• Nenhum resultado encontrado

S TÓRIA E SEUSD ESDOBRAMEN TOS·

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "S TÓRIA E SEUSD ESDOBRAMEN TOS·"

Copied!
8
0
0

Texto

(1)

A DIMENSÃO LITERÁRIA DA HISTÓRIA

E SEUS DESDOBRAMENTOS·

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

EZIO BITTENCOURT**

"Toda disciplina é constituída por um conjunto de restrições ao pensamento e à imaginação, mas nenhuma é mais tolhida por tabus do que a historioqrafia profissional".

HAYDEN WHITE

RESUMO

Este artigo enfoca as principais discussões relativas ao caráter literário da história e a diluição de suas fronteiras clássicas. Antes de apresentar "soluções" para as dificuldades enfrentadas pelos profissionais da área, o objetivo deste estudo que adquire propositadamente uma forma intertextual -é o de motivar uma nova percepção da história enquanto disciplina acadêmica. Pretendo analisar a relação entre a história e a literatura, as potencialidades advindas de uma maior comunicação entre elas e a necessidade de uma abordagem transdisciplinar do objeto de estudo da história.

PALAVRAS-CHAVE: História, literatura, texto, leitura, objetividade/subjetividade, imaginação histórica, crítica literária, narrativa, transdisciplinaridade.

A atual historiografia reconhece que o saber histórico é condicionado

por formas prévias de representação literária, de sua textualidade,

ideologicamente condicionadas por seu meio e época. Para Jean Lescure,

hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

n ã o s o m o s m a is q u e lin g u a g e m , d a c a b e ç a a o s p é s .

FEDCBA

1

Nesse sentido, a relação existente entre a história e a literatura vem,

cada vez mais, despertando a atenção de historiadores e teóricos da

* Síntese elaborada com base em monografias apresentadas pelo autor em cursos de Pós-Gráduação em História e comunicação intitulada T r a n s it a n d o e n t r e a H is t ó r ia e a L it e r a t u r a , proferida no 11Simpósio Internacional Estados Americanos: Relações Continentais e Intercontinentais (PUCRS, em 30/09/1996). Agradecimentos aos professores doutores Léa Freitas Perez (CPGH-PUCRS), Maria Eunice Moreira (CPGL-PUCRS) e Carlos Alexandre Baumgarten (DLA-FURG), por seus comentários e sugestões sobre versões anteriores deste estudo. As discussões aqui enfocadas não se esgotam e estão, de uma certa maneira, relacionadas às apresentadas em outro artigo de nossa autoria, a ser publicado nos anais do Seminário Cultura e Cidades, ocorrido de21a25/10/1996 na cidade de Rio Grande.

** Especialista em Sociedade, Economia e Política do Rio Grande do Sul (FURG), Mestran~o em História do Brasil (PUCRS).

LESCURE, Jean.L a L it t é r a t u r e P o t e n t ie lle . Paris: Gallimard,1973, p.28.

(2)

literatura. Questionamentos sobre semelhanças e diferenças entre a narrativa histórica e a ficcional povoam os estudos dos especialistas.

Roland Barthes, no ensaio "O Discurso da História", lança o problema para o plano do discurso, buscando perceber aspectos da narrativa ficcional

que se aproximam ou se distanciam da narrativa histórica. Para tanto,

analisa os processos de enunciação nos dois tipos de discurso, bem como

sua relação com o enunciado no âmbito da história e da ficção."

No plano da enunciação Barthes identifica duas atitudes básicas: uma

primeira em que o historiador e às vezes o literato refere-se às fontes

consultadas, intercruzando dessa maneira dois ou mais discursos: o do

enunciador e o das fontes; e uma segunda, que contrapõe dois tempos

distintos, ou seja, o tempo do enunciado e o tempo da enunciação": Barthes

também aproxima os discursos histórico e ficcional quando reconhece que

todo discurso é ideologicamente marcado pela seleção dos fatos presentes

na realidade.

O historiador e o literato, ao organizarem sua narrativa, ao olharem

para a realidade, selecionam aspectos a serem focalizados, abdicando de

uma visão totalizadora do real. Tal abdicação implica a interferência da

subjetividade de um e de outro na organização do relato. Qualquer evento,

mais ou menos complexo, produz um número incrivelmente grande de

fontes. Não nos é possível, evidentemente, trabalhar com todos esses

documentos. Temos que selecioná-Ios, cruzando as informações neles

contidas. Nesse processo entra a imaginação e a subjetividade. A imagem

que fazemos não apenas de um acontecimento histórico, mas de qualquer

elemento da realidade, é sempre o encontro das fontes e das experiências

por um lado, com as projeções de expectativas, de conceitos pré-fabricados,

de preconceitos e de conceitos fornecidos por nossa língua e cultura.

O discurso histórico apresenta dois níveis: o das significações que o

historiador voluntariamente atribui aos fatos narrados, e um segundo nível,

cujas significações são perceptíveis através da escolha de sua temática, ou

da estrutura de sua narrativa, que acaba por revelar, implicitamente, uma

determinada visão da história.

O pressuposto da objetividade, ou o princípio segundo o qual a

narrativa deveria contar-se a si mesma, sem a interferência de um narrador,

FEDCBA

é expressão de uma visão realista, que entra em crise neste século.

Por mais que nos esforcemos, nossas narrativas jamais retratarão

diretamente a realidade, pois

hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

p e r c e b e m o s o m u n d o a t r a v é s d e u m a

e s t r u t u r a d e c o n v e n ç õ e s , e s q u e m a s e e s t e r e ó t ip o s próprios de nossa

cultura4. Nesse sentido, podemos afirmar que os h is t o r ia d o r e s , n ã o m e n o s

q u e os p o e t a s , c o n q u is t a m u m " a f e t o e x p lic a t iv o " [ . . . ] ao in c o r p o r a r e m , em suas n a r r a t iv a s , p a d r õ e s d e s ig n if ic a d o s e m e lh a n t e s à q u e le s m a is e x p lic it a m e n t e o f e r e c id o s p e la a r t e lit e r á r ia d a s c u lt u r a s às q u a is p e r t e n c e m .

C o r r e t a m e n t e e n t e n d id a s expõe Hayden White, as h is t ó r ia s n u n c a d e v e m

s e r lid a s c o m o s ig n o s in e q u í v o c o s d o s a c o n t e c im e n t o s q u e r e la t a m , mas

a n t e s c o m o e s t r u t u r a s s im b ó lic a s , m e t á f o r a s d e lo n g o a lc a n c e , q u e

" c o m p a r a m " os a c o n t e c im e n t o s n e la s e x p o s t o s a a lg u m a f o r m a c o m q u e já

e s t a m o s f a m ilia r iz a d o s em nossa c u lt u r a I it e r á r ia5. O trabalho do historiador

nada mais é que uma s í n t e s e h ip o t é t ic a , na medida em que' ele pretende

r e c o n s t r u ir a t o t a lid a d e d a im a g e m a p a r t ir d o c o n h e c im e n t o d o s f a t o s

p a r t ic u la r e s , levando em consideração que e s t e s fatos n ã o s ã o n u n c a

a b s o lu t a m e n t e e v id e n t e s n e m v e r if ic á v e is . A influência do fator subjetivo faz

com que um mesmo acontecimento seja apreendido de forma distinta por

diferentes historiadores. Outra constatação é a de que o saber é constituído

por um processo infinito de a c ú m u lo d e v e r d a d e s p a r c ia is e q u e o s o m a t ó r io

d e la s c o n t r ib u i p a r a o p r o g r e s s o d o c o n h e c im e n t o . O c o n h e c im e n t o

in d iv id u a l é s e m p r e lim it a d o e a g r a v a d o p e la in f lu ê n c ia d o f a t o r s u b je t iv o ;

v e r d a d e p a r c ia l,p o d e s e r r e la t iv a . O processo do conhecimento deve ser

socializado. Sua objetividade realiza-se no processo de superação dos

limites ligados à ação do fator subjetivo. A auto-reflexão apresenta-se, aqui,

como um dos meios que permite ao historiador tomar consciência das

formas subjetivas, auxiliando-o a vencer suas más influências. O historiador

deve perseguir incessantemente a objetividade, mas sabe-se de antemão

que esta adquire um caráter "relativo" em nossa disciplina. O "relativismo

objetivo" da história, apontado por Adam Schaff, conduz o autor a afirmar

que o processo cognitivo histórico p r o d u z s e m p r e v e r d a d e s r e la t iv a s e q u e

só op r o c e s s o in f in it o d o c o n h e c im e n t o t e n d e p a r a a v e r d a d e a b s o lu t a .

6

Assumir a subjetividade e a precariedade das perspectivas no

enfoque do real seria, talvez, uma forma menos ilusória e, portanto, mais

eficaz de conhecer. Hoje em dia, as visões "imparciais" e "explicativas" do

universo não mais convencem. Curiosamente, a "era da suspeita" acaba

2 BARTHES, Roland. o Discurso da História. In:__ . O R u m o r d a L í n g u a . São Paulo Brasiliense, 1988, p.146-157. O Enunciado corresponde ao objeto da narração e a Enunciação é a maneira pela qual o narrador registra sua percepção desse objeto; é quando a língua se transforma em discurso.

3 O t e m p o d a e n u n c ia ç ã o m a n if e s t a - s e p e la p r e s e n ç a s u b je t iv a d o e n u n c ia d o r q u e , a o in t e r f e r ir n o r e la t o , r e v e la u m a p o s t u r a p r ó p r ia , s e ja e le u m h is t o r ia d o r , u m p o e t a o u u m

r o m a n c is t a . BAUMGARTEN, Carlos. Literatura e História: o entrecruzamento de discursos. In: TORRES, Luiz H. & ALVES, Francisco (Orgs.). P e n s a r a R e v o lu ç ã o F e d e r a lis t a . Rio Grande: FURG, 1993, p.91.

4 BURKE,Peter. Abertura: A Nova História, seu Passado e seu Futuro. In: (Org.). AE s c r it a d a H is t ó r ia : Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP,1992, p.15.

5 WHITE, Hayden. T r ó p ic o s d o D is c u r s o : Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo : ~DUSP, 1994, p. 58, 108.

SCHAFF, Adam. H is t ó r ia e V e r d a d e . São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 285-286, 303.

1 2 BIBlOS, Rio Grande, 9: 11-24. 1997. BIBlOS, Rio Grande, 9: 11-24, 1997.

(3)

sendo também uma "era da confiança" na capacidade de a ficção desvendar

caminhos ocultos do real, justamente assumindo uma postura radicalmente

crítica em relação ao poder mimético da palavra.

A análise da historiografia revela que o discurso do historiador não é

neutro, e supõe um autor implícito a ordená-Io, e um narrador com

determinados ângulos de visão no enfoque dos fatos contados. Para Peter

Gay, as

hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

e s t r a t é g ia s e x p o s it iv a s d o h is t o r ia d o r s ã o t o d a s e la s , c o n s c ie n t e -m e n t e o u n ã o , e s t r a t é g ia s d e p e r s u a s ã o , e como tais devem ser encaradas."

O historiador, assim como o narrador do relato ficcional, "recria" o

passado que a narrativa traz ao presente. O leitor, por sua vez, com suas

expectativas, colabora para conferir significação aos acontecimentos

históricos. Dessa forma, tanto na história quanto na literatura o leitor interage

com o texto, conferindo-lhe um significado atual. E m o u t r a s p a la v r a s , a

le it u r a f ic c io n a liz a

FEDCBA

a H is t ó r ia n a m e s m a p r o p o r ç ã o q u e h is t o r ic iz a a F ic ç ã o , u m a v e z q u e a v o z n a r r a t iv a , t a n t o n u m c a s o c o m o n o u t r o , s it u a n o p a s s a d o

o m u n d o d a o b r e " . L e r , diz Roger Chartier, é u m a p r á t ic a c r ia t iv a q u e in v e n t a s ig n if ic a d o s e c o n t e ú d o s s in g u la r e s , n ã o r e d u t í v e is às in t e n ç õ e s d o s

a u t o r e s d o s t e x t o s o u d o s p r o d u t o r e s d o s liv r o s . Essa polifonia de vozes

possibilita falar não

FEDCBA

das obras, mas com as obras - um diálogo entre texto

e contexto. O ato de ler situa-se justamente onde o u n iv e r s o d o t e x t o

e n c o n t r a - s e c o m o le it o r , o n d e a in t e r p r e t a ç ã o d a o b r a t e r m in a n a

in t e r p r e t a ç ã o d o e u " . Nesse sentido é importante também termos em mente

a noção de transtextualidade, ou seja, a relação - explícita ou não _

existente entre textos anteriores e textos posteriores e a dialética entre eles.

A discussão em torno das relações existentes entre a história e a

literatura é aprofundada por Paul Ricoeur em T e m p s e t R é c it1 0 . Segundo

ele, o caráter de ciência adquirido pela história não elimina sua base

narrativa, que se mantém vinculada ao ficcional. Para Ricoeur, a história e a

ficção pertencem ao âmbito da narrativa; assim sendo, procura provar que a

união de ambas dá-se em nível de temporalidade, uma vez que tudo o que

se conta desenvolve-se temporalmente. Entretanto, o tempo ficcional não

sofre limitações, pode ser interrompido e invertido, deslocando presente,

passado e futuro. Enfim, o tempo ficcional só sofre as limitações da própria

estrutura da narrativa que o articula. O tempo histórico, por sua vez, deve

ater-se ao plano cronológico.

Se história e literatura por um lado se aproximam em face de uma

7 GA Y, Peter. o E s t ilo n a H is t ó r ia . São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.177. 8 BAUMGARTEN. Op. cit., p.94.

9 CHARTIER, Roger. Textos, Impressões, Leituras. In: HUNT, Lynn (Org). A N o v a

H is t ó r ia C u lt u r a l. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 214-215. 1 0 RICOEUR, Paul. T e m p s e t R é c it . Paris: Seuil, 1985. t. 1-2-3.

1 4 BIBLas. Rio Grande. 9: 11-24, 1997. 1 5

mesma base narrativa, distanciam-se, muitas vezes, na abordagem

temporal. Dessa ,!orma,. para Ricoeur, o "quase passado" da ficção opõe-se

ao "passado real da nistória. Segundo esse autor, o q u e q u e r q u e se d ig a

d o c a r á t e r s e le t iv o d a c o le t a , [ . . . ] d a c o n s u lt a d o s d o c u m e n t o s , d a r e la ç ã o

d e s t e s c o m as q u e s t õ e s q u e I h e s c o lo c a o h is t o r ia d o r , o u a in d a d a s

im p lic a ç õ e s id e o ló g ic a s d e t o d a s s u a s a b o r d a g e n s - o r e c u r s o a o s

d o c u m e n t o s a s s in a la u m a lin h a d e s e p a r a ç ã o e n t r e h is t ó r ia e f ic ç ã o :

d if e r e n t e m e n t e d o r o m a n c e , as c o n s t r u ç õ e s d o h is t o r ia d o r v is a m s e r

r e c o n s t r u ç õ e s d o p a s s a d o . A t r a v é s d o d o c u m e n t o e p o r m e io d a p r o v a

d o c u m e n t a l, o h is t o r ia d o r e s t á s u b m is s o a o q u e u m d ia a c o n t e c e u . E le t e m

u m a d í v id a f r e n t e ao p a s s a d o , u m a d í v id a d e r e c o n h e c im e n t o p a r a c o m os

m o r t o s , q u e o t o m a u m e t e r n o

oeveoor":

Todavia, na percepção desse "passado real" da história ocorre, como já foi dito, tanto no ato da produção

quanto no ato da recepção, um processo de p r e s e n t it ic e ç ê o d o p a s s a d o

h is t ó r ic o . Por mais que nos alicercemos em documentos e depoimentos,

estes serão sempre p e r m e a d o s p o r u m a c o n s c iê n c ia a t u a liz a d a 1 2 . Não

podemos esquecer também que esses documentos e depoimentos são

textos do passado - não o passado, e que tampouco são neutros; da mesma

forma encontram-se impregnados por juízos de valor. Essas observações

relativizam o enfoque dado ao "passado real" da história por Ricoeur e

deslocam a discussão para a questão da diferença de grau desse "quase

passado", percebido então, tanto na literatura quanto na história.

O debate sobre a dimensão literária da história propiciou a expansão

de suas fronteiras para além das limitações tradicionais. Hayden White e

Dominick La Capra lideram a discussão sobre as fronteiras que separam a

história da literatura e também da filosofia. Ambos acusam a história de

ter-se mantido situada dentro de paradigmas literários e científicos que datam

do século XIX.

Lloyd Kramer, citando White, afirma que os h is t o r ia d o r e s b u s c a m ,

m a is f r e q ü e n t e m e n t e , f e c h a r as f o r m a s a lt e r n a t iv a s d e c o m p r e e n d e r o

m u n d o em v e z d e a b r ir s u a s v is õ e s . Obnubilados pelo "mito cientificista" da

história, optamos por não ver o elemento imaginário em nossas obras; em

vez disso, preferimos acreditar que transcendemos a ficção ao estabelecer

rigorosas diretrizes para a disciplina da históna."

Devemos combater aquela definição rígida da história, segundo a

teoria científica do século passado, que estabelece uma distinção radical

1 1 RICOEUR, Paul. T e m p s e t R é c it . Paris: Seuil, 1985, p. 203-205. t 3. (tradução minha).

1 2 BAUMGARTEN. Op. cit., p. 93.

1 3 KRAMER, Llayd. Literatura, Crítica e Imaginação Histórica: o desafio literário de Hayden. White e Dominick La Capra. In: HUNT, Lynn (Org.). A N o v a H is t ó r ia C u lt u r a l. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.135-136.

(4)

entre fato e ficção, entre fato e filosofia. Ao escrevermos história é impossível

prescindirmos de uma narrativa ficcional e filosófica. A história nunca pode

ser separada inteiramente da literatura ou da filosofia, ou de outras

linguagens, ainda que nunca seja idêntica a esses outros discursos também.

Edgar Morin adverte que

FEDCBA

é

hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

n e c e s s á r io , s im u lt a n e a m e n t e , e s t a b e le c e r c o m u n ic a ç õ e s m u it o m a io r e s e n t r e a c iê n c ia e a a r t e , a c a b a r c o m e s s e

d e s p r e z o m ú t u o . P o r q u e h á u m a d im e n s ã o a r t í s t ic a n a a t iv id a d e c ie n t í f ic a e,

m u it a s v e z e s , v ê - s e q u e os c ie n t is t a s s ã o t a m b é m a r t is t a s q u e r e le g a r a m

p a r a o d o m í n io d a d is t r a ç ã o o u d o e n t r e t e n im e n t o o s e u g o s t o p r o f u n d o p e la

[ . . . ] lit e r a t u r a . E d ig a - s e t a m b é m q u e n ã o h á u m a f r o n t e ir a n í t id a e n t r e a

c iê n c ia e a f ilo s o f ia . B e m e n t e n d id o , n o s s e u s p ó lo s , n o s e u n ú c le o c e n t r a l,

e la s s ã o c o m p le t a m e n t e d if e r e n t e s , v is t o q u e a c a r a c t e r í s t ic a o r ig in a l d a

c iê n c ia é, s o b r e t u d o , a o b s e s s ã o d a v e r if ic a ç ã o , d a f a ls if ic a ç ã o , e q u e a o b s e s s ã o c e n t r a l d a f ilo s o f ia é a r e f le x iv id a d e e o r e t o r n o d o s u je it o p a r a s i

p r ó p r io . M a s , a p e s a r d e t u d o , d e v e - s e d iz e r q u e , n a a t iv id a d e c ie n t í f ic a , h á

m u it o d e r e f le x iv id a d e , h á p e n s a m e n t o , e a f ilo s o f ia - p o r n a t u r e z a - n ã o

d e s p r e z a em s i n e m a v e r if ic a ç ã o n e m a e x p e r im e n t a ç ã o . A c iê n c ia , c r e io

e u , t e m n e c e s s id a d e d e in t r o d u z ir em s i p r ó p r ia n ã o a r e f le x ã o d o s f iló s o f o s ,

m a s s im a r e f le x iv id a d e . A c iê n c ia é im p u r a , conclui o autor. A v o n t a d e d e

p r o c u r a r u m a d e m a r c a ç ã o n í t id a e c / a r a d a c iê n c ia p u r a , d e f a z e r u m a

d e c a n t a ç ã o , d ig a m o s , d o c ie n t í f ic o e d o n ã o - c ie n t í f ic o , é u m a id é ia e r r ô n e a e, d ir ia e u , a f in a l d e c o n t a s u m a id é ia m a n í a c a 1 4 . E, no caso da história, o

imenso universo de conhecimentos no qual ela está inserida impõe-lhe,

necessariamente, o transpor dos limites da ciência "tout court". Essas

observações demonstram a premência de uma reavaliação do conceito de

"cientificidade". Alerta-nos Luiz Costa Lima que o modelo vigente de ciência

é inadequado à história 1 5 . Michel de Certeau, por sua vez, constata que a

h is t ó r ia n ã o é c ie n t í f ic a , se p o r c ie n t í f ic o se e n t e n d e r o t e x t o q u e e x p lic it a as

r e g r a s d a s u a p r o d u ç ã o . É u m a m is t u r a , é f ic ç ã o c ie n t í f ic a , em q u e a

n a r r a t iv a a p e n a s t e m a a p a r ê n c ia d o r a c io c í n io m a s q u e t a m b é m n ã o é

m e n o s c ir c u n s c r it a p o r c o n t r o lo s e p o s s ib ilid a d e s d e f a ls if ic a ç ã o . A s s im se

e n t e n d e m as c it a ç õ e s , as n o t a s , a c r o n o lo g ia , t o d a s as m a n h a s q u e a p e la m

p a r a a c r e d ib ilid a d e o u p a r a as " a u t o r id a d e s " . E s t e s e x p e d ie n t e s p e r m it e m

s u p r ir , p o r u m a n a r r a t iv id a d e , o q u e f a lt a em r ig o r . E f e t iv a m e n t e e s t a m is t u r a

lig a n u m m e s m o t e x t o a c iê n c ia e a f á b u la , as d u a s m e t a d e s s im b ó lic a s e

a b s t r a t a s d is t in t a s d a n o s s a s o c ie d a d e . 1 6

Para White, o t r a b a lh o h is t ó r ic o [ . . . ] m a n if e s t a d a m e n t e é u m a

e s t r u t u r a v e r b a l n a f o r m a d e u m d is c u r s o n a r r a t iv o em p r o s a . A s h is t ó r ia s (e

1 4 MORIN, Edgar. C iê n c ia c o m C o n s c iê n c ia . Sintra : Europa-América, 1990, p.48. 1 5 LIMA, Luiz Costa. A Narrativa na Escrita da História e da Ficção. In:__ . A

A g u a r r á s d o T e m p o . Rio de Janeiro: Racco, 1989, p.42.

1 6 ARIES, Philippe et alii. AN o v a H is t ó r ia . Lisboa: Edições 70, 1983, p. 32-33.

1 6 B I B l O S . R i o G r a n d e . 9 : 1 1 - 2 4 . 1 9 9 7 .

f ilo s o f ia s d a h is t ó r ia t a m b é m ) c o m b in a m c e r t a q u a n t id a d e d e " d a d ô s " ,

c o n c e it o s t e ó r ic o s p a r a " e x p lic a r " e s s e s d a d o s e u m a e s t r u t u r a n a r r a t iv a q u e

os a p r e s e n t a c o m o u m í c o n e d e c o n ju n t o s d e e v e n t o s p r e s u m iv e lm e n t e o c o r r id o s em t e m p o s p a s s a d o s . A lé m d is s o , d ig o e u , e le s c o m p o r t a m u m

c o n t e ú d o e s t r u t u r a l p r o f u n d o q u e é em g e r a l p o é t ic o e, e s p e c if ic a m e n t e ,

lin g ü í s t ic o em s u a n a t u r e z a , e q u e f a z as v e z e s d o p a r a d ig m a

p r é _ c r it ic a m e n t e a c e it o d a q u ilo q u e d e v e s e r u m a e x p lic a ç ã o e m in e n t e m e n t e

" h is t ó r ic a " . E s s e p a r a d ig m a f u n c io n a c o m o o e le m e n t o " m e t a - n a r r a t iv o " em

t o d o S os t r a b a lh o s h is t ó r ic o s q u e s ã o m a is a b r a n g e n t e s em s u a a m p lit u d e

d o q u e a m o n o g r a f ia o u in f o r m e d e a r q u iv o . 1 7

D iz - s e às v e z e s q u e o o b je t iv o d o h is t o r ia d o r é e x p lic a r o p a s s a d o

a t r a v é s d o " a c h a d o " , d a " id e n t if ic a ç ã o " o u " d e s c o b e r t a " d a s " e s t ó r ia s " q u e

ja z e m e n t e r r a d a s nas c r ô n ic a s ; e q u e a d if e r e n ç a e n t r e " h is t ó r ia " e " f ic ç ã o "

r e s id e n o f a t o d e q u e o h is t o r ia d o r " a c h a " suas e s t ó r ia s , ao p a s s o q u e o

f ic c io n is t a " in v e n t a " as suas. Essa c o n c e p ç ã o d a t a r e f a d o h is t o r ia d o r ,

p o r é m , o b s c u r e c e o g r a u d e " in v e n ç ã o " q u e t a m b é m d e s e m p e n h a u m p a p e l

n a s

= v =

d o h is t o r ia d o r quer ele seja consciente ou não desse

processo.

As narrativas históricas, observa White, r e la t a m a c o e r ê n c ia , a

in t e g r id a d e , a p le n it u d e e a in t e ir e z a d e u m a v id a q u e é , e só p o d e s e r ,

im a g in á r ia . 1 9

O "problema da invenção" é muito bem trabalhado pela historiadora

Natalie Davis, que, na tentativa de usar sua imaginação para reconstruir o

passado, adverte ao leitor que, apesar da cuidadosa pesquisa documental

na qual baseou seus estudos, sua obra [no caso, O R e t o r n o d e M a r t in

G u e r r e ] é, em p a r t e , in v e n ç ã o [dela] a in d a q u e em r ig o r o s a h a r m o n ia c o m as

v o z e s d o p a s s a d 020 . Como bem conclui o antropólogo Clifford Geertz, or e a l

é t ã o im a g in a d o q u a n t o o im a g in á r io .

Apoiado em Geertz, Walter Mignolo assume que a r e a lid a d e é s e m p r e

u m a " t r a d u ç ã o lit e r á r ia " e q u e a im p o s s ib ilid a d e d e r e c r ia ç ã o d o a c o n t e c id o

le v a à in e v it á v e l " c o n s t r u ç ã o d o f a t o " e, assim, a h is t ó r ia [ . . . ] n a d a m a is é d o

q u ~ .a literaturização m a is o u m e n o s e f ic ie n t e , R r o c e d id a em t e r m o s d e

a n a lis e d e u m e p is ó d io e v e n t u a lm e n t e o c o r r id o 1 . White afirma que as

1 7 WHITE, Hayden. M e t a - H is t ó r ia : a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: UNESP, 1992, p. 12.

1 8 Ibid. p. 22.

1 9 Apud KRAMER, Op. cit., p.136.

2 0 BIERSACK, Aleita. Saber Local, História Local' Geertz a Além. In: HUNT, Lynn (Org.) A N o v a H is t ó r ia C u lt u r a l. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.104. Cf. DAVIS, Natalie.

T h e R e t u r n ofM a r t in G u e r r e . Cambridge, Mass.,1983, p.viii, 5 .

2 1 Geertz criou o conceito "Iiteraturização", f u n d a m e n t a l p a r a os " c ie n t is t a s " q u e e v o c a m a s u b je t iv id a d e càmo p o n t o d a p a r t id a p a r a q u a lq u e r m a n if e s t a ç ã o in t e le c t u a l r e f le x iv a . O autor mostra que a im a g in a ç ã o c r ia e t r a n s f o r m a a lg u m a c o is a q u e s u p o m o s t e r

(5)

p.40.

FEDCBA

1 8 BIBlOS, Rio Grande, 9: 11-24, 1997.

hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

r e p r e s e n t a ç ã O q . u e . f o r a m d e c la r a d a s f o r a d o s lim it _ e s d a

tustonoçrette":

A

história, ao restringir seus modelos de representaçao ao romance realista e

à ciência positivista do século passado, perdeu de vista suas origens na

imaginaçãO literária, O desejo de estabelecer uma separação entre a história

e a literatura colocou a primeira à margem de uma cultura criativa, crítica e

intelectual, que se volta cada vez mais para uma grande variedade das mais

recentes questões lingüísticas, teóricas e experimentais,

Para os "novos" historiadores, o grande valor da literatura reside em

sua predisPOsição em explorar o movimento da linguagem e do significado

em todos os aspectos da experiência social, política e pessoal. Os escritores

criativos percebem que todas as descrições do mundo estão abertas à

contestação. E n q u a n t o is t o , os h is t o r ia d o r e s c o n t in u a m p r o c u r a n d o "a"

n a r r a t iv a d o m u n d o d a f o r m a c o m o r e a lm e n t e e x is t iu , em v e z d e a d m it ir e m

q u e s u a s d e s c r iç õ e s s ã o p a r c ia is e s e m p r e e x c lu e m in ú m e r o s o u t r o s t ip o s

d e in f o r m a ç õ e s im p o r t a n t e s . A realidade apresenta uma pluralidade de

imagens, interpretações e reconstruções. Devemos reconhecer q u e n ã o h á

n a d a q u e p o s s a m o s c o n s id e r a r c o m o u m a ú n ic a c o n c e p ç ã o c o r r e t a d e

q u a lq u e r o b je t o d e e s t u d o , m a s m u it a s c o n c e p ç õ e s c o r r e t a s , c a d a u m a d a s

q u a is e x ig in d o s e u p r ó p r io e s t ilo d e

represeníeçêo":

U m a d a s m a r c a s d o b o m h is t o r ia d o r p r o f is s io n a l, diz White, é a f ir m e z a c o m q u e e le le m b r a a

s e u s le it o r e s a n a t u r e z a p u r a m e n t e p r o v is ó r ia d a s s u a s c a r a c t e r iz a ç õ e s d o s

a c o n t e c im e n t o s , d o s a g e n t e s e d a s a t iv id a d e s e n c o n t r a d a s n o r e g is t r o

h is t ó r ic o s e m p r e in c o m p le t o . 3 0

Analisando a relação história/literatura, não poderia deixar de enfocar

as questões da aceitabilidade e da veracidade do discurso historiográfico.

Diferentemente do literato, o historiador deve explicar como chegou às suas

interpretações expondo que metodologia ou raciocínio foi utilizado. Sua

lógica deve ser plausível àqueles que possuam sua mesma formação e nível

teórico - seus pares. Os resultados de sua pesquisa devem ser verificáveis,

intersubjetivamente comunicáveis, No discurso historiográfico impõe-se uma

convenção de veracidade, o que não ocorre, necessariamente, no discurso

ficcional, pois a v e r d a d e é u m in s t r u m e n t o o p c io n a l d a f ic ç ã o , n ã o s u a

f in a lid a d e e s s e n c ia l. 3 1

Possuindo vários procedimentos comuns, história e literatura

apresentam-se, notadamente, mais próximas do que distantes. Nessa

perspectiva, a c r ia ç ã o lit e r á r ia r e v e la t o d o o s e u p o t e n c ia l c o m o d o c u m e n t o ,

n ã o a p e n a s p e la a n á lis e d a s r e f e r ê n c ia s e s p o r á d ic a s a e p is ó d io s h is t ó r ic o s

o u d o e s t u d o p r o f u n d o d o s s e u s p r o c e s s o s d e c o n s t r u ç ã o f o r m a l, m a s c o m o

28 KRAMER. Op.cit., p.145, 2 9 lbid. p. 159-160, •

3 0 WHITE. T r ó p ic o s d o D is c u r s o " , p . 98, 3 1 GAY, 1990, p.172.

(6)

u m a in s t â n c ia c o m p le x a , r e p le t a d a s m a is v a r ia d a s s ig n if ic a ç õ e s

FEDCBA

e q u e in c o r p o r a

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

a h is t ó r ia em t o d o s o s s e u s a s p e c t o s , e s p e c í f ic o s o u g e r a is , f o r m a is o u t e m á t ic o s , r e p r o d u t iv o s o u c r ia t iv o s , d e c o n s u m o o u

proouçêo" .

Certamente a crítica literária ajudaria a vitalizar a discussão entre os

historiadores e abrir as fronteiras que tendem a nos separar da cultura do

nosso próprio tempo. D o p o n t o d e v is t a d a p r o f is s ã o h is t ó r ic a m o d e r n a em

g e r a l, a a r t e e a c iê n c ia n ã o s e s e p a r a m n it id a m e n t e , c o n d iv id e m u m a lo n g a

f r o n t e ir a c h e ia d e m e a n d r o s , q u e é a t r a v e s s a d a p e lo t r â n s it o e r u d it o e

lit e r á r io s e m g r a n d e s im p e d im e n t o s n e m m u it a s f o r m a lid a d e s . 3 3

A literatura, conforme João Hansen, enquanto prática de

representação contemporânea de seu tempo, também possui sua realidade,

também é real, pois tem a realidade de convenções de representação. A

representação é por si só o efeito, o resultado ou o produto de uma prática.

Os r e s í d u o s lit e r á r io s de uma época: n a m e d id a q u e s ã o m e n o s d o q u e as p r á t ic a s o n d e o c o r r e r a m , m a n t ê m a in d a ' a p r e s e n ç a d e s s a s p r á t ic a s n a s u a

o r g a n iz a ç ã o e n q u a n t o r e s í d u o s . O e s t u d o d e s s e s r e s í d u o s p e r m it ir ia , p o r

e x e m p lo , le v a n t a r as c a t e g o r ia s q u e os r e g u la r a m em s e u t e m p o - c o m o

p r á t ic a s d e r e p r e s e n t a ç ã o e n ã o c o m o r e f le x o [do real] n e m c o m o u m a ilu s t r a ç ã o [do o a s s a o o ] " . "

U m a o b r a lit e r á r ia é u m a ir r a d ia ç ã o d o c o n h e c im e n t o h u m a n o , q u e

e s t a b e le c e p o n t e s d e c o n t a t o e n t r e f a t o r e s d in â m ic o s d a s o c ie d a d e , o

e s p í r it o c r ia d o r d o a r t is t a e o p u b lic o le it o r , t o r n a n d o - s e , e n t ã o , u m a

c o n t r ib u iç ã o à f o r m a ç ã o e ao p a t r im ô n io c u lt u r a l d e u m p o v o . D o t a d o d e

s e n s ib ilid a d e e s p e c ia l, in s p ir a ç ã o . in t u iç ã o , im a g in a ç ã o e n e c e s s id a d e

c r ia d o r a , o a r t is t a r e ç is t r e em s u a s o b r a s s u a s e n s ib ilid a d e em r e la ç ã o às

e x p e r iê n c ia s c o m o m u n d o . s e n d o , p o r t e n t o , c e le b r a d o t a m b é m p e lo q u e

r e v e la d e a c u r a d o n a o b s e r v a ç ã o d o s f a t o s Compartilhando da fala de

Marlene Henriqson, a lit e r a t u r a n ã o n a s c e d o n a d a , d o v á c u o , m a s s im d e

u m m e io c o n d ic io n a n t e , e s t a n d o n e la p r e s e n t e s os v a lo r e s d e s ig n if ic a ç ã o

h u m a n a de toda uma é p o c a " . Cabe ao historiador ler nas linhas e nas

entrelinhas das obras literárias o que o narrador diz e o que ele cala, e ver

fundo, desconfiando do encoberto. Um texto literário (assim como qualquer

texto) é um produto de uma sociedade e jamais pode ser apropriado por um

historiador sem uma suficiente crítica. Seria ingenuidade torná-to como

transparência de um período.

3 2 SEVCENKO, Nicolau. L it e r a t u r a Como M is s ã o : tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.246.

3 3 GAY. Op. cit., p.167.

3 4 HANSEN, João. Os Lugares das Palavras. R e v is t a R e g is t r o , Caderno Especial, 2, n. 4, set. 1995/ fev. 1996, p.1-2.

3 5 HENRIQSON, Marlene. Fato Histónco e Ficção Literária. E s t u d o s I b e r o -A m e r ic a n o s . Porto Alegre: PUCRS, n.1-2, 1983, p.137.

20

BIBlOS. Rio Grande. 9: 11-24. 1997.

Na visão de Jacques Le Goff, o historiador d e v e c o n s id e r a r t o d o s os

d o c u m e n t o s le g a d o s p e la s s o c ie d a d e s : o d o c u m e n t o lit e r á r io e od o c u m e n t o

a r t í s t ic o , e s p e c ia lm e n t e , d e v e m s e r in t e g r a d o s em s u a e x p lic a ç ã o , s e m q u e

a e s p e c if ic id a d e d e s s e s d o c u m e n t o s e d o s d e s í g n o s h u m a n o s d e q u e s ã o

p r o d u t o s e ja d e s c o n h e c id a . Nenhum tipo de documento é uma evidência

neutra para a reconstrução histórica. E, antes, um signo incluso num

contexto espaç?-t~m:Ps0ral. O processo de conhecimento histórico implica a

leitura desses Sinais.

Nessa busca constante pelo passado, v a le d iz e r q u e u m a d im e n s ã o

-e s s -e n c ia l - q u e , em g r a n d e p a r t e , a in d a f a lt a à h is t ó r ia é a d o im a g in á r io ,

e s s a p a r t e d o " s o n h o " q u e , se d e s lin d a r m o s b e m s u a s r e la ç õ e s c o m p le x a s

c o m as o u t r a s r e a lid a d e s h is t ó r ic a s , n o s in t r o d u z ir e m o s [ . . . ] n o â m a g o d a s

. d d

3 7

socte

a e s .

Op a s s a d o r e a lm e n t e e x is t iu , m a s h o jep o d e m o s " c o n h e c e r " e s s e p a s s a d o p o r m e io d e s e u s t e x t o s , e a í se s it u a s e u v í n c u lo c o m o lit e r á r io ,

diz Linda Hutcheon. Conclui a autora que o referente da história sempre está

inscrito num discurso cultural textualizado Nesse sentido, a história, ou a

meta-história, como prefere White, perde sua referencialidade, tornando-se

na prática uma construção palimpsesta meta narrativa."

Frente ao exposto, Josep Fontana adverte que n ã o d e v e m o s n o s

e s q u e c e r q u e a " c o n s t r u ç ã o " o u " r e c o n s t r u ç ã o " d o p a s s a d o [ . . ] n ã o se

r e a liz a [ . . . ] s o m e n t e c o m

textos."

Sabemos que a grande parte do material empírico do historiador

configura-se em "escritos". Entretanto, ao contrário do que afirma Hutcheon,

nem sempre isso acontece. Um exemplo é aquele utilizado pelos

arqueólogos. Todavia, também o material pesquisado não-escrito (como por

exemplo um artefato em cerâmica) pode ser "lido" e considerado um "texto"

-num sentido geertziniano da palavra - pois traz em si "informações sobre ..."

a cultura em que foi produzido. Em síntese, nem todo "texto" é discurso

textualizado e nem toda história é palimpsesta meta narrativa; mas, sem

dúvida, na maior parte dos casos podemos assim defini-Ia.

Bem entendido, o historiador trabalha não com o passado. mas com o

que dele restou - seus vestigios textualizados; o mais é um esforço

imaginativo. É a a r t e d e n t r o d o a r q u iv o , nas palavras de Michel Foucault.

Novamente, desconstrói-se a separação radical entre o "mundo da história"

e o "mundo da ficção".

3 6 LE GOFF, Jacques. A H is t ó r ia N o v a . São Paulo: Martins Fontes. [19--], p.57. 3 7 Ibid.

3 8 HUTCHEON, Linda. P o é t ic a d o P ó s - M o d e r n is m o Rio de Janeiro : Imago. 1988, p. 168.

39 FONTANA, Josep. L a H is t o r ia D e s p u é s d e i F in d e I a H is t o r ia :reflexiones acerca de Ia situación actual de Ia ciencia historica. Barcelona: Critica, 1992, p. 95-96.

BIBlOS. Rio Grande. 9: 11-24. 1997.

UFPR.

FEDCBA

actSP>.

6\8UOíE.CA

(7)

Frente à complexidade dos objetos de investigação, os pesquisadores

conscientizam-se da exigência de uma abordagem transdisciplinar destes"? .

A transdisciplinaridade implica uma permanente investigação sobre a

investigação, uma experimentação de novas formas de enunciação, uma

democracia nos diversos estágios do campo social, o abandono das visões

tradicionais dominantes. A questão não é a de derrubar de vez as fronteiras

entre as disciplinas, mas torná-Ias tão permeáveis quanto possível, permitindo

um circular do pesquisador em diversos campos do saber. A

transdisciplina-ridade busca o livre trânsito, constrói "pontes" entre as disciplinas e não

simplesmente "pinça" comodamente conceitos, modelos, elementos ...

apropriados em áreas afins. Incorpora diferentes pensares e fazeres

metodológicos. O alargamento dos horizontes da investigação não implica

uma perda do rigor científico, mas uma mudança em relação ao olhar de

seus interlocutores.

Segundo Gilbert Durand,

hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

u m a " d is c ip lin a " e s t r e it a n ã o p o d e s e n ã o d e s t a p a r s o b r e u m a a n e m ia d a d e s c o b e r t a .

FEDCBA

O " o b je t o " , o " r e a l" r o m p e m d e f in it iv a m e n t e c o m o m o n o t e í s m o d o

connecimento","

T o d o s n ó s s a b e m o s , [diz Elisa Reis], q u a n t o d e s im p lif ic a d o r e

a r t if ic ia l h á n o p r o c e d im e n t o d e d e f in ir u m a d is c ip lin a , e q u a n t a v io lê n c ia

f a z e m o s à r e a lid a d e s o c ia l q u a n d o a d e f in im o s d e s s a f o r m a d is c ip lin a r [ . . . ] .

T r a t a - s e d e f a t o d o r e c o n h e c im e n t o e x p lí c it o d e n o r m a s e c o n s t r a n g im e n t o s

ao a t o d e

connece/":

Entretanto, para conhecer torna-se necessário

n e g o c ia r , t r a b a lh a r , d is c u t ir , d e b a t e r - s e c o m o d e s c o n h e c id o q u e se

r e c o n s t it u i in c e s s a n t e m e n t e p o r q u e t o d a a s o lu ç ã o p a r a u m p r o b le m a

p r o d u z u m a n o v a q u e s t ã o . O p r o g r e s s o d a c iê n c ia é u m a id é ia q u e

c o m p o r t a em s i m e s m a in c e r t e z a , c o n f lit o ejo g o . O im p e r a t iv o d e c o n h e c e r

d e v e t r iu n f a r [ . . . ] s o b r e t o d o s os in t e r d it o s e t a b u s q u e o

timitem'?

As dificuldades e a complexidade em trazermos à luz o "passado" e

representá-Ia leva os historiadores a novos experimentos literários. Alguns

profícuos, outros estéreis, mas o importante é a busca por soluções e a

ousadia de nos permitir o erro.

As teorias dogmáticas da história, tidas como "científicas", baseadas

em circulas viciosos cuja única função é consolidar preconceitos, devem ser

contestadas mediante uma discussão racional. Devemos, igualmente,

distinguir as propostas inovadoras que permitem compreender melhor certos

4 0 o conceito de transdisciplinaridade é definido como um "movimento para além de " Cf. MORIN Op. cit., p.104.

4 1 DURAND. Gilbert. I n t e r d is c ip lin a r it é e t H e u r is t iq u e . UNESCO, Avril. 1991, p. 4. 2.

(tradução minha).

4 2 REIS. Elisa. Reflexões Transversas Sobre Transdisciplinaridade e Ensino de Ciências Sociais. In: BOMENY. Helena. A s A s s im C h a m a d a s C iê n c ia s S o c ia is . Rio de Janeiro . UERJ/Relume Dumará, 1991, p.244.

4 : ) MORIN. Op.cit., p. 83,94.

22 BIBLOS. Rio Grande, 9' 11-24. 1997

aspectos da vid~ social e as que constroem quimeras.

FEDCBA

CONSIDERAÇOES FINAIS

O universo literário abre-se aos historiadores como possibilidade de

deslindar sendas ocultas da realidade e forma de reflexão sobre a

problemática da organização e apresentação do relato historiográfico.

Embora possuam alguns elementos constitutivos distintos, história e

literatura valem-se de uma série de procedimentos comuns que as

aproximam. O interesse pelo homem e sua sociedade, presente tanto na

história quanto na literatura, incita a um relacionamento mais profundo e a

um tratamento efetivamente transdisciplinar desse objeto de estudo comum

a ambas as áreas do saber. Conforme Durand, o " o b s t á c u lo e p is t e m o ló g ic o "

f u n d a m e n t a l, a s a b e r , a p a s s iv id a d e m o n o d is c ip lin a r q u e in t e r d it a v a t o d o

" s a lt o "

neuttsiico,

e s t á

eootioo."

Receptiva às outras disciplinas, a Nova História combate a apologia

do existente, feita indiretamente pela pseudoneutralidade do positivismo.

Ataca, também, as visões deterministas, teleológicas da história,

identificadas no marxismo e nas teorias modernizantes. Assim, o "novo"

historiador recorre ao exemplo da criação literária e artística para resgatar a

dimensão crítico-utópica de seu ofício, sepultada pela "razão histórica".

Conciliando arte e ciência, utiliza-se da crítica literária, preocupa-se com o

leitor, a linguagem, a textualidade, as estruturas narrativas, o diálogo, o

estilo ... Renunciando à sua tradicional personalidade científica, produz uma

história impressionista. Dessa maneira, e n t r e or e a l e o im a g in á r io v a g u e ia o

n o v o o lh a r d o

tnstotieaor."

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. ARIÉS, Philippe et alii,A N o v a H is t ó r ia . Lisboa: Edições 70, 1983.

2. BARTHES, Roland. "O Discurso da História". In: O R u m o r d a Linçu«, São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 146-157.

3. BAUMGARTEN, Carlos. "Literatura e História: o entrecruzamento de discursos". In: TORRES, Luiz & ALVES, Francisco (Orgs). P e n s a r a R e v o lu ç ã o F e d e r a lis t a Rio Grande: FURG, 1993.

4. BIERSACK, Aletta. "Saber Local, História Local: Geertz e Além". In: HUNT, Lynn (Org.) A N o v a H is t ó r ia C u lt u r a l. São Paulo: Martins Fontes. 1992, p. 97-130.

5. BURKE, Peter. "Abertura: A Nova História, seu Passado e seu Futuro" In: (Orq.). A E s c r it a d a H is t ó r ia : novas perspectivas. São Paulo: UNESP. 1992. p. 7-37.

6. CHARTIER, Roger. "Textos, Impressões. Leituras." In: HUNT. Lynn (Orq.). A N o v a H is t ó r ia C u lt u r a l. São Paulo: Martins Fontes. 1992, p. 211-238.

7. DIEHL, Astor. A C u lt u r a H is t o r io g r á f ic a n o s A n o s 80 mudança estrutural na matriz

4 4 DURAND. Op. cit., pA (tradução minha)

. 4 5 DIEHL, Astor. A C u lt u r a H is t o r io g r á f ic a n o s A n o s 80 : mudança estrutural na matriz hlstoriográfica brasileira - IV. Porto Alegre: Evangraf.1983. p.82-83

(8)

historiográfica brasileira-IV. Porto Alegre: Evangral, 1993.

8. DURAND, Gilbert.

hgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

I n t e r d is c ip lin a r it é e t H e u r is t iq u e . UNESCO, Avril, 1991.

9. FONTANA, Josep. L a H is t o r ia D e s p u é s d e i F in d e L a H is t o r ia : reflexiones acerca de Ia situación actual de Ia ciencia histórica. Barcelona: Critica, 1992.

10. GA Y, Peter.

FEDCBA

. o E s t ilo n a H is t ó r ia . São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

11. HANSEN, João A. "Os Lugares das Palavras". In:R e v is t a R e g is t r o . Caderno Especial, Ano 2, n. 4, set. 1995/ fev. 1996, p 1-6.

12. HENRIQSON, Marlene. "Fato Histórico e Ficção Literária". In: E s t u d o s I b e r o - A m e r ic a n o s .

Porto Alegre : PUCRS, n.1/2, 1983, p 137-144.

13. HUNT, Lynn. "Apresentação: história, cultura e texto". In: HUNT, Lynn (Org.). A N o v a H is t ó r ia C u lt u r a l. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 1-29.

14. HUTCHEON, Linda. P o é t ic a d o P ó s - M o d e r n is m o . Rio de Janeiro: Imago, 1988.

15. KRAMER, Lloyd. "Literatura, Critica e Imaginação Histórica: o desafio literário de Hayden White e Dominick La C a p t a " . In: HUNT, Lynn (org). A N o v a H is t ó r ia C u lt u r a l. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 131-176.

16.

FEDCBA

LEGOFF, Jacques. A H is t ó r ia N o v a . São Paulo: Martins Fontes, [19--]. 17. LEITE, Lígia. OF o c o N a r r a t iv o . São Paulo: Ática, 1991.

18. LESCURE, Jean. L a L it t é r a t u r e P o t e n t ie lle , Paris: Gallimard, 1973, p. 28.

19. LIMA, Luiz C. "A Narrativa na Escrita da História e da Ficção". In: __ o A A g u a r r á s d o

T e m p o . Rio de Janeiro: Racco, 1989, p. 15-116.

20. MIGNOLO, Walter. "Lógica das Diferenças e Política das S e m e lh a n ç a s da Literatura q u e

Parece História ou Antropologia, e Vice-Versa." In: CHfAPPINI, Lígia & AGUIAR, Flávio (Orgs.). L it e r a t u r a eH is t ó r ia n a A m é r ic a L a t in a . São Paulo: EDUSP, 1993, p. 115-161'. 21. MORIN, Edgar. C iê n c ia c o m C o n s c iê n c ia . Sintra : Europa-América, 1990.

22. REIS, Elisa P. "Reflexões Transversas Sobre Transdisciplinaridade e Ensino de Ciências Sociais". In: BOMENY, Helena. A s A s s im C h a m a d a s C iê n c ia s S o c ia is . Rio de Janeiro: UERJ - Relume Dumará, 1991, p. 243-249.

23. RICOEUR, Paul. T e m p s e t R é c it . Tome I,1 1 , 1 1 1 . Paris: Seuil, 1985. 24. SCHAFF, Adam. H is t ó r ia eV e r d a d e . São Paulo: Martins Fontes, 1991.

25. SEVCENKO, Nicolau. L it e r a t u r a c o m o M is s ã o tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983.

26. TUCHMAN, Barbara. A P r á t ic a d a H is t ó r ia . Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. 27. VEYNE, Paul. C o m o se E s c r e v e aH is t ó r ia . Lisboa: Edições 70,1987.

28. WHITE, Hayden. M e t a - H is t ó r ia a imaginação histórica do século XIX. São Paulo UNESP, 1992.

29. ---. T r ó p ic o s d o D is c u r s o : ensaios sobre a critica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994.

"

Referências

Documentos relacionados

Assim, quando falamos em caracterização de personagens femininas, é muito comum que estas transitem por definições dualistas sobre posições assumidas por mulheres

Valor das importações de trigo Produção doméstica corrente de petróleo Produto Industrial Preço internacional do petróleo Preço internacional do trigo Renda real Produção

O Instituto Nacional de Estatística, ciente da sua responsabilidade nesta matéria, vem produzindo e divulgando informações anuais e trimestrais, com base no

O Fundo de Garantia de Crédito Agrícola Mútuo (FGCAM ou Fundo) é uma pessoa cole- tiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira (artigo 1.º do Regi-

Os pacientes devem ser aconselhados a não ingerir bebidas alcoólicas ou medicamentos que contenham álcool em sua formulação durante e no mínimo 1 dia após o tratamento

- no debe ser el mismo número de otro apartamento; si hay más puestos internos en paralelo en el apartamento, deben tener la misma dirección de usuario, pero una dirección

– Affiliated Professor, Barcelona Graduate School of Economics, Barcelona, Espanha, desde 2008 – Senior Research Associate, Institute for the Study of Labor (IZA), Bona, Alemanha,

O CONSELHO REGIONAL DE CONTABILIDADE DO MARANHÃO (CRC-MA), no uso de suas atribuições, torna público, para conhecimento dos interessados, que estão abertas as