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Capoeira, memória e cultura : a representação dos capoeiristas sobre as ações governamentais relacionadas à capoeira

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Academic year: 2017

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Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação Física

CAPOEIRA, MEMÓRIA E CULTURA:

“A representação dos capoeiristas sobre as ações

governamentais relacionadas à capoeira”

Brasília - DF

2013

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IGOR MÁRCIO CORRÊA FERNANDES DA CUNHA

CAPOEIRA, MEMÓRIA E CULTURA:

A representação dos capoeiristas sobre as ações governamentais relacionadas à capoeira

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação Física da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em Educação Física.

Orientação: Prof.ª Drª Tânia Mara Vieira Sampaio

Coorientação: Prof.º Dr.º Luiz Renato Vieira

Brasília

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7,5cm

Ficha elaborada pela Biblioteca Pós-Graduação da UCB

C972c Cunha, Igor Márcio Corrêa Fernandes da.

Capoeira, memória e cultura: a representação dos capoeiristas sobre as ações governamentais relacionadas à capoeira. / Igor Márcio Corrêa Fernandes da Cunha – 2013.

134 f.; il : 30 cm

Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2013. Orientação: Profª. Drª. Tânia Mara Vieira Sampaio

Coorientação: Prof. Dr. Luiz Renato Vieira

1. Capoeira. 2. Cultura. 3. História. 4. Identidade. I. Sampaio, Tânia Mara Vieira, orient. II. Vieira, Luiz Renato, coorient. III. Título.

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CUNHA, Igor Márcio Corrêa Fernandes da. Capoeira, Memória e Cultura: a representação dos capoeiristas sobre as ações governamentais relacionadas à capoeira

(134f.). Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2013.

O presente estudo teve por objetivo ressaltar determinados valores e saberes que participam da construção da sociedade contemporânea. Auxiliados pela trajetória da capoeira em nosso país, evidenciamos construções, enfrentamentos e superações de ideologias. Utilizamos a memória social como instrumento analítico reflexivo, para compreender melhor os processos de formação das identidades em uma nação. E destacamos o registro da capoeira como patrimônio imaterial da cultura brasileira, no ano de 2008, e suas repercussões, exemplificando trajetórias de ações sociais que buscam legitimação e implementação de políticas públicas próprias para o seu desenvolvimento. A identificação das diversas vertentes e formatações de capoeira, que foram se originando ao longo da história, reforçam o entendimento do dinamismo cultural como prerrogativa natural. Dessa maneira, os dados apresentados nos levam ao posicionamento de oposição, relacionado aos discursos, ressaltadamente puristas em busca de legitimação e poder nesse universo. A capoeira cercada por exaltações e resgates as tradições, envolve lutas constantes por vinculações a um passado original. A ausência de uma matriz fundadora, sua origem obscura, em conjunto com a multiplicidade de influências culturais que mesclam a capoeira, faz com que neste trabalho tenhamos o destaque conclusivo da interpretação corporal e gestual, além da expressão física. Ela nos mostra em momentos distintos, a relação de formatações gestuais como forma de poder e distinção social. Os exemplos trazidos por intermédio da trajetória da arte nos mostraram ainda, que o esporte e a cultura, bem como toda a ação corpórea envolvida, são amplamente influenciados por valores sociais e políticos. E criam, por vezes, embates e disputas entre os agentes divulgadores da arte e os interesses do Estado, que desempenharam, ao longo do tempo, relações complexas, alternando momentos de proibição, coerção incentivo e reconhecimento. A capoeira, de forma mesclada, passou por diferentes momentos identitários, como a criminalização, folclorização, esportivização e foi registrada pelo viés cultural. Já convocada e aclamada a décadas anteriores, a formatação educacional e formativa foi destacada, como proposição a um novo processo de legitimação social. Assim, o trabalho em conclusão enalteceu essa capacidade e esse sentido de ação, independentemente de sua configuração estética.

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The object of this study is to understand, through an analysis of elements of the history of capoeira, certain search mechanisms for legitimacy in their universe, as well as different forms of organization and expression preserved in the Brazilian memory and culture. It was used the social memory as a reflexive analytical tool to better understand the formation processes of identities in a nation. The text brings the different constructive memories of aspects of Brazilian capoeira in dialogue with its recent record as an intangible cultural heritageofBrazil. The identification of the different strands and formatting of capoeira, that were originating through history, reinforce the understanding of cultural dynamism as a natural prerogative. Therefore the data presented lead us to positioning opposition, related to the speeches, purists in search of legitimacy and power in this universe. The capoeira surrounded by exaltations and redemptions of the traditions involves constant struggles for attachments to a unique past. The absence of a founding mother, its dubious origin, together with the multiplicity of cultural influences that blend capoeira, makes that in this work we have the concluding highlight of the body and sign language interpretation, beyond the physical expression. It shows us, at distinct moments, the relation of gestural formatting as form of power and social distinction. The examples presented through the trajectory of the art showed us still that sport and culture, as well as the entire body action involved, are largely influenced by social and political values. And create, occasionally, clashes and disputes between the disseminator agents of art and the interests of the State, which played, over time, complex relations, alternating moments of prohibition, encouragement and recognition. The Capoeira, in a interlaced way, went through different moments of identity, such as criminalization, folklorization, sportivization and was registred by cultural bias. The educational and formative intention already convened in earlier times, was highlighted as a proposition to a new process of social legitimacy. So the work, in conclusion praised this ability and this sense of action, regardless of its aesthetic design.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...10

2 OBJETIVOS...14

3 REFERENCIAL TEÓRICO 3.1 MEMÓRIA, HISTÓRIA E CAPOEIRA ...15

3.1.1Capoeira uma herança escrava reprimida e marginalizada...22

3.1.2 A busca pela desportivização...28

3.1.3 A cultura popular folclorizada...32

3.1.4 A desafricanização da capoeira, ocidentalizada e embranquecida...39

3.2 NOVAS POLÍTICAS PARA A CULTURA E O LUGAR DA CAPOEIRA...45

3.2.1 Notas sobre a trajetória das políticas culturais no Brasil...49

3.2.2 O discurso do Ministro Gil em Genebra...54

3.2.3 Um novo olhar sobre o popular: Cultura Viva, Pontos de Cultura, e Griôs...57

3.2.4 A inserção da capoeira na agenda governamental...61

3.3 A CAPOEIRA COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL... 63

3.3.1 Capoeira e memória social...69

3.3.2 Capoeira e o registro do intangível... 73

3.3.3 A mobilização da comunidade da capoeira (os encontros Pró-Capoeira)...78

4 MATERIAIS E MÉTODOS...82

4.1 ELEMENTOS DA PESQUISA...82

4.2 INSTRUMENTOS...83

4.3 PROCEDIMENTOS...83

5 RESULTADO E DISCUSSÃO...84

5.1 ANÁLISE DOS SEGMENTOS DA CAPOEIRA E SEUS DISCURSOS EM RELAÇÃO ÀS AÇÕES DO GOVERNO... 89

5.1.1 Análise do discurso purista e tradicionalista...94

5.1. 2 Análise do discurso esportivo... 102

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5.1.4 Análise da visão cultural...111

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...119

7 REFERÊNCIAS...125

8 APÊNDICES...131

TERMO DE CONSENTIMENTO...131

9 ANEXOS...133

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1 INTRODUÇÃO

A escolha do tema da pesquisa, que relaciona a capoeira à temática da memória social, ocorreu pela percepção de que é um campo frutífero de multiplicidade analítica, capaz de proporcionar leituras sobre disputas por legitimidade, e sobre discursos de diferentes segmentos de participantes na busca de credibilidade. A capoeira, por sua complexidade de formatos, identificados ao longo da história e pela ausência de documentos que definam seu surgimento, torna-se um campo cheio de teses e hipóteses na tentativa de definir sua história.

A ritualística da roda de capoeira, suas construções hierárquicas, assim como os temas exaltados nas cantigas, remontam a histórias, fortalecem mitos e formam um campo fértil de pluralidades interpretativas relacionadas à arte. As lutas por manutenção de uma tradição em que não se consegue definir com precisão o que é tradicional fazem da capoeira um campo de embates realmente extraordinários. Disputas por vinculações a pessoas, instituições, grupos e lugares de referência acontecem, evidenciando uma rememoração ou uma reconstrução do passado determinada pelas necessidades do presente. A diversidade social e as suas relações com a construção de uma memória coletiva podem ser compreendidas pelos exemplos construídos na história da capoeira, que por sua vez se misturam à história da escravidão no Brasil. Os estudos históricos da capoeira (VIEIRA. L, 1996; SOARES, 1996; REIS, 2000; VASSALLO, 2003; ASSUNÇÃO, 2005) mostram um processo de lenta organização e de inserção social, evidenciando a ação de agentes que atuaram estrategicamente para legitimar sua etnia e sua cultura dentro de um contexto opressor.

A memória trazida à luz da história acontece por meio de esforços que agentes sociais, representantes de determinados interesses, realizam para fixar o que é realmente importante para ser imortalizado nos livros e registros de um país. Os agentes buscam, por meio de suas memórias, fazer com que a história passe por um processo de democratização. A reflexão sobre os valores e saberes que participam da construção das sociedades contemporâneas passa necessariamente por um exame da relação da memória e da cultura com o poder. Ela é um importante instrumento para a construção, enfrentamento ou superação de ideologias no decorrer da história (POLLAK, 1992).

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Sua construção e sua difusão social, cercada por lutas e discursos na busca de valorização, fazem dela um convidativo elemento de estudo.

Em se tratando de memória social, surgem questionamentos automáticos, tais como: o que deve ser realmente memorável? Quais gestos e formas são enaltecidos? Como a memória é utilizada e praticada? Quais as questões que entraram em esquecimento? Quais elementos corporais caíram em desuso? Quais pontos são passíveis de construções seletivas? Quais os fatos que devem ser comemorados? Como as comemorações e seus formatos podem influenciar na formação de uma identidade nacional? Todos esses questionamentos são respondidos e habilidosamente articulados na dimensão política da memória. Essas questões serão melhor entendidas e aprofundadas no decorrer da dissertação.

Portanto, a escolha de relacionar a capoeira ao debate sobre a memória deu-se também pela percepção de que a memória tem uma grande função na sociedade e pode nos auxiliar a criar esquemas coerentes de interpretações dos fatos, estimulando discursos e narrativas que influenciam diretamente em uma reconstrução social. Outro ponto relevante do trabalho é a oportunidade de entender e respeitar os diferentes saberes e refletir sobre a relação entre saber e educação.

A capoeira resgata a memória dos velhos mestres e sua oralidade de maneira ímpar por meio de uma busca infindável pelo conhecimento de sua origem e de sua história. Há um respeito admirável aos patronos da capoeira e àqueles que receberam a transmissão direta dos conhecimentos, sem falar dos grandes nomes imortalizados nas cantigas.

Dessa maneira, a capoeira demonstra uma força importante na formação de uma identidade nacional, apesar do grande leque de representações criadas a partir do desdobramento de um mesmo símbolo. Ela leva um pacote cultural brasileiro com características e identidades bem específicas. Nessa discussão a respeito da memória, há ainda que se considerar que, na sociedade contemporânea, as múltiplas identidades nas nações modernas, com seus grupos particulares, partidos, sindicatos e associações, estão em eternas articulações para formar uma coesão social. Nesse contexto, Antônio Sá (2003), em diálogo com os estudos de Pierre Nora (1997), lembra-nos de que: “a memória nacional não é então uma experiência definitiva, um repertório fechado, mas sim um campo de forças em constante elaboração e perpétuo remanejamento” (SÁ, 2003, p.174).

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Percebemos na capoeira a existência dos enfoques tradicionalistas, que buscam na cultura popular uma existência definitiva e verdadeira, em oposição a visões reducionistas que entendem a cultura como um projeto simples e homogeneizante, à mercê das classes dominantes (VIEIRA. L, 1996, p.41).

Nesse universo multifacetado, percebemos então fortes discursos puristas que buscam frear as transformações culturais advindas das novas gerações. Diferentes discursos legitimam vertentes distintas, criando uma diversidade de entendimentos e abordagens. As compreensões, por vezes antagônicas, são construídas em torno de um mesmo objeto, trazendo oportuna compreensão social por meio desse caleidoscópio que é a capoeira.

Na capoeira, assim como em várias organizações culturais, cada grupo reivindica sua memória, busca sua parte e reconhecimento no cenário nacional em torno do seu passado e de sua história. Os fatos passados são trazidos de maneira orquestrada para a luz do presente, organizando linhas cronológicas legitimadoras, auxiliando os que discursam na construção de um sentimento de identidade e vinculação.

A capoeira avança, dessa forma, organizando-se em grandes grupos1, espalha-se mundialmente e ganha grande representatividade na cultura brasileira e no mundo, sendo considerada atualmente como um fenômeno popular cultural internacional (VIEIRA. L, 2002). Vista como uma das maiores difusoras da língua portuguesa para o mundo, uma vez que suas terminologias e cantigas são ensinadas na nossa língua, a capoeira tem sido um dos grandes veículos da exportação da nossa cultura para outros países2. O turismo, principalmente nas cidades de Salvador, Recife e Rio de Janeiro, sofre um considerável aquecimento devido à visita dos capoeiristas estrangeiros, espalhados pelo mundo, com interesse em conhecer as raízes da arte-luta3.

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A capoeira se difundiu acoplada aos mestres que se deslocavam, advindos principalmente do Nordeste, para os grandes centros urbanos no Sudeste brasileiro. Em busca de melhores condições de vida e de trabalho, muitos conhecedores da arte se estabeleceram nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, iniciando assim processos de orientação, lecionando para curiosos e interessados, formando um modelo germinativo dos grupos de capoeira como entendemos atualmente. Nesse cenário, merece destaque o pioneirismo do Grupo Senzala, que se organizou nos anos 60, influenciando diretamente o modelo atual da capoeira, com sistema de graduação, logomarca e fundamentação própria (FALCÃO, 2012; VIEIRA, 1997).

2 O Ministério das Relações Exteriores, em um material denominado

Brasileiros no Mundo, explicita a importância da capoeira no cenário cultural internacional e descreve as principais associações de capoeira espalhadas nos diversos continentes. Disponível em: http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/a-comunidade/associacoes-de-capoeira-no-mundo/impressao

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A cultura popular, em destaque a capoeira, recebeu grande relevo na pauta governamental entre os anos de 2003 e 2011 na gestão do então Ministro da Cultura Gilberto Gil e de seu sucessor, o Ministro Juca Ferreira. A partir de 2004, foi criado um plano de ação, incentivo e preservação da arte brasileira, culminando no seu registro como patrimônio cultural brasileiro em 2007 (IPHAN, 2007). A capoeira recebeu grande atenção dos governantes com a instituição de políticas públicas para sua preservação, e todo esse processo de construção e destaque social fornece riquíssimo material analítico.

Este momento em que estudamos a capoeira é realmente um período especial, pois até a década de 2000 não se podia falar da existência de programas políticos e de ações mais duradouras do Estado em relação à capoeira. Entender quais fatores e agentes contribuíram para essa organização e planejamento da capoeira para um longo prazo é bem relevante. Ações governamentais como o Capoeira Viva”, o “Pró- Capoeira” e o “Prêmio Viva meu Mestre”, além do envolvimento de órgãos de diversas áreas, demonstraram respeito e reconhecimento ao saber popular, bem como aos mestres portadores da rica memória histórica da capoeira.

Com o registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial do Brasil, algumas medidas preservacionistas foram criadas, como a organização de editais de fomento e apoio, e alguns encontros foram realizados no intuito de dialogar com as representações da capoeira e compreender suas reais necessidades. Nesses encontros, denominados Pró-Capoeira, tornou-se um grande desafio mediar a grande diversidade cultural da capoeira e tornou-seus diversos interesses com as possibilidades reais de apoio do Estado.

Entendemos este momento como uma oportunidade de grande relevo e adequada para o estudo, pois promoveu o diálogo entre os mestres da capoeira e diversos representantes do Estado, que sem essa mobilização jamais aconteceria. Resultando, apesar das divergências, em diversos programas, editais e prêmios buscando o fomento da capoeira.

de 15 a 30 dias aqui, bem mais do que a média de 2 a 3 dias do turista convencional. Essa visitação já acontece, mas queremos incrementar esse fluxo, agindo de forma profissional, para que resulte em mais benefícios ao

tu is oà aia oàeàaàtodosà ueàvive àe àfu çãoàdaàatividadeàCapoei a .àOàB asilà àaàsextaà aio àe o o iaàdoà

turismo no mundo e traça plano estratégico para se tornar a terceira até 2015.

http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20120430-1.html/

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2 OBJETIVOS

2.1 OBJETIVO GERAL

Verificar a repercussão do registro da capoeira como patrimônio imaterial no universo da capoeira.

2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS

 Identificar a importância da memória e da identidade no contexto da capoeira.

 Verificar quais identidades estão sendo construídas pelos capoeiristas, bem como o que está sendo exaltado e o que está sendo negado nos discursos da capoeira, quando o poder público voltou seu interesse a essa arte.

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3 REFERENCIAL TEÓRICO

3.1 MEMÓRIA, HISTÓRIA E CAPOEIRA (estado da arte)

A memória, em seu sentido social, será o instrumento principal de análise dos conteúdos organizados neste trabalho, oferecendo grande auxílio no entendimento da temática. Dedicaremos um tópico específico à associação da memória social à capoeira, para melhor compreender sua organização e suas formas de expansão na sociedade.

Zilda Kessel (2003) mostra que, ao longo da história, o estudo da memória foi tema de filósofos e de cientistas por séculos. A memória, para os antigos gregos, era sobrenatural. Mnemosine, a divindade grega, preservava os seus dos perigos do esquecimento e possibilitava aos poetas lembrar-se do passado e transmiti-lo aos mortais. Para os romanos, era considerada indispensável à arte retórica, em que o orador emocionava os ouvintes por meio da linguagem sem recorrer aos registros escritos. No período medieval, a memória litúrgica estava ligada à memória dos santos. O cristianismo e o judaísmo trazem pela rememoração os acontecimentos e milagres do passado e as suas comemorações acontecem em datas precisas onde se louvam santos e mártires (KESSEL, 2003).

Na capoeira, a utilização da memória é uma constante. As cantigas remetem ao passado, lembram os velhos mestres, contam a história da escravidão e demarcam uma genealogia, criando vinculações dos capoeiristas e de seus grupos a um possível passado originário. Em busca de constante legitimação, o universo da capoeira sempre indagou: “menino, quem foi seu mestre?” Imortalizada na voz de Mestre Bimba4, essa cantiga exemplifica bem a questão:

Menino quem foi seu mestre? Meu Mestre foi Salomão Sou discípulo que aprende Sou Mestre que dou lição O Mestre que me ensinou Está no Engenho da Conceição.

O Engenho da Conceição remete ao trabalho escravo, ao cárcere. Dessa maneira, Mestre Salomão estava relacionado, diretamente, a um foco irradiador originário que envolvia

4 Manuel dos Reis Machado, Mestre Bimba, foi um dos grandes ícones da capoeira, juntamente com Mestre

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os portadores das essências culturais formadoras da capoeira por intermédio da diáspora africana.

Muitos cantaram e cantam, ainda hoje, em busca de certificar suas linhagens, suas origens e seus vínculos por meio de uma memória cantada. Nas entrevistas ao longo da história, quase que na totalidade dos casos, antes mesmo de serem perguntados, os mestres deixam bem claras as suas vinculações. Rafael Alves França, Mestre Cobrinha Verde (1917-1983), uma das relevantes representações da capoeira baiana, é um grande exemplo, quando fala das suas filiações, mostrando também o envolvimento familiar.

Besouro...5

meu mestre, começou a me ensinar a capoeira quando eu ainda tinha quatro anos de idade. O pai de Besouro chamava-se

João, apelidado de João Grosso, a mãe Maria Haifa. Maria Haifa era minha tia, Besouro era meu primo carnal e meu irmão de criação. Quem criou ele foi minha mãe (SANTOS, 1991, p.12).

A memória, então, pode ser entendida como uma peça fundamental na organização da sociedade, funcionando como um sustentáculo da mesma. As memórias organizadas representam valores, conhecimentos, e são as bases para formação das identidades e das nações. Algumas tentativas de conceituá-la, contudo, demonstram grande fragilidade devido à vasta abrangência da questão. Piaget, segundo Ehrlich (1979), definiu a memória como um “sistema funcional geral que comanda um conjunto de atividades perceptivas, motoras e intelectuais; é considerada como um sistema vivo”. Também em diálogo com o estudo clássico de Ehrlich (1979), Maurice Halbwachs (2006) nos trouxe outros dois pensamentos: “a memória é um saber, é o ato de recordar, de ativar lembranças, é o conhecimento atual de um passado; é uma consciência virtual, recuperada, reconstituída e interpretada pela consciência ativa, real, concreta” (VIANA, 2006, p.08).

Helenice Silva (2002) utilizou conceituação baseada em importantes referências como: Paul Ricoeur (1996) e Jedlowiski (2003) e conceitua a memória como:

a única guardiã de algo que ‘efetivamente ocorreu no tempo’, sendo ela uma ambição de veracidade relacionando passado, presente e futuro”...o

pensamento contemporâneo não concebe a memória como um depósito, mas como uma pluralidade de funções inter-relacionadas (SILVA, 2002, p.426).

5 Besouro de Santo Amaro ficou conhecido por ser capoeirista e justiceiro. Alguns achavam que era apenas

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Para efeito deste trabalho, a memória poderá ser entendida como uma rede complexa de atividades, cujo estudo mostra que o passado nunca permanece em estado puro, mas é sempre selecionado, filtrado e reestruturado pelas interrogações e pelas necessidades do presente, tanto no nível individual quanto no social.

No estudo da memória, é importante que fortaleçamos também os entendimentos de retenção, esquecimento e seleção. A memória é sempre uma construção que acontece no presente, a partir de vivências ocorridas no passado; nessa ponderação, está envolvida a questão da seletividade. Esse fato determina as lembranças que serão estimuladas dentro do grupo ao qual pertencemos, por exemplo: quais são as concepções estimuladas e difundidas pelos mestres de capoeira na atualidade? Esses fatores acabam determinando, de certa forma, os fatos que serão selecionados, separando-os entre os que serão retidos na coletividade e os que cairão no esquecimento.

A partir dessas reflexões, outro conceito torna-se importante, que se relaciona à memória coletiva construída por Maurice Halbwachs (2006), explorado e interpretado amplamente nas ciências sociais. Utilizaremos o seu entendimento no decorrer da pesquisa. Halbwachs entende que “diferentes pontos de referência estruturam nossa memória e que ela está inserida na memória da coletividade à qual pertencemos (HALBWACHS, 2006, p.29-30). Jedlowski (2003) explora o conceito e aborda-o da seguinte forma: “um conjunto de representações sociais que tem a ver com o passado, produzidas, guardadas e transmitidas por um grupo e pela interação com seus membros” (JEDLOWSKI, 2003, p.225-226). Essa linha é muito aceita pelos estudiosos e, de certa forma, inquestionável, conforme verificaremos no transcorrer do trabalho. Contudo, o mais determinante nessa concepção de memória não é o caráter comum dos conteúdos, mas o fato de que estes sejam produtos de uma interação social, relacionada a uma comunicação que tenha a capacidade de escolher o que é importante e significativo no passado em relação aos interesses e a identidade dos membros de um grupo. No meio em que vivemos as tradições, os costumes, as regras de interação, o folclore, a música e até mesmo as práticas culinárias nos mostram no cotidiano o que deve ser lembrado, assim como o que é importante, o que é valorizado, aceito, protegido e até mesmo venerado. Nascemos dentro de um contexto social pré-organizado.

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microcosmos com processos identitários bem peculiares. Podemos, então, simplificar, dizendo que a identidade representa algo que nos une e faz com que nos diferenciemos de outros grupos ou organizações sociais. A identidade, segundo Michel Pollak (1992), pode ser conceituada como:

[...] o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela mesma, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar não só na sua representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser vista pelos outros (POLLAK, 1992, p.205).

A partir da citação e dos entendimentos de Michael Pollak (1989), percebemos que o testemunho pessoal daqueles que viveram o que está sendo relatado pelo profissional de história, por exemplo, gera, por vezes, confrontos entre as recordações vibrantes e a história oficial. Esses questionamentos direcionados à história oficial foram denominados de memórias subterrâneas, terminologia adotada pelo mesmo autor. Essas memórias envolvem uma análise na concepção dos excluídos, dos marginalizados e das minorias que se opõe à memória oficial.

Como se vê uma das grandes tensões do mundo contemporâneo ocorre na relação entre memória e história. Como obsevou Sá (2003), em reflexão sobre o pensamento de Roger Chartier (2001),

A afirmação, absolutamente legítima por parte de indivíduos ou de comunidades, de sua identidade, e, por outro lado, a necessidade de manter uma distância em relação à memória histórica (formalizada) produzida por estas identidades, traz consigo o debate fundamental da história como disciplina crítica, sobre seu estatuto teórico e metodológico, na medida em que revela os mitos e as falsificações (SÁ, 2003, p.7).

Uma linha de pensamento só possui força quando existe coesão social, representação, adesão afetiva e numérica. Halbwachs (2006) afirma que: “a nação é a forma mais acabada de um grupo, e a memória nacional, a forma mais completa de memória coletiva.” Em apoio a esse pensamento, Pollak (1989) diz que:

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Dentro dessa percepção, evidenciamos a existência de uma fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável. Fatos que separam uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada, ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem na qual uma sociedade majoritária ou daquela que o Estado deseja passar e impor. Essa noção está consubstanciada no conceito de não ditos. (POLLAK, 1989).

A memória, então, não deve ser construída arbitrariamente. Em relação a isso, existe um conceito trazido por Henry Rousso (1985), historiador francês especializado na segunda guerra mundial, de enquadramento da memória, segundo o qual determinados grupos defendem as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, definem seus pontos de referências e fortalecem o seu sentimento de pertencimento (POLLAK, 1989). Amplamente utilizada nas vertentes de capoeira e em vários outros segmentos sociais, o enquadramento de memória e suas constantes arrumações e rearrumações são estratégias rotineiras para gerar discursos coerentes e que demonstrem sentido para ações que buscam legitimidade. Pollak (1992) introduz, para esses casos, também o conceito de trabalho de enquadramento da memória. Nesse entendimento, pode-se dizer que esta sofre constantes modulações, compreendidas também como um processo de rememoração, ou seja, o passado é reorganizado ao ser trazido para o presente pelas necessidades atuais ou futuras. A memória, então, deve ser entendida como um fenômeno construído, podendo essa construção se dar de maneira consciente ou inconsciente. Paul Ricoeur (1996) considera a rememoração como parte de um processo de elaboração individual; ela é a reapropriação do acontecimento passado, projetando-o em direção ao futuro, conforme corroborou Silva (2002).

Com base no conteúdo organizado, a memória deve ser entendida como objeto de frequente manipulação, e tem no historiador do presente uma necessidade de papel mediador, analista que desenvolve a função de resgatar a memória adequando os relatos a veracidades históricas. Entretanto, há também uma memória histórica, oficialmente registrada, que aparenta objetividade absoluta, mas que por outro lado é questionada pelas memórias sociais, que equaliza, corrige, remedia fragilidades e abusos históricos eventualmente cometidos. Dessa forma, há uma eterna busca pelo fato, pela veracidade plena, entendendo que interpretações serão mediadas sempre por afetividades, por valores pessoais e históricos que irão modular sempre a mensagem do relator.

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outros grupos. Esses discursos acontecem também na busca de reconhecimento, não só da capoeira, mas da etnia negra renegada em importância por aqueles que escreveram a história. Como veremos, acontece na capoeira uma organização complexa e diversificada que exemplificaremos por meio da organização da memória nesse universo.

Dentro desse contexto, destacamos alguns relatos organizados por Marcelino dos Santos (1991), relacionados ao Mestre Cobrinha Verde. O Mestre deixou rico material em entrevistas, e seu discurso exemplifica bem as ações de demarcação de pioneirismo, de fortalecimento identitário e de legitimação, extremamente características no universo da capoeira. Em entrevista cedida a Marcelino dos Santos, no livro Capoeira e Mandingas ele fez interessantes revelações, ao falar que começou a lecionar capoeira antes de Bimba e Pastinha, por volta de 1936, e que teve tantos alunos que era impossível fazer as contas. Contou também que conhecera o Mestre de Besouro, chamado de Alípio, que foi o mais famoso de Santo Amaro, e que ensinava a capoeira gratuitamente como missão, como homenagem e amor a Besouro. Além disso, revelou que ninguém, antes dele, havia saído do Estado da Bahia para apresentar a capoeira e que só ouviu falar em Mestre Pastinha depois da morte de Aberrê6, pois ele era seu acompanhante e não o contrário como divulgado por Mestre Pastinha, segundo quem Aberrê era seu aluno. Defendeu a ideia de que a capoeira surgiu na Bahia, especificamente no recôncavo baiano, e desafiou ainda quem provasse sua origem africana ou carioca (SANTOS, 1991).

Por vezes, a história contada por um mestre difere de outras aclamadas e bastante difundidas no meio. Certos aspectos ganham os holofotes e outros não, certos atores ganham destaque e outros desaparecem. Alguns aspectos históricos recebem apelos midiáticos e outros ficam relegados apenas a uma memória oral, e isto acontece não necessariamente por serem verídicos, ou menos questionáveis. Os fatos que estão sendo trazidos para a difusão social acontecem por meio de uma trama complexa envolvendo poder, oportunismo e uma série de conjecturas para organizar uma cronologia histórica às necessidades do presente. A memória é objeto de frequentes modulações e manipulações, conforme já ressaltado, mas sobretudo em campos menos sistematizados e menos formalizados, como o caso da capoeira.

Dessa forma torna-se importante entendermos e aprofundarmos alguns conceitos, como o de esquecimento, associado aos não ditos organizados por Michael Pollak (1989). Certas informações, conhecimentos e determinados fatos históricos ficam em zonas de

6 Antonio Raimundo Aberrê era um grande capoeirista, aclamado por todos e reconhecido em toda Bahia, há

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silêncio pela angustia de não encontrar uma escuta, ou ser punido por aquilo que se diz. Os “não ditos” são as memórias subterrâneas esperando uma conjetura oportuna para emergirem (POLLAK, 1989).

Ainda dentro desse entendimento, percebemos que existem questões que envolvem recalcamento e/ou repressão; como exemplo, pode ser citada uma lembrança traumática, que deve ser esquecida. Há também fatos históricos que mancham a memória de um povo, e não seria interessante trazê-los à tona, demonstrando, mais uma vez, a relação da memória individual com a social. A memória individual é também constituída por certa influência social, e os grupos sociais, com suas inserções, criam sua memória por meio de processos seletivos. Existe, então, uma memória histórica e oficial, porém as percepções dos fatos envolvem uma multiplicidade de memórias definida pela divisão das classes sociais e seus diversos interesses (DOS SANTOS, 2002).

A partir dos levantamentos anteriores, analisamos os seguintes aspectos: quais memórias da capoeira e da história emergiram na atualidade, sob quais prismas certos fatos foram abordados, e quem são esses agentes que trazem o passado à luz do presente.

Nesta linha de pensamento, torna-se extremamente importante a organização de fatos comemorativos para fortalecer uma ideia do que é real, e o passado comemorado é revivido e passa a ser atual. “A produção das comemorações serve, assim, para reforçar os mitos e escolher os que melhor funcionam no momento presente, visando à solidariedade social e viabilizando projetos futuros” (OLIVEIRA, 2000, p.156-157). A comemoração, para Paul Ricoeur, trabalha sempre com a construção de uma memória coletiva e ambas estão amplamente relacionadas, como acentuou Silva (2002).

Entendemos então, após a breve organização, que a história oral ou escrita recebe modulação social. Michael Pollak (1992) comenta que a história oral, como método apoiado na memória, é capaz de produzir representações e não a constituição do real. Em acordo com o seu entendimento, evidencia-se então que: “se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação também o é, não havendo então diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral” (POLLAK, 1992, p. 207).

Essa visão crítica nos auxiliará diretamente na análise da construção da organização histórica da capoeira, bem como no entendimento da organização das diversas vertentes atuais da capoeira.

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nos caminhos a seguir. Assim, inspiradas nesse passado, as ações orquestradas dos mestres do presente buscam legitimidade, traçando invisível fio condutor entre as possibilidades originárias e a atualidade, conforme tratamos.

Este corpo conceitual, fundamentado nas respectivas abordagens teóricas, será aplicado, no decorrer da pesquisa, para a compreensão dos processos de formação da memória histórica e dos discursos organizados na capoeira.

3.1.1Capoeira: uma herança escrava reprimida e marginalizada

Entre as primeiras décadas do século XIX, até meados do mesmo século, a capoeira configurou-se, de certa forma, como atividade eminentemente escrava. Sua repressão aconteceu inicialmente por meio de diversos decretos, publicados entre 1821 e 1834. Os decretos referiam-se a punições, e utilizavam, em sua maioria, o termo “escravos capoeiras” quando tratavam dos indivíduos envolvidos com sua prática. Até meados do século XIX, essa ação acontece com frequência, passando a diminuir com o envolvimento de pessoas livres e libertas. Ao longo do século XIX, ela foi, brandamente, tolerada durante o período imperial, sendo tratada apenas como contravenção penal. Ainda assim, o açoite era o castigo mais comum entre os escravos capoeiristas, que variava entre 50 e 200 chibatadas. Além da dor física, sofriam a dor moral: eram chicoteados e despidos em praça pública7.

Paradoxalmente, prendiam aqueles que já eram prisioneiros de seus senhores e colocavam em trabalho forçado a serviço do governo aqueles que trabalhavam cotidianamente no limite de suas forças (REIS, 2000).

Os estudos de Rego (1968), Moura (1980) e Holloway (1989,1993) serviram de base para muitos pesquisadores, pois disponibilizaram vasta documentação, inclusive jurídica, detalhando as penas sofridas pelos escravos capoeiristas. Dentre essas documentações, aparece grande número de reivindicações dos senhores que ficavam sem sua mão de obra com

7 Jean Baptiste Debret foi contratado pela corte portuguesa para retratar os momentos ilustres da monarquia.

Suas pinturas demonstram, com extrema fidedignidade, o contexto colonial, e são utilizadas como fonte iconográfica de grande valor, para diversos estudos históricos. Aplicação do castigo de açoite, denominação de

u aà deà suasà o as,à evelaà deà fo aà detalhadaà esseà t gi oà e io.à Pa aà sa e à aisà ve ifi a à oà estudoà à áà

ESCRAVIDÃO NEGRA NO BRASIL: ANÁLISE DOS ASPECTOS CULTURA E TRABALHO POR MEIO DAS OBRAS DE JOHANN MORITZ RUGENDAS E JEAN BAPTISTE DEBRET. Cláudia Santana Lemos; Neliane Maria Ferreira . Alunas do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia.

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a prisão de seus trabalhadores. A ação provocava então queixas dos senhores, que questionavam a legislação.

Figura 1 - DEBRET, Jean Baptiste. Aplicação do castigo de açoite, 1835.

A capoeira, assim como todas as manifestações afro-brasileiras, sofreu proibição e repúdio no Brasil escravocrata e pós-abolicionista. Uma sociedade coberta de preconceitos não voltaria seus interesses à cultura negra facilmente. Nesse período, pode ser percebida a formação de uma identidade capoeirística relacionada à marginalidade. Seus hábitos, crenças e costumes eram proibidos e discriminados. Nesse contexto percebe-se que não se pode construir uma autoimagem isenta de uma relação social. Sua prática estava relacionada aos guetos, à região portuária e a localidades periféricas de menor acesso policial (VIEIRA, 1996).

Paradoxos, contradições e algumas situações estarrecedoras aconteceram no período da capoeira marginalizada e reprimida. Os estudos de Holloway (1989) mencionados relatam a capoeira como um comportamento inadmissível e as autoridades policiais atuavam, principalmente nos primeiros tempos do Império, com ações disciplinares imediatas envolvendo açoites, prisões e deportações, sem a necessidade de processos judiciais. Esses acontecimentos marcaram de forma indelével a história brasileira (REIS, 2000).

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(SOARES, 1996). Atuando, por vezes, como verdadeira força paramilitar em época de eleições, a capoeira formou organizações eficazes e combativas, que auxiliavam o império contra os republicanos. Contraditória, a capoeira sobreviveu, perseguida e perseguidora, e avançou dentro de um contexto sócio político complexo que ora era cúmplice, e ora era repressor, que desafia o entendimento simplório da capoeira como uma revolta de oprimidos contra poderosos (REIS, 2000).

Outro ponto merecedor de destaque, dentro deste contexto ambíguo, envolve a participação dos capoeiristas na Guerra do Paraguai (1865-70). A eficácia da luta dos capoeiras8 seria aproveitada na batalha homem a homem. Utilizadas anteriormente na guerra da Cisplatina (1825-28), as convocações forçadas ganharam corpo, bem como as representações positivas à capoeira e acerca dos atos heróicos revelados durante o embate. Nesse momento, o nacionalismo se sobrepõe à questão negra e os escravizados são aplaudidos e aclamados, como pode ser verificado no estudo clássico de Waldeloir Rego (1968), oportunizado por Letícia Reis (2000).

...foram atacados por magotes de pretos denominados capoeiras, que travavam com eles combates mortíferos. Postos que armados com espingardas, não puderam resistir-lhes com êxito feliz, e a pedra, a pau, a força de braços, caíram os estrangeiros pelas ruas e praças públicas, feridos grande parte, e bastante sem vida(REIS, 2000, p. 36).

Além de estar presente nos confrontos diretos, a capoeira se mostrava capaz de criar organizações que atuariam além da arma corporal. Ela se organizou em maltas9 que envolviam políticos, escravos, ex-escravos e foragidos da polícia. Os capoeiristas cariocas daquela época estavam em busca de uma identidade cultural própria, construída com base em elementos africanos. As experiências distintas no processo de escravidão geraram agrupamentos diversos que se rivalizavam. Lenços de cores próprias, delimitação de espaços físicos, praças e fontes emolduravam o cenário de disputas e rivalidades entre as maltas bem organizadas (SOARES, 1996).

8 O capoeira, termo utilizado, nos decretos penais do início do século XIX, para descrever os envolvidos com a

manifestação, é utilizado até os dias atuais, como sinônimo de capoeirista. E assim, trataremos, da mesma forma, no discorrer do trabalho.

9 As maltas eram grupos organizados de capoeirista do Rio de Janeiro que tiveram seu ápice na segunda

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A capoeira sofre influência também dos portugueses, como nos relatam os estudos de Carlos Eugênio (1996, 1997) e Letícia Reis (2000), eles descrevem a atuação do fadista10 no universo carioca. Ágil na luta corporal e no manejo de bastão e navalha, o fadista, assim como o capoeirista, era personagem ligado à região portuária e à marginalidade (REIS, 2000). A capoeira recebe distintas influências e toma características peculiares, exercida pelo contexto regional. O estudo de Liberac (1996) que investigou a capoeira carioca, na chamada República Velha, revelou que 80% dos presos capoeiristas eram brasileiros, 14% eram portugueses, 3% espanhóis e apenas um detento era inglês. Apesar das representações sociais envolvendo capoeiristas a associarem a vadios, gatunos e vagabundos, registros policiais revelados nos estudos de Carlos Eugênio (1996), entre o período 1870-1890, ressaltam uma série de ocupações urbanas não formais, envolvendo os praticantes. Estudos similares mostram que grande parte dos capoeiristas tinham ocupações como artesãos, vendedores ambulantes, empregados nos transportes, jornaleiros e outros.

Relembremos, então, que há notícia da repressão à capoeira desde o início do século XIX, com a chegada da família Real ao Brasil, mas somente com a organização do Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil, instituído pelo Decreto nº 487, em outubro de 1890 a capoeira recebe status diferenciado, no capítulo XIII:

Capítulo XIII -- Dos vadios e capoeiras

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal;

Pena -- de prisão celular por dois a seis meses.

A penalidade é a do art. 96.

Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dôbro.

Art. 403. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira, no grau máximo, a pena do art. 400.

Parágrafo único. Se fôr estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.

10 Para maiores informações ver: SOARES, Líbano Carlos Eugênio. Dos fadistas e galegos: os portugueses na

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Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público e particular, perturbar a ordem, a tranqüilidade ou segurança pública ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes.

Extremamente complexa era a repressão da capoeira na Primeira República. Os processos-crime movidos contra os capoeiristas (artigo 402) eram amplamente acompanhados do artigo 399, relacionado à vadiagem, a grupo de ociosos, vadios ou aos que se negavam a pagar suas dívidas. Essa abordagem envolvendo elevada subjetividade levou grande número de pessoas para as prisões. E, ao contrário do que se pensa, a capoeira, pelo menos a partir de 1870, não estava mais restrita a negros e pobres, estendendo-se aos brancos e àqueles pertencentes a grupos mais influentes (REIS, 2000).

Luiz Renato Vieira (1996), corroborando os estudos de Carvalho (1987) revela a existência de cerca de 20 mil capoeiristas às vésperas da República, e ressalta também que o chefe de polícia Sampaio Ferraz desterrou, sem processo, para a ilha de Fernando de Noronha, cerca de 600 capoeiristas (VIEIRA. L, 1996). Essa é uma das grandes interrogações da história jurídica do nosso país.

Dessa maneira, o estudo histórico, em específico relacionado à capoeira, nos permite, por intermédio da memória social, que compreendamos certos processos de construção e organização social, e evitemos assim, o englobamento em uma amnésia coletiva, como nos trouxe Myrian Sepulveda dos Santos (2002):

O mundo da amnésia coletiva é o mundo onde a competitividade, racionalidade e informatização substituem sentimentos, práticas coletivas e vínculos interpessoais presentes em antigas comunidades. Homens e mulheres, desprovidos de conhecimento e experiências do passado, se tornam incapazes de sentir, julgar e defender seus direitos (SANTOS, p. 141, 2002).

Em sequência, nesse período as disputas entre o Império e os ideais republicanos trariam os capoeiristas como pivôs de grandes impasses. Essa temática, amplamente discutida nos estudos de Carlos Eugênio (1996), recebe destaque interessante também no trabalho de Letícia Reis (2000), conforme citação: “A polícia do Império é acusada de omitir-se na perseguição à capoeira, motivo pelo qual a República terminara por herdar essa ‘praga’” (REIS, 2000, p. 40).

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secreto, também denominado de Guarda Negra11, uma espécie de polícia paralela encarregada de passar informações à cúpula Imperial.

Após o período da abolição, a mão de obra negra livre encontrou sérios obstáculos para integrar-se à economia formal devido aos séculos de tradição escravocrata. E assim seguiam os capoeiristas vivendo marginalmente à sociedade e ilustrando páginas policiais, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Curiosamente, a capoeira ganhava também adeptos ilustres avolumando sua diversidade. Um dos casos mais destacados envolveu Juca Reis e a sua prisão. Filho do notório Conde de Matosinhos, figura da elite da colônia portuguesa, a sua prisão tornou-se um dos episódios mais famosos da repressão à capoeira, fato que gerou uma crise ministerial, na recém proclamada República. Longe de ser uma exceção, outros filhos da nobreza participavam vivamente da capoeira, como o caso de Alfredo Moreira, filho do Barão de Penedo, que “era considerado um dos chefes ocultos da capoeira” (REIS, 2000, p. 20).

Cercada de contradições, a capoeira cresce em direção à criminalização e cresce também em número de adeptos livres e brancos. Desta forma, torna-se importante destacar que a capoeira promoveu contato entre pessoas de diferentes origens sociais, étnicas e nacionais, promovendo intensas trocas culturais. Ao longo de sua história, a capoeira perpassa diversas esferas sociais e recebe características distintas. Ela se instaura e toma formatos diferentes buscando adequação entre os interesses dos agentes divulgadores da arte e os anseios sociais, ela gradativamente se entranhou na sociedade, deixando de ser apenas uma atividade das classes populares.

Assim a arte segue pelo país, na Bahia, palco de manifestações religiosas importantes (festa de Santa Bárbara, festa da Conceição, festa de Boa Viagem, festa do Bonfim...) torna-se

espaço para o encontro dos jogadores de capoeira apesar da repressão.No Rio de Janeiro, a

capoeira de Sinhozinho, surgiu com características bem distintas das demais, era baseada nas antigas maltas, que tanto perturbaram as autoridades do Rio de Janeiro durante longos anos. Dessa maneira, a capoeira se espalha nacionalmente e toma formatos distintos formando um grande caleidoscópio cultural.

11 Criada poucos meses após a abolição, a Guarda Negra era formada basicamente por capoeiras. Sua presença

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3.1.2A busca pela desportivização

Finda a escravidão, mas não o racismo, os hábitos e costumes negros deveriam ser coibidos em um processo de reforma moral e social. A questão pôde ser bem certificada por meio da criminalização da capoeira, estabelecida no Código Penal de 1890 e reiterada em 1893, com a criação das colônias correcionais para “capoeiras, vagabundos e vadios”. Nesse momento transitório, inicia-se um movimento oscilatório e dinâmico que, conforme sinalizado anteriormente, vê a mestiçagem e a miscigenação como opção estratégica da elite, sem muitas escolhas, para encaixar as heranças negras à sociedade. E de outro lado, havia um jeito negro e popular de buscar legitimação por meio de um apelo cultural, folclórico e principalmente esportivo. “Se, de um lado, a cultura negra se embranquece, de outro a cultura branca se enegrece” (REIS, 2000, p.69).

A capoeira segue então como uma herança escrava que se desenvolvia, cada vez mais, mestiça, e a mestiçagem trazia uma conotação de nacionalidade e miscigenação, ofuscando lentamente a origem negra. Simone Vassallo (2003) nos traz uma importante visão dos intelectuais e escritores da época que corrobora este prisma, como veremos a seguir: “Os negros eram considerados primitivos, e suas atividades eram classificadas como patológicas. A capoeira era um ‘cancro moral’ que deveria ser extirpado, pois impedia a modernização do país” (MORAIS FILHO, 1893, p.431, apud VASSALLO, 2003, p. 108).

Assim sendo, a capoeira sobrevive, serpenteia como um rio em um leito seco, desviando de obstáculos, reformulando seu curso, sua forma. Ela simplesmente segue, avança, resiste e persiste em continuar existindo apesar das grandes adversidades, certificando os dinamismos próprios da cultura. A capoeira avança então no século XX dentro de movimentos contraditórios inserida em um processo de renovação dos sentidos sociais, colocando em contato as culturas brancas e negras, e busca caminhos distintos a procura de aceitação. Na Bahia temos este processo – que focaremos agora.

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Assim, as lutas de ringue ficam mais incrementadas com os desafios entre a capoeira e as modalidades de jiu-jítsu, luta livre e o catch-as-catch-can12.

As vitórias espetaculares dos capoeiristas contribuíram para, gradativamente, organizar um sentimento de nacionalismo (ABREU, 1999).

A prática marginalizada ganha apelo popular quando o capoeirista é visto apenas como umbrasileiro que luta contra um adversário de outra nação. A arte, lentamente, ganha status de esporte nacional. Inserida em outro contexto, a prática muda seu significado e sua identificação.

É nesse momento, nesse contexto histórico, que um grande personagem da história da

capoeira entra em ação: Manuel dos Reis Machado – Mestre Bimba (1900-1974). Dentro da

gama de informações relacionadas ao universo do mestre, foram selecionados alguns momentos relevantes que ilustram a ascensão da capoeira e o importante divisor histórico que aconteceu por seu intermédio.

Esse momento configura-se por fortes lutas por apoio institucional, o Mestre em seu

trabalho para manter a continuidade de suas ideias, buscou enxertar na sociedade baiana o espírito de pertencimento, de estabilidade das suas práticas e de seus valores. Uma linha de pensamento só possui força quando existe coesão social, representação, adesão afetiva e numérica (POLLAK, 1989). Dentro desse entendimento, Mestre Bimba, em sua luta pela valorização da capoeira, cria em 1928 a “Luta Regional Baiana”. Esse termo foi utilizado por ele em substituição ao termo “capoeira” como uma estratégia de aceitação em uma sociedade coberta de preconceitos pela atividade ainda marginalizada. O que ele propunha tinha como objetivo diferenciar a sua prática das demais, que aconteciam na informalidade das ruas.

Com a ajuda de seu aluno Cisnando, grande conhecedor de jiu-jítsu, boxe e luta greco-romana, Bimba cria uma metodologia de ensino para a capoeira caracterizada por sequências

de movimentos e um código ético restrito (ALMEIDA, 1982).

A partir desta transformação, a capoeira gradativamente vai se inserindo no contexto universitário. Pode-se atribuir ao Mestre Bimba um papel importante neste processo, pois através de seu contato com estudantes de Salvador, que o convidaram para ensinar na pensão onde residiam, o mestre pôde ter acesso a uma camada social e a códigos e símbolos do conhecimento científico que possibilitaram a criação de uma sistematização desse novo modelo de ensino da capoeira. O novo modelo de capoeira criado por Bimba e seus discípulos

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passa a ser reconhecido paulatinamente pela sociedade civil, sendo inclusive o Mestre Bimba agraciado com o título de Instrutor de Educação Física, mediante diploma expedido pela cidade de Salvador. A capoeira institucionalizada inicia-se com Mestre Bimba, mas só vai se firmar com o passar dos anos, através de outras iniciativas promovidas por seus alunos (ALMEIDA, 1994).

De fato, a iniciativa de Mestre Bimba surte efeito. Merecedora de destaque, a apresentação realizada por Mestre Bimba no palácio governamental, em 1937 foi um marco. Ainda clandestina, a capoeira adentrava os salões do governo, a convite do então interventor federal na Bahia, Juracy Magalhães, que levou Mestre Bimba para apresentar a capoeira para o Presente Getúlio Vargas no Palácio presidencial. O interventor proveu um início de uma descriminalização da luta, e de forma sequencial grandes conquistas aconteceram a Mestre Bimba e a sua vertente. Ainda na década de 30, além de ter feito grande sucesso nas lutas de ringue, Mestre Bimba teve sua academia de "Luta Regional Baiana" registrada na Secretaria da Educação, Saúde e Assistência Pública. E ainda na mesma década, seu aluno Mestre Onça Tigre, oficial do Exército, levou Bimba e sua prática para a instituição (ALMEIDA, 1994).

A capoeira nessa etapa sofre uma transformação identitária, podendo ser vista por uma ótica metodizada e institucional, e com certa representação nacional. Mestre Bimba foi um grande agente de transformação, mas é importante entender o contexto sociopolítico que favoreceu tal transformação13. A capoeira conquistou espaço na sociedade, mas foi organizada também dentro de padrões pré-concebidos. Ela é tida então como folclore exótico e luta genuinamente brasileira.

Embora a comunidade da capoeira possa ser definida como um universo simbólico dotado de relativa autonomia, foi possível perceber através de suas relações internas a penetração do espírito político presente nas ideologias autoritárias do período 1930 1945...

...Assim, identificou-se um conjunto de padrões de conduta articulados em torno do que chamamos de ética da malandragem, uma atitude complexa que envolve, ao mesmo tempo, a resistência e a convivência com instituições que representam o poder e a ordem(VIEIRA. L, 1996, p.176).

13Para saber mais, verificar os trabalhos: VIEIRA, Luiz Renato. O jogo da capoeira: corpo e cultura popular no

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A responsabilidade pelas conquistas sociais não deve ser atribuída apenas às ações isoladas dos agentes transformadores, tampouco à pressão social e à visão estruturalista segundo a qual somos unicamente resultado do contexto sociopolítico em que vivemos. Impossível, contudo, é delimitar todas as forças e ações que ocorrem nos processos de reorganização social. A capoeira, vista como um espaço de representação social que evidencia conflitos que ocorrem também em outras instâncias nacionais, nos traz exemplos intrigantes. Mostra, por exemplo, a fusão entre a resistência e a repressão em uma mesma figura. O mesmo policial que reprimia a capoeira no seu período de proibição praticava a arte aprendida nos tempos de juventude. As complexidades sociais fazem então com que nos afastemos de discursos deterministas e muito delimitadores.

A capoeira ascendeu por vários caminhos. O apelo midiático revela o nacionalismo exaltado na era Vargas, exemplificando outra oportunidade na qual a capoeira buscou legitimação.

Necessário se torna, entretanto a fundação de uma entidade mentora que possua em sua diretoria, elementos de destaque em nosso meio esportivo. Incrementar e difundir a capoeiragem, meio de defesa essencialmente nacional e de melhor segurança que qualquer outro. Assim como o japonês propaga o jiu-jitsu e o americano a arte de esmurrar, nós brasileiros devemos incrementar a nossa capoeira. (A Tarde, 06/02/1936, apud ABREU, 1999, p.43).

É importante entender que a capoeira se alastrava paulatinamente pelo território nacional, na região do recôncavo baiano, assim como em Pernambuco, Pará e no Rio de Janeiro, onde aconteciam iniciativas com características bem peculiares. No Rio de Janeiro, especificamente, um dos grandes eixos de difusão da arte, a capoeira tomava forma completamente distinta da irmã baiana. A capoeira desenvolvida na capital carioca, que tomou maior vulto, também denominada de Capoeira de Sinhozinho14, era baseada nas antigas maltas.

Os capoeiristas cariocas daquela época estavam em busca de uma identidade cultural própria, construída com base em elementos africanos. As experiências distintas no processo de escravidão geraram agrupamentos diversos que se rivalizavam. Lenços de cores próprias, delimitação de espaços físicos, praças e fontes emolduravam o cenário de disputas e

14 Agenor Moreira Sampaio, mais conhecido como Sinhozinho, era paulista, nascido em Santos, em 1891, e

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rivalidades entre as maltas bem organizadas (VASSALLO, 2003). A capoeira de Sinhozinho estava baseada nessa herança, teve pouca influência folclórica ou acrobática e não utilizava os instrumentos musicais característicos da capoeira. Os praticantes vestiam-se como lutadores de boxe, com bermudões, botas e sem camisa, seus movimentos estavam, quase que na totalidade dos casos, relacionados às ações diretas de ataque e defesa, aproximando-se bastante do que seriam hoje os treinamentos de defesa pessoal.

Muitos apaixonados pela bela capoeira da Terra do Bonfim têm dificuldade em aceitar a Capoeira de Sinhozinho como sendo ‘capoeira’, devido à falta de música e de ritmo marcado por atabaque, pandeiro e, principalmente, berimbau” (rohermanny.tripod.com). 15 Essa afirmação demonstra, claramente, que no desenvolvimento da capoeira formaram-se várias identidades, e não uma identidade única e exclusiva. Esse entendimento torna-se fundamental durante o trabalho, para que compreendamos a estruturação multifacetada da capoeira contemporânea em decorrência dos inúmeros focos irradiadores.

Observa-se também na citação de Rudolf a negação dos baianos e o não reconhecimento das práticas que não eram condizentes com a sua. Negar todas as estruturas que não estão relacionadas a uma concepção própria é uma das fortes estratégias de formação de identidade. Cada grupo específico promove suas ações e fortalece seus argumentos para demonstrar a legitimidade de suas práticas. Grupos distintos possuem características que os diferenciam de outros e cada grupo busca ancorar suas memórias em eixos históricos, que funcionam como referências para obter legitimidade dentro da sua construção de pensamento (POLLAK, 1992).

3.1.3A cultura popular folclorizada

Paralelamente à movimentação supracitada, outra vertente de capoeira se fortalece como um tipo de oposição ao que Mestre Bimba propunha. A capoeira angola de Mestre Pastinha (1889-1981) prezava pela prática do jogo enquanto expressão artística, buscando, além do aspecto da luta, também aspectos culturais na sua identificação. Mestre Pastinha formou uma escola que divulgava a capoeira como uma manifestação africana, buscando suas

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raízes nesse continente. Ele fez um grande contraponto em relação à luta regional de Mestre Bimba, buscando divulgar sua capoeira como uma modalidade "tradicional", mãe de todas as outras lutas. Em 1941, fundou sua escola de capoeira, o Centro Esportivo de Capoeira Angola, legalizada pelo governo baiano. A própria terminologia associada à capoeira de Mestre Pastinha, “Centro Esportivo”, foi uma ação para gerar credibilidade à sua prática.

A argumentação que legitima a referida vertente busca na mémória histórica seu fortalecimento. O discurso de Mestre Pastinha associava sua prática às manifestações originárias da África citadas como matrizes da capoeira, como o N’golo ou dança da Zebra.16

Mestre Pastinha, um dos mais famosos capoeiristas da Bahia, durante muito tempo pensou que a ginga que aprendera desde criança provinha de uma mistura do batuque angolano e do candomblé dos jêjes, africanos da Costa da Mina, com a dança dos caboclos da Bahia. Mas, por falta de mais conhecimentos, não podia ir muito além dessa afirmação (ASSUNÇÃO; PEÇANHA, 2008, s/p.).

A estrutura identitária da obra de Mestre Pastinha exemplifica o trabalho de construção de um enquadramento de memória. O conceito criado por Henry Rousso (1985) foi amplamente utilizado e exemplificado no estudo de Pollak (1989), a construção dos autores, levam a compreender o enquadramento de memória como um conjunto de ações estratégicas de determinados grupos em defender as fronteiras daquilo que o grupo tem em comum, organizando seus pontos de referências e fortalecendo o seu sentimento de pertencimento (POLLAK, 1989).

A memória oral não registrava nenhuma luta, ou manifestação ancestral específica, oriunda diretamente da África. Nesse caso, a fragilidade das informações sobre o surgimento e a origem da capoeira dificultou a perfeita utilização da memória e seu enquadramento. Apesar disso, Pastinha e seus seguidores criaram um discurso de legitimação de sua prática ancorado na ideia de que ela era a guardiã da ancestralidade negra.

A capoeira prossegue fazendo-se viva nas grandes comemorações, nas grandes festas e nas exaltações em datas importantes que são momentos bem propícios para fortalecer o sentimento de pertencimento e a identidade cultural. A cultura, no atual trabalho, deve ser

16 Esse ritual marca a passagem da moça para a condição de mulher, apta a namorar, casar e ter filhos. É uma

grande festa em que se consome muito macau, bebida feita de um cereal chamado massambala. O objetivo do Ngoloà àve e àoàadve s ioàati gi doàseuà ostoà o àoàp .àA dança é marcada pelas palmas, e, como na roda

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entendida dentro de um amplo sentido etnográfico, associado ao pensamento de Edward Tylor (1871) e Clifford Geertz (1978).

Ela pode ser entendida como um complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade (LARAIA, 2004, p.25).

Não obstante seu aspecto violento, a capoeira nunca perdeu seu status de folguedo, de forma de lazer, nem seu apelo musical. Mesmo Mestre Bimba, adepto do viés combativo, nunca deixou de divulgar e apresentar o samba de roda e outros aspectos folclóricos relacionados à capoeira. A capoeira continuou se valendo do apelo folclórico e cultural em diversas rodas que aconteciam no estado da Bahia, divulgadas por diferentes mestres.

É válido lembrar, nesse momento, que um dos primeiros registros da capoeira, o quadro de 183517, do pintor Johan Motriz Rugendas, intitulado O jogo da Capoeira ou a dança da guerra, revela que desde suas primeiras descrições a capoeira revelou a presença de tambores que marcam a sua cadência, bem como de um público que observa as performances dos capoeiras lutadores dançarinos. Desta forma, a capoeira avançou sem perder essa herança. Ela continuava como momento de encontros e como uma rede de inserção para determinados setores da população (VASSALLO, 2003).

A vertente de Mestre Pastinha ganhou significativo impulso em 1937, quando o renomado folclorista Edison Carneiro, após pesquisa sobre a capoeira baiana, declara que a capoeira de Angola lhe parecia a mais pura. Os levantamentos de Carneiro demonstraram certa confusão entre os estilos de capoeira analisados e os toques de berimbau existentes, e não houve também nenhuma revelação em relação aos critérios que o levaram a maior percepção de pureza na capoeira Angola (VASSALLO, 2003). Apesar disso, essa afirmação reverberou tão forte no meio capoeirístico que seus ecos são ouvidos até os dias atuais e inúmeros discursos ancoram seus argumentos nessa ação.

17 O ilustrador alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1852) veio ao Brasil em 1821 como desenhista e

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Figura 2 – RUGENDAS, Johann Mortiz – Jogar Capoeira ou Danse de la Guerre, 1835.

Na década de 40, estudos sobre o folclore ganham visibilidade e o movimento folclórico brasileiro toma corpo, e emerge então um paradigma culturalista que buscava as autenticidades e as manifestações que representavam a essência brasileira. Edison Carneiro (1950, 1975) busca em seus estudos e em suas pesquisas a capoeira “pura”, vinculada à cultura negra, considerada peça fundamental na formação da identidade brasileira. Jorge Amado segue seus passos, filtrando personagens da cultura popular entre sambistas e capoeiristas que melhor representavam esse ideal. As descrições da capoeira dentro deste contexto exaltam a ludicidade e a percepção pacífica da arte, em que os jogadores se divertem fingindo lutar. Renato Almeida (1961) contribuiu bastante com essa linha de pensamento e também para a polarização das identidades regionais, assinalando a singularidade da capoeira praticada na Bahia em detrimento às outras iniciativas que ocorriam em outros estados.

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Figura 1 -  DEBRET, Jean Baptiste. Aplicação do castigo de açoite, 1835.
Figura 2  –  RUGENDAS, Johann Mortiz  –  Jogar Capoeira ou Danse de la Guerre, 1835.
Figura  3  -  Alguns  mestres  e  professores  presentes  no  encontro  Pró-Capoeira  de  Brasília,  nov
Figura 4 - Mestre Igor DF, Mestre Itapoan, Mestre Camisa Roxa, Mestre Tabosa DF, Mestre Monera DF (da  esquerda para direira) - Encontro "Venha Mandingar no Cerrado," Taguatinga - 2011.
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