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I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM PRISÃO 2 DE OUTUBRO DE 2015 SÃO PAULO SP FACULDADE DE DIREITO,USP

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I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM PRISÃO 2 DE OUTUBRO DE 2015

SÃO PAULO – SP

FACULDADE DE DIREITO,USP

G.T.10: MÍDIA E PRISÃO

“ÔNIBUS 174” – A LENTE QUE VAI DO ESPETÁCULO AO INDIVÍDUO

CAUÊ FÉLIX E SILVA – Graduando em Comunicação Social – Hab. em Midialogia pela Universidade de Campinas

THALITA SANÇÃO TOZI – Mestranda em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

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“ÔNIBUS 174” – A LENTE QUE VAI DO ESPETÁCULO AO INDIVÍDUO

CAUÊ FÉLIX E SILVA (UNICAMP)1 THALITA SANÇÃO TOZI (USP)2

INTRODUÇÃO

Refletindo sobre a seleção, a maneira de apresentação e a interpretação dedicadas aos fatos sociais que envolvem crimes expostos pela mídia massiva brasileira, selecionou-se para análise o documentário brasileiro intitulado "Ônibus 174", dirigido por José Padilha.

O enfoque do documentário é o episódio do sequestro do ônibus 174 ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, no dia 12 de junho de 2000. Por volta das 14h, o ônibus ficou detido no bairro do Jardim Botânico por quase 5 horas, pela atividade de Sandro Barbosa do Nascimento, sobrevivente da Chacina da Candelária. Uma refém e Sandro foram mortos, ambos pela ação policial.

Divergindo da maioria dos elementos midiáticos que se baseiam na superexposição da violência, que reforçam o discurso de ódio e a mensagem de extermínio dos

“criminosos”, neste documentário o diretor focou a observação para o indivíduo infrator na tentativa de compreendê-lo como ser humano.

Observam-se elementos da história de vida de Sandro, que demonstram a complexidade do seu ser, momentos em que se pode considerá-lo vítima ou ao menos ator corresponsável de suas escolhas.

O recorte deste trabalho é interpretar o documentário e a situação dada a partir da

“Teoria da Criminologia Clínica de Terceira Geração” (SÁ, 2011) – refletindo sobre a inclusão social, e a invisibilidade dos indivíduos para o estado, ao menos até cometerem algum delito.

1 Graduando em Comunicação Social – Hab. em Midialogia pela Universidade de Campinas

2 Mestranda em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Coordenadora Adjunta do GDUCC.

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1. APRESENTAÇÃO DO FILME

As primeiras tomadas do filme Ônibus 174, de José Padilha, caberiam em tantos outros filmes de diversos gêneros, principalmente nos que exaltam a beleza exuberante da cidade do Rio de Janeiro. Os planos aéreos da cidade mostram sua mescla de cores, evidenciam um dia ensolarado, revelam seus contornos de morros, faixa de areia, mar, espaços urbanos planos, favelas e bairros de classe média e média-alta e alta.

Essas imagens poderiam compor uma passagem que exaltasse as belezas cariocas caso as vozes que acompanham as paisagens não retratassem momentos da vida de indivíduos em situação de rua. Os conteúdos violentos das falas se contrastam com as belas imagens da cidade carioca. Este embate entre imagens belas e depoimentos de vidas sofridas conclui-se nas imagens do bairro do Jardim Botânico, um dos mais ricos da cidade do Rio de Janeiro.

Neste momento, tem-se a primeira aparição de imagens de arquivo utilizadas por JOSÉ

PADILHA. O diretor se valeu de imagens aéreas captadas pela CET- Rio que revelam o momento do início da atuação policial ao cercar o ônibus da linha 174. Após este artifício de construção do filme, o diretor se vale de depoimentos de um policial do BOPE (Batalhão de Operações Especiais), e de uma assistente social que trabalhava com o grupo de pessoas em situação de rua que Sandro pertencia na infância. Depoimentos estes, que inauguram a abordagem direta à situação do sequestro do ônibus 174.

Os depoimentos sobre a história de vida de Sandro, principalmente a infância mostra- se como uma metonímia da história de outras tantas crianças em situação de rua. Não se trata apenas de evidenciar as dificuldades de vida dessas crianças, os traumas ocorridos logo em seus primeiros anos, o desamparo familiar, a perda de vínculo com qualquer estrutura de afeto, os primeiros contatos na rua, a dificuldade de sobrevivência, mas também de delinear a estrutura de construção fílmica, uma vez que há um retorno a imagens dos momentos iniciais do sequestro.

A apresentação, o desenvolvimento, o desfecho da situação do sequestro e a defesa da tese desenvolvida no filme se dão em uma estrutura de blocos de momentos que acompanharam o momento do crime (através do material de arquivo televisivo); e de blocos de comentários sobre temáticas específicas, as quais vão contextualizando a história de vida de Sandro (através de depoimentos diretos durante a gravação do filme). Os blocos temáticos são introduzidos por ganchos em falas dos envolvidos no

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sequestro - jornalistas, policiais, pesquisadores, assistentes sociais, ex-reféns do episódio. Esses ganchos são os responsáveis por costurar e alinhavar bem esses momentos de trânsito entre os blocos temáticos, muitas vezes a demarcação da separação é anunciada por letreiros.

Após os depoimentos que retratam o assassinato da mãe de Sandro (presenciado pelo garoto), e das mazelas nas vidas das crianças em situação de rua, o tema abordado é a sobrevivência de Sandro na “Chacina da Candelária”. Trata-se de um episódio em que várias crianças foram assassinadas em uma marquise próxima à igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro – local de sua "moradia", ou espaço em que dormiam. Os autores do crime foram policiais, com os quais as crianças haviam tido um embate horas antes, no mesmo dia do crime. Após o embate, os policiais as ameaçaram de morte, dizendo que voltariam naquela mesma noite. A ameaça foi cumprida. Sandro foi um dos poucos sobreviventes da chacina. Nota-se que esta cena foi trazida à tona em sua fala com a polícia e com as câmeras que cercavam o ônibus – imagens captadas pelo arquivo televisivo.

O filme retorna aos planos do momento do sequestro criando uma tensão crescente em relação àquelas cenas. É a parte do filme em que planos mais longos do episódio são postos explorando ações de muita potência e impacto, como, por exemplo, a refém escrevendo "Ele vai matar geral às 6hs" no vidro da frente do ônibus com um batom. Além disso, é o primeiro momento em que o Sandro fala diretamente com os policiais e para todos os jornalistas presentes, mostrando o seu rosto e desafiando a todo o público externo sobre seus próximos passos.

A persona de Sandro continua a ser construída. Perpassa, então, por leituras de documentos judiciais oficiais sobre suas passagens pelo sistema correcional de jovens e adolescentes, além de prisões. Informações sobre os delitos, cena sobre a cadeia que passou, além de depoimentos de ex-colegas de rua e do cárcere complementam esta temática. A tia de Sandro ganha destaque na narrativa do filme, uma vez que ele foi morar com ela entre momento de passagem prisional.

Nota-se que os discursos das pessoas que tiveram contato direto com Sandro, em algum momento de sua vida, afirmavam que ele seria incapaz de matar, que isso “não faria parte de sua índole”. Alguns apontaram ser ele usuário de drogas, e que deveria estar sob efeito de algum entorpecente no momento do sequestro do ônibus.

Os depoimentos divergentes eram os dos policiais. Todavia, não o apontaram como assassino, mas abordaram a situação de maneira muito técnica e fria. Um depoimento

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relatou a ausência de ideia, durante o episódio, de analisar Sandro como possível sofredor de psicopatologia, ou buscando saber de seu histórico de criança moradora de rua – fato que teria ajudado a cogitar certa imprevisibilidade nas ações do jovem. A tensão dentro do ônibus é crescente. Sandro chegou a liberar alguns reféns, mas a postura desesperada da refém Geíza, com gritos e choros excessivos, e uma tentativa frustrada de persuadir Sandro para liberá-la do sequestro, contribuíram para a tensão do sequestrador. O ponto alto da tensão talvez tenha sido o disparo dado dentro do ônibus, no qual o sequestrador simulou o assassinato de uma das reféns.

Sandro não teria como escapar. O ônibus estava cercado por policias, jornalistas e civis por todos os lados.

O último bloco de intercalação, antes do fim do episódio do sequestro, é uma série de depoimentos realizados dentro de uma unidade prisional, através das falas de alguns encarcerados. Trata-se do único momento do filme em que a imagem é retratada através do efeito em negativo, evidenciando, talvez, a contrariedade daquele espaço com os outros que retratavam alguma liberdade. O trecho aproximava o espaço da prisão ao inferno tanto por essa estética "negativada" do filme como por meio do depoimento dos presos.

Em sequência, o filme encaminha-se para o fim, compondo as imagens em que Sandro sai do ônibus. No momento em que Sandro está saindo do ônibus, segurando a refém Geíza em sua frente e na posse de uma arma de fogo apontada para sua cabeça, um policial avança sobre Sandro e Geíza. O policial atira duas vezes e erra o seu alvo. O tiro acerta Geíza. Com o susto Sandro e Geiza caem ao chão, e durante a queda Sandro dispara outras duas vezes nas costas da refém. Todo esse movimento ocorre em poucos segundos. Trata-se de tempo suficiente para toda a população civil que estava ali presente corresse para o local, bradando o desejo de linchamento do sequestrador.

Os policiais conseguem, a muito custo, conter a população enraivecida e colocar Sandro dentro de um camburão. Dois policiais se debruçam sobre o corpo do sequestrador temendo que ele fosse alvejado por alguém de fora. O carro consegue escapar da multidão. Sandro já não sai com vida do camburão, assassinado por sufocamento pelos dois policiais.

As cenas finais do filme retratam os enterros de Geíza e de Sandro. O primeiro lotado de civis. Já o segundo apenas com a presença de uma pessoa. Ambos foram acompanhados pela mídia televisiva e pela impressa. O filme termina com um trecho

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escrito em que se esclarece que as balas causadoras da morte de Geíza foram as disparadas por Sandro e não pelo policial.

2. REPRESENTAÇÃO, MÍDIA E ESPETÁCULO

A imagem do filme é construída através de filmes de arquivo, de fotografias, de imagens de câmera de segurança das ruas, de gravações realizadas pela CET-RIO, de gravações de documentos judiciais, e de filmagens feitas pela própria produção da equipe (sendo majoritariamente de depoimentos). Nota-se que foi grande a exploração da imprensa, de maneira que há imagens do ônibus em um raio de quase 360 graus. De acordo com GUY DEBORD, "o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens"3. Ideia esta que adequa-se aos fatos abordados pelo filme em análise. O diretor construiu o filme enfatizando a overdosagem do episódio dada pela mídia, demonstrada tanto pelas falas dos entrevistados, quanto pela utilização das imagens em diferentes ângulos/emissoras. Não há dúvidas de que o momento fora espetacularizado. O público presente, os atores que participaram do evento, o público que assistia às transmissões estabeleceram suas relações com Sandro por meio de discursos unilaterais mediados pelas imagens das emissoras televisivas.

Inicialmente, esta exploração midiática pareceu assustar Sandro, tendo em vista suas ações nas imagens televisivas utilizadas por JOSÉ PADILHA. Ele, assim como parcela da população, jovem, negro, pobre, morador de rua, enfrenta a invisibilidade social, estabelecendo-se como mera parte indesejada da paisagem, ainda mais daquela região da rica zona sul carioca4. Houve tentativa de esconder sua face com tecidos, ameaçou fotógrafos e videografistas que se amontoavam à frente do ônibus. O discurso inicial refletia o não querer ser visto e identificado naquela situação. Todavia, Sandro parece ter percebido a impotência de proteger sua identidade. Passou a se identificar: colocou a cabeça pela janela do ônibus com o rosto descoberto,

3 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Pg. 22. Livros da Revolta. Disponível em: http://lelivros.site/book/baixar-livro-a-sociedade-do-espetaculo-guy-debord-em-pdf-epub-e- mobi/, acesso em: 10/08/2015.

4 Ressalta-se que a região passa por um processo latente de higienização social, negros e pobres são indesejados naquele espaço. Vide matéria do jornal Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-adolescentes-da- periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml, acesso em: 26/08/2015.

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verbalizando ser aquele o seu rosto, informando trechos de sua história de vida (citou, por exemplo, o episódio da chacina da Candelária).

O que se interpreta é que houve uma mudança de comportamento, da tentativa de continuar invisível para uma identificação, e posterior “atuação” por parte de Sandro. De acordo com o depoimento dado por duas reféns, a tensão que vinha sendo explorada nas imagens midiáticas não representava a realidade interna do ônibus. Sandro almejava que o desespero fosse claro: deu um tiro em vão para representar uma morte falsa; pediu para que as reféns encenassem, com gritos e desespero. A mise en scène foi convincente a ponto de aglomerar uma multidão ao redor do ônibus desejando o sangue de Sandro. O espetáculo midiático fora criado – havia os mocinhos, o bandido, os defensores da lei e a plateia (no local, e mediada pelos meios de comunicação).

O desfecho não poderia ser distinto. A população esperava a morte do infrator, que (supostamente) havia matado uma refém e ameaçava a vida de outros reféns. A polícia havia se preparado para matá-lo, aguardando a ordem do comandante5. E após quase cinco horas de sequestro, Sandro saiu do ônibus. Fato este aparentemente inesperado pelo público. O modus operandi da policia naquele momento indicava que a morte do sequestrador era o caminho técnico mais indicado6. JOSÉ PADILHA esclarece essa intenção desde o início7.

No espetáculo, o policial cumpriu seu papel e atirou contra o tal bandido (e não acertou). A atitude dos policiais que acompanharam Sandro no camburão não fugiu ao roteiro exigido pela população. Ele já havia escapado de duas mortes em poucos minutos, o tiro errado do policial, o linchamento evitado, mas da terceira oportunidade não houve fuga. O mesmo espetáculo que quase causou sua morte por linchamento e que influenciou sua morte por sufocamento no carro da polícia, era um dos principais responsáveis por sua sobrevida durante o episódio.

Este “criminoso”, negro, pobre, marginalizado, desumanizado fora morto dentro de meios "legais" – clamado pelo público, legitimado pelo braço do Estado. A mídia massiva, policialesca, sensacionalista, elitista e sanguinária criou seu espetáculo e ganhou seus aplausos no fim.

5 Frisa-se que esta informação consta no depoimento do ex-policial, Rodrigo Pimentel.

6 Palavras do próprio policial no filme.

7 Segundo o policial que deu depoimento para o filme precisavam fazer da melhor forma pois

“não havia a intenção de espalhar meio quilo de massa encefálica no vidro do ônibus”.

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3. MONTAGEM E NARRATIVA

A narrativa do filme é construída por JOSÉ PADILHA através de dois grupos de imagens8: as geradas pela televisão no dia do acontecimento, e as aquelas selecionou e gravadas pelo diretor. A utilização dessas duas possibilidades aparenta cumprir funções distintas.

Os depoimentos tiveram a função de apresentar e contextualizar as personagens envolvidas no sequestro. Passa-se a sensação de desconfiança da imagem aterrorizante criada de Sandro pelos veículos massivos de comunicação, quando comparada aos discursos sobre sua personalidade. Percebe-se uma tentativa de humanização daquele indivíduo. Humanização a partir do relato dos conhecidos, mas que, de certa forma, é corroborada pelas atitudes de Sandro durante o sequestro - ele não rouba seus reféns, pede a uma refém que encene um assassinato e não a mata. Já a utilização dos trechos televisivos traz o olhar dado àquele episodio: o espetáculo e a julgamento e condenação daquele indivíduo independente de seus atos. Ainda que já haja descrição destes trechos, merece destaque o momento em que Sandro sai do ônibus e ocorre o desfecho do sequestro e do filme. Primeiro o som dos tiros com uma câmera caótica atrás de um carro que não mostra nada dá início a sequência. Logo em seguida, há um som controlado, com voz over, e imagens em vários ângulos do ataque do policial - do primeiro disparo dado, dos outros disparos de Sandro - tudo em câmera lenta, dando-nos a possibilidade de prolongar a experiência do triste e violento desfecho daquela situação, por meio de imagens de diversas emissoras televisivas. Na sequência a câmera volta a ficar em velocidade normal para demonstrar o ligeiro avanço da população para linchar o infrator, a cena segue até a polícia conseguir retirar Sandro do local do sequestro.

4. CENÁRIO TEÓRICO CRIMINOLÓGICO

A construção feita por JOSÉ PADILHA parece ilustrar o que a “Teoria da Criminologia Clínica de Terceira Geração” de ALVINO AUGUSTO DE SÁ9traz como inovadora. Será

8 Vale destacar que, mesmo conscientes do processo de montagem feito sobre as tomadas televisivas, o que também as levaria ao mesmo campo de imagens selecionadas por PADILHA, manteremos essa distinção.

9 SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. 1. ed. São Paulo-SP: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.

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realizada uma breve exposição a fim de associar esta teoria ao cenário montado neste este trabalho.

A Criminologia, de uma maneira geral, é um campo de atividade e conhecimentos interdisciplinares que busca compreender o fenômeno delitivo, os comportamentos problemáticos, as normas e os valores socioculturais, a dinâmica das instâncias de controle, o envolvimento da justiça, e etc. Trata-se de uma ciência que se volta ao crime.

A Criminologia Clínica, por sua vez, ocupa-se do indivíduo condenado dentro deste cenário, aproximando a lupa do grande espetáculo para aquele cujos holofotes (fazendo-se analogia com relação a situação em questão) estão voltados.

O modelo de Criminologia Clínica médico psicológico considera a conduta criminosa sendo anormal. Esta seria a expressão de uma anomalia física ou psíquica, dentro de uma concepção pré-determinista do comportamento. Ou seja, o sujeito é considerado um ser criminoso, sendo possível então determina-lo como tal e prever suas atitudes. Percebe-se que apesar desta teoria estar ultrapassada na Academia, ela, muitas vezes, recheia o pensamento comum e se estampa na maneira que as mídias tratam a questão criminal. Por exemplo: chamando suspeitos de “bandidos” e “criminosos” sendo que sequer passaram pelo devido processo legal; a vinculação de estereótipo de bandido com a da pobreza; a determinação do ser criminoso, que não mudaria sua atitude, legitimando penas de aniquilação.

É neste cenário que estaria todo o espetáculo da mídia abordado durante o filme, demonstrado pela opinião dos policiais que trabalharam na operação, e pela reação popular que clamou pela morte daquele indivíduo. Trata-se de um ser diferente, estranho, de uma espécie criminosa, merecedor da morte.

O modelo de terceira geração inova, dentre outros aspectos, na maneira de se encarar o indivíduo e o fato delituoso. O indivíduo não é visto como um ser criminoso, mas como um ser humano igual a todos os outros. Este, além de eventualmente ter cometido um fato considerado delituoso, possui uma história de vida, sonhos, vontades, defeitos e qualidades, frustrações.

Considera-se a ilustração desta teoria, vez que o diretor trouxe este diferente modo de olhar o indivíduo em sua montagem e narrativa. JOSÉ PADILHA buscou retratar a história de vida de Sandro compondo-o como indivíduo. Valeu-se de imagens de sua infância, em gravações realizadas nas escadarias da Candelária juntamente com as assistentes sociais; imagens dele, ainda garoto, jogando capoeira em um projeto

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social realizado na PUC/RJ; de depoimentos que retratavam parte de sua história e de suas características (as passagens pelo sistema correcional de jovens e adultos e o sistema prisional, a dificuldade de conseguir um emprego, a “disciplina” e não agressividade que apresentava quando estava preso, o vício pelas drogas).

Segundo a teoria criminológica, o indivíduo não deve ser considerado o único responsável pelo cometimento do ato infrator. Mas considera-se que ele está inserido em uma rede de inter-relações sociais, dentro de um contexto, em que há inúmeros fatores que são corresponsáveis para a ocorrência daquele fato. Não se exclui a questão do livre arbítrio, mas não leva-se apenas ele em consideração.

“O paradigma das inter-relações sociais corresponde ao cenário do crime, à malha paradigmática de inter- relações sociais, onde são levados em conta todos os elementos que integram a ocorrência do fenômeno assim denominado crime: os empreendedores morais (que são parte da sociedade), os criadores das leis, os aplicadores das leis, o comportamento problemático, os infratores das leis (em todo o seu contexto pessoal: personalidade, corpo, família, grupo social, etc.), as vítimas e, por fim, o contexto imediato no qual o crime é cometido.”10

Ou seja, não há como analisar o fato delituoso de maneira isolada. Ele está inserido em um contexto que o levou a se configurar e o determinou como conduta reprovável. Esta rede é ampla e complexa, não se objetiva identificar todos os fatores corresponsáveis, sob a pena de recair no pré-determinismo de juntar variáveis a fim de alcançar o resultado crime. Não se trata de achar causa e consequência, mas de compreender a situação de maneira ampliada. A cultura de consumo, a desigualdade social, o uso de entorpecente, a temperatura do dia, o histórico de violência familiar, o histórico de violência policial, a invisibilidade do dia a dia, a falta de oportunidade, etc. Podem ser inúmeras variáveis que influenciaram aquele indivíduo a parar o ônibus 174.

10SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. 1. ed. São Paulo-SP: Ed. Revista dos Tribunais, 2011. Pg.327.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

JOSÉ PADILHA explorou as imagens geradas pela mídia sobre o fato, deixando evidente o que estava ao alcance da população em tempo real. De maneira que estampou o espetáculo midiático, apesar de não tecer críticas a este fato diretamente no filme. A superexposição da violência de fatos como este pela mídia massiva brasileira reforça o discurso de ódio, além de reproduzir a perspectiva de teorias criminológicas ultrapassadas. A pré-determinação daquele sujeito como criminoso ocorreu pelo seu nascimento. Reafirmou-se quando de sua sobrevivência na chacina da candelária e na sua insistência em existir, ainda que a sociedade fingisse que não. A ousadia de adentrar naquele ônibus – ainda que nunca tenha matado ninguém – é condição mais do que suficiente para o seu linchamento.

Houve no filme a desconstrução deste estereótipo criminoso, e buscou compreender Sandro a partir da aproximação daquele indivíduo. Foram trazidos elementos que saem da lente do espetáculo para aproximar-se do sujeito, com (partes de) sua historia de vida.

Desta forma, inevitável perceber que o diretor inova na abordagem da violência. Não apenas pelos recursos de narrativa e imagem utilizados, mas pela tese criminológica que acaba trazendo.

Mais do que o sequestrador do ônibus 174, Sandro é um não assassino, um sobrevivente da Candelária, um órfão que assistiu a mãe sendo assassinada, um morador de rua, um drogado, um jogador de capoeira, um espancado pela polícia, um maltratado pelas péssimas condições das instituições prisionais, uma rapaz negro, um ator, um disciplinado enquanto estava no sistema prisional, um recusado ao procurar emprego, um fugitivo, um sobrinho, um rapaz que adotou uma senhora (a única a ir a seu enterro) como mãe,(...). Alguém que não feriu reféns, e que não há registro de ter matado qualquer pessoa – mas que foi alvo da violência estatal, midiática e popular tantas e tantas vezes em sua vida.

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BIBLIOGRAFIA

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Pg. 22. Livros da Revolta. Disponível em: http://lelivros.site/book/baixar-livro-a-sociedade-do-espetaculo-guy-debord-em-pdf- epub-e-mobi/, acesso em: 10/08/2015.

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e execução penal: proposta de um modelo de terceira geração. 1. ed. São Paulo-SP: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.

Filme base: “Ônibus 174” – Diretor José Padilha.

Reportagem: Folha de São Paulo. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/vice/2015/08/1673548-pm-do-rio-impede-adolescentes- da-periferia-de-ir-as-praias-da-zona-sul.shtml, acesso em: 26/08/2015.

Referências

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