• Nenhum resultado encontrado

QUE DEMOCRACIA? O CONCEITO DE DEMOCRACIA À LUZ DO PROCEDIMENTO DA CRÍTICA EM CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "QUE DEMOCRACIA? O CONCEITO DE DEMOCRACIA À LUZ DO PROCEDIMENTO DA CRÍTICA EM CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL"

Copied!
11
0
0

Texto

(1)

QUE DEMOCRACIA? O CONCEITO DE DEMOCRACIA À LUZ DO PROCEDIMENTO DA CRÍTICA EM CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO

DE HEGEL

Bryan Félix da Silva de Moraes

1

INTRODUÇÃO

O presente escrito busca comunicar o nosso projeto de pesquisa no sentido de expor sua hipótese – ainda incipiente – de que o conceito de democracia presente em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

2

de Karl Marx não obedece à fixação de sua forma, o que indica ser ele baseado em um procedimento filosófico específico intimamente relacionado com a ideia marxiana de crítica. Para tanto, na primeira parte desta exposição apresentaremos um esboço do conceito resolutivo de democracia, mostrando como se trata de um conceito que resiste à fixação de sua forma. Na segunda trataremos brevemente da noção de crítica marxiana do direito de modo a abordar sua capacidade de produzir e reconstruir conceitos a fim de dar-lhes novas determinações.

Por fim, na terceira parte trataremos a crítica e a democracia em sua possível relação, ligando-os de modo que possamos indicar, na democracia, que a volatilidade de sua forma é promovida por um procedimento específico da crítica utilizado por Marx na Crítica do Direito, como se quer demonstrar.

O CONCEITO DE DEMOCRACIA NA CRÍTICA DO DIREITO

O conceito de Estado fora uma solução hegeliana em face da contradição existente entre a prática particularista do arbítrio individual inscrito na ação moral da sociedade civil-burguesa e o aparato jurídico-político do Estado moderno de modo que assegurasse a vivência cidadã comunitária e a liberdade individual (HEGEL, Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio, § 260). Para Hegel, esta conciliação entre o dilaceramento ético presente na liberdade individual e a vivência em um congraçamento comunitário, ocorre quando a vontade livre (HEGEL, FD, §21) encarnada e determinada nos interesses individuais da pessoa, se determine a si mesma, segundo a lógica do conceito, a um interesse universal e reconheçam nele seu fim e seu fundamento, alcançando, assim, sua plena realização: a

1 Mestrando em Filosofia pela UNIFESP. E-mail: <bryanmoraes@yahoo.com.br>.

2 Que Doravante chamaremos apenas de Crítica do Direito.

(2)

do sujeito de vontade livre transformado em membro do Estado (HEGEL, FD, §258).

Esta relação entre a Ideia de Estado e o regime da particularidade da sociedade civil- burguesa regula e mantém viva sua dinâmica própria, elevando o direito particular subjetivo presente na vontade livre (HEGEL, FD, § 21) à consciência da necessidade de normas e estruturas administrativas universais, objetivas e soberanamente aplicadas mediante uma constituição política – organismo do Estado (RAMOS, 2000, p. 232- 233). E Marx considera que Hegel identificou com sagacidade o problema da cisão entre o mundo ético e a esfera social burguesa, relação, que a princípio, seria causadora de uma contradição de tendências históricas autodestrutivas (MARX, 2005 p. 93).

Contudo, Marx julga que Hegel nos oferece um esclarecimento desta contradição, e não sua solução completa. Para Marx a existência dos estamentos – corporações reconhecidas e ligadas ao poder do Estado (HEGEL, FD, §§ 300-307), como formas universais que mediam a particularidade burguesa em sua relação com a universalidade do mundo ético – antes ilumina tal contradição e mostra o vestígio de que a solução de Hegel não teria sido capaz de formular um conceito capaz de superar, de fato, esta cisão essencial que ele próprio busca superar. Esta incapacidade, para Marx, tem seu segredo em uma determinada maneira de operar o conceito, de lhe atribuir determinações. Maneira em que o movimento de concreção da vontade livre como liberdade concreta e universal, ocorre segundo ação de uma essência exterior a ele, descolada do objeto mesmo em sua certeza sensível (MARX, 2005, p. 79-120).

Segundo Barros, (2006, p. 127) um exemplo dessa conclusão é encontrado por Marx quando ele encara o dilaceramento ético da sociedade civil-burguesa como resultado do regime social da modernidade – o regime da apropriação individual – que funda entre os homens o sentimento de egoísmo e autoriza a concorrência e a tirania da progressiva assimilação dos interesses da pessoa individual (prática social burguesa) contra a atividade ética dirigida ao congraçamento comunitário. Se em Hegel o Estado é fim e fundamento da sociedade civil-burguesa, em Marx esta relação é reinvertida:

nela o Estado não é um pressuposto essencial, mas tem sua única possibilidade de

existência efetiva como produção da sociedade civil-burguesa que incorpora nele suas

pretensões e se torna “elemento da existência para o Estado”, um âmbito no qual o

Estado mesmo se insere não mais como existência universal na qual habitam as

determinações particulares, mas uma existência política da particularidade hipostasiada

como ser político de uma universalidade objetiva (MARX, 2005, p. 37). Assim e o

fenômeno egoísta da personalidade não é bloqueado no momento da determinação da

(3)

universalidade formal. Para Marx, trata-se de uma construção de ilusões cuja disposição operativa produziria hipóstases conceituais que aparecem como recuperação efetiva do mundo ético, mas que, do ponto de vista do uso de uma certeza sensível – privilegiado aqui pela Crítica do direito – é a transposição empírica e efetiva da particularidade burguesa para a particularidade na forma estatal do poder, que ilude os homens ao postular que é o estamento universal no qual prevalece o mundo ético.

Abensour (1998, p.71-100) denomina esse processo como redução e explica que seu papel é o tencionar do Estado em seu conceito para que ele se torne um momento da vida moderna. Com isso Marx pretendia levar até as últimas conseqüências as determinações da liberdade concreta, que para ele eram irrealizáveis em sua verdade se subordinadas ao conceito especulativamente concebido. Não é por menos que Abensour interpreta que se trata ali de uma crítica do conceito de Estado democrático de direito, como uma organização voltada à manutenção jurídico-política da ordem democrática universal; ordem na qual a forma da vivência político-democrática é já preestabelecida e institucionalizada nos grilhões do organismo estatal – a forma universal que precede toda a particularidade e fluidez dos interesses. Aquilo que é sabido e vivido no âmbito da certeza sensível – experiência na qual toda forma estabelecida se encontra em risco de desmoronar-se noutras experiências sensíveis, se porta como a figura mais adequada para entender este tipo de objeto e com ela, Marx engendra um novo conceito, aquele da democracia que:

parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição. A democracia em certo sentido, está para as outras formas de Estado como o cristianismo está para as outras religiões [...].A democracia é, assim, a essência de toda constituição política, o homem socializado como uma constituição particular, ela se relaciona com as demais constituições como o gênero com suas espécies [...]O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da democracia (MARX, 2005, p.50).

Ao asseverar que a democracia “parte do homem e faz do Estado o homem

objetivado”, o texto de Marx recupera a tríade conceitual da antropologia sensualista de

Feuerbach. Se a democracia é a essência de toda constituição política, ela jaz em toda

forma, em todo saber sobre o Estado (POGREBINSCHI, 2007, p. 60-62). Segundo a

(4)

Crítica do Direito, toda constituição política, em realidade, pressupõe a existência sensível de uma multidão de indivíduos que se relacionam de modo imediato entre si, constituindo-se, assim, como conteúdo realmente habilitado a dar a forma e o caráter de sua forma política, a ponto de fabricá-la em acordo com seu saber rumo à concreção da vontade livre como liberdade concreta. Nesse sentido, as formas de Estado seriam tentativas incompletas de se chegar à efetivação da liberdade concreta e caberia levar a cabo as reais conseqüências do conceito: que o que prevalece no instância estatal é a realização universalizante dos interesses particulares e não necessariamente a transformação destes e interesses universal apenas porque mediado por formas aparentemente comunitárias. Seria necessário então desvencilhar-se não de uma ou outra forma de Estado, seja ela uma monarquia constitucional ou uma república, mas desvencilhar-se da cristalização mesma dessa forma como detentora desta conciliação.

Com isso o Estado se tornaria uma “forma de existência particular do povo”, um momento da vida popular, um predicado, uma forma passageira produzida por ela em vista de seu conceito excelente, a liberdade concreta (MARX, 2005, p. 51).

Esta democracia, porém, não existe empiricamente; ela, por ser conceito, ainda está por ser produzida como tal. Ela manifesta sua existência em diversas formas de Estado, mas que apenas se mostra como em verdade é quando se alcança a consciência de que ela é uma produção, um processo, uma realidade em devir cuja efetiva realização depende não apenas do conceito, mas, também, da possibilidade e tentativa de sua fabricação prática para além de uma vivência como membro do Estado, que como vimos, é contraditória. Pogrebinschi (2007, p. 56) aponta que este conceito é “em sua essência, normativo” e, por isso, não se trata de demonstrar as manifestações empíricas dela, mas de produzir este conceito de modo que ele seja capaz de, na esfera da Filosofia, subverter a empresa teórica especulativa do direito de Hegel e estabelecer com as formas políticas de seu tempo, combatividade teórica e abertura de possibilidades de sua realização como conceito. Por isso, o conceito de democracia é

“um princípio de ação que não se verifica em uma realidade estática, nem em um

momento concreto e determinado” (POGREBINSCHI, 2007, p. 57), mas que esclarece

uma fissura do devir verdadeiramente democrático quando aponta que este conceito é

uma produção, um vir a ser. Esta condição de indeterminação lhe confere, assim, o

estatuto de constituição política genérica, uma substância cuja forma específica é devir,

produção e processo.

(5)

Ora, mas como seria possível a construção de um conceito de democracia desta ordem? Quais são os critérios utilizados por Marx para dar a seu conceito um estatuto desta natureza, em que o conceito, em si mesmo, resiste à predicação formal? Já sabemos que Marx baseia sua análise a partir deste que poderia ser um “ponto de vista”

da certeza sensível. Mas aqui, chama-nos à atenção, o movimento de caracterização que Marx faz da especulação hegeliana na construção do conceito de Estado, pois o argumento parece localizar nesse último uma chave procedimental para a produção do conceito de democracia. Temos um vestígio dessa chave na afirmação de que a democracia é “a essência de toda constituição política” e de que ela se relaciona com as demais constituições, “como o gênero com suas espécies”. Parece que, com isso, Marx apresenta esse conceito como sendo o produto de outro registro de análise, e, assim, de outro paradigma de exame e elaboração conceituais que nosso projeto acredita estar contido no conceito de crítica como procedimento específico. Vamos a ele.

O CONCEITO DE CRÍTICA COMO EXPRESSÃO DE UM PROCEDIMENTO ESPECÍFICO

E o Leitor/ouvinte já deve ter percebido que, em relação à filosofia de Hegel, há uma discordância de ordem procedimental de Marx. Para ele este procedimento pelo qual Hegel trata o conceito de Estado é abstrato e especulativo, explica seu objeto segundo um saber que não condiz com a realidade mesma (MARX, 2005, p.31). Mas essa realidade mesma, Marx julga ser aquela que se circunscreve no âmbito da experiência da certeza sensível, segundo ele, a verdadeira criadora de determinações efetiva sobre seus objetos. Parece ser ela a senhora dos objetos que são como são porque são somente para nós em face desta certeza. Neste sentido, aquilo que está para além de seu saber, é tido como abstrato, impreciso e mesmo falso. Segundo esta certeza, como poderia o assunto do interesse particular – fenômeno empírico no qual se mostra a sociedade civil-burguesa – ser transformado, no sentido preciso da palavra, em um assunto dos interesses universais? Segundo o parâmetro da certeza sensível, haveria que desvendar a realidade hipostasiada de seu objeto e descobrir a verdadeira relação de determinação entre as esferas presentes na trama entre Estado-sociedade civil-burguesa.

O que se sabe até aqui é que no Estado apenas se simula a unidade ética. E esta descoberta, segundo nossos estudos, parece ter sido possível segundo um procedimento filosófico específico, chamado de crítica.

Ranciére (1979, p. 75) escreve que o uso do termo “crítica” é verificado em

(6)

várias passagens dos textos de Marx; mas que nem sempre se trata do mesmo conceito, o que nos indica que ele possui especificidades em cada obra estudada. Tomando nota desta advertência, e em nossos estudos preliminares sobre o conceito, descobrimos que esta crítica na Crítica do Direito tem raízes noutros textos da tradição jovem hegeliana.

É de Ludwig Feuerbach, em sua Crítica da Filosofia de Hegel (1839) que este conceito aparece mais claramente. Nela, Feuerbach defende que a filosofia hegeliana, ao buscar estabelecer um sistema filosófico não-dogmático e sem pressupostos – tal como prenunciado em a Fenomenologia do Espírito –, canonizou-se como dogma embora parecesse não-dogmático. Ao privilegiar em sua ciência a universalidade formal na determinação ôntica do objeto empírico, tomava o universo das formações ideais como seu pressuposto capital. Utilizava-se de um procedimento que engendrara na produção de seus conceitos um poder de determinação extrínseco à realidade vivida pelo gênero humano. Defendia que, com este desvelamento, promoveria o real encontro do gênero humano consigo mesmo realmente, e não em um movimento especulativo, como teria feito Hegel (SARTÓRIO, 2001, p.12-17.).

Marx herda, assim, uma atividade filosófica diferenciada capaz de instaurar um dispositivo específico de julgamento que possibilitou à empresa feuerbachiana exceder os limites ordinários da filosofia especulativa. Munidos destes dados parece então que temos uma definição ainda que elementar do conceito de crítica. Ele é um conceito que tem por tarefa a execução do julgamento, cuja ação específica parte de um ponto de vista teórico sui generis – o da antropologia sensualista – que se determina negativamente em relação a ele, nos indicando que depende, sobretudo, do objeto específico submetido ao exame e ao julgamento, e das finalidades buscadas pelas pretensões do sujeito que se detém ao exame (ASSOUN e RAULET, 1981, p.28-31). E as primeiras aparições deste conceito na Crítica do Direito de Marx se dão logo e sua Introdução:

No caso da Alemanha, a Crítica da Religião chegou, no essencial ao seu fim; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica. A existência profana do erro está comprometida, depois que sua oratio pro aris et focis [oração para altar e fogão] celestial foi refutada. O homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurara um ser sobre-humano, encontrou apenas o seu próprio reflexo, já não será tentado a encontrar a aparência de si mesmo – apenas o não-humano – onde procura a sua autêntica realidade (MARX, 2005, p. 145).

Como vemos, Marx inicia esta passagem fazendo um balanço da história da

(7)

crítica como crítica da religião na Alemanha e a sua importância e alcance para a crítica alemã em geral. A filosofia de Feuerbach, para Marx, ao descobrir que a filosofia hegeliana dispunha de uma suprassunção especulativa, acabou por revelar o fundamento espiritualista da filosofia de Hegel, mostrando como ela dispunha de um procedimento enganador de aspecto religioso e incorreto quanto ao modo como concebia seus objetos, pois determinava suas investigações a partir de um pressuposto abstrato e que constituía, por esta razão, um erro de procedimento, segundo a matriz feuerbachiana que aqui apresentamos. O desvelamento da ilusão provocada pela especulação é auxiliado pelo uso do conceito de crítica; neste conceito, as formações espirituais, objetos da contemplação humana, são produtos exteriorizados do homem e que, de fato, trata-se do reflexo e da aparência dos atributos do gênero humano que foram desencarnados pelo procedimento especulativo. É um conceito que trabalha com um pressuposto de que

O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade.

Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião (MARX, 2005, p.145).

Esse mundo moderno, de aroma espiritual, que para Marx tem como componente principal a relação entre o Estado e a sociedade, apresenta-se como uma

“consciência invertida do mundo”, fruto de um erro de ordem procedimental. Por esse apontamento, Marx não só infere que a crítica de Feuerbach criou o dispositivo que possibilitou o encontro do homem com a consciência de si, como também defende que este procedimento é de utilidade ímpar na construção de uma crítica de um novo objeto:

a relação moderna entre o Estado e a sociedade civil-burguesa. Libertos da ilusão

religiosa e em posse da consciência-de-si liberada pela crítica, o critério que regula a

apreensão da realidade humana torna-se o próprio homem em sua individualidade

sensível, figura do saber na qual a consciência-de-si acredita que é o plano de reflexão

mais adequado para fornecer a verdade destes objetos. Assim, se o mundo da verdade

especulativa se desvaneceu mediante o procedimento crítico, resta então o

estabelecimento da verdade deste mundo, ou seja, o estabelecimento da verdade da

(8)

sociedade e do Estado, despindo-os de sua relação especulativa a fim de que o homem

“gire em torno de si mesmo e, assim, em volta do seu verdadeiro sol”: a consciência-de- si (MARX, 2005, p. 146). Por esta razão, as críticas da religião e da teologia se convertem, respectivamente, em crítica do direito e da política. Trata-se da negação crítica da relação moderna entre a sociedade civil-burguesa (bürgerliche gesellschaft) e de abandono das formas anteriores de jurisprudência na política alemã. E é isso que conduz Assoun e Raulet (1981, p. 37-40.) a caracterizarem o conceito de crítica como um procedimento, um “instrumento teórico” de caráter operativo e desenvolvido para um determinado fim específico sobre seu objeto. Esta caracterização, quando comparada à conceituação que Marx esboça, pode ser concebida em duas distinções técnicas:

crítica interna ou imanente e crítica externa ou transcendente.

A crítica interna ou imanente tem como característica nuclear reformular o conceito hegeliano do direito, utilizando-se inclusive da própria dialética hegeliana, reconstruindo sua expressão teórica a fim de desenvolver, agora de modo correto, o caminho conceitual para a plena realização da vontade livre, como liberdade concreta (ASSOUN e RAULET, 1981, p. 39). A crítica externa ou transcendente, porém, parte de que a “crítica da filosofia especulativa do direito não se orienta em si mesma”, mas em elementos externos à especulação hegeliana, como, por exemplo, a antropologia sensualista de Feuerbach, e as tarefas que só podem ser resolvidas por um único meio: a atividade prática (MARX, 2005, p. 151) em seu movimento histórico e teórico atual e suas tendências mais avançadas. Essa adição de elementos externos ao exame da empresa conceitual de Hegel é feita pela crítica externa com vistas a real verificação prática da possibilidade de realização do projeto moderno – ajustando os meios, teóricos ou práticos. Isso se verifica, por exemplo, em carta enviada a Arnold Ruge em Setembro de 1843 na qual a crítica aparece em mais um esboço:

A razão sempre existiu, só que nem sempre na forma racional. O

crítico pode, portanto, tomar como ponto de partida qualquer forma da

consciência teórica e prática e desenvolver, a partir das próprias

formas da realidade existente, a verdadeira realidade como seu dever-

ser e seu fim último. Agora, no que se refere à verdadeira vida,

justamente o Estado político, em todas as suas formas modernas,

inclusive onde ele não está imbuído conscientemente das exigências

socialistas, implica as exigências da razão. Mas ele não fica nisso. Ele

presume em toda parte que a razão é realidade. Mas igualmente em

toda parte, ele incorre na contradição entre sua destinação ideal e seus

pressupostos reais [...]. Poderíamos, portanto, sintetizar numa palavra

a tendência da nossa Folha: autoentendimento (filosofia crítica) da

(9)

época sobre suas lutas e desejos. Trata-se de um trabalho pelo mundo e por nós. Só pode ser obra de forças unificadas. Trata-se de penitência, e nada mais. Para que a humanidade consiga o perdão dos seus pecados, ela só precisa declarar que eles são o que são (MARX, 2010 p. 71-73 (nota)).

Lemos aqui que a crítica aponta para uma tentativa de realização desse projeto de identificação do real e do racional que já havia sido abordada anteriormente pelo próprio Hegel em sua filosofia do direito e que Marx sintetiza como “a verdadeira realidade como seu dever ser”. Isso mostra como a crítica é então um exercício construído com vistas à supressão da “fome de positividade”, ou seja, da produção racional da realidade objetiva (ASSOUN e RAULET, 1980, p. 35 e ss.), porque percebe a insuficiência de seu objeto – neste caso o aspecto especulativo da filosofia do Estado de Hegel. A crítica busca exprimir um modo de julgamento guiado por um procedimento específico que se estrutura a partir de uma posição sui generis que se regula com vistas a um determinado fim teórico e prático, portando-se como dispositivo instrumental que funciona como um método transformativo de seu objeto a fim de corrigi-lo racionalmente em sua manifestação filosófica (como crítica conceitual) e histórica (como crítica prática).

A CRÍTICA E A PRODUÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA

Eis aqui um excerto que pode auxiliar a compreender a possível relação entre os conceitos em questão. Nele Marx condensa sua crítica ao procedimento especulativo de Hegel, mostrando a razão de sua insuficiência:

O conteúdo concreto, a determinação real, aparece como formal; a forma inteiramente abstrata de determinação aparece como conteúdo concreto. A essência das determinações do Estado não consiste em que possam ser consideradas como determinações do Estado, mas sim como determinações lógico-metafísicas em sua forma mais abstrata. O verdadeiro interesse não é a filosofia do direito, mas a lógica. O trabalho filosófico não consiste em que o pensamento se concretize nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas existentes se volatilizem no pensamento abstrato. O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado à demonstração da lógica (MARX, 2005, p. 38).

A descoberta de que “o conteúdo concreto, a determinação real, aparece como

formal” e de que a “forma inteiramente abstrata de determinação aparece como

(10)

conteúdo concreto”, autoriza o texto de Marx a fazer a crítica das determinações “ lógico-metafísicas em sua forma mais abstrata”; estas que permitiram a Hegel fazer “do homem o Estado subjetivado” (MARX, 2005, p.50). Esta solução hegeliana foi uma

“enunciação racional da realidade empírica”, uma introjeção ideal mistificada, um elemento formal exterior que regula toda e qualquer relação de determinação na filosofia hegeliana do direito e que deve ser submetido à jurisprudência desta nova crítica, que nega seu objeto e o reformula com novas determinações. A democracia, segundo nossa hipótese, é um caso-produto deste outro proceder filosófico.

Por isso, a democracia que, como vimos, se relaciona com o Estado como gênero de sua espécie, é concebida segundo outra fonte de determinação dos conceitos (aquela da crítica) que alicerça a possibilidade de sua existência na tentativa aberta de construção de uma comunidade real cujas mediações formais são volatilizadas pelo estado de seu conteúdo que predica a forma democrática e que não separa os interesses particulares e os universais em esferas diferentes para falsamente identificá-los segundo o modelo da especulação, mas os mantêm juntos na sua realidade comunitária imediata face à consciência da verdade de sua condição. Com isso, o procedimento crítico reafirma a insolubilidade do problema da contradição entre os interesses particulares da pessoa individual e os interesses universais contidos na ideia do congraçamento comunitário, reabrindo a situação de luta política e social que havia sido apaziguada pelo conceito hegeliano de Estado. Isso não significa, entretanto, que Marx volta à estaca zero do problema. Com o procedimento oferecido pelo conceito da crítica, o autor rearranja os caminhos e as configurações de seu exame em vista desta realização do projeto crítico. Este libertar-se tem sua expressão no conceito da democracia e tem sua verificação mais próxima apenas na tentativa livre e na possibilidade de sua fabricação, que não se fixa em formas de Estado, mas nos predicados determinados e re- determinados continuamente. Ela é criticamente elaborada e, por isso, corresponde a certo procedimento contido no conceito marxiano de crítica cujo núcleo tem como elemento basilar o posicionamento filosófico sui generis que elabora seus próprios princípios normativos para produzir conceitos distintos de seu objeto, como se queria demonstrar.

BIBLIOGRAFIA

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito, vol. 1. Tradução de Paulo Menezes,

(11)

colaboração de Karl-Heinz Efken e apresentação de Henrique Vaz, 2ª edição. Editora

“Vozes”, Petrópolis, RJ, 1992.

______. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência do Estado em compêndio. Terceira parte - A eticidade. Terceira seção - O Estado - §§

257-360. Trad. Marcos Lutz Müller. Campinas: IFCH/Unicamp, 1998. (Textos Didáticos, n. 32)

MARX, K. – Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus, Boitempo Editorial, São Paulo 2005.

______. Cartas dos Anais Franco-Alemães (de Marx a Ruge) em Setembro de 1843, anexo de A questão Judaica. Tradução de Nélio Schneider. Apresentação e posfácio de Daniel Bensaïd. Editora Boitempo , São Paulo, 2010.

ABENSOUR, Miguel – A democracia contra o estado: Marx e o momento maquiaveliano. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão et al. Editora UFMG, Belo Horizonte, 1998.

ASSOUN, Paul-Laurent e RAULET, Gérard. – Marxismo e Teoria Crítica. Tradução de Nemésio Salles. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1981.

BARROS, Ronaldo Crispim Sena. O ser genérico : pressuposto da crítica da política do jovem Marx. Dissertação de mestrado (IFCH), Campinas, 2006.

MÜLLER, Marcos Lutz; A Gênese Conceitual do Estado Ético, 01/1998, Revista de Filosofia Política, Vol. 2, pp.9-38, Porto Alegre, 1998.

PAPAIOANNOU, Kostas. De la critique du ciel a la critique de la terre : l'itineraire philosophique du Jeune Marx. Editora Allia. Paris, 1998.

POGREBINSCHI, Thamy. O enigma da democracia em Marx. Revista brasileira de ciências sociais - vol. 22 nº. 63, pp. 56-68. São Paulo, 2007. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v22n63/a05v2263.pdf

RAMOS, Cesar Augusto. Liberdade subjetiva e estado na filosofia politica de Hegel.

Editora UFPR, Curitiba, PR, 2000.

SARTÓRIO, Lúcia Aparecida Valadares. A antropologia de Feuerbach e alguns

delineamentos acerca de uma possível influência no pensamento de Marx. Tese de

mestrado da PUC-SP, São Paulo, 2001. Disponível em

http://www.verinotio.org/di/di15_antropologia.pdf

Referências

Documentos relacionados

Tais análises puderam contribuir de forma mais efetiva para que, por meio das ações sugeridas, possa-se de fato a- tender a demanda de alunos que ainda não se encontram no

[r]

O Programa de Educação do Estado do Rio de Janeiro, implementado em janeiro de 2011, trouxe mudanças relevantes para o contexto educacional do estado. No ranking do

Nesta perspectiva, observamos que, após o ingresso dos novos professores inspetores escolares na rede da Secretaria de Estado de Educação, houve um movimento de

O Processo Seletivo Interno (PSI) mostra-se como uma das várias ações e medidas que vêm sendo implementadas pela atual gestão da Secretaria de Estado.. Importante

da equipe gestora com os PDT e os professores dos cursos técnicos. Planejamento da área Linguagens e Códigos. Planejamento da área Ciências Humanas. Planejamento da área

O fortalecimento da escola pública requer a criação de uma cultura de participação para todos os seus segmentos, e a melhoria das condições efetivas para

Outras possíveis causas de paralisia flácida, ataxia e desordens neuromusculares, (como a ação de hemoparasitas, toxoplasmose, neosporose e botulismo) foram descartadas,