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O CORPO MITOLÓGICO NA DANÇA: QUANDO O MITO ATRAVESSA O CORPO

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GABRIELA DI DONATO SALVADOR SANTINHO

O CORPO MITOLÓGICO NA DANÇA: QUANDO O MITO

ATRAVESSA O CORPO

CAMPINAS

2014

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.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

GABRIELA DI DONATO SALVADOR SANTINHO

O CORPO MITOLÓGICO NA DANÇA: QUANDO O MITO

ATRAVESSA O CORPO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Artes da Cena.

Orientadora: MARÍLIA VIEIRA SOARES

Este exemplar corresponde à versão final de Tese defendida pela aluna Gabriela Di Donato Salvador Santinho, e orientada pela Profa. Dra. Marília Vieira Soares.

____________________________________

CAMPINAS 2014

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ABSTRACT

This text presents the mythological body as a possibility to work with sacred mythology in scenic dance. The proposal of the mythological body arises from the observation of the significant presence of mythology in the scenic dance themes throughout its history and practices used by the author as a way of choreographic creation. The mythological

body is presented here as a type of scenic body facing the interpretation of mythology in

the scene that can be reached from psychophysical studies that evoke mythological content present in the unconscious of the dancer , which in turn transform them into expressive movements. The basis of the theoretical concept of the mythological body is in theories of personal and collective unconscious, proposed by Analytical Jungian Psychology and understanding of mythology as a result of psychological and biological processes , resulting from authors such as Mircea Eliade and Joseph Campbel. The effective practice of mythological body was carried from dance laboratories sought possible ways for this body type is manifested in dance and resulted choreographic study entitled " Another Skin " , also presented as part of this research.

Keywords: Dance. Mythology . Mythological Body psychophysical techniques.

RESUMO

Este texto apresenta o corpo mitológico como uma possibilidade de trabalho com a mitologia sagrada na dança cênica. A proposta do corpo mitológico surge a partir da observação da significativa presença da mitologia nas temáticas da dança cênica ao longo de sua história e das práticas usadas pela autora como caminho de criação coreográfica. O corpo mitológico é aqui apresentado como um tipo de corpo cênico voltado para a interpretação da mitologia na cena que pode ser alcançado a partir de trabalhos psicofísicos que despertam os conteúdos mitológicos presentes no inconsciente do dançarino, que, por sua vez, os transformam em movimentos expressivos. A base do conceito teórico do corpo mitológico está nas teorias de inconsciente pessoal e coletivo, propostas pela Psicologia Analítica Junguiana e na compreensão da mitologia como resultado de processos psíquicos e biológicos, advindas de autores como Mircea Eliade e Joseph Campbel. A prática efetiva do corpo

mitológico foi realizada a partir de laboratórios de dança que buscaram possíveis

caminhos para que esse tipo de corpo se manifeste na dança e teve como resultado o estudo coreográfico intitulado “Outra Pele”, também apresentado como parte da presente pesquisa.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: A CAIXA DE PANDORA ... 17

CAPÍTULO 1: AS DIVAGAÇÕES DOS DEUSES DO OLIMPO ACERCA DA MITOLOGIA NA DANÇA ... 27

1.1 - Carta de Apolo para Dionísio: a presença da mitologia, da Dança Primitiva ao Balé Clássico. ... 27

1.2 - A resposta de Dionísio para Apolo: a presença da mitologia, da Dança Moderna à Dança Contemporânea ... 57

CAPÍTULO 2: O ENCONTRO DOS DEUSES E A DISCUSSÃO SOBRE A MITOLOGIA NA DANÇA CONTEMPORÂNEA ... 77

2.1 - A influência dos rituais e dos mitos sagrados na Dança Contemporânea... 77

CAPÍTULO 3: A DEUSA SARASVATI E SEUS COMENTÁRIOS SOBRE A MITOLOGIA COMO COMPONENTE DO INCONSCIENTE DO ARTISTA ... 89,

3.1 – Mitologia e inconsciente ... 89

3.2 – O corpo mitológico na dança ... 99

CAPÍTULO 4: A DEUSA KALI E A TEORIA DO CORPO MITOLOGICO NA PRÁTICA DA DANÇA ... 105

4.1 – Kaligrafando um corpo mitológico ... 105

4.2 – A proposta prática do corpo mitológico ... 113

4.3 – Considerações sobre o diário de trabalho dos laboratórios práticos da pesquisa com o corpo mitológico ... 132

4.3.1 - A fertilidade e o poder de criação representados pela serpente ... 145

4.3.2 - A víbora devoradora representada pela “serpente” (o arquétipo da “sombra”) . 150 4.3.3 - Os “uroboros” ou a “unidade” representada pela “serpente” ... 154

4.3.4 - “Outra Pele”: um estudo coreográfico a partir do corpo mitológico ... 163

CAPÍTULO 5: CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 169

5.1 - Carta de Apolo para Dionísio: a decisão de Apolo quanto à condenação de Prometeu ... 169

5.2 - Fechando a Caixa de Pandora ... 176

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ... 179

ANEXOS ... 183

Anexo 1: “Voo invisível” ... 183

Anexo 2: Vídeos e fotos de laboratórios do corpo mitológico. ... 187

Anexo 3: “Outra Pele”- Material de divulgação com ficha técnica do estudo coreográfico. ... 190

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Dedico este trabalho ao meu marido, Guilherme, que me incentivou a realizar e a concluir esta pesquisa, apoiando cada mínima fase dela, e provando-me que Eros o deus do amor– sempre acerta em suas artimanhas.

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Agradecimentos

A lista de agradecimentos em uma pesquisa longa como a aqui apresentada é enorme, mas gostaria de citar cada um que colaborou, direta ou indiretamente, para que esta pesquisa pudesse se concretizar.

Primeiramente, agradeço ao Instituto de Artes da Unicamp e a todos os professores e funcionários da Pós-Graduação que me deram todo o suporte necessário para realização deste Doutorado.

Agradeço a atenção, a dedicação e a confiança de minha orientadora, Professora Dra. Marilia Vieira Soares, que me orienta e compartilha comigo tantas experiências por tantos anos nessa aventura que é a dança.

Também agradeço à Professora Dra. Elisabeth Zimmermann e ao Professor. Dr. Adilson Nascimento de Jesus, que colaboraram significativamente com este texto por meio de suas considerações em minha banca de qualificação.

À Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO), que me acolheu e me apoiou no início deste Doutorado, em especial, aos professores e alunos do DEART, que sempre me incentivaram a trabalhar pela arte na educação.

À Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e a todos meus colegas e alunos do curso de Artes Cênicas e Dança onde leciono, pelo apoio incondicional e pelas inúmeras inspirações poéticas e acadêmicas.

Aos olhares sensíveis e sempre atenciosos dos amigos artistas: Kamilla Mesquita, Tiago de Mello, Julio Giacomelli, Christiane Araújo, Ligia Marina e Adilson Nascimento, que se propuseram a embarcar comigo em minha viagem mitológica.

Ao Grupo “Circo do Mato”, de Campo Grande-MS, que possibilitou a apresentação do estudo coreográfico “Outra Pele” em seu espaço e ao grupo “Mercado Cênico” que apoiou a apresentação do mesmo emprestando o equipamento técnico de som e iluminação.

Agradeço à minha família, que soube entender cada momento desses meus últimos anos de estudo e dedicação ao trabalho que escolhi, em especial aos meus pais, que são meus maiores exemplos de perseverança.

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Agradeço, também, a Miriam Sampieri Santinho e a José Guilherme Santinho, meus sogros, pelo apoio especial e por não me deixarem desistir.

Agradeço, ainda, ao meu marido, Guilherme Sampieri Santinho, por ter tornado toda minha história e minha paixão pela dança uma realidade possível.

E claro que não posso deixar de agradecer, por fim, aos seres mitológicos que me acompanham em cada etapa de minha vida e que inspiram e dão poesia ao meu trabalho artístico.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho – desenho do sonho com

a serpente voadora ... 109

Figura 2: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho, dia 05/05/2012 ... 136

Figura 3: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho, dia 21/08/2012 ... 143

Figura 4: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de Laboratório dia 03/10/2013.... 145

Figura 5: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de Laboratório dia 26/03/2014.... 149

Figura 6: Autor desconhecido Uroboros- fonte internet: http://www.acting-man.com ... 152

Figura 7: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho- dia 23/02/2014 ... 154

Figura 8: Gabriela Salvador- Desenho de Diário de trabalho – dia 10/03/2014... 159

Figura 9: Material de divulgação “Voo Invisível” ... 182

Figura 10: Foto da Apresentação de "Voo Invisível " ... 183

Figura 11: Fotos da Apresentação de "Voo Invisível" ... 184

Figura 12: Fotos dos laboratórios práticos... 185

Figura 13: Fotos dos laboratórios práticos... 186

Figura 14: Fotos dos laboratórios práticos/ montagem do estudo coreográfico... 187

Figura 15: Cartaz de divulgação do estudo coreográfico “Outra Pele”... 188

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A pesquisa em arte é atravessada por muitas áreas de estudo e, justamente por isso, abre para o pesquisador infinitas possibilidades de olhares e pontos de vista sobre um determinado tema. A presente pesquisa foi, como todas as outras existentes nesta área, influenciada pela História da Arte, pela História da Dança, pela Psicologia, pelos estudos do corpo, por todas as possibilidades existentes de composição coreográfica e, mais especificamente, por minhas experiências como dançarina, pesquisadora e docente da dança e pelas possibilidades expressivas advindas do meu corpo em movimento.

Não é possível falar desta pesquisa sem falar de minha relação pessoal com a mitologia e com meu corpo em movimento, mas creio que isso ficará claro tanto ao longo deste texto, quanto no estudo coreográfico apresentado como parte deste trabalho.

Porém, antes de nos debruçarmos sobre o tema da possibilidade do corpo

mitológico na dança e de como esse tipo específico de corpo cênico pode se

manifestar, peço licença para introduzir este texto contando uma história.

Segundo a mitologia grega (BULFINCH, 2006), nos primórdios da humanidade, foi dada aos irmãos Titãs Prometeu e Epimeteu (uma raça de gigantes que antecedeu os deuses) a incumbência de criar os animais que povoariam a Terra; ali, entre esses animais, estava o homem.

Assim, os Titãs cumpriram sua obrigação de maneira extremamente perspicaz, dando a cada um dos animais tudo o que lhes era necessário para a sobrevivência na Terra. Porém, após atribuir todas as características aos animais, pouco sobrou de especial para atribuir ao homem, que deveria ser o ser superior entre todos os outros. Então, Epimeteu pediu a seu irmão Prometeu que resolvesse a situação e este último foi até o céu e acendeu uma tocha no sol, trazendo, então, o fogo aos homens. Esse fogo era a representação da “sabedoria”, visto que, com ele, o homem ganhou o poder de construir armas, subjugar os outros animais e, até mesmo, criar a moeda para facilitar e ampliar as possibilidades de comércio.

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Porém, o roubo do fogo do céu deixou os deuses irados e eles se reuniram no Olimpo–morada celestial dos deuses gregos– e decidiram se vingar dos irmãos Titãs. A primeira vingança dos deuses enviada a Prometeu e a Epimeteu foi realizada na forma de uma mulher: Pandora

Até então, a mulher não existia e os deuses a construíram e a aperfeiçoaram com características como a beleza, o poder de persuasão, a habilidade para a dança e para a música. Depois de pronta, os deuses a enviaram como um presente para Epimeteu, que a recebeu de bom grado, sem saber que o presente era, na verdade, uma vingança. Epimeteu tinha em sua casa uma caixa na qual guardava certas características malignas, que não usou enquanto construía o homem e outros animais; mas, certo dia, Pandora, movida por extrema curiosidade (característica que os deuses também colocaram nela), abriu a caixa e, com esse ato, liberou toda sorte de maldade no mundo, como doenças físicas e mentais, a avareza, a inveja, a raiva, etc. Dizem que a única coisa que Pandora deixou na caixa foi a esperança; por isso, somente a esperança é o que ainda resta aos homens.

Existe ainda uma outra versão dessa história, a qual diz que Pandora foi enviada como um presente de boas intenções dos deuses a Epitemeu e que, na caixa, havia boas qualidades que, ao ser aberta, libertou todos os bens do mundo, com exceção da esperança, que ficou na caixa segura e salva para ser liberada quando fosse preciso.

Independente da versão apresentada, liberar todos os sentimentos, emoções, erros e acertos no mundo é um fardo suficientemente grande para uma pessoa que, respondendo a um instinto (a curiosidade), abre uma caixa que está repleta de possibilidades. Em idêntica maneira, ao nos depararmos com uma curiosidade instintiva, nós, os artistas-pesquisadores, abrimos a caixa de possibilidades que nos apresenta um tema de pesquisa, sem sabermos o que podemos encontrar ali dentro.

A caixa contém presentes ou uma vingança dos deuses?

Essa resposta só nos é realmente dada após abrirmos a caixa e também após muito trabalho, reflexão e experimentos. Porém, assim como Pandora, é inevitável que

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façamos a abertura da caixa, pois a possibilidade de descobrir o que tem ali dentro é muito mais forte do que nossa racionalidade e, então, o artista-pesquisador comete erros e acertos: ora abrindo uma caixa de presentes, ora abrindo uma caixa de vingança.

Assim, apresentar minha pesquisa de Doutorado é uma tarefa desafiadora considerando a Caixa de Pandora que pode ser a pesquisa acadêmica em arte, com suas características empíricas e sensíveis, que acabam dificultando o processo lógico-científico que toda pesquisa acadêmica exige.

Inicio minha explanação propriamente dita sobre a pesquisa aqui apresentada com a segunda vingança enviada pelos deuses aos irmãos Titãs, Epimeteu e Prometeu. Ao primeiro foi enviado Pandora e ao segundo restou a condenação de ficar acorrentado no alto do Monte Cáucaso, durante toda a eternidade, enquanto teria seu fígado comido, diariamente e lentamente, por uma ave1.

Claro que a condenação de Prometeu nos parece bem mais cruel do que aquela enviada à Epimeteu, porém, em ambos os casos, a entrega do fogo da sabedoria aos homens foi a grande causadora do padecimento dos irmãos Titãs, responsáveis por tal ato.

Para que suas condenações sejam justificáveis, nós os seres humanos teríamos que usar muito bem a sabedoria que eles nos deram e se sabemos usá-la ou não é uma pergunta difícil de ser respondida. Tentamos usá-la para solucionar problemas e para fazermos a manutenção do universo que nos foi ofertado, mas não tenho certeza se conseguimos usá-la em sua plenitude.

A pesquisa em arte também exige essa sabedoria e para uma artista - pesquisadora e docente como eu, as necessidades de sublimação, observação e aplicação “teórico-prático-pedagógica” de uma pesquisa se confundem a ponto de travar o processo de investigação e confundir sabedoria com teimosia - pois o artista tem muita dificuldade em deixar suas paixões fora de suas considerações teóricas.

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Esse processo aconteceu inúmeras vezes ao longo desta pesquisa, porém, quando entendi que a Caixa de Pandora era a natureza básica da pesquisa em artes e aceitei essa natureza, as minhas dificuldades acabaram e pude seguir meu trabalho com mais tranquilidade: entendi que dúvidas, erros e acertos constituiriam minha pesquisa e aprendi a lidar com eles ao longo dos anos em que a realizei.

A primeira proposta de minha pesquisa era essencialmente teórica. Depois de realizar um mestrado baseado em minha prática pessoal de composição cênica – onde eu investiguei os estados alterados de consciência para a construção da cena tendo como inspiração poética o mito da Deusa Kali2 - uma dúvida ainda ficou em minha mente: porque os mitos influenciam tão fortemente meu corpo na hora da criação?

Buscando a resposta para essa indagação, encontrei algo que não é novidade nas pesquisas sobre o tema: o mito não influencia somente o corpo dos dançarinos, mas também o corpo de atores, músicos, poetas, artistas visuais e os corpos de toda a humanidade, em todos os diversos momentos da vida cotidiana. Então, entendi que o mito é um grande regente de nossas mentes e, consequentemente, de nossos corpos.

Encontrei nos estudos de Carl Gustav Jung3 uma possível proposta para minhas indagações, pois Jung nos apresenta teorias sobre o inconsciente pessoal e coletivo, onde considera que estes são camadas internas (ou mais profundas) de nossa consciência onde encontramos (em constante transformação e movimento) imagens de nossas experiências pessoais e coletivas. Dentre esses conteúdos do inconsciente estariam os mitos que podem se materializar em nossa consciência de inúmeras maneiras, e uma delas seria na forma de expressão artística.

A partir dessa primeira consideração sobre o mito e o inconsciente humano, elaborei a primeira proposta de minha pesquisa: investigar a presença da mitologia dentro das produções contemporâneas de dança, a partir dos pressupostos de inconsciente pessoal e coletivo de Jung.

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Deusa do hinduísmo indiano, uma das responsáveis pela criação, manutenção e destruição do universo.

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Antes mesmo da escrita e da propositura do projeto junto ao Instituto de Artes da Unicamp, iniciei minhas pesquisas teóricas e, ministrando a disciplina de História da Dança em cursos de graduação em Artes Cênicas e em Dança na Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (2011) e na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (desde 2012) pude observar a presença significativa do mito como temática na História da Dança mundial e, sendo brasileira, criada dentro de uma família religiosa e traçando meus caminhos pessoais dentro de pressupostos mitológicos, o processo desta pesquisa passou pela investigação de minha trajetória pessoal e artística e pela trajetória de outros diversos artistas, onde pude verificar a presença do mito em processos criativos e em resultados coreográficos.

Então, comecei a me questionar sobre a possibilidade da existência de um método que conduzisse os corpos dos artistas aos mitos, descobrindo que grande parte dos dançarinos que trabalham com essa temática estabelece um tipo de preparação corporal específica para esse trabalho. E então a segunda e definitiva hipótese da pesquisa foi estabelecida: existem processos práticos que podem levar meu corpo (e o corpo de outros dançarinos) a trabalhar com os mitos diretamente ou indiretamente?

Considerando que todas as teorias só são provadas quando testadas experimentalmente, escrevi oficialmente o projeto de pesquisa determinando a proposta de investigar na prática (em meu corpo) a possibilidade de estabelecer métodos que possam trazer os mitos para a cena a partir de trabalhos com o inconsciente.

Só agora consigo perceber o quanto a Caixa de Pandora foi aberta de maneira a proporcionar inúmeras possibilidades de olhar, afinal, o mito é universal, conversa diretamente com as artes e pode nos conduzir a infinitas teorias que passam pela Psicologia, pela História, por processos criativos e por resultados estéticos.

Após o meu ingresso oficial no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena a pesquisa ganhou novos caminhos e isso também me trouxe algum desconforto, pois o tema da mitologia pode nos desviar facilmente do foco inicial, abrindo possibilidades incríveis e igualmente fascinantes. Aqui entra, então, o trabalho da pesquisadora que não pode perder-se nas paixões que a temática da pesquisa pode lhe proporcionar;

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pois, por mais fascinante que o tema seja, existia uma pergunta a ser respondida e, para isso, iniciei o raciocínio indutivo e dedutivo (numa constante mescla onde usava um e/ou outro) a partir da pesquisa teórica estabelecida inicialmente e defini o que eu entendo por mito e por corpo na dança.

Esse trânsito entre os diferentes raciocínios (abdutivo, indutivo e dedutivo) é comum na realização de pesquisas em todas as áreas, afinal, uma das características mais fortes de toda pesquisa é a descoberta de novas propostas e novos pensamentos, teóricos ou práticos, que acabam conduzindo o pesquisador a novas abduções e, consequentemente, a novas induções e deduções.

Assim, para esclarecer alguns pontos que serão explanados a seguir, considero importante ressaltar que as definições de mito e corpo aqui apresentadas só foram possíveis graças a um estudo teórico aprofundado no que tange as relações entre o mito e o corpo, os quais conduziram à construção deste corpo que trabalha o mito na cena, corpo esse que eu chamo, nesta pesquisa, de corpo mitológico. Apresentarei, portanto, ao longo desta tese, a definição desse tipo de corpo cênico advinda tanto de minha pesquisa teórica e bibliográfica quanto de minha experiência de quase vinte anos como dançarina e amante da mitologia.

Para clarear a hipótese da presença do corpo mitológico –e considerando minha prática efetiva como dançarina e investigadora do mito na cena– esse trabalho parte da análise de experiências práticas que contribuíram significativamente com o trabalho do corpo mitológico na cena, considerando a pesquisa artística-científica composta por aspectos teóricos e práticos e, em especial, pela experiência única e individual de cada artista.

Porém, não podemos esquecer que a pesquisa acadêmica, independente da área de conhecimento, deve ser estabelecida por metodologias e procedimentos bastante específicos e claros –mesmo que diferenciados, graças às especificidades de cada uma das áreas. Isso é importante não só para legitimá-la enquanto pesquisa científica, mas também para nortear o pesquisador, que pode facilmente se perder no conteúdo da Caixa de Pandora.

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A pesquisa foi, portanto, realizada por meio de pesquisas teóricas –acerca da presença do mito na História da Dança e do mito no inconsciente humano, por meio dos estudos de Carl Gustav Jung– e por meio de pesquisa prática em laboratórios de dança que pudessem conduzir meu corpo a um possível corpo mitológico.

Considero de igual importância deixar clara a opção feita por mim pela escrita deste texto. Esclareço que a narrativa mitológica não é obvia como a maioria das narrativas e as histórias dos mitos são apresentadas com tempos, espaços e experiências completamente diferenciados daqueles de nosso cotidiano e, por isso, são consideradas fantásticas e irreais. O mito é uma forma de expressão humana não objetiva, com significados complexos e subjetivos –conforme verificaremos ao longo do texto.

Dessa forma, optei por escrever um texto “poético-científico”, unindo a lógica da ciência –e apresentando embasamentos teóricos para os questionamentos que envolvem a pesquisa acadêmica– à liberdade da criação artística –por meio de cartas e diálogos entre deuses mitológicos. Assim, encontrei um caminho para uma escrita que atendeu, sob meu ponto de vista, a pesquisa acadêmica em artes e o tema mitológico em questão, com sua lógica não linear e suas nuances poéticas.

Portanto, finalizo a introdução a esta pesquisa dizendo que a Caixa de Pandora está aberta e que convido os leitores a descobrir comigo seu conteúdo para que, assim, a partir da possibilidade da compreensão sábia do estudo científico em arte, talvez possamos justificar a condenação cruel que os deuses do Olimpo enviaram a Epimeteu e a Prometeu, fazendo valer a pena o roubo do fogo da sabedoria executado por esses irmãos Titãs.

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CAPÍTULO 1: AS DIVAGAÇÕES DOS DEUSES DO OLIMPO ACERCA DA MITOLOGIA NA DANÇA

1.1 - Carta de Apolo para Dionísio: a presença da mitologia, da Dança Primitiva ao Balé Clássico.

Caro Dionísio,

em vários momentos, daqui, sentado em meu trono, enquanto toco meus instrumentos, e em meio a minhas divagações, sinto vontade de encontrar-lhe para discutirmos muitas coisas, sobre muitos temas diferentes. Mas os diversos assuntos que nos concernem nos tomam tanto tempo que mal conseguimos nos falar, não é?

Algumas coisas que me passam pela mente só você entenderia. Você, Dionísio, que, como eu, é filho de Zeus, conseguiria entender minhas inquietações a respeito de assuntos tão diversos, e penso que nós, deuses irmãos, temos muito mais em comum do que gostamos de assumir. Gostaria de falar-lhe, por exemplo, sobre as discussões entre os deuses; sobre algumas reuniões que fazemos no palácio de nosso pai no Olimpo e que me deixam irado; sobre as nossas vaidades que, tantas vezes, ao longo de nossa milenar história, mudam o rumo do universo e, principalmente, mudam o destino dos humanos.

Como você sabe, desde que Prometeu criou os seres humanos a partir do barro e entregou o fogo da sabedoria dos deuses a eles, esses humanos vêm nos colocando em claros apuros e, na maioria das vezes, eu nem sei como agir e fogem-me as soluções perante tanta loucura. Para mim, fica cada vez mais claro que Prometeu deveria ter recebido um castigo ainda maior, por ter-lhes entregue o fogo, do que apenas ter seu fígado comido lentamente pelos abutres; afinal, sempre considerei que dar sabedoria aos seres humanos não foi, nem de longe, uma boa ideia. Foi como dar pérolas aos porcos e a prova disso é o quanto trabalhamos para resolver seus erros desde então!

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O que me levou a escrever-lhe hoje, caro Dionísio, é, justamente, um comentário que você fez em um de nossos últimos encontros no Olimpo. Quando discutíamos com Minerva sobre sua ajuda a Prometeu (pois foi ela quem facilitou o roubo do fogo e, quanto a isso, já não nos restam dúvidas), você interveio, dizendo que a sabedoria possui diversas facetas, e que, nos humanos, o dom da arte seria uma dessas facetas. Ora, Ora, Dionísio! Então, vem você atribuir a arte à sabedoria dos humanos?! E eu, que sempre a elenquei como um dom igual aos outros que demos aos homens, completamente separado da sabedoria –como o dom de amar, o dom de pensar, o dom de reproduzir– comecei a refletir e questionar-me sobre minha posição contrária ao ato de Prometeu. Eu considerava que demos a eles um pouco de sensibilidade para balancear o excesso de racionalidade. Entendia, em outras palavras, que a arte seria fruto de nós dois, você e eu, Dionísio e Apolo, balanceando a existência confusa dos humanos. Mas sua última colocação fez-me refletir muito e, então, venho, nesta carta, expor-lhe o que penso a respeito da arte e creio que compartilhar com você minhas reflexões possa clareá-las inclusive para mim, pois, como você bem sabe, posso ser demasiadamente racional em muitos momentos e aproveito dessa minha característica para tentar entender a sagacidade que você atribui à arte.

Quero deixar claro que, mesmo depois de séculos e séculos de convivência com os humanos, não consigo compreendê-los por completo e, às vezes, penso: onde erramos para torná-los seres tão complexos que nem nós mesmos conseguimos entender? Veja, por exemplo, os filósofos, os cientistas e os pesquisadores que alguns deles se tornaram. É tanta explanação, tanta justificativa, tanta retórica, que me perco completamente na maioria das teorias que eles elaboram. Mas, tentando fazer jus ao meu papel divino, leio e releio tudo o que eles escrevem centenas de vezes para tentar entendê-los e não cometer equívocos ao deliberar sentenças para seus destinos. Mas acho que eles complicam tudo cada vez mais! Toda a natureza da sensibilidade que lhe demos perde-se em tantas elucubrações, não acha?

Assim, para tentar esclarecer o que venho refletindo sobre a arte humana –e também para ver se meu raciocínio alcançou a grandeza de sua colocação, Dionísio–

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eu usarei algumas das teorias criadas por nossa criação (que ironia!). Ou seja, vou buscar, em alguns autores humanos que viveram e escreveram ao longo dos séculos, e também em alguns de seus feitos artísticos, recursos que me auxiliem em minha reflexão. Escolhi esse caminho para tentar me aproximar de seus pensamentos e, também, para tentar entendê-los a partir deles mesmos. Além disso, resolvi embasar-me no campo do saber artístico (como os humanos costumam chamar um dos ramos de sua ciência) para achar soluções a algumas de minhas dúvidas e para poder refletir sobre a sagacidade da arte.

Penso que eu –considerado pelos próprios humanos o deus da música e da poesia, e quem busca atribuir ordem ao fazer artístico– juntamente com você – considerado o deus das sensações e emoções carnais, o qual, além disso, graças às questões históricas que considerarei adiante, é também o deus das artes da cena– poderemos discutir e entender melhor a arte como uma possível faceta da sabedoria a partir desses autores humanos. Claro que considero importante salientar que somos deuses e que a lógica deles não passa nem perto da verdade que conhecemos e que, justamente por isso, meu raciocínio não será tão linear como estamos habituados a verificar no discurso científico humano. Apenas buscarei reforço em suas considerações para poder fazer as minhas; afinal, sou um deus do Olimpo e, como tal, tenho total liberdade para formular, reformular e embaralhar as teorias humanas.

Acrescento, também, que me alivia poder discutir a arte, pois a ela ainda resta um respiro em relação aos excessos da errônea racionalidade humana. Apesar disso, devo lembrar-lhe de que alguns desses “artistas-pesquisadores” que surgiram no último século têm me decepcionado um pouco com tantas teorias em torno de algo que lhes oferecemos com tamanha sensibilidade. Sim, eu compreendo a situação em que eles se encontram ao entrar na academia e buscar legitimação de seu espaço enquanto ciência; mas muitos deles tornam essa tarefa uma “faca de dois gumes” ao usar teorias que não dialogam com o sensível, matando, assim, a beleza que a leveza da arte poderia trazer à academia.

Justamente por isso, procurarei usar autores que dialoguem com o sensível humano e com a relação delicada entre o homem e os fenômenos que o rodeiam. Em

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especial, vou usar autores que entendem a nossa presença no fazer artístico, ou seja, autores que tratam da mitologia –nome que eles dão às nossas ações que eles não conseguem explicar4– como campo dessa tal sabedoria artística que você defende.

Aqui, permito-me, mais uma vez, usar de minha vaidade; afinal, sou um deus e uma de minhas mais fortes características é, justamente, minha vaidade. Claro que falar da sabedoria e da arte sem passar por tudo o que nós, deuses, lhes oferecemos em troca de respeito e devoção seria completamente descabido. Afinal, os humanos, a arte e tudo mais o que existe só existe porque nós autorizamos sua existência! Nós criamos tudo, não é, Dionísio? Se não quisermos mais nada disso, teremos o direito (e o capricho) de acabar com tudo e recomeçar de outro jeito.

Aliás, você se lembra como a arte começou, segundo a mitologia grega5? Não foi com o fogo de Prometeu, e, sim, com Zeus, nosso pai, que criou as deusas da arte para que elas cantassem e dançassem a nossa vitória na batalha contra os Titãs. Nós, então, resolvemos atribuir aos homens esse dom quando emprestamos a Prometeu um pouco de nossas habilidades, isso para que ele pudesse criar os seres humanos. Sua teoria seria de que a sabedoria conseguiu lapidar a arte, mas não criá-la. Ou me engano? Vou entender sua colocação e sua defesa a Prometeu a partir dessa afirmação, pois considero que você sabe bem disso.

Bem, tenho também que pedir desculpas a você pelo excesso de racionalidade que este texto pode vir a conter, considerando que você não gosta muito de racionalizar. Além de usar autores humanos que tratam a humanidade como ciência (e não como existência pura), lembro-lhe de que sou o deus do logos. E você, que não precisa verbalizar sobre assunto algum –que só sente em sua existência de prazer, e, assim, entrega-se às fruições que a vida promove– pode vir a se cansar ao longo de minhas reflexões. A mim, cabe-me a função de sempre dar aos homens uma certa lógica, e a palavra esclarece muito aos deuses e aos mortais que ainda não aprenderam a sentir como você, e que ainda não entenderam que minha lógica também não é baseada na racionalidade, ou melhor, na forma como eles entendem essa

4

Explicarei com calma esse termo adiante.

5

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palavra; mas que essa minha racionalidade pode surgir de naturezas diferentes da razão intelectual, como a razão corporal e a emocional, por exemplo. Por isso, peço-lhe a gentileza de acompanhar minhas reflexões, que, certamente, irão me ajudar a tomar uma posição definitiva no que concerne ao roubo do fogo dos deuses e na condenação de Prometeu.

Inicio minhas considerações a partir da análise sobre a necessidade que o humano tem do fazer artístico e de como ele lidou com essa necessidade ao longo de sua existência. Se observarmos atentamente a História da arte dos humanos, podemos entender que o fazer artístico vai além da necessidade de comunicação da maneira como é atribuída pelos historiadores humanos, sendo este uma necessidade de expressar suas sensações em relação ao mundo. Verificamos que, desde que Prometeu criou o ser humano, o mesmo expressa sua existência e sua relação com os fenômenos por meio da arte. Inclusive, podemos lembrar que, desde suas pinturas rupestres eles mostram –em meio às imagens de caçadas e do cotidiano em que vivia o Homem Primitivo6– o próprio princípio da arte, que é, sob meu ponto de vista, a nossa influência sobre os homens.

Sim, Dionísio, parece mais uma vez pretensioso de minha parte fazer essa afirmação, mas você há de concordar comigo que nós, os deuses do Olimpo ou de qualquer outro lugar (dependendo da forma de nossa manifestação escolhida por cada diferente civilização), fomos e somos a maior inspiração artística e, consequentemente, a grande fonte de compreensão das sensações dos seres humanos. Portanto, gostaria de analisar a presença da arte e sua possível atribuição à sabedoria a partir da seguinte premissa: a arte só pode ser uma faceta da sabedoria se a observarmos como canal de conexão com o sagrado.

Ora, Dionísio, eu lhe esclarecerei essa minha colocação. Você se lembra como o homem primitivo se relacionava com os fenômenos nessa época? Claro que sim,

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Vou chamar de homem primitivo aquele que viveu na época da Pré-História, usando esse termo não como reflexo de uma possível ignorância ou falta de conhecimento dos mesmos, mas apenas para contextualizá-lo no tempo, pois sabemos que ignorância e falta de conhecimento são atribuições que

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ainda mais você, que é louvado desde que o homem se percebeu como um “ser de sensação”.

Ao que consta a nós, deuses, você foi um dos responsáveis pela existência do homem da maneira como o conhecemos, pois sabemos que, em sua criação, não escaparia ao homem nenhum dos atributos doados pelos deuses e, com os atributos doados por você, não foi diferente. Sabemos, ainda, que o ser humano oriental deu-se conta de sua existência, Dionísio, desde o período que eles batizaram de Neolítico (quarto milênio a.C.), mas ali eles ainda o chamavam de Shiva. Aliás, demorou muito para que eles entendessem que você, Shiva7 e Baco eram o mesmo deus, mas sei que você usou de suas artimanhas para confundi-los, pois também sabemos que você corria pelas terras da África primitiva como Exu, o Orixá Yorubá que, por suas características sensuais e carnais chegou a ser considerado pelos ocidentais como o Orixá Satanás8. Você e suas artimanhas, Dionísio...

Porém, o homem ocidental parece ter se dado conta da sua existência apenas no período da civilização minoica (entre os séculos XX e XV a.C.).

Permita-me fazer uma breve observação sobre as obtusidades humanas: eles só conseguem enxergar o que lhes é “cientificamente comprovado”! Com essa nuvem de fumaça em sua frente, não conseguem ver que o culto aos deuses, independente de provas científicas, existe desde que os criamos. Afinal, eles sempre nos deveram obediência e respeito, e isso nós fizemos questão de lhes ensinar assim que eles foram criados. O que torna, portanto, sua relação conosco algo tão antigo quanto a existência deles; aliás, o culto a todos nós é muito mais antigo do que eles podem provar cientificamente.

Continuo minhas considerações dizendo que é “cientificamente comprovado” que você aparece para eles nesse período primitivo e segue junto com o desenvolvimento das civilizações. Sabemos que essa civilização minoica –que

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As considerações sobre o sincretismo entre Shva e Dionísio podem ser encontradas em DANIÉLOU, Alain. Shiva e Dionísio. Trad. Edison Darci Heldt. São Paulo: Ed. Martins e Fontes, 1989.

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As considerações sobre o sincretismo entre Shiva e Exu podem ser constatadas em PRANDI. Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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antecede a civilização cretense e, consequentemente, a grega– foi fortemente influenciada pela civilização asiática, em especial, pela civilização indiana, levando o Shivaísmo (ou o Dionisismo) aos ocidentais.

Entre tantos rituais dedicados a você, lembro que a dança sempre esteve presente, como uma forma de atingir sua força a partir do que eles entendiam possuir de mais sagrado: seus corpos. O homem primitivo entendia que, sem seus corpos, nada aconteceria, pois, neles e a partir deles o homem vivenciava cada instante de sua existência; afinal, que outra maneira eles possuíam para se relacionar com o mundo? Assim, em muito pouco tempo, eles descobriram que dançar seria a maneira mais sincera de nos louvar.

Claro que esse foi um dom dado aos humanos pelas nossas conhecidas colegas, as Três Graças, Eufrosina, Aglaé e Talia, juntamente com nossa irmã Terpsícore, a deusa da dança e todos nossos colegas orientais (deuses e deusas da dança) e os Orixás africanos. E você sabe que não existe maneira mais completa de louvor a qualquer um dos deuses do que entregar o corpo ao sagrado do qual ele veio. O corpo do ser humano é, sem sombra de dúvida, uma de nossos maiores feitos e, nisso, Prometeu acertou em cheio! O homem primitivo sabia e percebia a grandeza de seu corpo, pois, em sua relação com nossas criações no universo –a natureza– ele conseguia entender o corpo como manifestação da vida, dos fenômenos, do sagrado e, consequentemente, como nossa própria manifestação. Lembro-me de que pedimos a Prometeu para construir o corpo do Homem à nossa imagem e semelhança, ou seja, perfeito! E o homem primitivo percebia, acreditava e vivenciava essa premissa, deleitando-nos com seu louvor maior que é entregar-nos seus corpos, sua maior preciosidade, por meio da dança.

No que concerne a seu culto, Dionísio, o homem primitivo realizava esse louvor de maneira muito profunda, entregando-se ao êxtase do transe e construindo em seu corpo um verdadeiro canal de comunhão com o universo que lhe oferecemos. A energia gerada por seu corpo a partir do movimento, seguia, conversava e chegava direto a você! Quantas vezes, naquela época, eu o procurei e o encontrei junto aos seus seguidores humanos que dançavam em transe e em comunhão com você. E

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então, Euterpe –a deusa da música– e eu juntávamo-nos a você assim que ouvíamos um tambor ser tocado ou um canto ser entoado.

Vê como falta sabedoria aos humanos? Eles separam todos os rituais que dedicam a nós, acreditando que as coisas sagradas são separadas umas das outras; que em um ritual de dança eu não estaria presente; ou que, em qualquer outro ritual, todos nós, deuses –seja da região ou da religião que for, com o nome que eles quiserem nos dar– não possamos nos reunir, promovendo a verdadeira união com o universo! Você entende, caro Dionísio, a minha dúvida quanto a Prometeu ter-lhes conferido o fogo sagrado? Os humanos não combinam com tamanha preciosidade!

Bem, sigo buscando algo que me convença do contrário para que eu possa sempre ser um deus justo. Não quero parecer radical ou irredutível. Por isso, sigo com minhas reflexões e, neste ponto, esclareço-lhe que usarei a linguagem da dança como exemplo em minhas considerações, justamente por entendê-la como um canal direto e completo de comunicação conosco, os deuses, conforme já expliquei anteriormente.

Continuando minhas recordações, podemos dizer que desde que o humano se deu conta de sua existência, você, Dionísio, e todos nós, deuses, já estávamos presentes em seu cotidiano, no que, algum tempo mais tarde, eles deram o nome de mitologia.

Convém, agora, pararmos um minuto para analisarmos a palavra “mitologia”. Podemos iniciar essa análise verificando que, na era primitiva, esse termo não teria nenhum cabimento; afinal, dar nome a algo que não se consegue explicar racionalmente é coisa dos humanos da atualidade, porque tudo nos prova que, ao longo dessa chamada “evolução humana”, o humano foi esquecendo-se de nossa presença em seu cotidiano e dando-nos o caráter de ficção, de mentira e de imaginário criativo de seus ancestrais.

Permita-me iniciar as primeiras referências de autores humanos que justificam essa minha afirmação. O que chamo aqui de mitologia pode ter várias definições e vamos lançar um olhar cronológico para essas, a fim de entendê-las melhor. Por exemplo, a definição de Conde D´Alviella (1995, p.24) é de que o mito seria a

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dramatização de fenômenos naturais, ou de eventos abstratos; para César (1988, p.37), o mito é a expressão simbólica de valores, a qual acontece nas narrativas míticas (sua forma primordial, seja ela oral ou escrita) e é representada na arte de várias maneiras, na pintura, na dança, no teatro. Por fim, para Rocha (2012, p.23), o mito é uma forma de as sociedades espalharem suas contradições e oferecerem a possibilidade de se refletir sobre a existência, o cosmos e a situação de estar no mundo.

Em cada uma dessas definições (e ainda em muitas outras que podemos encontrar nos estudos da mitologia), o mito aparece como símbolos9 que o homem usa para manifestar algo que está além de sua compreensão intelectual para os acontecimentos ligados ao universo, à natureza ou até mesmo às suas condutas. Muitos autores defendem a mitologia como parte da existência humana, mas não como essência dessa existência, assim como nós, os deuses, sabemos que somos.

Dentre tantas definições, considero importante destacar a de um mitólogo e filósofo que viveu no século XX, Mircea Eliade, a qual parece-me ter chegado bem perto da verdade, pois ele entendia o mito como uma realidade extremamente complexa:

Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. (...) o mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. (...) Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. (ELIADE, 2004, p.11)

Você percebe, caro Dionísio, o quanto o autor aproximou-se da verdade? Pois sim, o que o homem chama de mito é a narração de nossas histórias –ou de outros seres que eles consideram “sobrenaturais”–, e, às vezes a descrição de quem somos e de nossos feitos para tornar o universo como ele é. E, mais ainda, o mito fala do que

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Caro Dionísio, esclareço que, quando eu usar a palavra “símbolos”, estarei referindo-me a uma imagem (material, ilustrativa, emocional ou mental) que representa algo além de seu significado convencional. Uso aqui a palavra para designar a expressão coletiva de algo desconhecido, intuído, não sabido. (WURZBA, 2011, p.65-66). Esclareço também que esse termo é complexo e que, por

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realmente aconteceu, e não de uma mentira ou de uma invenção para tornar a realidade mais bonita. E, como vimos, o homem primitivo entendia isso plenamente; afinal, em seus rituais, ele tentava nos contactar de todas as maneiras possíveis para que, de alguma forma, pudéssemos realmente chegar até ele! Não era ficção, era realidade! Era a realidade em que ele acreditava e enxergava com tamanha grandeza!

Para esses humanos, o mito não contava mentiras, mas ajudava-os a entender o universo e as relações estabelecidas com ele. Assim, considerando que seus corpos eram seu canal mais forte (e talvez o único que eles tinham e ainda têm) de relação com esse universo, as manifestações de suas danças sagradas eram uma maneira muito profunda, e a mais simples, de chegarem até nós. Principalmente até você, não é, Dionísio? Que é sensação e emoção personificada e que entende que é no êxtase do movimento do corpo onde a existência se dá por completa. E sentindo assim foi que os seres humanos primitivos seguiram, dançando em transe, em embriaguez e em um estado de consciência completamente irracional, alterado, não linear: enfim, em um estado corporal mitológico, com um corpo que se relacionava diretamente com seus mitos.

Chegamos a um ponto extremamente importante para continuarmos minhas reflexões. Quero deixar claro que eu considero o corpo humano como uma criação sagrada, em todos os sentidos do que pode significar essa palavra. Afinal, se ele foi, e ainda é, o único caminho para chegar até nós, os deuses, como ele haveria de ter outra natureza, se não a sagrada? E, por isso, entendo que a dança primitiva acontecia de maneira tão intensa a ponto de nos levar até os humanos e de nos embriagarmos em seu êxtase!

Ah, corpo humano! Tudo acontece nele, com ele e a partir dele. Nós, os mitos (vou acabar referindo-me a nós, deuses, aos seres sobrenaturais, e aos nossos feitos como tal), concretizamo-nos nele, e, a partir dessa compreensão, podemos clarear um pouco mais meus pensamentos usando a definição de mito que realmente me agrada e que vai permear, profundamente, meus escritos: o mito, ou as histórias primordiais sagradas, acontecem e manifestam-se nos corpos humanos e, por isso, confundem-se com eles.

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Vou buscar, mais uma vez, a referência teórica de alguns autores humanos que me ajudaram a chegar a essa conclusão, e inicio com Rubem Alves (1988), que introduz o tema de maneira poética e, no meu ponto de vista, bastante lúcida:

Não, o mito não diz como as coisas se deram. O que ele faz é reconstruir a beleza trágica e comovente do destino humano de que todos participamos. E quando os nossos corpos estremecem ao ouvir o coro que canta, sentimos que navegamos juntos... O mito pequeno tece o meu corpo. Espelho em que contemplo a minha alma. O mito grande amarra os corpos solitários num destino comum. (ALVES, 1988, p.20)

Esse autor defende o mito como um caminho para o olhar sensível e sensorial sobre os fenômenos, e é claro que nós, os deuses, sabemos que somos bem mais do que isso. Porém, também somos isso, ou seja, somos uma maneira de aproximar o humano da realidade sensível dos fenômenos que os rodeiam. Em meio a essas considerações sobre o mito e o sensível, Alves nos fala que o mito amarra e tece os corpos humanos, tornando-se parte intrínseca de sua composição – corpo formado por todas as suas dimensões, que chamarei de corpo soma10. Assim, se o mito compõe o corpo humano, a dança pode ser considerada uma maneira de ressignificar os mitos a partir do movimento, sendo um caminho para reviver o sagrado mitológico e a nossa existência real, de forma profunda.

Acompanhe meu raciocínio, caro irmão. Se o corpo é o canal sensível dos humanos, quando eles dançam, seus corpos estão em movimento contínuo de transformação, de dilatação e de integração com o universo. Dançar torna-se, portanto, parte da transformação constante que o universo sofre, fazendo, assim, com que o ser humano se transforme junto com o universo e, consequentemente, junto com o sagrado mitológico que o compõe. Afinal, o sagrado mitológico também não é algo imutável, mas, sim, parte da transformação constante que atribuímos como característica dos fenômenos.

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Espero que você tenha entendido meu irmão, que considero o corpo humano como sendo composto por um conjunto de processos físicos, psicológicos, biológicos, emocionais, psicológicos, sociais, etc,

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Acho importante pararmos um instante por aqui para que eu possa lhe definir o que eu entendo como “sagrado”; afinal, são inúmeras as possibilidades de interpretação dessa palavra. Esclareço a você, Dionísio, que sagrado é, para mim, o nome dado ao que nos concerne, ou seja, o nome dado a nós, deuses, e todos os fenômenos do universo que criamos.

Você poderá observar no dicionário dos humanos (criados para dar significados ao que eles mesmos nomeiam) que a palavra “sagrado” é um adjetivo:

Consagrado ao culto: vasos sagrados. / Que recebeu a consagração, que cumpriu as cerimônias de sagração. / Relativo à religião ou ao culto. / Inviolável. / Venerável, respeitável: compromisso sagrado. // Fig. Fogo sagrado, sentimentos nobres e apaixonados: o fogo sagrado da liberdade. // Livros sagrados, o Antigo e o Novo Testamento. / &151; S.m. O que é sagrado: o sagrado e o profano. // Sagrado Coração, o Coração de Jesus, venerado pelos católicos. (Disponível em www.dicionariodoaurelio.com/)

Ora, meu caro irmão, pois esse dicionário nos apresenta palavras

desconectadas e lança ideias sem explicação, concorda? Algo que é “consagrado ao culto” não é uma explicação da palavra “sagrado”, muito menos “sentimentos nobres, apaixonados”. O que é isso, agora? Esse tal de dicionário deveria ter a função de explicar, e não de complicar ainda mais as definições que já não são nada simples!

Sagrado é, sob o meu ponto de vista, apenas o que é venerável e respeitável, como nós, deuses, e tudo o que criamos; portanto, quando uso essa palavra nesta carta , refiro-me ao que diz respeito a nós, deuses, e não a todo esse resto de coisas que os humanos batizam, sem nenhum critério, de “sagrado” e muito menos

restringindo a uma religião ou outra. Assim, sagrado aqui é tudo o que for relativo aos deuses e aos nossos feitos; quero, também, deixar claro que considero o corpo humano sagrado, pois ele é nossa criação.

Posto isso, podemos, então, concluir que os humanos da Pré-História nos ofereceram a primeira definição de um corpo sagrado, quando usavam o mesmo para nos louvar, para louvar nossas criações, ou seja, para louvar seus mitos. Eram corpos potentes, no sentido de alcançar o que é realmente sagrado no que diz respeito aos

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mitos. Aliás, eu defendo, a partir de agora, a existência do corpo mitológico, que é o corpo que alcança o sagrado mitológico no momento da dança.

Veja só, Dionísio, eu, que tanto critiquei os humanos e suas teorias, venho formular uma! E perceba que ela também não é tão simples assim, pois falar de corpo

mitológico significa ver o corpo do humano que dança como uma manifestação e um

canal do sagrado que, concomitantemente, constrói e revela a relação entre o homem e o mito.

Confesso-lhe que essa teoria não surgiu somente da leitura dos excertos de Rubem Alves, pois li muitos outros autores e filósofos que tratam o tema do mito na arte para tentar entender sua colocação na última reunião dos deuses no Olimpo e pretendo usá-los ao longo dessa carta. Assim, a partir da leitura que fiz de alguns livros de outro mitólogo, também do século XX, Joseph Campbell, pude compreender que não é possível entendermos o mito separando-o do corpo:

A mitologia é uma função biológica [...] um produto da imaginação da soma. O que os nossos corpos dizem? E o que eles estão contando? A imaginação humana está enraizada nas energias do corpo. E os órgãos do corpo são os determinantes dessas energias e dos conflitos entre os sistemas de impulso dos órgãos e a harmonização desses conflitos. Esses são os assuntos que tratam os mitos. (CAMPBELL, 1980, apud KELEMAN, 2001, p.25)

Observe, Dionísio, que, para esse autor, o ser humano só pode entender um mito a partir de seu corpo, que revive o mito a todo instante, inclusive no sentido biológico. Keleman (2001), ao dialogar com as teorias de Campbell, afirma que cada ser humano é um nômade, uma onda que dura por algum tempo e então assume uma nova forma somática (KELEMAN, p.101), e que essa transformação perpétua é o assunto de todos os mitos. Segundo esse ponto de vista, o corpo de cada humano é único e, por isso, seria esse corpo único quem determinaria os mitos com os quais cada um dos homens envolve-se e identifica-se e, indo ainda mais fundo, seriam seus corpos os determinantes na construção das narrativas míticas, o que faria o mito surgir desses corpos e representaria seus processos de desenvolvimento e de relação de trocas com

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o mundo. Dessa forma, segundo o autor, o mito seria uma história que brota de um processo corporal para orientar suas vidas e indicar seus valores:

O mito é uma maneira de perceber os mundos interior e exterior. O corpo organiza a sensação que emerge do metabolismo tissular e isso é o que chamamos de consciência. Esse processo somático é a matriz para as histórias e imagens do mito. (CAMPBELL, 1980, apud KELEMAN, 2001, p.27)

Fazendo uma análise mais profunda sobre essas considerações, observamos que o autor inicia um processo de inversão do que era identificado como mito até então, considerando-o não como uma história que o homem usa para responder a questões que estão acima de sua compreensão racional, mas, sim, a maneira como o corpo humano entende o mundo, a partir de seu saber sensível, ou seja, de seu saber não racional/inteligível, mas corporal, transformado em narrativa mítica.

Além disso, considero importante explicar-lhe que, ao longo de seu texto, Keleman não usa a palavra “imaginação” como sendo algo criado pelo homem a partir de sua criatividade racional, mas como sendo uma característica humana sensível, que brota de sua relação com o mundo sutil, ao que podemos atribuir também às questões sagradas, como, por exemplo, a existência de nós, os deuses.

Observe, Dionísio, como tudo parece fazer sentido agora. O mito torna-se o resultado das necessidades que o corpo tem de organizar suas percepções e, portanto, os mesmos falam do corpo e da natureza de experiência deste corpo. E, justamente, por ser resultado de uma experiência somática como é o corpo, o mito acabaria por ditar regras, condutas e valores captados, entendidos e adotados por outros corpos.

Dionísio, eu imagino que você deva estar exclamando: “Agora, sim! Agora eles parecem ter entendido algo sobre nós e, finalmente, mostrado a sabedoria da arte por meio de seus corpos dançando!” E eu concordo que, às vezes, eles chegam quase perto da verdade sagrada, como fez o humano na Pré-História. Mas é só quase perto, porque o que veremos a seguir mostra que o corpo mitológico foi, ao longo da História humana ocidental, sendo esquecido, negligenciado, e quase totalmente abandonado –

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mesmo pelos dançarinos– o que torna sua defesa da sagacidade da arte ainda bastante insatisfatória para mim.

Antes de continuar minhas colocações, considero importante deixar claro que não quero traçar-lhe nenhum tipo de panorama histórico, por não ter o intuito de fazer-lhe retrospectivas e, também, para não parecer-fazer-lhe redundante, pois você estava presente em todos esses acontecimentos e existem inúmeros humanos historiadores que já o fizeram, não me cabendo repeti-los. Pretendo, apenas, falar-lhe sobre alguns momentos dessa história nos quais podemos verificar a sabedoria ou a falta dela quando o ser humano lida com a arte, em especial, com a dança –lembrando-lhe, sempre, que, no meu ponto de vista, se não há nossa presença (a presença do que os humanos chamam de mito e de seres mitológicos), não há sabedora na arte!

Por isso, não vou detalhar todos os momentos que marcam a História do homem no mundo e vou passar diretamente para a Idade Antiga (4000 a.C. – 476 d.C.) quando conseguimos –você e eu, Dionísio– realizar um de nossos desejos mais fortes e, em uma ação inspirada, mandamos os poetas gregos como nossos representantes na Terra para dizer aos humanos como tudo realmente aconteceu. E, então, por meio das chamadas Tragédias Gregas, conseguimos unir nossas forças e colocamos a minha racionalidade e a sua sensibilidade em função da arte.

Chego a suspirar ao me recordar das Tragédias Gregas! Elas traduziram a relação dos humanos com o universo de maneira singular. Os poetas mostraram nossa influência sobre os humanos e contaram as histórias mais incríveis sobre nossos feitos, mas, principalmente, e acima de tudo, tentaram mostrar-lhes que você e eu não somos duais e contraditórios como eles pensam. Tentamos dar função à sabedoria que Prometeu lhes deu, não acha? Não acha que a Tragédia Grega foi nosso encontro mais fortuito? Nossa fala mais sintonizada? Corpo e mente, fala e ação se complementando e mostrando que são uma coisa só, que são equilíbrio puro! A Tragédia Grega não separava meu logos de suas sensações, mas mostrava que complementávamos um ao outro a partir do coro –que era a representação de compreensão do universo como um todo, sem separação, sem distinção, em puro

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êxtase da existência, ou seja, sua representação mais genuína– e da poesia falada, racionalizada e estruturada, ou seja, de minha fala ao mundo dos mortais.

Se observarmos atentamente as colocações de Nietzsche (1844-1900) –um desses filósofos a quem demos o dom de confundir os humanos–, verificamos que ele traça nosso perfil e a relação dos gregos conosco sugerindo, a partir daí, a origem da Tragédia Grega.

Você já o leu, Dionísio? Já leu Nietzsche? Faça isso quando tiver um tempo, e perceba como é interessante o que ele descreve sobre nós dois, atribuindo-nos características de dualidades complementares. Ele entendeu que eu só posso ser seu complemento, Dionísio, provando, também, que as minhas características de racionalidade, linearidade, minha forma e minha consciência não sobrevivem (e nem teriam motivo para tal), sem a essência natural, sem a desmedida, sem a embriaguez da insensatez que você oferece ao mundo:

A ambas as divindades artísticas destes, Apolo e Dionísio, está ligado o nosso reconhecimento de que existe no mundo grego uma enorme contradição, entre a arte e a de Dionísio; ambos os impulsos, tão diferentes, marcham um ao lado do outro, na maior parte das vezes em luta aberta e incitando-se mutuamente para novos partos, a fim de neles poder perpetuar a luta deste contraste, que a palavra comum “arte” somente na aparência consegue anular; até que eles, afinal, através do milagroso ato metafísico do desejo helênico, aparecem unidos, produzindo, por fim, nesta união, a obra de arte, tanto dionisíaca quanto apolínica, da Tragédia Ática. (NIETZSCHE, 1948, p.35)

Não lhe parece que o que esse filósofo fez foi entregar a verdade aos mortais e eles, não sabendo usar a sabedoria que Prometeu lhes deu, não entenderam de uma vez por todas quem somos e como realizamos nossos feitos? Eles continuaram sem entender a dualidade complementar que os deuses apresentam. Afinal, mesmo as outras mitologias são embasadas nesse conceito de que a dualidade é necessária para a manutenção do universo e conosco não pode ser diferente. Na mitologia, sempre há um polo que sustenta sua oposição, sempre existe um equilíbrio de forças, de ação e de pensamento.

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Será, Dionísio, que eles nunca pararam para analisar as mitologias indígenas? As mitologias indianas? As mitologias japonesas e africanas? Não é só no Ocidente que encontramos as respostas para as inquietações humanas! Nós tentamos dividir e espalhar as respostas pelo mundo para que todos os seres humanos tivessem acesso a elas, mas eles insistem em olhar somente para suas próprias civilizações! Se olhassem ao redor, veriam que nossas manifestações em outras culturas também só existem enquanto complementos umas das outras.

Mas, mesmo sendo Nietzsche um grande filósofo, foi Colli (1996) quem propôs um interessante complemento ao olhar de Nietzsche quando sugeriu que você e eu não só nos completamos, não somos somente deuses duais em nossa essência, mas que somos deuses que se confundem e que se fundem no que diz respeito à sabedoria, ao conhecimento e à loucura da mania11:

Aqui, uma testemunha com o peso de Platão sugere-nos, pelo contrário, que Apolo e Dionísio possuem uma afinidade fundamental, justamente no terreno da “mania”, juntos eles esgotam a esfera da loucura e não faltam bases para formular a hipótese- atribuindo a palavra e o conhecimento a Apolo, e a imediatez da vida a Dionísio – de que a loucura poética é obra do primeiro, e a erótica, do segundo. (COLLI, 1996. p.16-17)

O autor sugere que, tanto eu, quanto você, Dionísio, carregamos a matriz da loucura e do conhecimento, alargando o conceito desses dois substantivos e abarcando também as dualidades e complementaridades que eles nos apresentam para a compreensão dessas palavras; mostra que, assim, a partir dessa união entre loucura e conhecimento, podemos proporcionar a sabedoria! O que seria isso, se não o transe corporal promovendo o contato com o sagrado? Mais uma vez, a mania acontece no corpo, ou seja, a sabedoria do contato direto com o sagrado (conosco e com o que realizamos) acontece no corpo que dança.

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Mania é o nome dado à aparente loucura causada por estados alterados de consciência, neste caso, os movimentos, os sons e comportamento diferente do comum ou do cotidiano dos gregos seriam a referida mania. Lembrando que no dicionário mania aparece como estado de superexcitação do psiquismo, caracterizado por exaltação do temperamento e desencadeamento de impulsos instintivos

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Incrível, não acha? A compreensão de que não existiria Tragédia Grega sem a união – e também a fusão, no sentido de potenciação– de nós dois, deuses que compomos e narramos, junto com os poetas, as histórias que falam da humanidade para a humanidade. Falamos, nas Tragédias Gregas, “apolinicamente”, com a razão e “dionisiacamente”, com os corpos, mostrando a todos os humanos que o corpo pode carregar conhecimento e a razão pode ser também aperfeiçoada e desfrutada sensivelmente.

Entendemos a Tragédia Grega como fala e ação, logos e corpus; mas o que dizer, então, da ação, no que concerne à arte que estamos discutindo? Seria a ação da dança novamente, Dionísio? Eu diria que sim; afinal, o teatro e a dança carregam a mesma essência, ou seja, os corpos como canal expressivo e os coros das Tragédias, derivados dos ditirambos12, eram também a essência do movimento corporal, unindo vários corpos (o coro em si) em um só propósito, que era o de contar as nossas histórias a partir do canto e da dança. Assim, a Tragédia Grega acontecia plenamente nos corpos em ação:

Ao mesmo tempo, porém, devemos confessar que nunca se tornou visível aos poetas gregos, e muito menos aos filósofos gregos, a significação ditada do mito trágico; seus heróis falam mais superficialmente do que agem, o mito não encontra na palavra falada a sua objetivação adequada. (NIETZSCHE, 1948 p.153)

Nesse trecho de seu livro, Nietzsche está discorrendo sobre a música na Tragédia Grega – a qual ele defende como sua originária, juntamente com nossos mitos – e explicando-nos que somente a fala dos poemas trágicos não seria suficiente para mostrar aos homens a grandeza do feito mitológico e, assim, atribuindo à musica o triunfo da ação trágica. Porém, permita-me lançar um olhar diferentemente ampliado para a afirmação do autor e procurar entender a ação dos heróis, citada por Nietzsche,

12

Só para lhe lembrar, Dionísio, os ditirambos eram parte intrínseca de seu culto sendo, em sua essência, um coral com odes realizadas na forma de cantos e danças em grupo e é considerado por muitos autores como sendo a origem da Tragédia Grega.

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como uma ação cênica, aqui entendida como a ação realizada pelo ator/dançarino em cena.

Para explicar-lhe melhor o que penso sobre isso, acho importante falar-lhe com mais calma do corpo do ator/dançarino na Tragédia Grega. Inicio dizendo que os termos ator e dançarino, assim separados um do outro, não eram concebidos como os concebemos hoje. Nas Tragédias Gregas, o ator e o dançarino eram uma única figura, que não se sentiam interpretando ou dançando, e, sim, em sua inteireza a serviço dos deuses. Eles disponibilizavam seus corpos para narrar as nossas ações, em uma entrega total, parecida com um transe (a mania), em que o fato mítico era narrado verdadeiramente pelos seus corpos. Entenda, Dionísio, a palavra “verdadeiramente” como a mais verdadeira que eu posso usar para definir os artistas que interpretavam as Tragédias; ou seja, eles não se consideravam interpretando ou dançando algo, e, sim, revivenciando o momento mitológico. Dessa forma, a partir do mito revivido, seus corpos estavam entregues ao momento sagrado e, naquele ato, não existia ator, dançarino ou artista, e, sim, um corpo a serviço de nossa fala e de nossa ação, ou seja, um corpo completamente conectado com o sagrado que representamos.

Acredito que, para um ator contemporâneo tentar chegar perto da grandeza de uma interpretação de um ator da Tragédia Grega, é preciso muito trabalho, muito esforço e muita dedicação, pois seu corpo atual não sente nossa presença como seus ancestrais a sentiam. O que é uma pena, não concorda, Dionísio? Os artistas gregos da época das Tragédias conseguiam unir em seus corpos minha fala e sua ação, em uma sintonia incrível que tornou as Tragédias Gregas tão grandiosas como foram e como são até a atualidade. O texto dos poetas nascia das ações dos mitos e, assim, nós agíamos e eles escreviam nossas ações enquanto os corpos dos artistas incorporavam esses dois componentes da Tragédia.

Assim, a partir desse olhar, podemos entender que o texto dos poeta –a fala (minha manifestação legítima)– só alcança sua plenitude na ação e no movimento (sua manifestação legítima, meu irmão Dionísio): o corpo do ator/ dançarino completa a poesia trágica, dando-lhe não só forma, mas também consistência e verdade.

Referências

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