele mesmo, sem visar a interesses? É possível uma piedade totalmente desinteressada? É possível estabelecer um vínculo com Deus sem nada esperar dele? É possível uma religião de pura gratuidade, onde seja banida a idéia de retribuição?3

2 “Desde o início, o problema principal do livro de Jó é colocado: o sentido da retribuição e da gratuidade da fé em

Deus e a ação que, daí, decorre... No contexto da doutrina da retribuição, a espera da recompensa falsifica a atitude e exerce, diabolicamente, o papel de um obstáculo no caminho para Deus” (RADERMAKERS, 1998, p. 62).

3 “Será que o pobre é capaz de fidelidade gratuita, independentemente de qualquer recompensa material? Questão grave,

(4)

Se a vida piedosa é uma postura interesseira, qualquer experiência de desgraça será suficiente para tornar insensata a vida humana, para quem não conseguiu responder a contento a questão levantada por Jó. A correção ética bastaria para prevenir toda sorte de sofrimento? É possível ao ser humano tornar-se imune a qualquer experiência de luto, de dor e de perda? A piedade é um antídoto suficientemente forte para mantê-los distantes?

A mentalidade popular não questiona o sofrimento do ímpio, do malvado, do marginal, do facínora, mesmo imposto ao arrepio da Lei. É comum ouvir imprecações contra os grupos de Direitos Humanos, acusados de defender bandidos, como se os bandidos não fossem seres humanos. Para muita gente, “bandido bom é bandido morto”. Ditos populares reforçam esta mentalidade: “Quem com ferro fere, com ferro será ferido”; “A justiça de Deus tarda, mas não falha”; “Quem planta vento, colhe tempestade”.

Tudo é diferente quando a desgraça se abate sobre uma pessoa de fé, alguém que se destaca por sua religiosidade e temor a Deus. Então, surgem interrogações deste tipo: “Por que eu?” “Eu não mereço isto”. “O que fiz de mal para que esta desgraça se abatesse sobre mim e sobre a minha família?”

Estas interrogações têm um claro pressuposto teológico. A pessoa suspeita de “desinformação” de Deus a seu respeito. “Se Deus, deveras, soubesse quem sou eu, com toda certeza não permitiria que isto acontecesse comigo!” Ou, então, de que Deus quer prová-la. Num grau radical, há quem chegue a acusar Deus de injusto, vingativo, perseguidor. Por que faz isto comigo e não com os outros?

Surgem daí não poucas crises de fé que, na pior das hipóteses, leva à negação de Deus, ao ateísmo. Aliás, a “desgraça” do mundo tem levado muitos a negar a existência de Deus, pois a misericórdia divina seria incompatível com a desgraça avassaladora, espalhada pela face da terra.

O livro de Jó não resolveu o problema que enfrentou, mas, pelo menos, insinuou a possibilidade de fazer teologia com senso crítico, sem se dar por seguro, simplesmente, pela repetição dos dados da tradição, tidos como inquestionáveis.

3. A graça na vida de Jó

A graça manifestou-se na vida de Jó como experiência da posse de bens, prole e saúde, sinais da benevolência divina.

“Havia na terra de Us um homem chamado Jó: era íntegro e reto, temia a Deus e mantinha-se afastado do mal. Tinha mantinha-sete filhos e três filhas. Possuía também mantinha-sete mil ovelhas, três mil

(5)

camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas, e servos em grande quantidade. Era, pois, o mais rico entre todos os habitantes do Oriente” (Jó 1,1-3).

O personagem Jó é identificado pelo viés teológico: temente a Deus e afastado do mal. Nisto consistia sua integridade e retidão. Tudo mais decorria desta raiz. A retribuição divina era visível na prole e na riqueza invejável. Tanto o aspecto social quanto o econômico era regido pela fé. Porque temia a Deus, tinha uma bela família e era rico. Só faltou a referência à idade avançada, como se dirá no final, para termos os três indicadores da bênção divina: riqueza, prole e idade avançada.

A piedade paterna foi herdada pelos filhos. Jó 1,4-5 alude à vida dos filhos vivida na alegria e na felicidade, em perfeita comunhão e na celebração de contínuas festas. O pai, por precaução, todos os dias oferecia holocausto na intenção de cada um dos filhos, para reparar possíveis pecados cometidos por eles, eventuais ofensas a Deus.

A narração apresenta Jó de maneira a impossibilitar qualquer acusação de impiedade. Ninguém conseguirá apontar-lhe malfeitos ou desvios de conduta. Prepara-se, assim, a etapa seguinte, quando os amigos pressioná-lo-ão a rebuscar na memória traços de eventuais faltas que, embora olvidadas ou imperceptíveis, acabarão por gerar-lhe os mais atrozes sofrimentos. Jó, pelo contrário, tem a nítida consciência de estar em dia com Deus. Não dava para pensar diferentemente.

4. A desgraça na vida de Jó

Se a graça é representada por riqueza e prole, a desgraça vai na contramão, privando Jó de ambos os sinais da benevolência divina. A narração segue, passo a passo, a desgraça recaindo sobre Jó, como numa tomada cinematográfica.

A experiência de perda é descrita em três momentos: perda dos bens, dos filhos e da saúde. É o castigo divino abatendo-se sobre o justo Jó. A narração insere um novo personagem – Satanás – o inimigo, que levanta suspeitas sobre a consistência da piedade de Jó, nos seguintes termos: Jó é justo e temente a Deus para ser agraciado com as bênçãos divinas (piedade interesseira) ou é agraciado por ser temente a Deus (piedade gratuita)? Satanás suspeita que a primeira alternativa é a verdadeira, enquanto Deus aposta na segunda. Por isto, entrega seu servo nas mãos de Satanás, para que verifique a pureza de intenção de Jó.

Na primeira cena celeste (Jó 1,6-12), Satanás levanta uma suspeita a respeito da observação de Deus sobre Jó: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, teme a Deus e afasta-se do mal”. Deus mesmo testemunha a favor da sinceridade de seu servo.

Satanás suspeita que a fidelidade de Jó deve-se à proteção – retribuição/“graça” – recebida de Deus. Daí ter declarado: “É sem motivo que Jó teme a Deus? Não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens? Abençoaste as obras de suas mãos, e

(6)

seus bens cresceram na terra. Porém, estende um pouco a tua mão e toca em todos os seus bens, para ver se não te lançará maldições na cara!” (Jó 1,9-10).

Deus, então, dá a Satanás a permissão para submeter Jó à prova, privando-o de todos os seus bens. E a desgraça começa a entrar na vida dele: seus bois e mulas são roubados e seus servos assassinados; suas ovelhas, juntamente com os pastores, são queimadas com fogo caído do céu; seus camelos são roubados por bandos de caldeus, que eliminam os servos que os guardavam. O terror vem de todas as partes: do norte e do sul, do céu e da terra, sem escapatória. Não havia como proteger os bens do rico Jó. Num piscar de olhos, foram reduzidos a nada!

E, agora, como reconhecê-lo abençoado, diante do claro sinal de castigo divino? Entretanto, este era apenas o início das dores.

A desgraça continua na perda dos filhos, esmagados sob os escombros da casa onde faziam festa, sobre a qual se abateu um terrível furacão. Perde-se mais um sinal da benevolência divina: a prole. Portanto, Jó não terá mais quem lhe conserve a memória. Está fadado a ser esquecido. Quem quererá falar de um justo privado dos sinais exteriores de bênção e reduzido à pobreza e sem descendência? Em suma, um homem castigado por Deus.

Ambas as cenas aludem a experiências exteriores, tendo Jó permanecido incólume. O fato de ter se mantido firme, sem se revoltar contra Deus, dá motivo a Satanás para atacá-lo por um novo flanco. Se Jó for tocado na própria carne, haverá de conservar a fidelidade? Terá início uma segunda rodada de provações.

Novamente, num diálogo com Satanás, Deus faz uma observação elogiosa a respeito de Jó: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se mantém afastado do mal. Ele persevera em sua integridade. Tu, porém, me atiçaste contra ele, para eu o afligir sem motivo”. É quanto Satanás lança a Deus um segundo repto: “Pele por pele! Para salvar a vida, o homem dá tudo o que tem. Mas estende a tua mão e fere-o na carne e nos ossos, e então verás se ele não vai maldizer-te na cara!” (Jó 2,3-6).

Satanás, então, recebe a permissão de tocar na saúde de Jó, contanto que lhe poupe a vida. Jó é ferido “com chagas malignas, desde a planta dos pés até o alto da cabeça” (Jó 2,7).

O Jó desgraçado está desprovido não só dos bens e dos filhos, mas, também da saúde. O mais rico dentre todos os habitantes do Oriente foi reduzindo à mais total miséria. Numa leitura teológica, Jó fora colocado na condição de amaldiçoado por Deus, passando a integrar a categoria dos ímpios. Sua vida reta e íntegra foi posta em xeque. Teria a vida de Jó, até então, sido pura aparência e falsidade? No fundo, teria levado uma vida inconfessável? É impossível pensar situação mais terrível para quem buscou pautar a vida pelo temor de Deus e se vê reduzido a uma situação incompreensível de perda, como se fora um morto vivo, desenraizado da vida. O preconceito teológico reduziu-o a um nada, ao interpretar a situação em que se encontrava como punição divina

(7)

por faltas passadas. Daí seu duplo sentimento: de perda dos bens, dos filhos e da saúde e da perda da dignidade religiosa, ele que se pautara pela mais estrita fidelidade a Deus. A imagem de Deus em voga não dava margem para dúvida. A adesão a ela exigia confessar-se como pecador. Haveria outra para substituí-la?

Jó confronta-se com um nó difícil de ser desatado. A questão de fundo pode ser formulada assim: “É possível falar de Deus a partir do sofrimento do inocente? Que imagem de Deus seria necessária para dar sustentação a tal teologia? Uma teologia daí surgida pode ter a pretensão de ser honesta, não fazendo concessões a Deus em detrimento do ser humano?” Jó será capaz de se desvencilhar, quando “procura compreender a justiça de Deus em relação à pessoa que sofre, por isto não aceita a camisa de força da teologia que lhe é proposta... É o rechaço de uma maneira de fazer teologia que não leva em conta as situações concretas, o sofrimento e as esperanças do ser humano. E que, ao mesmo tempo, esquece o amor gratuito e a compreensão sem limites de Deus” (GUTIÉRREZ, 1986, p. 83.85).

5. A reação de Jó na desgraça

A reação de Jó na secção narrativa é bem distinta da reação na seção poética.

O Jó da secção narrativa assume uma atitude da mais total conformidade. Tendo perdido os bens e os filhos, não amaldiçoa Deus, conforme a expectativa de Satanás. Dirigindo-se a Deus, Satanás levanta a suspeita de que Jó nutria uma religião interesseira. Por ser abençoado por Deus, de quem recebia proteção, dava mostras de religiosidade. Bastaria uma pequena provação para fazer desmoronar essa piedade inconsistente. Satanás teve a petulância de desafiar Deus ao lhe dizer: “Estende, porém, um pouco a tua mão e toca em todos os seus bens, para ver se não te lançará maldições na cara!” (Jó 1,11). O leitor conhece muito bem a confiança depositada por Deus na sinceridade da religião de seu servo.

As palavras de Jó revelam a inconsistência da suspeita levantava por Satanás. Ele não tem razão e, sim, Deus. Este havia confiado em Jó. E não se decepcionou” São comoventes as palavras de Jó: “Nu, saí do ventre de minha mãe e nu, voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor tirou; como foi do agrado do Senhor, assim aconteceu. Seja bendito o nome do Senhor!” (Jó 1,11). Reconhecia-se indigno do que possuía, pois fora tudo dom divino, Reconhecia-sem que merecesReconhecia-se. Com a liberdade que havia concedido, Deus tinha o direito de tirar, sem necessitar de permissões. Jó colocava-se diante da liberdade divina sem protestar, apelando para a vida escrupulosamente justa que levara. Uma intervenção do narrador sublinha a resignação de Jó: “Apesar de tudo, Jó não pecou com seus lábios, nem disse coisa alguma insensata contra Deus” (Jó 1,22).

(8)

Idêntica reação repete-se na segunda investida de Satanás, quando lhe é dada a permissão de submeter Jó à provação de privá-lo da saúde. Sem reclamar, Jó repleto de chagas “sentado no meio do lixo, raspava o pus com um caco de telha” (Jó 2,8). Instigado por sua mulher a amaldiçoar a Deus e “morrer de uma vez” (Jó 2,9), repreende-a: “Falas como uma insensata. Se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?” (Jó 2,10). Constata, novamente, o narrador: “E apesar de tudo, Jó não pecou com seus lábios” (Jó 2,10b).

Deus tinha razão. A piedade de Jó não era interesseira, pois, tanto na saúde quanto na doença, manteve a postura de reverência a Deus. Sem fazer exigências, reconheceu ter Deus o direito de dar e de tirar, de conceder e de privar, de tornar rico e de tornar pobre, sem consultar o ser humano. Deste exige-se, apenas, conservar a atitude de temor respeitoso a Deus, embora sem conhecer-lhe os desígnios misteriosos4.

O Jó da secção poética, pelo contrário, é um inconformado com a desgraça. No monólogo introdutório desta secção, quando abre a boca, amaldiçoa o dia de seu nascimento, com expressões duras. Em última análise, Deus é o destinatário de sua lamentação5. Uma leitura superficial de Jó 3

é suficiente para respigar afirmações cortantes de maldição contra o ter vindo à existência. É como se o nascimento houvera sido um equívoco de Deus e pudesse ser, pura e simplesmente, cancelado, sem nenhuma consideração. “Pereça o dia em que nasci e a noite em que anunciaram: ‘Nasceu um menino!’ Esse dia, que se torne em trevas; Deus, do alto, não se lembre dele, e sobre ele não brilhe a luz!” (Jó 3,3-4). É como se Jó postulasse a reversão da criação, desejando que passe do ser ao não-ser. É muito mais do que passar da vida à morte, pois é a existência, enquanto tal, que está em jogo. A lamentação encerra-se revelando a decisão de Jó: “Não dissimulo, não me calo, não me aquieto: a ira de Deus veio sobre mim!” (Jó 3,26).

Jó entra numa intensa crise e mergulha numa profunda escuridão: falta-lhe inteligibilidade para compreender a gama de sofrimentos que se abatera sobre ele. Uma crise de sentido! Parecia-lhe impossível conciliar a bondade de Deus com o seu sofrimento6. A teologia da retribuição era

incapaz de explicar o que está acontecendo7. Tendo sido um homem reto e íntegro, não merecia

desgraças deste calibre. Sem alternativas teológicas, fica sem chão, reduzido à mais total perplexidade. Haveria a possibilidade de rebelar-se contra Deus, como sugerira sua mulher – “Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez!” (Jó 1,9) –, mas seria indigno para quem se pautou por

4 VOGELS (1994, p. 343-359) levanta suspeitas sobre a postura de Jó. Uma leitura atenta mostra que sua fé não é tão

profunda como, à primeira vista, pode parecer. Sua resposta parece ser convencional e vazia, embora piedosa, sem nada de pessoal. O Jó da secção poética, sim, usa a própria linguagem e rejeita as fórmulas decoradas.

5 Jó “abandonou a lógica do linguajar teológico, que fala de Deus a partir de premissas eternamente estabelecidas. À

base de sua experiência empírica, acusa a Deus de persegui-lo sem motivo” (PIXLEY, 1984, p. 337).

6 “Deus é questionado na sua bondade: por que me tratas de um modo que não te convém, ao invés de me tratar

benignamente?” (MARTINI, 1990, p. 105).

7 “Jó rejeita radicalmente a teologia da retribuição: é tudo a mesma coisa, íntegro ou ímpio, a ambos Deus aniquila”

(9)

uma piedade sincera. Revoltar-se contra o sem sentido da vida, em longo prazo, seria insuportável. O Jó da secção poética, porém, não está disposto a resignar-se8.

Os três amigos – Elifaz de Temã, Baldad de Suás e Sofar de Naamat –, então, entram em cena. A secção narrativa fizera referência a eles, como vindos de longe para consolar o amigo Jó, afligido pela desgraça. Naquela ocasião, “em alta voz começaram a chorar, rasgaram suas vestes e lançaram poeira para o céu, sobre as cabeças. Sentaram-se no chão ao lado dele por sete dias e sete noites, sem dizer-lhe palavra, pois viam como era atroz a sua dor” (Jó 2,11-13).

Estes amigos silenciosos, solidários, compassivos tornam-se, agora, intransigentes defensores da teologia popular tradicional, a teologia oficial, excelente instrumento para acobertar injustiças. Jó é colocado sob suspeita. Elifaz lança um repto a Jó: “Lembra-te, por favor: acaso já pereceu alguém inocente? Ou quando é que os retos foram destruídos? Ao contrário, tenho visto os que praticam a iniquidade, os que semeiam dores e as colhem: esses pereceram ao sopro de Deus e foram consumidos ao ímpeto de sua ira” (Jó 4,7-8). E questiona a piedade de Jó: “Acaso (o Poderoso) te repreenderá pela tua piedade ou entrará contigo em juízo? Não antes, por causa da tua múltipla maldade e das tuas infinitas iniqüidades?” (Jó 22,4-5). Baldad segue na mesma direção: “De fato, Deus não rejeita quem é íntegro, como tampouco não estende a mão aos malvados” (Jó 8,20). Daí seu conselho a Jó: “Feliz o homem a quem Deus corrige! Não rejeites, pois, a repreensão do Poderoso” (Jó 5,17). Sofar indica a Jó a conduta correta: “Se colocares em ordem o coração e estenderes as mãos para Deus, se afastares das mãos a maldade e não alojares a injustiça em tua tenda, poderás levantar o rosto sem mácula, serás inabalável e nada temerás” (Jó 11,13-15).

Entretanto, Jó recusa-se terminantemente a admitir ter cometido qualquer pecado digno do castigo. As três séries de diálogo são um combate entre o Jó cético diante da teologia tradicional e seus amigos, seguros de que todo pecador é castigado. As dolorosas provações de Jó, para eles, são um sinal inequívoco de que havia pecado. Negá-lo seria fechar-se diante da evidência9.

A postura de Jó é firme no sentido de recusar as imagens de Deus não sintonizadas com a experiência. A contradição exige questionar a imagem de Deus, mais que se submeter de maneira irracional, embora, esta possa parecer a atitude mais respeitosa para com Deus10. Neste sentido, Jó

pode ser considerado um “desmantelador de Deus”, pois despedaça “as imagens religiosas de Deus”, “a imagem do Deus justo e bom”, mas que “viola o direito”, “um Deus perverso e sádico”, cuja imagem é “negativa e radicalmente destrutiva” (ASURMENDI, 1999, p. 77-81, cf. p.

104-8 “Jó é uma espécie de Prometeu bíblico. Mas, ao contrário de Prometeu, que era um deus, Jó é um homem”

(DIETRICH, 1991, p. 35). Na mitologia grega, Prometeu é a divindade que desafia Júpiter, o deus supremo.

9 O longo discurso do jovem teólogo Eliú, mas com mentalidade conservadora, foi introduzido posteriormente (cf. Jó

32,1-37,24), por algum leitor da narrativa inconformado com a incapacidade de os amigos convencerem Jó. Entretanto, o arroubo juvenil questionando Jó diretamente não consegue ir além da teologia já conhecida, que Jó se recusa a abraçar.

10 Jó postula “uma teologia leiga, feita fora do Templo, a partir da vida quotidiana daqueles que estão em sofrimento, e

(10)

108). Sua consciência é nítida: “Dos mandamentos de seus lábios nunca me afastei e no meu íntimo guardei as palavras de sua boca” (Jó 23,12). Por isto, não pode aceitar o que as doutrinas e teologias correntes querem lhe impor. “Longe de mim dar-vos razão: enquanto eu respirar, não me apartarei da minha inocência. Não largarei a minha defesa, que comecei a fazer, pois meu coração nada me reprova em toda a minha vida” (Jó 27,5-6) é a postura firme diante da insistência dos amigos11. A

postura dogmática e intransigente da religião que tenta abafar seu grito de justo sofredor é-lhe insuportável. Ele tem a ousadia de dizer para Deus: “Tu te transformaste em meu carrasco e me atacas com a brutalidade de tua mão” (Jó 30,21), coisa impensável e com cheiro de blasfêmia para seus amigos, que se consideravam defensores de Deus e da verdadeira religião. Tal religião, fundada numa experiência superficial de Deus, que exige conformismo, imobilismo, silêncio e fórmulas prontas está fora do horizonte de Jó. Pelo contrário, interessa-lhe a religião onde o ser humano, sem faltar de respeito a Deus nem, tampouco, cair na impiedade, pode abrir o coração e dizer a Deus o que sente no íntimo12.

Como a conversa se prolonga sem nenhum resultado, Jó decide dar-lhe um basta e desafia o próprio Deus a lhe dar uma resposta: “Quem me apresentaria alguém que me escutasse? É isso que assino. Que me responda o Poderoso! Quanto à acusação, redigida por meu adversário, eu a carregaria sobre os ombros e a cingiria como um diadema. A ele eu daria conta de meus passos e dele me aproximaria, como de um príncipe!” (Jó 31,35-37)13.

Deus aceita o desafio de Jó e intervém. Todavia, longe de oferecer-lhe uma explicação fácil, mostra-lhe a real dimensão do problema. Deus mergulha-o nas profundidades do mistério do universo, com uma imensa quantidade de questões irrespondíveis e insolúveis, como as quais o ser humano convive14. O enigma do sofrimento – desgraça – do justo é uma questão a mais. Para ser

feliz não é necessário ter uma resposta cabal para cada enigma da existência. Compreendendo isto, Jó estaria no rumo da superação de seu drama interior15. A desgraça não deve, necessariamente, ser

interpretada como castigo divino. Portanto, o íntegro e reto pode experimentar a dor e a tribulação

11 “A teologia existencial de Jó parte da vida. Se a vida contradiz o dogma, então o dogma é inexato e o crente deve

continuar a busca. Uma tal teologia é dinâmica e permite a evolução. Jó, com efeito, luta interiormente, debate-se nas contradições e continua a buscar... Partir de sua experiência, sobretudo se é de sofrimento, ao invés de partir de princípios, muda muito as coisas. Muitos princípios que eram importantes e claros se desmoronam e parecem vãos” (VOGELS, 1995, p. 177-178).

12 “Jó abandona as regras da linguagem teológica e ataca a Deus. Sabe muito bem que o risco é imenso porque em poder

não pode competir com Deus. Porém crê saber o que é justo. E a justiça não é monopólio de Deus” (PIXLEY, 1984 , p. 338).

13 “Não se trata de acusar Deus, mas de pedir-lhe contas, de desafiá-lo a provar a culpabilidade de Jó”

(RADERMAKERS, 1998, p. 125).

14 “Jó está confundido não por um inventário vão e arrogante dos itens criados, mas por sua própria estreiteza de visão

por ter censurado um deus que ele acreditava ser onipotente e cheio de caprichos. Jó dá-se conta que Yhwh está totalmente envolvido pelo sofrimento e luta de suas criaturas” (LACOCQUE, 2007, p. 91).

15 “A resposta de Deus a Jó, em forma de uma série de questões, devia reportar-se ao começo do mundo e sua criação,

porque o problema de Jó era fundamentalmente teológico e cosmológico. Jó devia descobrir quem, exatamente, é Deus, de maneira a expor e corrigir a louca malícia dos amigos” (LECOCQUE, 2007, p. 93).

(11)

sem que a relação com Deus seja colocada em xeque. Este é um mistério entre tantos outros nos quais o ser humano está envolvido!16

O autor do livro de Jó não tem a intenção de ridicularizar a teologia tradicional e, sim, mostrar-lhe a insuficiência para resolver a questão do sofrimento do íntegro e reto, a desgraça do justo17. A firmeza da teologia tradicional não é tão firme assim. "Foi Deus quem quis" – "Foi Deus

quem permitiu" são afirmações correntes diante de situações inexplicáveis. Entretanto, são respostas insatisfatórias, que revelam a incapacidade humana de penetrar os meandros do mistério da vida, que envolve tanto Jó quanto seus amigos.

6. A graça recuperada

Cada um dos dois Jós recupera a graça a seu modo.

O Jó da secção narrativa, tendo conservado a fidelidade, vê a sorte mudar totalmente. Deus “restituiu-lhe todos os bens, o dobro do que antes possuía... O Senhor abençoou Jó no fim de sua vida mais do que no princípio: ele possuía agora quatorze mil ovelhas, seis mil camelos, mil juntas de bois e mil jumentas. Teve, também, outros sete filhos e três filhas... Depois desses acontecimentos, Jó viveu ainda centro e quarenta e quatro anos e viu seus filhos e os filhos de seus filhos até a quarta geração. E morreu velho e cumulado de dias” (Jó 42,10-17).

Esta solução confirma a teologia da retribuição. A desgraça foi uma provação na vida de Jó. A recompensa divina veio em forma de bens multiplicados, prole e idade avançada, como recompensa da fidelidade. É um happy end!18 A lição é clara: o sofrimento não tem a última palavra

na vida do justo, pois a bênção divina virá na certa. Vale a pena sofrer, embora sem merecer o sofrimento!19

Com grande probabilidade deve ter sido um acréscimo, obra de alguém inconformado com a solução a que Jó chegou: resignar-se diante do desígnio insondável de Deus20. “O Senhor deu, o

Senhor tirou... bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,21). O sofrimento do justo só será compreendido por quem for capaz de compreender que Deus não está obrigado a cumular o justo de bênçãos, só porque foi justo. E, mais, entender que o sofrimento do justo pode não ser castigo de

16 “De fato, a oração de Jó, a interpelação, ou seja, o ultimatum que dirige a Deus choca-se com um muro: o silêncio.

Deus parece ausente. Tanto mais se poderia desconfiar de um traço de sua presença na força do grito de Jó, na certeza que o anima, e mesmo na fé com que clama sua inocência” (RADERMARKERS, 1998, p. 205).

17 “A conversa entre os três amigos e Jó é comparável a uma conversa entre um teólogo conservador e um teólogo

liberal, ou entre um cristão cheio de bom senso e um membro fanático de uma seita. Praticar duas teologias equivale a falar duas linguagens diferentes” (VOGELS, 1995, p. 178).

18 RADERMARKERS (1998, p. 261) segue uma posição um pouco diferente. “O ‘dobro de bens’ dado a Jó não deve

ser tomado ao pé da letra como um Happy End ou uma ‘contrapartida’ em recompensa por sua boa conduta; significa a todo-poderosa generosidade de Deus”.

19 Para TERNAY (2001, p. 318), “trata-se de uma restauração e não de uma retribuição: Jó recebe todos os seus bens

novamente e em dobro”.

20 “Pode-se dizer que a conclusão do livro estraga (gâte) o livro, porque volta à doutrina da retribuição segundo o

(12)

Deus. E, sim, ter outras causas, por exemplo, a maldade e a injustiça alheias. E que Deus se solidarizará com o justo injustiçado, sofrendo com ele, sem intervir para privá-lo do sofrimento. A grandeza de Deus consistirá, exatamente, em fazer-se solidário com o justo sofredor, sem criar para ele um tipo de existência especial, onde a dor não tenha lugar. Em outras palavras, um tipo de vida artificial onde o ser humano está posto à margem da tragicidade da vida. O autor de Jó não caiu nessa armadilha! O acréscimo de Jó 42,10-17 foi uma traição à teologia do narrador. Os sinais hiperbólicos de bênçãos contêm uma teologia contrária à que foi defendida ao longo de toda a obra. O “final feliz” tem o efeito de amenizar a crueza do passado. Entretanto, a verdadeira religião consiste em perseverar no amor de Deus, embora os sinais exteriores sejam interpretados pelos falsos teólogos como punição divina. A teologia do narrador de Jó exige, pois, deixar de lado o desfecho entrevisto por quem se recusava a renunciar à teologia aprendida da tradição, sem questionar-lhe os fundamentos.

O Jó da secção poética, após o debate estéril com os amigos, recorre a Deus, de quem espera luzes para entender o enigma de sua vida. Os dois longos discursos de Deus (Jó 38-41) parecem não enfrentar o problema com que Jó se debatia. Recorrendo a perguntas retóricas e bastante irônicas, confronta-o com a multiplicidade de interrogações, para as quais os seres humanos não possuem resposta, e com os quais devem conviver. O mistério da natureza e da história soma-se ao mistério de cada ser humano como parte de um mistério muito maior e incontrolável, que escapa a toda e qualquer compreensão humana, que tenha a pretensão de ser cabal. Ao ser humano são dadas fagulhas de compreensão, com as quais deve se contentar. A religião não oferece ao ser humano uma segurança racional, uma chave de leitura para os mistérios da vida e do cosmos (SÁNCHEZ, 1991, p. 173-183). A religião parte daí. Qualquer teologia muito segura racionalmente pode mostrar-se insuficiente, quando não inútil.

O Jó crítico parece encontrar a paz de espírito. Não pela via da razão, no sentido de ter chegado a explicações apodíticas de seu sofrimento, embora fosse inimputável (LEVORATTI, 1993, p. 1-53). E, sim, pelo caminho da fé, no sentido de reconhecer haver um sentido para o sofrimento, conhecido apenas por Deus21. Daí, dirigindo-se a Deus, ter dito: “Fui leviano ao falar.

Que é que vou responder? Porei minha mão sobre a boca. Disse uma coisa, mas não repetirei; e ainda outra, mas nada acrescentarei” (Jó 40,4-5). Jó pratica uma espécie de silêncio obsequioso diante de Deus, para além da crítica e da revolta; uma forma de calar respeitoso, contrapondo-se à verborréia dos amigos e se precavendo contra a tentação de imprecar e blasfemar, pela incapacidade de compaginar amor e sofrimento22.

21 A “pedagogia utilizada por Deus... permitiu que Jó se abrisse progressivamente à descoberta de um Deus que não é

tão cruel como ele imaginava de dentro de sua crise, mas de um Deus de santidade que é o Único a poder juntar desta maneira tanta bondade e tanto respeito pela justiça” (TERNAY, 2001, p. 311).

22 Jó “luta com Deus, mais ainda consigo mesmo, com a falta de moderação de seus pensamentos, com o sentimento de

(13)

Jó dá um passo a mais, colocando-se diante de Deus com reverência. “Reconheço que podes tudo e que para ti nenhum pensamento é oculto... Pois eu falei, sem nada entender, de maravilhas que ultrapassam meu conhecimento... Eu te conhecia só por ouvir dizer, mas, agora, vejo-te com meus próprios olhos. Por isso, acuso-me a mim mesmo e me arrependo, no pó e na cinza” (Jó 42,2-6)23. A honestidade de Jó consistiu em não se contentar com a teologia pré-fabricada, que os amigos

queriam fazê-lo tragar24. Antes, só se contenta quando “faz teologia”, dispondo-se a falar com Deus

face a face. Teologia de primeira mão! Teologia onde o ser humano, mormente o justo sofredor, coloca-se diante de Deus e se predispõe a escutá-lo e dar-lhe razão, mesmo sem chegar à explicação cabal da realidade. De uma coisa Jó está seguro, de forma alguma está sendo castigado por Deus, por faltas passadas, nem, tampouco, estava alijado das preocupações divinas. Deus estava atento a ele, mesmo em meio a sofrimentos atrozes25.

A conclusão narrativa apresenta Deus censurando Elifaz de Temã e seus amigos, por terem sido incapazes de falar corretamente de Deus. Jó, pelo contrário, é elogiado. “Estou indignado contra ti e os teus dois amigos, porque não falastes corretamente de mim, como o fez meu servo Jó” (Jó 42,7)26. Portanto, o discurso ortodoxo dos defensores da religião e dos apologetas fanáticos, por

mais fiéis a Deus que queiram ser, padece de um defeito radical: não tem o beneplácito divino27.

Afinal, Deus não precisa de quem o defenda! Na contramão, o discurso de Jó, crítico e inconformado, corresponde ao “falar bem de Deus”. Este não exige de ninguém abaixar a cabeça diante do que não entende, nem, tampouco, engolir respostas piedosas, mas pouco convincentes ou, até mesmo, inaceitáveis. Deus não abafa o grito do justo sofredor, cujo sofrimento não se explica com os argumentos oferecidos pela religião. O protesto do justo sofredor não é blasfêmia. É sinal de reverência de quem, afinal, compreendeu que, de Deus, nada se deve esperar, pois só vale a pena amá-lo por pura gratuidade, sem a mais ínfima tentação de contar com recompensa, seja ela qual for. Deus será amado por ser amável, não porque possa retribuir com bens, prole e vida longa. O ser humano será justo, mesmo em meio a sofrimento, pois é este o modo de proceder de quem faz a

ameaçadoras” (MARTINI, 1990, p. 107).

23 Entretanto, para DIETRICH (1991, p. 40), “isto é estranho porque a intervenção do todo-poderoso, que fala do meio

de uma tempestade, parece descarregar sobre o entendimento limitado de seu súdito a imensidão cósmica da sabedoria envolvida na criação e na natureza”.

24 Jó “conhecia Deus pela catequese, pela teologia, pelas disquisições, pelos livros. Não se tratava, é claro, de

conhecimentos falsos. Entretanto, não conseguiam criar unidade e, de fato, a enfocar a face de Deus... Agora, os olhos se lhe iluminaram e conseguiu intuir, diretamente, que, de Deus, não se fala; pelo contrário, ouve-se-lhe e se o adora” (MARTINI, 1990, p. 122).

25 “O Deus que Jó buscava calou-se, enquanto este último esforçava-se para encerrá-lo num sistema. Enfim, fala quando

Jó, tocando o fundo do despojamento, não encontra palavras, quando não espera outra palavra senão a de Deus” (CHÉREAU, 2006, p. 289).

26 “Os discursos dos amigos representam a teologia da ordem e da submissão a um destino providencial que regula o

cosmos, mas que não enfrenta as injustiças com as quais os seres humanos padecem. Os amigos têm, portanto, discursos típicos de certas práticas consoladoras”. Trata-se de uma “antiteologia”. “A antiteolgoia se parece muito com a teologia, mas não é teologia” (ROSSI, 2005b, p. 76.77).

27 “A lógica de uma teologia que deduz suas razões de princípios gerais levou os amigos a trair sua amizade. E agora

(14)

verdadeira experiência de Deus. Da busca de recompensa, passa-se à gratuidade e ao amor como postura religiosa verdadeiramente sábia. Agir diferentemente é insensatez! Compreende-se que a verdadeira religião não é interesseira – do ut des – e que vale a pena ser temente a Deus, mesmo em meio à dor e ao sofrimento. Da teologia da retribuição passa-se à teologia do amor e da graça. A pessoa de fé autêntica ama a Deus com um amor desinteressado, sem nada esperar em troca. A desgraça, então, deixa de ser desgraça – castigo de Deus. A experiência humana de dor e de sofrimento deixa de ser argumento para se duvidar da misericórdia divina. A pessoa de fé pode amar a Deus e se sentir amada por ele em meio ao sofrimento. Afinal de contas, trata-se do sentido que damos aos fatos, a partir da relação estabelecida com Deus. O sofrimento só pode ser compreendido diferentemente por quem, de fato, estabelece com Deus uma relação de absoluta gratuidade. Jó reencontrou o sentido da vida porque recusou as teologias de segunda mão e trilhou um caminho novo, contra tudo e contra todos28.

Jó foi aprovado por Deus por ter procurado a verdade com mais coragem e, por conseqüência, ter se aproximado dela mais de perto. Embora sua linguagem possa levar à suspeita de blasfêmia, foi a que melhor preservou a glória divina; mais que uma linguagem muito certinha, devedora da doutrina da retribuição. Aqui o risco de comprometer a imagem de Deus é grande. Pelo contrário, a gratuidade no trato com Deus e no falar de Deus tem mais chances de originar uma religião verdadeira.

Conclusão

A superação das aporias da fé e da religião supõe estabelecer com Deus uma relação de absoluta gratuidade, amando-o sem nada esperar, a não ser a certeza de amá-lo com amor verdadeiro. Só assim a pessoa de fé é capaz de mirar para além das des-graças da vida, sem se lamentar nem se revoltar contra Deus. Jó comporta um claro ensinamento: para avançar na direção de Deus, pressupõe-se romper com a tradição (ROSSI, 2005a, p. 63). Dito de outro modo, por em xeque as falsas imagens de Deus, de modo especial, as cultivadas por um tipo de religião piedosa, porém, sem consistência. Sem colocar Deus sob suspeita – o Deus de certas teologias – será impossível “falar bem de Deus”.

Jó não resolveu o problema em que se encontrava. Não! Ele não ofereceu um conteúdo à teologia, mas apontou para um “método” de fazer teologia, a partir da experiência. Só a partir daí é possível fazer uma teologia honesta que, talvez, nos colocará a salvo de certas crises de fé.

(15)

BIBLIOGRAFIA

ALONSO SCHÖKEL, Luis; SICRE DIAZ, José Luis. Job – Comentario teológico y literário. Madrid: Cristiandad, 1983.

ASURMENDI, Jésus. Job. Paris: L´Atelier, 1999.

CAESAR, Lael O. Job: another new thesis. Vetus Testamentum, Leiden, v. 49, p. 435-447, 1999.

CHÉREAU, Georgette. Job et le mystère de Dieu – Un chemin d’espérance. Paris: Lethielleux, 2006.

DIETRICH, Luis José. “Jó: uma espiritualidade para sujeitos históricos”, in Estudos

Bíblicos, v. 30 (1991). Petrópolis/São Bernardo do Campo/São Leopoldo, p. 32-43.

DIETRICH, Luis José. O grito de Jó. São Paulo: Paulinas, 1996.

GUTIÉRREZ, Gustavo. Hablar de Dios desde el sufrimento del inocente – una reflexión sobre el libro de Job. Lima: Instituto Bartolomé de las Casas, 1986.

HEINEN, Karl. O Deus indisponível – O livro de Jó. São Paulo: Paulinas, 1982.

LACOCQUE, Andre. “The Deconstruction of Job’s Fundamentalism”, in. Journal of Biblical

Literature, v. 126 (2007). Atlanta, p. 83-97.

LEVORATTI, Armando Jorge. Las preguntas de Job. Revista Bíblica, v. 55 (1993). Buenos Aires (Nueva Época v. 49), p. 1-53.

MARTINI, Carlos Maria. Avete perseverato con me nelle mie prove: riflessioni su Giobbe. Casale Monferrato: Piemme, 1990.

OLIVEIRA, Marcelo Rodrigues de. Retribuição e Prosperidade: gênese, percurso histórico e confronto com a teologia da gratuidade. Belo Horizonte: FAJE, 2006. Dissertação (Mestrado).

PIXLEY, Jorge. Jó ou o diálogo sobre a razão teológica. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 16, p. 333-343, 1984..

RADERMAKERS, Jean. Dieu, Job et la Sagesse. Bruxelles: Ed. Lessius, 1998.

ROSSI, Luiz Alexandre Solano. A falsa religião e a amizade enganadora – o livro de Jó. São Paulo: Paulus, 2005a.

ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Os caminhos da teologia e a antiteologia no livro de Jó.

Revista de Interpretação Bíblica Latino Americana, Petrópolis, nº 50, p. 76-79, 2005b.

SÁNCHEZ BRAVO, Galo Severo. Job o el sufrimiento abierto al mistério. Theologica

Xaveriana, Bogotá, v. 41, nº 99, p. 173-183, 1991.

STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro de Jó – o desafio da verdadeira religião. São Paulo: Paulinas, 1992.

(16)

TERNAY, Henry de. O Livro de Jó – Da provação à conversão, um longo processo. Petrópolis: Vozes, 2001.

VOGELS, Walter. Job´s Superficial Faith in His First Reactions to Suffering (Job 1:20-23; 2:8-10). Église et Théologie, Ottawa, v. 25, p. 343-359, 1994.

VOGELS, Walter. Job – L´homme que a bien parlé de Dieu. Paris: Cerf, 1995.

WESTERMANN, Claus. “A dupla face de Jó”, in Concilium, n. 189 (1983/9). Petrópolis, p. 19-31.

Endereço do autor: Av. Dr. Cristiano Guimarães, 2127- Planalto – Belo Horizonte-MG CEP 31.720-300 – Tel.: (31) 3115-7024 – e-mail: jvitoriosj@faculdadejesuita.edu.br

Referências

Documentos relacionados

sólidos totais, proteínas, lipídios, fibra, cinza e carboidratos, compostos fenólicos totais, 15.. flavonóides e carotenóides totais, sólidos insolúveis em álcool

47 cartão de memória 19 cartão microSD 1 cartão SD 1 casa definir um local 6 número de telefone 17 chamada a chegar 15 chamadas atender 15 casa 17 chamada em espera 16 cortar o som

Qualquer licitante poderá manifestar, de forma motivada, a intenção de interpor recurso, em campo próprio do sistema, no prazo de até 4 (quatro) horas úteis depois de declarado

É importantíssimo que seja contratada empresa especializada em Medicina do Trabalho para atualização do laudo, já que a RFB receberá os arquivos do eSocial e

(C) oferecem-lhes alimentos para provarem. Escolhe as palavras do quadro que permitem completar as frases, de acordo com o sentido do Texto A... Utiliza cada palavra apenas

Os candidatos deverão enviar para o e-mail que será divulgado no dia do Resultado da etapa de Dinâmica de Grupo, as cópias dos comprovantes de escolaridade e experiência

Há alunos que freqüentarão o AEE mais vezes na semana e outros, menos. Não existe um roteiro, um guia, uma fórmula de atendimento previamente indicada e, assim sendo, cada aluno terá

- Ceuc (Centro Esta- dual de Unidades de Conservação - SDS) - Ceclima (Centro Es- tadual de Mudanças Climáticas - SDS) - Associação das Co- munidades da RDS do Uatumã