PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
MAURICIO BERANGER
PROFISSIONALIDADE E IDENTIDADE PROFISSIONAL
DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA: O FENÔMENO DO
MAL-ESTAR DOCENTE E SUAS IMPLICAÇÕES
MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DE MATEMÁTICA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
MAURICIO BERANGER
PROFISSIONALIDADE E IDENTIDADE PROFISSIONAL
DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA: O FENÔMENO DO
MAL-ESTAR DOCENTE E SUAS IMPLICAÇÕES
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE PROFISSIONAL EM ENSINO DE MATEMÁTICA, sob a orientação da Profa. Dra. Célia Maria Carolino Pires.
Banca Examinadora
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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Dedicatória Aos meus pais: EURIDES BERANGER (in memorian) e EUZA BERANGER,
Às minhas filhas: IZABELA e IASMIM IACI,
Aos meus irmãos: DÉBORA,LAODICÉIA,DIÓGENES,JONATAS e VIVIANE,
Aos demais familiares: tios, tias e sobrinhos,
em especial ao meu afilhado LUIZ EDUARDO SCABAR,
Às companheiras de convivências,
A todos agregados da família,
Aos companheiros e companheiras da oposição no sindicato APEOESP,
Mas vocês, estudantes de todo o mundo, jamais se esqueçam de que por trás de cada técnica há alguém que a empunha e que esse alguém é uma sociedade e que se está a favor ou contra essa sociedade. Que no mundo há os que pensam que a exploração é boa e os que pensam que a exploração é ruim e que é preciso acabar com ela. E que mesmo quando não se fala de política em nenhum lugar, o homem político não pode renunciar a essa situação imanente à sua condição de ser humano. E que a técnica é uma arma e que quem sinta que o mundo não é tão perfeito quanto deveria ser deve lutar para que a arma da técnica seja posta a serviço da sociedade, e antes, por isso, resgatar a sociedade, para que toda técnica sirva à maior quantidade possível de seres humanos, e para que possamos construir a sociedade do futuro [...]
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que, de uma forma direta ou indireta, contribuíram para a
realização deste trabalho, em especial:
À Professora Doutora CÉLIA MARIA CAROLINO PIRES, minha orientadora,
que com sua magnitude acadêmica aceitou mais esse desafio, proporcionando
dedicação, empenho e paciência, que demonstrou com muita simplicidade ser
uma verdadeira educadora e uma grande amiga.
Aos Professores Doutores UBIRATAN D’AMBROSIO e MARIA DO CARMO S.
DOMITE, que aceitaram participar da banca examinadora e deram contribuições
valiosas no exame de qualificação.
Aos meus professores do Mestrado Profissional que demonstraram e se
dedicaram à realização da arte do aprender a aprender. Em especial, aos
Professores Doutores VINCENZO BONGIOVANNI e LULU HEALY.
Ao meu amigo Ivan, pela imensa demonstração de amizade, carinho e
afeto, mostrando ser um mestre nato que nos ajudou a caminhar nos trechos mais
difíceis.
Aos meus amigos: SEBASTIÃO, LUIZ e ICLÉA, companheiros de longas
jornadas de estudos durante o curso, e em especial à MARIA APARECIDA DELFINO,
companheira que se destacou na preocupação em ajudar os colegas.
Aos professores que participaram da pesquisa, sem o que seria inviável a realização deste trabalho, e aos professores coordenadores pedagógicos e
diretores que contribuíram na coleta dos dados em suas escolas.
À companheira SÔNIA, pela a atenção, carinho e por organizar a coleta de
Ao companheiro JEFERSON, pelas colaborações valiosas pelo apoio e
incentivo e ajuda dada.
À companheira MONALIZA, pelo apoio e incentivo a minha pessoa para
realizar este curso.
À companheira MARIA DE MENEZES, pelo apoio, preocupação e incentivo a
minha pessoa para conclusão deste curso.
A todos os estudantes do Mestrado Profissional, que me confiaram o papel
de representante discente neste Programa de Educação Matemática.
Por fim, agradeço a todos os amigos e amigas que proporcionaram as
inter-relações humanas que serviram de crítica, apoio e ajuda na metamorfose
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo contribuir para identificar e compreender alguns
comportamentos, conhecimentos, atitudes e valores que constituem a
especificidade de ser professor de Matemática (profissionalidade) e como sua
identidade profissional, composta e moldada por variadas componentes de
natureza (cultural, religiosa, étnica, entre outras) e resultante de mudanças
sociais, políticas, econômicas e tecnológicas, se revela no grupo pesquisado.
Busca demonstrar como um grupo de professores de Matemática se percebem na
sociedade atual e nas suas comunidades de atuação, como eles interagem com
as orientações curriculares veiculadas em propostas oficiais, como analisam os
resultados das avaliações e como se posicionam em relação a políticas públicas,
como as de inclusão, sistema de cotas e progressão continuada. Tem como
referências teóricas os trabalhos de Freire, Gimeno Sacristán, Apple e Thompson.
A pesquisa de campo foi elaborada por meio de um questionário organizado em
três blocos. No primeiro, procurou-se colher informações para delinear o perfil dos
professores pesquisados. No segundo bloco, cinco questões abertas foram
formuladas para que os pesquisados manifestassem suas opiniões e concepções
sobre a percepção que têm do papel do professor na sociedade, sobre sua
interação com as orientações curriculares veiculadas nas propostas oficiais, sobre
a análise dos resultados das avaliações em Matemática apontados em
macroavaliações e sobre seu posicionamento perante políticas públicas. No
terceiro bloco, foram elaboradas seis afirmativas para que os professores
entrevistados apresentassem sua concordância e discordância com cada uma
delas. Os resultados mostram que os professores participantes dessa coleta de
dados se sentem desmotivados, desvalorizados e deslocados social e
historicamente, pressionados pelas políticas públicas como macroavaliações e
progressão continuada. São contrários às cotas nas universidades
(considerando-as racist(considerando-as) e demonstraram não ter uma opinião definida do seu papel social e
de como os fatores culturais, sociais e políticos influenciam na sua ação
pedagógica.
ABSTRACT
The following research aims to contribute, identify and understand some
behaviors, knowledge, attitudes and values which will take part in the peculiarity of
being a Math teacher and how the professional identity, which is composed and
shaped by a variety of items such as cultural, religious, ethnic, among others, and
also resulting in social, political, economical and technological changes are
showed in the analyzed group. It is aimed by this piece of work to demonstrate
how a group of teachers see their roles in modern society and in their working
communities, how they interact with the curricula orientations in the official
documents, how the results of the tests are analyzed and how they face the
government decisions such as inclusion, cote system and developing program of
studies. The theorical references are the work done by Freire, Gimeno Sacristan,
Apple and Thompson. The field of research was made through a questionnaire
organized in three parts. On the first part, questions were made in order to draw
the teacher’s profiles. On the second part, five open questions were made so then
the teachers could express their opinions and conceptions about the role of the
teacher in the society, their interaction with the curricula orientation transmitted by
the official proposals, about the analysis of the results in the Math tests indicated
in macro tests, and also the point of view over the government decisions. On the
third part, six statements were formulated and the teachers had to agree and
disagree with each one. The results show that the teachers who participated in this
research do not feel motivated, valued, and feel apart from the society, also
historically under pressure because of the government decisions as:
macro-evaluation and the teacher training programme. They disagree with the university
cotes (finding them a way of expressing racial prejudice). They do not have a clear
opinion about their role and of cultural, social and political matters influence their
teaching practice.
SUMÁRIO
RESUMO... 09
ABSTRACT ... 10
APRESENTAÇÃO DA PESQUISA ... 14
I. Trajetória de vida e justificativa da escolha do tema ... 14
II. Justificativa da escolha e relevância do tema ... 17
III. Objetivos ... 18
IV. Procedimentos metodológicos ... 19
V. Estrutura do texto ... 20
CAPÍTULO 1 – REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ... 22
1.1 Alguns dados estatísticos sobre os professores brasileiros ... 22
1.2 As lições de Paulo Freire ... 25
1.3 Profissionalidade e identidade profissional ... 31
1.4 O fenômeno do mal-estar docente ... 34
1.5 Os professores e os projetos curriculares ... 39
1.6 As avaliações internacionais ... 47
1.7 Os professores de Matemática e suas concepções e crenças sobre a Matemática ... 50
1.8. As questões de pesquisa que emergem dessa revisão bibliográfica . ... 52
CAPÍTULO 2 – APRESENTAÇÃO DOS DADOS COLETADOS ... 53
2.1 Os instrumentos de coleta de dados ... 53
2.2 Caracterização do perfil dos professores participantes da coleta de dados ... 55
2.3 Categorização das respostas das cinco questões abertas apresentadas aos professores participantes da coleta de dados ... 56
2.3.2 Como o professor de Matemática interage com as orientações
curriculares veiculadas em propostas oficiais ... 60
2.3.3 Como o professor analisa e se posiciona perante os resultados das avaliações em Matemática apontados em macroavaliações
como SAEB, SARESP, ENEM, PROVA BRASIL, entre outras ... 64
2.3.4 Como o professor se posiciona em relação a políticas públicas, como a progressão continuada implantada na rede pública estadual;
a adoção do sistema de cotas para minorias nas universidades ... 68
2.3.5 Como o professor analisa se os sistemas públicos de ensino deveriam deixar totalmente a cargo da escola e de seus professores a definição de competências e habilidades, de conteúdos a serem ensinados, de abordagens metodológicas ou os sistemas de ensino
deveriam direcionar mais a ação das escolas e dos professores ... 72
2.4 Categorização das respostas das seis afirmações indicadas aos
professores participantes da coleta de dados ... 76
2.4.1 Os professores de Matemática deveriam ficar mais atentos aos valores que eles próprios incorporam, porque eles determinam a seleção dos conteúdos, estratégias, a metodologia, as habilidades e a avaliação. A própria relação com seus alunos está impregnada de
ideologia ... 76
2.4.2 Os professores de Matemática não têm assegurado o pleno conhecimento de novos currículos, antes de sua implementação em sala de aula, e em conseqüência não desenvolvem uma posição
crítica em relação a eles ... 80
2.4.3 Os currículos de Matemática propostos e praticados, de modo geral, são voltados para a transformação social, tendo em vista
formar um cidadão consciente, crítico e participante ... 83
2.4.4 Em sua atuação, os professores de Matemática levam em conta os direitos dos grupos desprivilegiados da sociedade e
também os valores culturais e históricos presentes no cotidiano ... 87
2.4.5 Os currículos de Matemática praticados não ajudam a superar a situação de marginalidade vivida por grande parte dos alunos, nem a modificam no sentido de um processo de conscientização cultural e
política ... 90
2.4.6 De modo geral, os currículos prescritos e praticados valorizam o supérfluo, contribuindo para perpetuar e legitimar as desigualdades
CAPÍTULO 3 CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 99
Respostas às questões de pesquisa 3.1 Como os professores de Matemática que participaram deste estudo se percebem na sociedade atual e nas suas comunidades de atuação ... 99
3.2 Como os professores de Matemática que participaram deste estudo interagem com as orientações curriculares veiculadas em propostas oficiais ... 100
3.3 Como os professores de Matemática que participaram deste estudo analisam os resultados das avaliações apontados em macro-avaliações como SAEB, SARESP, ENEM, PROVA BRASIL, entre outras ... 102
3.4 Como os professores de Matemática que participaram deste estudo se posicionam em relação a políticas públicas, como as de inclusão, sistema de cotas e progressão continuada ... 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 106
APRESENTAÇÃO DA PESQUISA
I. Trajetória de vida e justificativa da escolha do tema
Atuando como docente na rede pública estadual desde 1984 e participando
ativamente da organização sindical do magistério paulista como conselheiro
estadual desde 1993, ao longo desse tempo vivenciamos as políticas
educacionais implementadas pelo governo Federal e pelo Estado de São Paulo,
os efeitos da queda do prestígio social, da deterioração das condições de
trabalho, a perda do poder aquisitivo salarial e da precária situação econômica
dos professores, com sérias implicações como: a falta da identidade política e
profissional da função do educador em nossa sociedade, o grande desânimo no
exercício da profissão e a conseqüência da baixa procura, pelas novas gerações,
por cursos de formação de professores.
Nas escolas onde trabalhamos, podemos vivenciar situações conflitantes
que nos levam a questionar: por que professores, que são de origem operária, na
sua prática profissional têm tanta dificuldade de estabelecer uma identidade
classista com alunos das escolas públicas, operários ou filhos de operários?; por
que tantos professores de Matemática acabam por reforçar alguns mitos, como
os da incompetência dos alunos que freqüentam a escola pública, dando ênfase
às suas dificuldades em aprender Matemática?; por que tantos professores de
Matemática resistem em aceitar mudanças na sua prática docente, com intuito de
buscar uma verdadeira Educação Matemática de seus alunos?; por que tantos
professores demonstram, freqüentemente, tanta insatisfação com a profissão
docente e não se sentem responsáveis pela educação de seus alunos?
Retomando nossa trajetória de vida, como filho de uma família operária
composta de seis filhos, com pai ferramenteiro e mãe tecelã até se casar, tivemos
origem humilde que marcou nosso modo de ver o mundo. Nossos pais, por
encontrarem muitas dificuldades de locomoção e acesso, tiveram pouca
instrução escolar. Mesmo assim, formou-se ferramenteiro pelo Senai, em nível
destaque nos locais de trabalho por seu desempenho, criatividade e pela
disposição em ensinar cálculos aos demais empregados. Tanto nosso pai como
nossa mãe procuraram fortalecer a educação familiar baseada nos valores éticos,
morais e no respeito à pessoa humana, ressaltando a importância da escola.
Em nossa juventude vivenciamos algumas mudanças na organização do
ensino feitas pelos governos estaduais e federais, entre elas a que propunha no
ensino do 2.º grau uma formação profissionalizante (Lei 5.692/71) para atender às
necessidades de mercado, tendo sido, posteriormente, modificada.
Estudamos em escola pública no curso primário e ginasial, mas concluímos
o ensino médio numa instituição privada, com bolsa de estudos. Nessa instituição
tivemos oportunidade de perceber nossa vocação em ser professor, ajudando os
colegas de classe nas suas dificuldades, o que nos incentivavam a escolher essa
profissão.
Em 1983 ingressamos no Curso de Licenciatura em Ciências, com
habilitação em Matemática na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de
Sorocaba. No último ano da faculdade, durante o estágio, solicitávamos ao
professor da sala para dar aulas. No último ano do curso, começamos a dar aulas
como professor eventual em escolas públicas da região de Sorocaba. Em 1986, já
formado, começamos a lecionar em São Roque. Cada vez mais, íamos vendo a
necessidade de ampliar os conhecimentos tanto em Matemática como na área do
ensino dessa disciplina, buscando então fazer cursos no Programa de Verão do
Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo.
No início da década de 90 passamos a ministrar aulas em Cotia para
facilitar as viagens a São Paulo para o curso de nivelamento no IME. No entanto,
os cursos não atendiam nossas necessidades, pois estávamos em busca de
alternativas para “ensinar Matemática”. E poucos se preocupavam em
desenvolver e estudar o “como ensinar Matemática”, de forma que se
transformasse em uma ferramenta para ajudar os alunos a superar os seus
obstáculos. Buscamos então cursar a disciplina “Prática de Ensino em
Oriosvaldo de Moura, na Faculdade de Educação, por meio do convênio entre a
USP e o Governo do Estado de São Paulo, onde tive a oportunidade de começar
a perceber a importância da “Educação Matemática”.
A partir de 1993, concomitante a essa procura do aperfeiçoamento de sua
formação acadêmica (institucional), motivados pela necessidade de estabelecer e
compreender o papel social do educador matemático, participamos das reuniões
da APEOESP – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São
Paulo, com uma presença marcante na organização dos professores.
Fomos eleitos conselheiro regional e estadual, participando de reuniões,
simpósios, palestras e congressos para entender e analisar as políticas
governamentais para a educação do Estado de São Paulo. As principais
reivindicações profissionais tinham como eixo a reposição das perdas salariais e
reposição do poder aquisitivo, contra o aumento da jornada sem aumento salarial,
normalização da situação dos professores não-efetivos (contratados), entre outras
políticas neoliberais aplicadas pelos governos na educação do nosso país.
Participamos de agrupamentos de oposição, por nos posicionar contra as políticas
sindicais pro positivas, reformista e de conciliadora de classe adotada pelo nosso
sindicato Apeoesp. Essa procura da participação no meio sindical proporcionou
uma formação política social classista, motivados pela necessidade de
compreender o papel social e revolucionário do educador matemático.
Em 2004, ingressamos no Mestrado Profissional em Ensino de Matemática,
incentivados pela formação: familiar, acadêmica, sindical e pela existência do
Programa de Bolsas para cursos de Pós-Graduação da Secretaria Estadual de
Educação, com a finalidade de aperfeiçoarmos nossos conhecimentos sobre os
conteúdos matemáticos, aspectos didáticos e curriculares essenciais à atuação
do professor de Matemática. Ao longo do curso, foram muitas as aprendizagens e
diferentes temas abordados que despertavam interesse em investigá-los.
Entretanto, era preciso optar por um deles e essa escolha acabou recaindo na
proposição de estudar a profissionalidade e identidade profissional do professor
de Matemática. Estudando esse tema, buscamos compreender o fenômeno do
profissão, seu desprestígio social e a conseqüência da baixa procura, pelas novas
gerações, por cursos de formação de professores.
II. Justificativa da escolha e relevância do tema
A mídia e diferentes institutos de pesquisa têm dado destaque à situação
da educação do País e apresentado dados de forma bastante alarmante. A
literatura sobre o tema nos mostra que esse quadro não ocorre apenas no Brasil.
Autores portugueses, como Esteve (1995), denunciam que a sociedade parece
que deixou de acreditar na educação como promessa de um futuro melhor; os
professores enfrentam a sua profissão com uma atitude de desilusão e de
renúncia, que foi se desenvolvendo em paralelo à degradação da sua imagem
social.
O mal-estar generalizado entre os professores, segundo Esteve (1995),
precisaria ser enfrentado com a finalidade de ajudar os professores a diminuir ou
até eliminar os desajustes introduzidos por situações de reforma educativa. Para
tanto, deveriam ser realizados estudos das influências resultantes de mudanças
sociais sobre a função docente, estudos estes que subsidiariam o delineamento
de políticas de intervenção coerentes e que melhorassem as condições em que
os professores desempenham a sua atividade.
Concordando com Esteve, ressaltaríamos que, no caso do Brasil, a
ampliação de oportunidades educacionais, conquista do sistema de ensino em
nosso país, trouxe como conseqüência o aumento do número de professores que
passaram a atuar mesmo sem formação adequada e muitas vezes sem clareza
do que é a escola e de qual é o seu papel na sociedade atual.
Um destaque que gostaríamos de apontar refere-se ao fato de que os
professores estão imersos num contexto em que, ao mesmo tempo, há um
discurso sobre a crescente valorização do papel da educação na sociedade
contemporânea, direcionando o sistema educacional público ao desenvolvimento
de oferecer uma educação básica a alunos de todos os estratos sociais, e
internacionais. Muitos temas são polemizados: progressão continuada na escola
básica e sistema de cotas nas universidades, a grade curricular, o número de
alunos por sala de aula, a municipalização, a reorganização, as salas ambientes e
outras políticas de contenção de gastos aplicados pelos governos são alguns
exemplos que dividem as opiniões públicas.
Considerando o contexto acima descrito, julgamos relevante identificar qual
é a perspectiva de professores de Matemática a respeito de problemas e desafios
presentes no seu cotidiano e revelar valores que eles incorporam, levando em
conta que esses valores determinam a seleção dos conteúdos, estratégias, a
metodologia, as habilidades e a avaliação e que a prática docente está
impregnada de ideologia.
Assim, o presente estudo pretende contribuir para a sensibilização e
compreensão das influências resultantes de mudanças sociais e políticas sobre a
função docente, no caso particular de professores de Matemática, buscando
oferecer alguns subsídios para o delineamento de políticas de intervenção
coerentes e que possam subsidiar, melhorar e aliviar o mal-estar docente e as
condições em que os professores desempenham a sua atividade.
III. Objetivos
Nosso trabalho se insere na linha de pesquisa “Matemática na estrutura
curricular e formação de professores” e faz parte do projeto “Inovações
curriculares e formação de Professores de Matemática”, que reúne mestrandos e
doutorandos do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação Matemática.
Tem como finalidade investigar os processos de formação inicial e continuada de
professores de Matemática e evidenciar as características do conhecimento do
professor que ensina Matemática, estimulando a reflexão sobre seu papel social e
os conhecimentos do professor, considerados essenciais, como também a
influência de crenças, cultura, de concepções e de atitudes do professor da
Tem como objetivo contribuir para identificar e compreender alguns
comportamentos, conhecimentos, atitudes e valores que constituem a
especificidade de ser professor de Matemática (profissionalidade) e como sua
identidade profissional, composta e moldada por variadas componentes de
natureza (cultural, religiosa, étnica, entre outras) e resultante de mudanças
sociais, políticas, econômicas e tecnológicas, se revela no grupo pesquisado.
Busca demonstrar como um grupo de professores de Matemática se percebe na
sociedade atual e nas suas comunidades de atuação, como eles interagem com
as orientações curriculares veiculadas em propostas oficiais, como analisam os
resultados das avaliações e como se posicionam em relação a políticas públicas,
como as de inclusão, sistema de cotas e progressão continuada.
IV. Procedimentos metodológicos
Nossa pesquisa foi desenvolvida segundo uma abordagem qualitativa.
Uma investigação qualitativa compreende características que, de acordo
com Bogdan e Biklen (1994), são as seguintes: na investigação qualitativa a fonte
direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento
principal; a investigação qualitativa é descritiva; os investigadores qualitativos
interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou
produtos; os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de
forma intuitiva; o significado é de importância vital na abordagem qualitativa.
Numa pesquisa qualitativa é fundamental buscar compreender o pesquisado
enquanto sujeito condicionado a fatores psíquicos e sociais inserido num espaço
demarcado por condições existenciais, das quais ele é produto.
Nosso primeiro passo neste trabalho de pesquisa foi apropriarmo-nos de
estudos que analisam questões referentes à profissionalidade, identidade
profissional, ideologia, currículo, concepções e crenças.
A coleta de dados foi elaborada por meio de um questionário organizado
em três blocos. No primeiro, procurou-se colher informações para delinear o perfil
formuladas para que os pesquisados manifestassem suas opiniões e concepções
sobre a percepção que têm do papel do professor na sociedade, sobre sua
interação com as orientações curriculares veiculadas nas propostas oficiais, a
respeito da análise dos resultados das avaliações em Matemática apontados em
macro-avaliações e sobre seu posicionamento perante políticas públicas. No
terceiro bloco, foram elaboradas seis afirmativas para que os professores
entrevistados apresentassem sua concordância e discordância com cada uma
delas.
Esse instrumento de coleta de dados foi distribuído a 50 professores,
pessoalmente, em visitas a escolas estaduais de Cotia, 8 em Osasco e 4 em uma
escola municipal da Capital. Também solicitamos resposta de professores de
São João da Boa Vista, Itapecerica e Promissão.
Dos 70 instrumentos entregues recebemos respostas de 27 professores de
Matemática da rede oficial estadual e municipal, sendo: 6 professores de São
Paulo/Capital, 8 de Cotia, 6 de São João da Boa Vista, 4 de Osasco, 1 de Itapevi,
1de Itapecerica da Serra e 1 de Promissão, que serão identificados como P1,
P2,..., P27, para assegurar o anonimato dos entrevistados.
As entrevistas foram transcritas sem correções ou inserções. Delas
extraímos trechos com base em algumas categorias que possibilitaram a
elaboração de uma síntese.
V. Estrutura do texto
Nosso trabalho está organizado em: apresentação da pesquisa e três
capítulos.
Na apresentação da pesquisa apresentamos a trajetória de vida do
mestrando e justificativa da escolha do tema, justificativa da escolha e relevância
No capítulo 1 abordamos a revisão bibliográfica, destacando os seguintes
pontos: alguns dados estatísticos sobre os professores brasileiros, as lições de
Paulo Freire, a profissionalidade e identidade profissional, o fenômeno do mal
estar docente, os professores e os projetos curriculares, as avaliações
internacionais, os professores de Matemática e suas concepções e crenças sobre
a Matemática e questões de pesquisa que emergem dessa revisão bibliográfica.
No Capítulo 2 apresentamos a coleta de dados, que se subdivide nos
seguintes pontos: os instrumentos de coleta de dados, caracterização do perfil
dos professores participantes da coleta de dados, e o processo de categorização
dos dados coletados das respostas das cinco questões abertas acompanhadas
dos respectivos comentários e categorização das respostas das seis afirmações
indicadas com os respectivos comentários.
Finalizamos com o capítulo 3, apresentando as conclusões e
considerações finais. Neste capítulo foram respondidas as quatro questões de
CAPÍTULO 1
REVISÃO BIBLIOGRAFICA
1.1 Alguns dados estatísticos sobre os professores brasileiros
Antes de apresentar uma síntese das leituras que fundamentaram nosso
estudo, consideramos interessante transcrever alguns resultados de um estudo feito pelo Unesco, em 2002, intitulado Estatísticas dos professores no Brasil, e que aponta algumas características da profissão de professor em nosso país.
O estudo mostra que um professor que atuava na Educação Infantil
ganhava, em média, R$ 423,00. Docentes que lecionavam em turmas de 1ª a 4ª
série recebiam R$ 462,00, e de 5ª a 8ª, R$ 600,00. Um professor que atuava no
Nível Médio ganhava, em média, R$ 866,00.
A remuneração de um professor do Ensino Médio, de R$ 866,00, é quase a
metade do salário de um policial civil e um quarto do que ganha um delegado de
polícia no Brasil. Entre o menor salário, o de professor da Educação Infantil, e o
de juiz, a diferença chega a ser de 20 vezes.
As diferenças salariais também são marcantes entre os professores nas
diversas regiões do País, e os menores rendimentos estão no Norte e Nordeste.
Um professor da Região Sudeste ganha, em média, duas vezes mais que seu
colega da Região Nordeste. Na Educação Infantil, por exemplo, o professor do
Sudeste ganha R$ 522,00 e o do Nordeste, R$ 232,00. No Ensino Fundamental
de 5ª a 8ª séries os salários são de R$ 793,00 e R$ 373,00 respectivamente, nas
Regiões Sudeste e Nordeste.
Segundo o estudo, o salário dos professores é o índice de maior peso no
cálculo do custo do aluno. Como a maioria dos professores da Educação Básica
encontra-se na rede pública, totalizando 85% das funções docentes, isso implica
a necessidade de uma reformulação da política de financiamento.
As condições de trabalho em relação à infra-estrutura das escolas da
insuficientes. Nas escolas públicas brasileiras, 45% dos professores atuavam em
escolas sem biblioteca. Na Região Nordeste, essa era a realidade para 66% dos
mestres.
Ainda em relação à infra-estrutura, 74% trabalhavam em estabelecimentos
sem laboratório de informática e cerca de 80% não contavam com laboratórios de
ciências.
O número de alunos por turma também é considerado elevado em todos os
níveis de ensino. Na creche, por exemplo, a média é de quase 18 alunos por
turma. No Ensino Médio é de mais de 37, e mais de 20% das turmas desse nível
de ensino no País possuem além de 40 alunos.
Em relação ao tempo de dedicação ao magistério, a maioria dos docentes
tem carga horária semanal superior a 20 horas. Na 3.ª série do Ensino Médio,
quase 25% dos professores de Língua Portuguesa e Matemática estão
submetidos a uma carga horária superior a 40 horas. Para os autores do estudo,
independentemente da causa, a dupla ou tripla jornada com certeza compromete
o desempenho do professor, pois concorre com outras atividades que exigem
tempo adicional para docência: planejamento das atividades em sala de aula,
disponibilidade para oferecer atendimento ao aluno e atividades administrativas
relacionadas à escola.
A formação dos professores melhorou em todos os níveis de ensino e
houve redução dos professores leigos na última década. Contudo, afirma o
estudo, “apenas 57% dos docentes que atuavam na pré-escola, ensino
fundamental e ensino médio, possuíam formação em nível superior, que seria
aquela ideal”.
Na pré-escola, por exemplo, 27% dos 259 mil docentes tinham nível
superior, em 2002, contra 17% em 1991. O índice de profissionais com o
fundamental incompleto caiu de 6% para apenas 1%, nesse período.
Considerando a formação exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) – magistério ou licenciatura – 91% dos professores que atuam
No Ensino Médio, das 469 mil funções docentes, 89% têm a graduação
completa e 79% deles, a licenciatura. Neste nível de ensino, no entanto, quase
11% dos docentes ainda possui somente o Ensino Médio completo, indicando a
necessidade de maiores investimentos em formação.
Na educação superior, do total de professores em 2001, 54% tinham
mestrado ou doutorado concluídos, 31% possuem especialização e cerca de 15%
concluíram somente a graduação. Em 1991, o percentual de mestres e doutores
era de 35%, 19 pontos percentuais menor.
Nos últimos anos, o número de ingresso nos cursos de graduação que
oferecem licenciatura mais que dobrou, passando de 166 mil, em 1991, para 362
mil, em 2002. Neste período a matrícula cresceu de 556 mil para 1.059 milhões e
o número de cursos passou de 2.512 para 5.880, com uma grande participação
da rede pública, que concentra 3.116 cursos.
Apesar do aumento no número de licenciados, a estimativa de novos
postos para atendimento das metas do Plano Nacional de Educação era de que
haveria carência de mão-de-obra até 2006. O problema deveria ser maior para as
séries finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, principalmente nas
áreas de Física e Química.
Em geral, mais de 80% dos professores da Educação Básica, de acordo
com dados do SAEB, participaram de formação continuada nos últimos dois anos.
Essa realidade é similar para todas as regiões do País. No entanto, o cruzamento
dessa informação com os resultados alcançados pelos alunos nas provas de
Língua Portuguesa e Matemática do SAEB indica que os cursos de formação
continuada aparentemente apresentam pouco impacto no desempenho dos
alunos. Segundo o estudo, isso mostra “a necessidade de ampliar as pesquisas
nessa área e, eventualmente, reorganizar esses cursos, redefinindo seus
objetivos e métodos”.
Lecionam em escolas da área rural brasileira cerca de 354 mil docentes,
15% do total. O campo concentra cerca de 50% dos estabelecimentos de ensino
geralmente, pequenas e com um único professor que trabalha com turmas
multisseriadas.
Em função dessas características, o quadro de carência de pessoal
qualificado no meio rural é ainda mais crítico do que na zona urbana. No Brasil,
cerca de 9% dos docentes da zona rural que atuam nas séries iniciais do Ensino
Fundamental têm formação superior. Na zona urbana esse contingente
representa 38%.
As Regiões Norte e Nordeste apresentam situação ainda mais
problemática. No Norte, menos de 1% dos professores das séries iniciais do
Ensino Fundamental tem a graduação, enquanto na Região Sul chega-se a 23%.
Por outro lado, o quantitativo de docentes leigos neste nível de ensino na Região
Norte é de 12% e de 4% para a Sul.
1.2 As lições de Paulo Freire
Com esse panorama que mostra as inúmeras dificuldades que os
professores precisam enfrentar no seu dia-a-dia, poderíamos dizer que é quase
inacreditável que diariamente as escolas brasileiras estejam funcionando e que,
apesar de todos os problemas de desempenho, deveríamos olhar para a situação
educacional brasileira de outra maneira.
Esse olhar, com certeza, encontra explicações, alentos e desafios nas
lições de Paulo Freire. Gadotti, diretor do Instituto Paulo Freire, num texto em que
apresenta uma entrevista concedida a ele por Paulo Freire, destaca que a obra
desse estudioso tem sido um divisor de águas em relação à prática
político-pedagógica tradicional. A partir daí, e em conjunção com outras teorias críticas,
numerosas perspectivas teóricas e práticas foram se desenhando em distintas
partes do mundo, impactando muitas áreas do conhecimento. Gadotti comenta:
ciências (sociais e naturais), elementos para, compreendendo mais cientificamente a realidade e poder intervir de forma mais eficaz nela. Por isso ele pensa a educação ao mesmo tempo como ato político, como ato de conhecimento e como ato criador.
Segundo Gadotti, todo o pensamento tem uma relação direta com a
realidade. Essa é sua marca. Ele não se comprometeu com esquemas
burocráticos, sejam os esquemas do poder político, sejam os do poder
acadêmico. Comprometeu-se acima de tudo com uma realidade a ser
transformada. No pensamento de Paulo Freire, tanto os alunos quanto o professor
são transformados em pesquisadores críticos. A educação visa à libertação, à
transformação radical da realidade, para melhorá-la, para torná-la mais humana,
para permitir que os homens e as mulheres sejam reconhecidos como sujeitos da
sua história e não como objetos.
Gadotti destaca que na obra de Freire é essencial mencionar dois
elementos fundamentais da sua filosofia educacional: a conscientização e o
diálogo.
A conscientização não é apenas tomar conhecimento da realidade. A tomada de consciência significa a passagem da imersão na realidade para um distanciamento desta realidade. A conscientização ultrapassa o nível da tomada de consciência através da análise crítica, isto é, do desvelamento das razões de ser desta situação, para constituir-se em ação transformadora desta realidade.
O diálogo consiste em uma relação horizontal e não vertical entre as pessoas implicadas, entre as pessoas em relação. No seu pensamento, a relação homem, mulher, mulher-mulher e homem-mundo são indissociáveis. Como ele afirma: “ninguém educa ninguém. Ninguém se educa sozinho. Os homens se educam juntos, na transformação do mundo”. Nesse processo se valoriza o saber de todos. O saber dos alunos não é negado. Todavia, o educador também não fica limitado ao saber do aluno. O professor tem o dever de ultrapassá-lo. É por isso que ele é professor e sua função não se confunde com a do aluno.
Paulo Freire foi, sem dúvida alguma, um educador humanista e militante. Em
concepção de educação parte-se sempre de um contexto concreto para
responder a esse contexto. Em Educação como prática da liberdade, esse
superação da cultura colonial nas “sociedades em trânsito”. Freire procura
mostrar, nessas sociedades, qual é o papel da educação, do ponto de vista do
oprimido, na construção de uma sociedade democrática ou “sociedade aberta”.
Para ele, essa sociedade não pode ser construída pelas elites porque elas são
incapazes de oferecer as bases de uma política de reformas. Essa nova
sociedade só poderá se constituir como resultado da luta das massas populares,
as únicas capazes de operar tal mudança.
Paulo Freire entende que é possível engajar a educação nesse processo de conscientização e de movimento de massas. Ainda em Educação como prática da liberdade, ele desenvolve o conceito de “consciência transitiva crítica”, entendendo-a como a consciência articulada com a práxis. Segundo ele, para se
chegar a essa consciência, que é ao mesmo tempo desafiadora e transformadora,
são imprescindíveis o diálogo crítico, a fala e a convivência.
O diálogo proposto pelas elites é vertical, forma o “educando-massa”,
impossibilitando-o de se manifestar. Nesse suposto diálogo, ao educando cabe
apenas escutar e obedecer. Para passar da consciência ingênua à consciência
crítica, é necessário um longo percurso, no qual o educando rejeita a
hospedagem do opressor dentro de si, que faz com que ele se considere
ignorante e incapaz. É o caminho de sua auto-afirmação enquanto sujeito.
“Na concepção de Paulo Freire, o diálogo é uma relação horizontal. Nutre-se
de amor, humildade, esperança, fé e confiança. Ele retoma essas características
do diálogo com novas formulações ao longo de muitos trabalhos,
contextualizando-as. Assim, por exemplo, ele se refere à experiência do diálogo,
ao insistir na prática democrática na escola pública: “é preciso ter coragem de nos
experimentarmos democraticamente”. Lembra ainda que “as virtudes não vêm do
céu nem se transmitem intelectualmente, porque as virtudes são encarnadas na
práxis ou não”, como disse em palestra realizada na abertura da primeira sessão pública do Fórum de Educação do Estado de São Paulo, em agosto de 1983”.
Na opinião de Gadotti, em sua obra Pedagogia do oprimido Freire completaria suas concepções pedagógicas acerca das diferenças entre a
aparece mais nitidamente: a pedagogia burguesa do colonizador seria a
pedagogia “bancária”. A consciência do oprimido, diz ele, encontra-se “imersa” no
mundo preparado pelo opressor; daí existir uma dualidade que envolve a
consciência do oprimido: de um lado, essa aderência ao opressor, essa
“hospedagem” da consciência do dominador – seus valores, sua ideologia, seus
interesses – e o medo de ser livre e, de outro, o desejo e a necessidade de
libertar-se. Trava-se, assim, no oprimido, uma luta interna que precisa deixar de
ser individual para se transformar em luta coletiva: “ninguém liberta ninguém,
ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”.:
1º) o educador é o sujeito da sua prática, cumprindo a ele criá-la e recriá-la
por meio da reflexão sobre o seu cotidiano.
2º) a formação do educador deve ser permanente e sistematizada, porque a
prática se faz e refaz.
3º) a prática pedagógica requer a compreensão da própria gênese do
conhecimento, ou seja, de como se dá o processo de conhecer.
4º) o programa de formação dos educadores é condição para o processo de
reorientação curricular da escola.
Esse programa de formação dos educadores teve como eixos básicos:
1º) a fisionomia da escola que se quer, enquanto horizonte da proposta
pedagógica;
2º) a necessidade de suprir elementos de formação básica aos educadores
nas diferentes áreas do conhecimento humano;
3º) a apropriação, pelos educadores, dos avanços científicos do
conhecimento humano que possam contribuir para a qualidade da escola que se
quer.
Com esse programa, Paulo Freire queria formar professores para uma nova
O Brasil nasceu autoritário. Tem 500 anos de tradição autoritária. Por isso
não se pode esperar que em poucos anos isso seja superado. Por isso Paulo
Freire pôs à prova a sua conhecida paciência pedagógica, com decisão política,
competência técnica, amorosidade e sobretudo com o exercício da democracia.
Acabou tendo enorme êxito nessa sua tarefa.
A formação do educador ultrapassa, transcende, os cursos explicativos
teóricos em torno da democracia. A formação se dá por meio da prática, da real
participação. A prática da democracia vale muito mais do que um curso sobre
democracia.
Segundo Gadotti, Paulo Freire publicou, no Brasil, nos primeiros cinco anos
da década de 90, seis importantes obras: A educação na cidade (1991),
Pedagogia da esperança (1992), Política e educação (1993), Professora sim, tia
não (1993), Cartas a Cristina (1994) e À sombra desta mangueira (1995). São
obras que revelam um Paulo Freire mais literário e poético e um pensamento
analítico-histórico e em evolução permanente. O que está acrescentando ao seu
legado com essas novas obras, pergunta Gadotti e responde:
Paulo Freire parece preocupado com uma questão: de que tipo de educação necessitam os homens e as mulheres do próximo século, para viver neste mundo tão complexo de globalização capitalista da economia, das comunicações e da cultura e, ao mesmo tempo, de ressurgimento dos nacionalismos, do racismo, da violência e de certo triunfo do individualismo? Segundo a minha leitura e percepção particular destas obras recentes – que eles e elas necessitam de uma educação para a diversidade, necessitam de uma ética da diversidade e de uma cultura da diversidade.
Uma sociedade multicultural deve educar o ser humano multicultural, capaz
de ouvir, de prestar atenção ao diferente, respeitá-lo. Neste novo cenário da
educação será preciso reconstruir o saber da escola e a formação do educador.
Não haverá um papel cristalizado tanto para a escola quanto para o educador. Em
vez da arrogância de quem se julga dono do saber, o professor deverá ser mais
criativo e aprender com o aluno e com o mundo. Numa época de violência, de
agressividade, o professor deverá promover o entendimento com os diferentes e a
escola deverá ser um espaço de convivência, onde os conflitos são trabalhados,
O livro Professora sim, tia não tem tido uma grande repercussão entre as jovens professoras justamente por tratar do tema da sua profissionalização, tão
deteriorada nos últimos anos em termos salariais e em termos das próprias
condições de trabalho que cercam a atividade docente. Paulo Freire afirma que
a tentativa de reduzir a professora à condição de tia é uma “inocente” armadilha ideológica em que, tentando-se dar a ilusão de adocicar a vida da professora o que se tenta é amaciar a sua capacidade de luta ou entretê-la no exercício de tarefas fundamentais. Entre elas, por exemplo, a de desafiar seus alunos, desde a mais tenra e adequada idade, através de jogos, de estórias, de leituras para compreender a necessidade da coerência entre discurso e prática; um discurso sobre a defesa dos fracos, dos pobres, dos descamisados e a prática em favor dos camisados e contra os descamisados; um discurso que nega a existência das classes sociais, seus conflitos e a prática política em favor exatamente dos poderosos (p. 25).
A escola não deve apenas transmitir conhecimentos, mas também
preocupar-se com a formação global dos alunos, numa visão em que o conhecer
e o intervir no real se encontrem. Mas, para isso, é preciso saber trabalhar com as
diferenças, isto é, é preciso reconhecê-las, não camuflá-las, e aceitar que para
me conhecer preciso conhecer o outro.
Gadotti perguntou a Freire: O que você faria, como professor(a), na sala de
aula? Ele respondeu:
1.3 Profissionalidade e identidade profissional
Enfrentar condições adversas de trabalho é ter que recriar todo dia as suas
táticas para superar o exclusivismo de uma compreensão cultural estreita. Saber
trabalhar com as diferenças, reconhecê-las e não camuflá-las; aceitar que para
me conhecer preciso conhecer o outro. Lidar com cobranças de desempenho e
compreender mudanças de cenário.
Esteve (1995) refere o exemplo de um grupo de atores que desempenham
o seu papel numa peça que retrata uma determinada época histórica e a quem,
de repente, se muda o cenário:
A primeira reação dos atores seria a surpresa, Depois, tensão e desconcerto, com um forte sentimento de agressividade, desejando acabar o trabalho para procurar os responsáveis, a fim de, pelo menos, obter uma explicação. Que fazer? Continuar a recitar versos, arrastando largas roupagens em metade de um cenário pós-moderno, cheio de luzes intermitentes? Parar o espetáculo e abandonar o trabalho? Pedir ao público que deixe de rir para que se ouçam os versos? O problema reside em que, independentemente de quem provocou a mudança, são os atores que dão à cara. São eles, portanto, quem terá de encontrar uma saída airosa, ainda que não sejam os responsáveis (p. 97).
Nesse contexto de mudanças e incertezas, para Ponte (1995), uma
questão se coloca de imediato: “O que são e o que querem ser hoje os
professores de Matemática?” (p. 4).
A forma como se acede à profissão é, na perspectiva desse investigador,
um dos aspectos que delimita e contribui para a formação da identidade do
professor. Um outro aspecto é o da cultura profissional dos docentes, que
abrange questões como o horário de trabalho, as responsabilidades relativamente
aos alunos, as relações estabelecidas com os outros professores, entre outras.
Neste sentido, importa definir alguma terminologia empregada usualmente
quando se pretende estudar questões relacionadas com a profissionalidade e a
Para Gimeno (1995), o termo “profissionalidade” refere-se a tudo o “que é
específico na ação docente, isto é, o conjunto de comportamentos,
conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de
ser professor” (p. 65), mas pode também definir-se como “a observância de um
certo tipo de regras, baseadas num conjunto de saberes e de saber-fazer” (p. 77).
A profissionalidade dos professores assume características observáveis e
manifesta-se a diferentes níveis: ensino e orientação do estudo dos alunos; apoio
individual; regulação das relações escolares e extra-escolares; preparação de
materiais; avaliação; organização de espaços e de atividades.
O conceito de “identidade” é utilizado de modo pouco definido em campos
diversos do conhecimento e até dentro da mesma disciplina. É encarado ora
como apresentando características individuais, ora como algo coletivo.
Ferreira (1995) aponta duas tradições teóricas que têm constituído a base
da abordagem da questão da identidade profissional: a de Durkheim e a de
Weber. A tradição durkheimiana privilegia o eixo temporal dos processos
identitários e distingue a identidade individual da identidade social. A identidade
social decorre, nesta linha de pensamento, da transmissão de conhecimentos e
técnicas, normas, valores e hábitos, de geração em geração. Entendida como
transmissão de um patrimônio cultural da geração adulta à geração jovem, a
educação constitui o mecanismo de transformação social das predisposições
individuais, procurando assegurar por essa via a adaptação e pertença estável do
indivíduo a uma sociedade e aos seus grupos sociais de convivência. A outra
tradição teórica – weberiana – considera as identidades dos atores sociais mais
como efeitos emergentes de sistemas de ação social do que como produtos de
trajetórias biográficas. O eixo espacial é, portanto, mais valorizado que o eixo
temporal, pretendendo salientar, deste modo, as relações entre atores de um
mesmo sistema de ação e as formas de construção social nele operadas (p. 5).
A expressão “‘identidade profissional” surge também freqüentemente
identificada como retratando algo estável e que resulta de uma tradição cultural.
Esta idéia é contrariada por Silva (1994), em Ferreira (1995), que refere que a
aquisição, enriquecimento, reelaboração, adaptação, aplicação, dissolução, etc.,
de tradições é um processo tão dinâmico, conjuntural, estruturante, ativo e
estratégico como a generalidade dos outros processos sociais. Também as
tradições estão instaladas na mudança (p. 3).
Por analogia, a “identidade profissional” do professor pode ser tomada
como um processo dinâmico de produção social. A identidade profissional é
composta e moldada por variadas componentes de natureza cultural, religiosa,
étnica, lingüística, entre outras, resultantes das mudanças sociais, políticas,
econômicas e tecnológicas profundas e rápidas da sociedade, e encontra-se em
construção e/ou reconstrução permanentes.
Há que apresentar agora alguns traços importantes da profissão docente
de modo que questões da sua profissionalidade e da sua identidade profissional
sejam mais adequadamente compreendidas.
A função docente constituiu-se inicialmente como ocupação secundária,
“subsidiária e não especializada” de religiosos e a “gênese da profissão de
professor tem lugar no seio de algumas congregações religiosas, que se
transformaram em verdadeiras congregações docentes” (Nóvoa, 1995, p. 15).
Esta situação prevaleceu em toda a Europa até a primeira metade do século
XVIII, quando se tentou institucionalizar essa ocupação secundária, que era a
educação. Ainda que se assistisse a uma manutenção dos modelos escolares
determinados pela Igreja, a responsabilidade da educação dos indivíduos cabia
agora ao Estado, nas pessoas de um conjunto de professores laicos.
Durante os séculos XVII e XVIII, as congregações dos jesuítas e dos
oratorianos foram definindo um corpo de saberes e de técnicas e um conjunto de
normas e de valores específicos da profissão. Nesse âmbito, Nóvoa (1995) refere
que a elaboração de um corpo de saberes e de técnicas é a conseqüência lógica
do interesse renovado que a Era Moderna consagra ao porvir da infância e à
intencionalidade educativa. Trata-se mais de um saber técnico do que de um
conhecimento fundamental, na medida em que se organiza preferencialmente em
torno dos princípios e das estratégias de ensino. Por outro lado, é importante
exterior do “mundo dos professores”, por teóricos e especialistas vários. A
elaboração de um conjunto de normas e de valores é largamente influenciada por
crenças e atitudes morais e religiosas. A princípio, os professores aderem a uma
ética e a um sistema normativo essencialmente religioso; mas, mesmo quando a
missão de educar é substituída pela prática de um ofício e a vocação cede o lugar
à profissão, as motivações originais não desaparecem.
Os professores nunca procederam à codificação formal das regras
deontológicas, o que se explica pelo fato de lhes terem sido impostas do exterior,
primeiro pela Igreja e depois pelo Estado, instituições mediadoras das relações
internas e externas da profissão docente (p. 16).
Esta afirmação da importância dos professores não deixa, no entanto, de
ser “manchada” por momentos de crise e de recuos em relação aos direitos
adquiridos. Também a Igreja, o Estado e a Família questionam a importância da
escola sempre que temem que ela ameace os seus interesses ou projetos sociais
e econômicos.
1.4 O fenômeno do mal-estar docente
Diferentes causas podem ser apontadas como explicativas das crises que
a profissão docente tem vivido: a massificação do ensino; a conseqüente
necessidade do aumento do número de indivíduos que integraram a profissão,
ainda que sem formação adequada, ou em certos casos suficiente; e uma certa
indefinição acerca do que é a escola e de qual é o seu papel na sociedade atual.
O atual panorama da profissão docente enferma de vários problemas que
se traduzem numa situação de mal-estar generalizado entre os professores. O
estudo do mal-estar docente tem, segundo Esteve (1995), tem três funções
precisas: (a) a de ajudar os professores a debater e até eliminar os
desajustamentos introduzidos por situações de reforma educativa; (b) o estudo
das influências resultantes de mudanças sociais sobre a função docente (falta de
apoio aos docentes, as críticas e a demissão da responsabilidade da sociedade
coerentes que melhorem as condições em que os professores desempenham a
sua atividade.
Atualmente, e ao longo de períodos de tempo bem definidos
historicamente, o baixo nível das remunerações pecuniárias tem, ou teve, como
conseqüência imediata a procura de acumulações, quer no ensino, quer noutros
ramos de atividade. Dessa sobrecarga de trabalho decorre, atualmente, efeitos
imediatos, como um aumento dos já elevados índices de absentismo, ou até de
abandono, uma atitude crescente de desinvestimento na profissão e a ausência
de momentos destinados à reflexão crítica sobre atividade profissional. Alguns
investigadores falam de desencanto e de desresponsabilização dos professores
relativamente à sua profissão.
A sociedade parece que deixou de acreditar na educação como promessa
de um futuro melhor; os professores enfrentam a sua profissão com uma atitude
de desilusão e de renúncia, que se foi desenvolvendo em paralelo com a
degradação da sua imagem social (Esteve, 1995, p. 95).
Há na atitude de muitos professores um grande desinvestimento e uma
forte tendência para a desresponsabilização (Ponte, 1995, p. 6).
Considerando este quadro pouco otimista, não é difícil perceber que a
“profissão professor” é vista como uma semiprofissão do ponto de vista
sociológico. A esta forma de definição da profissão docente não serão certamente alheios alguns fatos respeitantes ao status do grupo profissional e à dimensão desse mesmo grupo, ou à relação obrigatória que os professores têm que
estabelecer com os seus alunos, imposta por normas socialmente
institucionalizadas relativas à obrigatoriedade do ensino. Pelas razões anteriores,
entre outras, os professores não possuem “uma posição social elevada, ainda que
sejam freqüentes as declarações sobre a importante missão que lhes incumbe”
(Gimeno, 1995, p. 67).
As funções docentes são definidas por normativas sociais, políticas e
administrativas, que definem e regulam o sistema educativo, elaboradas a partir
necessidades sociais tendem a atribuir cada vez mais à escola um conjunto
alargado de responsabilidades e de funções, de tal modo que hoje se verifica uma
crescente indefinição do que seja papel da escola e dos professores. Esteve
(1995) menciona, neste sentido, “o choque do futuro” conceituado por Toffler
(1972) “como um efeito da mudança social acelerada, cuja principal conseqüência
é o desajustamento do indivíduo, quando perde as referências culturais
conhecidas” (1995, p. 96). Os efeitos da mudança social acelerada são imediatos
e preocupantes e traduzem-se em desajustamentos profundos dos professores
que sentem que o contexto em que desempenham a sua atividade profissional
mudou, não reconhecendo semelhanças à realidade envolvente, não havendo
nenhuma possibilidade de retorno à antiga paisagem social, que dominavam e conheciam. […] O sentimento de insegurança está na origem do cepticismo e da recusa dos professores em relação às novas políticas de reforma educativa (Esteve, 1995, p. 96).
No entanto, a atividade educativa não é da única e inteira responsabilidade
dos professores. Antes de mais, “os professores não produzem o conhecimento
que são chamados a reproduzir, nem determinam as estratégias práticas de ação”
(Gimeno, 1995, p. 68).
Além dessa razão, há que considerar que os professores não limitam a sua
atividade ao que é observável: as suas práticas pedagógicas (o desempenho dos
professores nas aulas encontra-se afetado pelas suas concepções acerca do
ensino-aprendizagem, do que é relevante ensinar aos alunos de um determinado
grupo etário ou social, e por valores sociais acerca da importância de certos
conteúdos que devem ser transmitidos aos alunos).
Sendo assim, é de referir que “aquilo que vulgarmente chamamos
educativo não esgota as práticas relacionadas com a educação, porque remete
para outros âmbitos de ação, que incidem sobre a realidade escolar imediata” e
que à educação se referem “ações muito diversas, que influenciam a prática
didática” (Gimeno, 1995, p. 68).
Atualmente, existem alguns indicadores de que a qualidade do ensino tem
contínuo das ciências e a necessidade de integrar novos conteúdos” num
processo que impõe uma dinâmica de ação e de atualização permanentes aos
professores, que se confrontam com a necessidade de aceitarem “mudanças
profundas na concepção e no desempenho da sua profissão” (Esteve, 1995, p.
98).
Não obstante a atual conjuntura não ser muito favorável ao desempenho
da atividade docente, há professores que manifestam uma grande reserva de
energia e de generosidade que se traduzem em disponibilidade para com os
alunos, para os colegas em dificuldades, para a escola. Nos últimos anos, tem-se
afirmado em largos sectores da profissão um gosto por se envolver em projetos
inovadores que se possam traduzir em melhorias no ensino e na aprendizagem
dos alunos (Ponte, 1995, p. 6).
A educação e a prática educativa surgiram muito antes da sua formalização
e institucionalização como sistemas. A educação constitui uma prática histórica
que permitiu a partilha dos valores, dos hábitos e da cultura dos vários grupos
humanos e se considerou como uma atividade geradora de cultura intelectual. A
educação formal nas sociedades desenvolvidas, além de ter substituído esse
modo informal de transmissão de saberes e de valores, procurou responder às
necessidades de essas mesmas sociedades reproduzirem o conhecimento. No
entanto, a sociedade que institucionalizou a escola como local privilegiado para a
aquisição de saber manteve sempre uma escola paralela de transmissão da
cultura, fato que subentende não ser a educação exclusivo domínio dos
professores. Tal como salienta Gimeno (1995), em sentido rigoroso, as destrezas
relativas à atividade de educar e de ensinar, bem como toda a cultura que as
rodeia, constituem uma competência distribuída socialmente que não se encontra
limitada a um só grupo profissional. Assim como as idéias a respeito da saúde
não são exclusivas da classe médica, embora o avanço da ciência e a
organização do grupo profissional monopolizem progressivamente esse
conhecimento especializado, as práticas educativas também assentam no sentido
comum de um determinado grupo cultural, do qual os professores fazem parte (p.
Ainda que a educação seja uma atividade social, para responderem às
exigências sociais os professores assumem por vezes posturas de individualismo
profissional, uma vez que a avaliação da sua atividade se faz quase
exclusivamente perante as autoridades escolares. A prática profissional dos
professores depende, assim, de decisões individuais, o que pode parecer
contraditório com o fato de ela se reger por normas coletivas adotadas por outros
professores e por regulamentações institucionais. As idéias de que os professores
trabalham individualmente e de que não possuem tradições de trabalho
cooperativo parecem coerentes com a sua postura essencialmente individual.
No entanto, a noção de que os professores são autônomos na realização
do seu trabalho parece não ser muito adequada à realidade do contexto em que
os professores se movem. A autonomia é relativa e limitada por questões de
natureza política ou histórica. Considere-se, por exemplo e apenas, o modo como
se procede à elaboração dos currículos escolares. Os professores não tomam
parte desse processo burocrático, limitam-se a seguir de perto as orientações
emanadas por órgãos que lhes são hierarquicamente superiores, o que os torna
dependentes nessa relação de poder nada equilibrada.
Neste sentido, Gimeno (1995) afirma que esta dependência dos
profissionais relativamente ao meio socialmente organizado em que desenvolvem
o seu trabalho apresenta conflitos manifestos e latentes nos professores, porque
nem sempre as exigências coincidem com as interpretações pessoais. E é neste
terreno que se detecta o vazio mais preocupante para o desenvolvimento
profissional dos docentes, quando se esquece a necessidade de transformar as
situações de trabalho como condição para mudar a prática de ensino (p. 72).
A atitude dos professores, quando desempenham a sua atividade, pode
apresentar duas características diferentes e divergentes: por um lado, os
professores podem, simplesmente, adaptar as suas condutas às condições
existentes, impostas por entidades que lhes são hierarquicamente superiores; ou,
por outro lado, podem assumir uma atitude crítica em face das orientações
exteriores, adotando estratégias de intervenção nos contextos em que
desenvolvem as suas atividades profissionais. Nesta segunda perspectiva,
sim um profissional que pode utilizar o seu conhecimento e a sua experiência
para se desenvolver em contextos pedagógicos práticos preexistentes” (p. 74).
1.5. Os professores e os projetos curriculares
Sabemos que o termo “currículo” nas escolas é entendido, de modo geral,
como programas de ensino, conteúdos ou matriz curricular. Na realidade existe
uma pluralidade de definições e cada uma pressupõe valores e concepções
implícitas.
A palavra curriculum, de origem latina, significa o curso, a rota, o caminho da vida ou das atividades de uma pessoa ou grupo de pessoas. O currículo
educacional representa a síntese dos conhecimentos e valores que caracterizam
um processo social expresso pelo trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas.
Para Goodson (1996) o currículo é definido como um percurso a ser seguido,
como conteúdo apresentado para estudo.
Os primeiros estudos no campo do currículo, de origem norte-americana,
foram influenciados pelo modelo tecnicista de natureza prescritiva, baseados nas
categorias de controle e eficiência social. Nesse contexto é muito representativa a
obra de Ralph Tyler (1949), em que ele mostra preocupação com o
estabelecimento de objetivos educacionais e com a avaliação. O currículo era
visto como uma atividade neutra, instrumento de racionalização da atividade
educativa e controle do planejamento. O pensamento de Tyler influenciou nos
estudos sobre currículo no Brasil, adotado como fundamento teórico na
organização curricular do ensino na década de 70.
Em função das críticas a esse modelo, buscou-se discutir os aspectos
internos da escola, a relação entre a educação e as desigualdades sociais. Desse
modo, o desvelamento (desmistificar) das implicações do currículo com a
estrutura de poder político e econômico na sociedade inseriu a problemática
Michael Apple, em Ideologia e currículo (1982), colocou em destaque a relação entre dominação econômica e cultural e o currículo escolar. Baseado na
abordagem neomarxista, o autor trabalhou a noção de currículo oculto buscando
demonstrar como as escolas produzem e reproduzem a desigualdade social. A
discussão sociológica do currículo, a crítica ao reducionismo e estruturalismo tem
sido feita pelos autores como Young (1989), Apple (1989) e Silva (1988).
Apple, em sua obra Ideologia e currículo, utiliza a expressão tradição seletiva:1 (apud Apple, 1979:15) “[...] a questão e a seletividade, a forma que, de todo um campo possível de passado e presente, escolhem-se como importantes
[...] significados e práticas, [...] outros são negligenciados e excluídos”.
Efetivamente, como assinala Forquin (1992), “aquilo que as escolas
transmitem da cultura é sempre uma escolha de elementos considerados
socialmente válidos e legítimos”.
Estudos críticos do currículo apontam que a seleção cultural sofre
determinações políticas, econômicas, sociais e culturais. Neste sentido, a seleção
do conhecimento escolar não é um ato desinteressado e neutro, é resultado de
lutas, conflitos e negociações. Assim, entende-se que o currículo é culturalmente
determinado, historicamente situado e não pode ser desvinculado da totalidade do
social.
Os estudos que analisam os efeitos do currículo para além da aquisição de
conhecimentos formais voltam-se para a concepção de currículo oculto. Apontam
que por meio do currículo oculto são transmitidas ideologias, concepções de
mundo pertencentes a determinados grupos hegemônicos na sociedade e que
servem para reproduzir as desigualdades sociais.
A literatura crítica no campo do currículo tem argumentado a favor de uma
teoria que leve em consideração a dimensão prática do currículo. Trata-se de uma
perspectiva que busca compreender o currículo em ação, ou seja, os contextos de
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