ALFREDO ALVARENGA
A
TORRE
NO JARDIM
DAS ILUSÕES
Copyright © 2020 by Alfredo Alvarenga Capa © 2020 by Alfredo Alvarenga
Com a imagem da obra “Oehme” de Ernst Ferdinand
Contato: alfredo.alfredo.alvarenga@hotmail.com
Conto escrito em 2017
A TORRE NO JARDIM DAS
ILUSÕES
Com passos trôpegos, caminhava incerto por entre a densa névoa que envolvia aquele bosque.
Estava perdido, isso era inegável. Embora os primeiros raios de Sol matutinos tentassem, em vão, atravessar a grossa névoa, esta apenas tornava a luz difusa e espectral, e a paisagem leitosa era tão indecifrável quanto as trevas. Por vezes, sentia uma fina e gélida garoa cair. Não era o suficiente para me molhar, mas o bastante para fazer meus ossos tremerem. Eu não conseguia reconhecer nada de familiar em meio à serração pela qual, a esmo, perambulava. Assim, a única coisa que podia eu fazer era seguir sem rumo pela fria manhã de inverno, tentando encontrar uma estrada ou trilha
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que me tirasse daquele lugar ermo e singularmente perturbador.
Não conseguia me recordar como viera parar em tal local. As lembranças da noite anterior eram vagas e remetiam apenas a uma orgia etílica e à devassidão típica da juventude. Um lapso de tempo parece ter apagado diversos detalhes da noite desvairada da qual fui um ardente protagonista.
Minhas roupas esfarrapadas e sujas atestavam para alguma desventura, mas pouco revelava para compor a solução do enigma que pudesse responder onde estava ou como conseguiria encontrar um rumo para casa. Meus passos, ainda ébrios, tropeçavam o tempo todo nas raízes das árvores ao meu redor e as quais, devido à neblina, mal conseguia perceber. Por diversas vezes, vim a cair no chão úmido de terra e machucar meus membros com as quedas sobre o solo irregular.
Passei a infâmia de vergonhosamente gritar por ajuda, em busca de alguma resposta, de algum solidário transeunte que viesse a me guiar... Mas nada, senão o insidioso silêncio sepulcral, veio em meu auxilio. Após alguns minutos de caminhada,
avistei ao longe, por entre as árvores, uma estranha estrutura a se destacar em meio à nevoa. Uma sombra negra a se erguer na paisagem alva.
Indubitavelmente erguida por mãos humanas, um sinal de civilização na mata na qual estava. Não sabia ao certo o que seria aquilo. A pouca visão que tinha dificultava uma análise mais acurada. De meu limitado ponto de vista, a estrutura se assemelhava a uma torre de igreja, embora fosse menor. Um obelisco negro se erguendo em meio à bruma, com o topo pontiagudo apontando para o firmamento nublado e cinza. Talvez se tratasse de uma capela ou templo, e nutri a esperança de que, em uma casa de orações, encontrasse entre os homens de Deus alguma ajuda.
Segui aquela estranha construção. Meu único ponto de referência, um farol a me guiar ante aquele mar cândido de mistérios nos quais eu me afogava.
Demorei mais do que imaginei para atingir meu objetivo. O obelisco não se encontrava tão próximo como havia calculado. Contudo, mantendo-me firme na caminhada, enfim, alcancei-o. Apesar da baixa visibilidade ocasionada pelo dia cinzento e pela
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neblina, que parecia se adensar cada vez mais ao invés de se dissipar como seria o natural, pude enfim discernir aquela estrutura que se erguia augusta entre arbustos no centro de uma ampla caleira que se abria no bosque. E foi só ao me aproximar daquela sinistra construção que pude, com espanto, entender o que ela era e identificar os detalhes de sua arquitetura. Tal torre negra e funesta, que se projetava em direção aos céus, tinha cerca de quatro metros de altura, possuía um formato retangular e havia um grande pináculo piramidal com uma espécie de cruz no seu topo e vários adornos e rococós por toda a sua superfície.
Não se tratava de uma igreja. Algo naquela imagem evocava uma lápide, uma cripta solitária a se erguer solene em uma vastidão alva.
Certa curiosidade latente me impeliu a conferir de perto do que exatamente se tratava tal enigmático monumento, mas, a cada passo em direção à torre, sentia o ar ficando mais denso e opressivo. Era como se uma presença terrível emanasse daquele estranho obelisco. Contudo, insisti em desvendar os segredos daquele lúgubre
mausoléu. Quando já estava prestes a tocar a superfície de rocha negra, um som chamou minha atenção. Eram os primeiros ruídos que ouvia desde que despertara, além de meus próprios passos por aquele bosque maldito. Tentei discernir o barulho que se aproximava de mim vagarosamente, proveniente de algum ponto dentro da densa nevoa.
Aos poucos, fui reconhecendo os contornos daquele rumor. Era o murmúrio de dezenas de vozes solfejando uma ladainha religiosa. Porém, havia algo de sinistro no cântico que remetia minha mente a imagens de cunho demoníaco.
Ocultei-me, temeroso, atrás do mausoléu, receando defrontar-me com as coisas que estavam marchando em minha direção. Permaneci alguns minutos ali, escutando o gradativo aumento no volume das vozes e tentando decifrar o que elas entoavam em seus hinos heréticos. Aos poucos, pude avistar um grupo de silhuetas sombrias a se moverem em meio ao nevoeiro. Pareciam espectros a pairarem sobre a relva, ocultos pela serração.
Aquelas figuras arrepiantes andavam vagarosamente enquanto emitiam suas preces
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blasfemas. Após algum tempo, que, para mim, pareceu ser uma eternidade angustiante, consegui vislumbrar com mais detalhes quem eram meus fugazes companheiros.
Tratava-se de uma bizarra forma de procissão que atravessava aquela clareira desolada e tomada pelo borraceiro1. Dezenas de homens trajados com túnicas que remetiam em escárnio aos trajes de alguma ordem monástica. O tecido era escuro e o capuz ocultava as faces daqueles estranhos enquanto seguiam com sua arrepiante romaria.
Tentei decifrar as palavras em suas orações nefandas, mas os mesmos utilizavam um idioma que me parecia desconhecido e mal soava com os sons típicos articulados pela voz humana, palavras impronunciáveis que percorriam o ar gélido como o zumbido de insetos ou como o conclamar típico de demônios. Quase nada naquela torrente de impropérios vis era remotamente reconhecível para mim. Infelizmente, uma palavra, uma mísera palavra naquela ladainha indizível, era tragicamente familiar aos meus ouvidos.
1 O mesmo que garoa.
Gostaria de nunca ter entendido essa palavra, mesmo que pronunciada em algo apenas similar ao português, por aqueles seres soturnos. Porém, jamais seria incapaz de não reconhecer tal palavra, já que, em meio àquela oração satânica, o meu nome era repetido por diversas vezes. Arrepiei-me ao ouvir, como se aquelas coisas estivessem me chamando, como se quisessem eu as seguisse por aquela paisagem mórbida, por aquele jardim de ilusões. Entretanto, um breve momento de ceticismo se apossou de mim... Uma forma pífia de tentar racionalizar os acontecimentos inexplicáveis à minha volta. Teorizei que talvez aqueles fossem meus amigos, e que estivessem tentando me pregar uma troça.
Munido dessa breve coragem, caminhei com empáfia rumo aos romeiros, e, de supetão, agarrei os braços do primeiro que pude. Já nesse momento, percebia meu erro ao sentir o frio que emanava daquelas vestes negras e daquele braço extremamente magro, porém já era tarde para retroceder, e a curiosidade em ver os rostos daqueles monges fantasmagóricos falou mais alto.
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Ao volver a sinistra figura e remover seu capuz, vislumbrei, com horror, mesmo sob a luz difusa do nevoeiro, a face de uma caveira decrépita e pálida que parecia zombar de mim com seu taciturno sorriso fúnebre de escárnio. Estava em meio a uma procissão de esqueletos, que, de maneira antinatural, animavam-se tomados por uma força sombria, ossos descarnados que se moviam como se ainda dotados de vida. Um ritual funesto e escabroso da morte, uma celebração à corrupção do corpo e da alma.
Aterrorizado, afastei-me dos mortos, e, dessa imagem pavorosa, fugi em prantos. Corri pelo nevoeiro em busca de um refúgio seguro. No desespero, acabei por tropeçar em algo e cair diante do jazigo que se erguia como uma torre de mau agouro. Notei ali uma porta, um esconderijo para tentar despistar aqueles sacerdotes macabros.
Levantei-me e rapidamente me dirigi para a entrada da cripta. Quando já estava prestes a mover a pedra de sua entrada, vi o epitáfio ali gravado. Palavras de maldizer, que mais pareciam amaldiçoar do que relembrar em júbilo a memória do defunto ali
enclausurado. Contudo, o choque maior não estava na poesia maldita ali registrada, mas sim no nome aos quais tais dizeres proscritos eram direcionados... O meu nome.
Dentro do túmulo, vislumbrei apenas a vastidão escura, vazia e nefasta de uma vida de perversões dedicadas às mais pérfidas orgias e aos erros mais sublimes que um tolo poderia vir a se dedicar. Nenhum refúgio, nenhum abrigo ou salvação, nada além da solidão eterna e da condenação de ilusões que eu mesmo semeei.