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Experiência de minas bissexuais: políticas identitárias e processos de marginalização

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Academic year: 2021

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EXPERIÊNCIA DE MINAS BISSEXUAIS: POLÍTICAS IDENTITÁRIAS E PROCESSOS DE

MARGINALIZAÇÃO

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Psicologia, Área de Concentração “Psicologia Social e Cultura”, Linha de Pesquisa “Processos de Subjetivação, gênero e diversidades”.

Orientadora: Profª. Drª. Maria Juracy Filgueiras Toneli

Coorientador: Prof. Dr. João Manuel de Oliveira

Florianópolis 2018

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Jaeger, Melissa Bittencourt

Experiências de minas bissexuais : Políticas identitárias e processos de marginalização / Melissa Bittencourt Jaeger ; orientadora, Maria Juracy Filgueiras Toneli, coorientador, João Manuel de Oliveira, 2018.

131 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Florianópolis, 2018.

Inclui referências.

1. Psicologia. 2. Bissexualidade. 3. Movimento LGBT. 4. Bifobia. 5. Feminismo. I. Filgueiras Toneli, Maria Juracy . II. de Oliveira, João Manuel . III. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. IV. Título.

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Agradeço a todas as mulheres bissexuais que se dispuseram a participar dessa pesquisa, pelas trocas, conversas e discussões que tivemos. A todos os coletivos bissexuais que de alguma forma contribuíram com suas discussões, especialmente o coletivo Bi-sides e o coletivo Primavera Bissexual que me receberam em São Paulo com disponibilidade e atenção.

À minha orientadora, Juracy, que acolheu minha proposta de projeto de pesquisa e esteve disposta a trabalhar com o tema das bissexualidades, mesmo sendo uma problemática tão pouco acolhida e discutida na academia e nos movimentos LGBT. Ao meu coorientador, João, que esteve comigo neste último ano me auxiliando neste difícil trabalho que é a escrita e colaborando muito com suas problematizações. Aos professores Pocahy e Wiliam e à professora Mériti, que estiveram presentes na banca de qualificação do meu projeto de pesquisa e me auxiliaram com suas valiosas contribuições. À professora Kátia, que foi tão compreensiva comigo no momento em que precisei reconsiderar meu ingresso como doutoranda no Programa de Pós-Graduação de Psicologia da UFSC para finalizar minha dissertação de forma mais cuidadosa.

Aos meus pais, Magda e Daniel, que desde cedo me incentivaram nos estudos e investiram em minha educação, possibilitando que hoje eu estivesse aqui. Ao amor deles e de seus companheiros tão queridos, Janes e Dani, que sempre me acolheram tão bem! À minha tia Marilaine que me inspirou como psicóloga e me incentivou a ingressar no curso de mestrado da UFSC. Além de agradecer a ela, também agradeço ao meu tio César e às minhas primas Nicole e Louise pelo acolhimento, pelas conversas, trocas de experiências e infinitas risadas que demos juntos mesmo nos momentos difíceis.

À Inaê, minha companheira, por todo amor, carinho e paciência para lidar com minhas crises de escrita. Agradeço, especialmente, por não ser bifóbica e ter me incentivado a dar continuidade a esse trabalho. À minha gata, Lilith, que com seus ronronares e chamegos me ajudou a aliviar minhas tensões nos momentos mais difíceis.

Às amizades queridas da minha vida que de alguma forma fazem parte do resultado deste trabalho: Anne, Julinha, Mônica, Digo Strass, Digo Dutra, Marina, Artur, Simone, Carol Pereira, Zoe e Bruno.

Às minhas amigas e aos meus amigos da Pós-Graduação em Psicologia: Aline, Ana, Nathalia, Ruthie, Gustavo, Caio, Bru, Felipe, Paula, Mariana, Xu, Helô, Marília, Dani e Jéssica, que de alguma forma

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contribuíram nesse processo. Agradeço especialmente a minha amiga e colega Geni, que além de ter colaborado imensamente com a revisão da análise desta dissertação de maneira sábia e gentil, compartilhou comigo sua doce amizade.

Às/aos professoras/es e funcionárias/os do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da UFSC e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) que me concedeu auxílio financeiro para realização dessa pesquisa.

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Agora eu tenho 19 anos Mas às vezes parece que eu só tenho treis Porque foi só com 16 anos que eu me assumi gay Gay não, sou sapatão Tem gente que me olha e faz essa confusão Hoje em dia eu nem ligo, mas antes eu não era assim Já tive que disfarçar, me fantasiar pra esconder essa pessoa dentro de mim Tenho até foto indo pra festa Salto alto, meia calça, vestido tubinho com as costas abertas Rímel, lápis, sombra, cabelo alisado e com cacho nas pontas Quem me conhece hoje em dia, olha, até dá risada e zomba Mas aquela era a minha armadura, porque ser como eu queria me dava vergonha Contar pra minha mãe, fala baixo, nem sonha Contar pro meu pai, fala baixo, nem sonha Contar pra minha amiga, ih vai que ela estranha Então um dia eu me tranquei no banheiro com a minha vó Lá dentro da minha garganta tinha aquele nó Eu falei que queria ser menino, achava que ia ser melhor Ela falou pra eu não contar pra ninguém, que se eu contasse ia ser pior Depois disso até consegui namorado por essa boca vários pintos já passaram Eu até que gostava, eles adoravam Queria saber se eu já fosse assim se eles teriam se interessado Hoje em dia eu nem ligo, sou do jeito que eu quiser Do jeito que eu falo que eu penso que eu me movo, é meu jeito de ser mulher E vai ter gente falando que eu tô confusa Mas confuso é quem quer me dar beijo, mas não dá porque se assusta Eu beijo mina, bixa, diva, viada, macho e sapatão Eu não tenho lista de pré-requisitos, eu não tô atrás de um padrão E se hétero quiser ficar comigo na balada Não é porque tá bêbado e a visão tá embaçada É porque eu sou uma puta mina gata E de macho eu não tenho nada (Poema declamado durante a 15ª Caminha de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo)

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RESUMO

Esta pesquisa busca problematizar experiências de mulheres bissexuais e analisar práticas e discursos que têm sustentado sua marginalização, inclusive nos espaços LGBTs. Além disso, visa problematizar a implicação das políticas identitárias nesse processo de marginalização. A imersão da pesquisadora no campo se deu a partir da perspectiva ético-política da cartografia. O material de análise foi composto por três entrevistas realizadas com três mulheres jovens bissexuais cisgêneras (Sofia, Emília e Nicole), além da participação da pesquisadora em quatro atividades de ativismos relacionadas a mulheres bissexuais. A organização do material foi inspirada nas estratégias de Análise Temática, sendo que a análise em si foi realizada a partir de autores da filosofia da diferença, das perspectivas queer, do feminismo negro e de teóricas e teóricos que abordam a temática das bissexualidades. Com base nas experiências e nos discursos das interlocutoras foi possível observar que a marginalização das mulheres bissexuais tem acontecido por meio de mecanismos de apagamento, hipersexualização e patologização das bissexualidades. De modo geral, esses mecanismos de marginalização têm sido sustentados pelo monossexismo, pela bifobia e pelo machismo das sociedades ocidentais. Também foi possível analisar a implicação das políticas identitárias no processo de discriminação, controle e vigilância das experiências de mulheres bissexuais. Nota-se em especial uma relação da ideologia lésbica radical no processo de marginalização das experiências de mulheres bissexuais e na reprodução da bifobia. Por vezes, essa marginalização tem feito com que mulheres bissexuais não sejam acolhidas e se sintam silenciadas no “rolê lésbico”. Em função disso, as mesmas costumam omitir sua sexualidade nesses espaços por medo de sofrer bifobia. Observa-se, portanto, que a marginalização das mulheres bissexuais tem acontecido tanto no território das heterossexualidades como no território das lesbianidades. Nesse sentido, por não fazerem parte de nenhum desses territórios, as sexualidades dessas mulheres têm desorganizado o par binário heterossexual/homossexual e aberto espaço para o reconhecimento de outras sexualidades possíveis.

Palavras-chave: Bissexualidade. Movimento LGBT. Bifobia. Monossexismo. Feminismo.

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ABSTRACT

This research aims to problematize the experiences of bisexual women and analyze practices and discourses that have sustained their marginalization, even in LGBT contexts. It also aims to problematize the implication of identity politics in this process of marginalization. The researcher's immersion in the field came from the ethical-political perspective of cartography. The analysis material consisted of three interviews with three young bisexual cisgender women (Sofia, Emília and Nicole), as well as the researcher's participation in four activism activities related to bisexual women. The organization of the material was inspired by the strategies of Thematic Analysis, at the same time as the analysis was performed from authors of the philosophy of difference, queer perspective, black feminism and theorists who approach bisexualities subject. Based on the interlocutors' experiences and discourses, it was possible to observe that the marginalization of bisexual women has occurred through mechanisms of erasure, hypersexualization and pathologization of bisexualities. In general, these mechanisms of marginalization have been sustained by monosexism, biphobia and misogyny of Western societies. It was also possible to analyze the implication of identity politics in the process of discrimination, control and surveillance of bisexual women experiences. It is especially noticeable a relation of the radical lesbian ideology in the marginalization process of the bisexual women experiences and in the reproduction of biphobia. In general, this marginalization makes bisexual women not welcomed in "lesbian spots" and makes themselves feel silenced in those places. In effect, they omit their sexuality for fear of suffering biphobia. It is therefore observed that the marginalization of bisexual women has occurred both in the heterosexuality and lesbianity territories. By not being part of any of these, the sexualities of bisexual women have disorganized the heterosexual/homosexual binary pair and have made space for recognition of other possible sexualities.

Keywords: Bisexuality. LGBT movement. Biphobia. Monosexism. Feminism.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Imagem usada no evento do Facebook da 15ª Caminhada de mulheres lésbicas e bissexuais de São Paulo de 2017...50 Figura 2. Imagem da concentração do "Bonde Bi" na Praça Roosevelt para a 15ª Caminhada de mulheres lésbicas e bissexuais de São Paulo....52 Figura 3. Imagem do trecho inicial da 15ª Caminha de mulheres lésbicas e bissexuais de São Paulo...53 Figura 4. Imagem dos últimos momentos da 15ª Caminha de mulheres lésbicas e bissexuais de São Paulo na Avenida Ipiranga...53 Figura 5. Imagem do encerramento da 15ª Caminhada de mulheres lésbicas e bissexuais de São Paulo ...54 Figura 6. Imagem das pessoas no corredor da estação de metrô da Paulista onde ocorreu a concentração da 21ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo...58 Figura 7. Imagem do momento inicial em que as pessoas se reuniam na Avenida Paulista para 21ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo...59 Figura 8. Imagem da concentração de um dos blocos momentos antes da 21ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo iniciar...59 Figura 9. Imagem do bloco MaraBilhoso (organizado pelo coletivo Primavera Bissexual) na 21ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo...60 Figura 10. Imagem de uma performance de três meninas que ficaram suspensas no ar por um guindaste vestidas com as cores da bandeira bissexual enquanto passavam os blocos da 21ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo na Rua da Consolação... 60 Figura 11. Imagem da parte frontal do bloco MaraBilhoso na 21ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo...61 Figura 12. Imagem publicada no evento do Facebook destinado para Lésbicas Radicais e organizado pelo Coletivo Resistência Anti-lesbofobia...99

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Das interlocutoras da pesquisa...46 Tabela 2 - Trabalhos brasileiros encontrado a partir de busca realizada junto a BVS com o descritor “bissexualidade”...126

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AIDS - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

BDSM - Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo

Bi (s) - Bissexual (is)

BVS - Biblioteca Virtual em Saúde

CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CBB - Coletivo Brasileiro de Bissexuais CFH - Centro de Filosofia e Ciências Humanas CNS - Conselho Nacional de Saúde

Coletivo BIL - Coletivo de bissexuais e lésbicas (Minas Gerais) CRP - Conselho Regional de Psicologia

DF - Distrito Federal

DSM - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DST - Doenças Sexualmente Transmissíveis

FAED - Centro de Ciências Humanas e da Educação GLS - Gays, Lésbicas e Simpatizantes

HIV - Vírus da Imunodeficiência Humana IST - Infecções Sexualmente Transmissíveis

LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans (quando seguida do símbolo “+”, indica a inclusão de outras identidades sexuais e de gênero não contempladas pelas letras da sigla)

LGBTI - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex

LGBTTT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Transgêneros e Travestis

LGBTQ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Queer

LILACS - Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde

MASP - Museu de arte de São Paulo

MEDLINE - Sistema Online de Busca e Análise de Literatura Médica MovBi - Movimento de Bissexuais (João Pessoa – Paraíba)

Núcleo Bis - Núcleo de Bissexuais de Brasília (Distrito Federal) ONG - Organização Não Governamental

PI - Piauí

PPGP - Programa de Pós-Graduação em Psicologia SAJU - Serviço de Assessoria Jurídica Universitária SciELO - Scientific Electronic Library Online SENALE - Seminário Nacional de Lésbicas

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SENALESBI - Seminário Nacional de Lésbicas e Bissexuais SP - São Paulo

SUS - Sistema Único de Saúde

UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 15

1.1. Começando pelo corpo ... 15

1.2. Problema de pesquisa... 20

1.3. Posicionamento teórico... 21

1.4. Organização da dissertação... 22

2. TERRITÓRIO DAS (BIS)SEXUALIDADES... 24

2.1. Processo de territorialização das sexualidades... 24

2.2. Práticas bissexuais ao longo do tempo... 27

2.3. Da etimologia ao ativismo bissexual... 31

2.4. Território das bissexualidades na produção científica brasileira... 33

2.5. Retomando alguns movimentos... 40

3. TRAJETOS DA PESQUISA... 42

3.1. Perspectiva ético-política da cartografia... 42

3.2. Mergulhando no campo... 44

3.2.1. Das interlocutoras... 45

3.2.2. Roda de conversa sobre bissexualidade – Batalha das Mina... 47

3.2.3. Conversa/entrevista com Sofia e Emília... 48

3.2.4. 15ª Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo e Bonde bi... 51

3.2.5. Roda de Conversa sobre Saúde da Mulher Lésbica e Bissexual... 54

3.2.6. Conversa/entrevista com Nicole... 56

3.2.7. 21ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo e Bloco MaraBilhoso... 57

3.3. Estratégias de análise do material... 61

4. MARGINALIZAÇÃO DE MULHERES BISSEXUAIS... 64

4.1. Apagamento das bissexualidades: “o mundo funciona com base na presunção de que pessoas como eu não existem”... 65

4.2. Hipersexualização das bissexualidades: “você é uma hétero safada”... 71

4.3. Patologização das experiências bissexuais: “a meta da terapia era descobrir se ela era hétero ou lésbica”... 80

5. POLÍTICAS IDENTITÁRIAS... 85

5.1. Policiamento de rótulos: “ninguém pode tirar sua carteirinha de bi”... 85

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS... 112 7. REFERÊNCIAS... 117 8. APÊNDICE A ... 126

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1 INTRODUÇÃO

Escrever é enfrentar o caos da linguagem. A escrita é uma região tumultuada, “onde a linguagem é ao mesmo tempo demais e demasiadamente pouca, excessiva ... e pobre” (Barthes, 1994, p. 93). No processo de escrita, sempre há algo não traduzível, não enunciável, algo que escapa. Quando escrevo, faço escolhas num infindável mar de palavras. Existem inúmeros outros dizeres possíveis, não pronunciados, que quem lê (re)inventa a partir das relações que estabelece com o texto e com o mundo (Fonseca, Nascimento, & Maraschin, 2012). Neste sentido, a escrita não é apenas transcrição literal do pensamento ou da fala. Ao escrever, meus pensamentos se transformam e eu mesma me transformo. Segundo Deleuze (1997, p. 11), “escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida.”.

Em minha possibilidade de escrita talvez haja algo de antropofágico (Rolnik, 2011) e rizomático (Deleuze & Guattari, 2011), por tentar incorporar diferentes teorias para criar novos territórios e por buscar conexões, heterogeneidades e multiplicidades. Mas, diferente de Suely Rolnik (2011) que devora, e de Paul B. Preciado (2014) que contrabandeia ideias, eu as degusto, no sentido de experimentá-las com atenção e suavidade. Assim, para compor essa dissertação acerca das experiências de mulheres bissexuais, aos poucos degustei e apreciei ideias de Michel Foucault, Felix Guattari, Gilles Deleuze, Judith Butler, Paul B. Preciado, bell hooks, Rosi Braidotti, Kimberlé Crenshaw, Djamila Ribeiro (na ordem cronológica em que foram surgindo em minha vida), entre outras autoras.

Em alguns parágrafos essas autoras misturam-se de uma maneira que não é possível localizar as ideias de cada uma separadamente. Mesmo porque elas próprias já se entredevoraram-contrabandearam. Como Paul B. Preciado contrabandeou Judith Butler, Gilles Deleuze e Felix Guattari que devoraram Michel Foucault, que por sua vez foi contrabandeado por Djamila Ribeiro, que também devorou bell hooks e Kimberlé Crenshaw. 1.1 Começando pelo corpo

Como bem considerou Adrienne Rich (2002, p.17), é preciso “começar, assim, não por um continente, por um país ou por uma casa, mas pela geografia mais próxima – o corpo. “. Assim, a fim de localizar minha possibilidade de escrita como pesquisadora, meu território, meu corpo e os afetos que me atravessam, começo contextualizando alguns

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acontecimentos que reverberam em mim e nessa dissertação. O que interessa neste relato não são meus sentimentos e o que há de individual neles, mas a singularidade do modo como algumas forças se movem em um determinado contexto histórico. Interessa aqui como esses afetos - que reverberam em mim e nessa dissertação – são atravessados pelo o que não é meu, por aquilo que emana do contexto, das relações de poder, das lutas feministas, dos movimentos LGBT+1 (Rich, 2002; Rolnik, 2011;

Preciado, 2015).

Minha aproximação com os movimentos feministas e LGBT+ se deu mais intensamente em 2014, quando participei como psicóloga voluntária do Grupo G8-Generalizando do SAJU (Serviço de Assessoria Jurídica Universitária), da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em Porto Alegre. O G8 é um grupo que trabalha com Direitos Sexuais e de Gênero, acolhendo mulheres em situação de violência e a população LGBT+. Através do grupo tive a possibilidade de participar de atividades de atendimento interdisciplinar, retificação de registro civil de pessoas trans e travestis, articulação do grupo com movimentos feministas e LGBT+, além de colaborar na organização da Parada Livre e da Marcha das Vadias de Porto Alegre de 2014. Essas experiências foram me afetando de modo intenso e me impulsionaram a estar mais presente nas lutas feministas e LGBT+.

Na época, os movimentos estavam marcadamente divididos entre coletivos que se orientavam por uma discussão transfeminista2 (Solá &

Urko, 2013) e interseccional3 (Crenshaw, 2012), e outros que se diziam

materialista-históricos, os quais não incluíam questões relacionadas às

1 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e +. O símbolo “+” tem sido usado por alguns

coletivos como uma forma de incluir outras identidades possíveis de minorias sexuais e de gênero não contempladas nessas letras.

2 O termo “transfeminismo” tem sido usado para se referir às perspectivas

“feministas” que estão implicadas com as questões trans de modo a incluir as pautas dessas pessoas na luta (Solá & Urko, 2013).

3 A perspectiva da interseccionalidade foi proposta inicialmente pela feminista

negra Kimberlé Crenshaw (2012) com intuito de considerar o entrecruzamento das políticas de classe, raça, etnia, geração, gênero e sexualidade. Além de ser contra a hierarquização das opressões, essa perspectiva busca reconhecer e complexificar as diferenças intragrupais para a construção de estratégias políticas.

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vivências de pessoas trans4 em suas pautas. As militantes destes últimos

coletivos eram chamadas (e muitas vezes se autodenominavam) “radfem” ou feministas radicais5. A discussão estava tão intensa entre essas duas

perspectivas que culminou no surgimento do Bloco Autônomo da Marcha das Vadias. Esse bloco rompeu com a organização “oficial” da marcha de 2014, a qual se recusava a incluir novas pautas no movimento e se posicionava de maneira transfóbica6 (Solá & Urko, 2013). Por essas e

outras tensões, a Marcha das Vadias de 2014 aconteceu com dois trajetos distintos a partir de determinado momento da caminhada.

De fato, naquele momento, os espaços feministas em Porto Alegre estavam bastante tomados de transfobia e misandria7 (Clemente, Botella,

& Antón, 2015).Um exemplo desses espaços foi uma roda de conversa da qual participei em 2015, chamada “Combatendo a Heterossexualidade Compulsória: a importância do ativismo lésbico no rolê”, que aconteceu na Primeira Feira do Livro Feminista e Autônoma (paralelamente à tradicional Feira do Livro de Porto Alegre). Vale mencionar que o termo “heterossexualidade compulsória” foi proposto por Adrienne Rich (2010) em seu ensaio “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica”. Nesse ensaio, a autora analisa o caráter socialmente imposto da heterossexualidade e enfatiza a potência política da existência lésbica como uma forma de resistir a “instituição política que retira o poder” das mulheres - a heterossexualidade compulsória.

Parece-me que de forma a distorcer as ideias de Adrienne Rich, algumas lésbicas presentes na roda de conversa rejeitavam a

4 A palavra “trans” tem sido usada no Brasil como um termo guarda-chuva para

se referir a diversas identidades de gênero que desviam das normas cisgêneras, como as identidades transexual, travesti, andrógino, queer e não-binárie. A expressão “norma cisgênera” ou o termo “cisnorma” tem sido usado para se referir a normalidade que legitima como verdadeiras apenas as pessoas que se identificam com o sexo que lhes foi designado ao nascimento (Bonassi, 2017). Nesse sentido, o termo “cisgênero” é usado para se referir a uma pessoa cuja identidade de gênero está “de acordo” com o sexo que lhe foi atribuído no nascimento (Eisner, 2013). Este termo tem sido usado pela comunidade trans desde os anos 1990, sendo que somente a partir de 2007 começou a aparecer em textos teóricos acadêmicos (Posso & Furcia, 2016).

5 A perspectiva do feminismo lésbico radical será melhor apresentada na seção

Ideologia Lésbica do capítulo 5 dessa dissertação.

6 O termo transfobia tem sido usado para descrever a hostilidade, a violência e a

marginalização social das pessoas trans (Solá & Urko, 2013).

7 O termo misandria tem sido usado para se referir ao ódio ou à aversão aos

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heterossexualidade e idealizavam a lesbianidade como estratégia política. De maneira geral, os discursos que circularam nessa roda iam no sentido de que a lesbianidade era a sexualidade mais “revolucionária”, com maior potência política e subversiva, além de ser considerada a sexualidade mais oprimida e mais invisibilizada do movimento LGBT+. Essa ideia foi justificada pelo argumento de que as lésbicas sofrem dupla opressão, de gênero e de sexualidade.

Além disso, muitas meninas presentes localizaram a opressão das mulheres exclusivamente em homens cisgêneros e algumas disseram que esses não convinham nem mesmo como amigos: “Não tenho amigos homens, e essa é minha escolha”8. No mesmo sentido, havia também

meninas que se autodeclararam misândricas e afirmaram a misandria como estratégia política contra o patriarcado. A misandria tem sido entendida por algumas feministas, geralmente radicais, como uma estratégia das mulheres para se defenderem contra o machismo. Nessa perspectiva, os homens são entendidos como nocivos e o ódio a eles é considerado legítimo, além de ser justificado pela atitude violenta dos mesmos contra às mulheres (Wiki Dicionariafeminista, n.d.).

Partindo desse discurso de idealização da lesbianidade e de aversão aos homens, a discriminação sofrida por mulheres trans e mulheres bissexuais foi colocada em questão. Se apoiando em uma lógica hierárquica de opressões, algumas meninas presentes afirmaram que as mulheres trans eram menos oprimidas que mulheres cis, pois haviam tido o privilégio de nascer com pênis, serem primeiramente socializadas como homens e só depois “decidirem” ser mulheres. Logo, afirmava-se que as mulheres trans deveriam constituir espaços diferentes de discussão.

Nessa mesma perspectiva, a bissexualidade feminina também foi contestada: “Misandria é resistência, lesbianidade é resistência. Bissexualidade é alternativa. Enquanto relação hétero, privilégio. Enquanto relação homoafetiva, resistência”. A partir desse raciocínio, as mulheres bissexuais foram descritas como privilegiadas por se relacionarem com homens e criticadas por não se assumirem como lésbicas: “Eu era bissexual, mas vi que eu estava nessa posição porque era mais fácil. Me dei conta do meu privilégio e hoje sou lésbica, porque sei que assim é possível resistir e lutar contra o patriarcado”.

8 Os trechos que apresento nessa introdução fazem parte de relatos da minha

experiência e me inspiraram na elaboração do projeto de pesquisa dessa dissertação. Diferente dos trechos que utilizo na análise, nesse caso não localizo o sujeito da enunciação.

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Algumas meninas lésbicas também disseram não se relacionar com mulheres bissexuais porque além de “só se aproveitarem da gente [lésbicas], transam com caras, e depois nos transmitem doenças”. Também afirmaram que a bifobia não existia, reduzindo-a à lesbofobia: “Bifobia não existe. Quando você sai na rua de mãos dadas com um homem, você tem esse privilégio. Quando você sai de mãos dadas com uma menina, o que sofre é lesbofobia, não bifobia”.

A bifobia tem sido definida como uma forma de discriminação em relação às bissexualidades, reproduzida tanto por pessoas que se identificam como heterossexuais, como por pessoas que se identificam como gays e lésbicas. Neste sentido, o movimento bissexual tem considerado importante o uso desse termo a fim de reconhecer as especificidades da discriminação bissexual (Lewis, 2012). No decorrer dessa dissertação, serão apresentadas algumas discriminações bifóbicas relacionadas às experiências de mulheres bissexuais, especialmente no capítulo 4 – Marginalização de mulheres bissexuais.

Naquela época em que participei da roda de conversa, fazia um ano que eu e meu ex-companheiro havíamos terminado nosso relacionamento de quatro anos, e eu já me relacionava com minha atual companheira. Apesar disso, não fazia sentido para mim aquelas falas de meninas lésbicas que afirmavam ter descoberto “a verdadeira sexualidade” para lutar contra “a fonte de toda opressão”: o patriarcado. Assim, senti-me interpelada a fazer uma fala tentando questionar algumas questões a partir de minha experiência, mas me senti deslegitimada e não ouvida naquele espaço. As falas com caráter bifóbicos seguiram. Comecei a me sentir tão mal que não consegui permanecer até o final da conversa. Depois de voltar para a casa e tentar elaborar a situação com pessoas amigas, dei-me conta de que aquele espaço havia proporcionado a reificação de discursos bifóbicos e transfóbicos.

Aos poucos, comecei a perceber que mesmo em outros espaços, para além da roda de conversa, sentia que era julgada por gostar de homens, mulheres e pessoas não-binárias, independentemente se eu estava em um relacionamento com homem ou mulher. Diversas vezes escutei de amigas (os), conhecidas (os) e inclusive de minha psicoterapeuta: “Não tem como não ter preferência. Você tem que preferir um [gênero], ou homem ou mulher.”; “Você já se decidiu? Em algum momento você terá que se decidir.”; “Como agora você está com uma menina, então você é lésbica?”.

Eu frequentemente precisava explicar que os relacionamentos que tive com homens não foram “uma mentira”, que eu não havia “me descoberto lésbica” e que eu não estava vivendo, agora, minha

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“verdadeira sexualidade”. Foi a partir dessas novas sensações que experimentei, de silenciamento, desconforto e julgamento, em relação a minha sexualidade, que me motivei a pesquisar acerca das experiências de mulheres bissexuais.

1.2 Problema de pesquisa

Se observarmos os discursos que circularam na roda de conversa “Combatendo a Heterossexualidade Compulsória: a importância do ativismo lésbico no rolê” nota-se que, embora incluídas pela letra “B” na sigla LGBT+, as bissexualidades são pouco acolhidas e, muitas vezes, ignoradas nos próprios movimentos. De fato, as práticas bissexuais têm sido relatadas ao longo do tempo de forma marginalizada, como práticas ilegítimas por não se enquadrarem nas categorias binárias da sexualidade (heterossexual ou homossexual9). Em função disso, as práticas bissexuais

têm sido invisibilizadas, consideradas como ambivalentes e inviáveis tanto por pessoas heterossexuais como por pessoas gays e lésbicas fazendo com que as bissexualidades ocupem uma zona ininteligível tanto no território das heterossexualidades como no território das homossexualidades (Cavalcanti, 2007; Lewis, 2012; Seffner, 2004).

Conforme será abordado no capítulo 2 dessa dissertação, até mesmo nos artigos científicos brasileiros, as bissexualidades têm sido pouco consideradas, questionadas e problematizadas especificamente. De um modo geral, quando mencionadas, aparecem em segundo plano, junto com a discussão das homossexualidades e das lesbianidades ou como parte de uma lista de categorias (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais) (Souza, 1996; Silva, 2007; Vieira, 2009; Nobre, 2012; Ministério da Saúde, 2013). Geralmente, esses estudos estão relacionados a homens ou à masculinidade, sendo raros os que se referem diretamente a mulheres ou à feminilidade. Além disso, quando as bissexualidades são consideradas, muitas vezes são associadas, pelos discursos psicanalíticos, a uma fase imatura a ser superada (Delouya, 2003; Knobel, 1984; Vittar, 2008; Paixão, Decker, Fiorenzano & Ribeiro, 2001; Cucco, 2009) e, pelos discursos da saúde, a vulnerabilidade, fatores de risco e AIDS/HIV (Souza, 1996; Vasconcellos, 1996; Ferreira, & Abreu, 1998; Toro-Alfonso, Varas Díaz; Andújar-Bello; Nieves-Rosa, 2006; Raxach, 2007).

Considerando minhas experiências e as questões apresentadas até aqui, para realizar essa pesquisa, orientei-me por alguns questionamentos:

9 Quando utilizo o termo homossexual estou me referindo a pessoas gays e

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Como se dão as experiências de mulheres bissexuais? Quais práticas e discursos têm sustentado sua marginalização, inclusive no movimento LGBT+? Quais as relações das políticas identitárias com a marginalização das bissexualidades? A partir destas interrogações, busquei problematizar10 as experiências de mulheres bissexuais e suas

participações no ativismo LGBT+ e feminista. É importante frisar que essa pesquisa aborda mais especificamente as experiências de mulheres bissexuais cisgêneras, embora não negligencie questões relacionadas às transexualidades.

1.3 Posicionamento teórico

Para problematizar as experiências de mulheres bissexuais e suas participações no ativismo LGBT+ e feminista, tomei por base as noções de jogos de verdade e relações de poder de Michel Foucault (1977, 1988, 2004, 2012, 2014a, 2014b, 2014c). A partir dessas noções analisei práticas e discursos que têm regulado e sustentado a marginalização das bissexualidades nas sociedades ocidentais e produzido a ideia do que seria uma “verdadeira sexualidade”, inclusive nos movimentos LGBT+ e espaços feministas.

Também me inspirei na noção de nomadismo, proposta por Gilles Deleuze e Felix Guattari (2012b) no “tratado de nomadologia”, para problematizar as relações das políticas identitárias (que se baseiam em identidades fixas, homogêneas e verdadeiras) com a marginalização das experiências de mulheres bissexuais. Assim, considerei as contribuições de Rosi Braidotti (2002) ao articular a noção de sujeito nômade para pensar a subjetividade como um processo dinâmico e em constante transformação. Levei em conta ainda as considerações que Felix Guattari (1985) fez acerca dos microfascismos, para analisar as fantasias de hegemonia, de grandeza e de colonização do outro, presentes nas políticas identitárias tradicionais.

Parti também das perspectivas queer (Butler, 2003; Preciado, 2014) e do feminismo negro (Crenshaw, 2012; bell hooks, 2015; Ribeiro, 2017) para problematizar os limites das políticas identitárias que foram apontados pelas mulheres bissexuais. Lancei mão dessas autoras especialmente para questionar o silenciamento das diferenças e a

10 Para Foucault (2012), problematizar é um modo de analisar criticamente as

diferentes respostas que são construídas ao longo do tempo para um determinado problema. Nessa perspectiva, considera-se que não é possível responder totalmente uma pergunta, mas sim pensar em respostas provisórias.

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reprodução da lógica competitiva e segregacionista presentes também nos movimentos feministas e LGBT+. Por fim, para analisar questões mais específicas relacionadas à marginalização da experiência das mulheres bissexuais, investi em livros, dissertações, teses e artigos que problematizam especificamente as bissexualidades. Como será abordado adiante, a maioria desses estudos não faz parte da produção científica brasileira.

É importante dizer que neste trabalho optei por usar o termo bissexual como um termo “guarda-chuva” para me referir a pessoas que sentem atração por mais de um gênero, incluindo outras identidades não monossexuais como pansexual, queer e fluída (Flanders, 2017; Eisner, 2013). Fiz essa escolha por essa expressão ser a mais usada no Brasil e no meu campo de pesquisa para se referir a pessoas que se sentem atraídas por mais de um gênero. A proposta de usar esse termo é de fazer repercutir uma temática que é ainda muito invisibilizada e pouco entendida.

Embora eu considere a existência das outras identidades mencionadas acima, devo reconhecer que essa dissertação não é sobre todas as não monossexualidades. Isso não significa desconsiderá-las ou excluí-las, mas sim levar em conta suas diferenças. Algumas pessoas, por exemplo, que se identificam como pansexuais, não se sentem contempladas na/pela bissexualidade. Apesar disso, espero que essa dissertação sirva como um recurso de combate à discriminação não apenas para as pessoas bissexuais, mas também para outras identidades não-monossexuais.

1.4 Organização da dissertação

Essa dissertação está organizada em seis capítulos, sendo a presente introdução o primeiro. No capítulo 2 – Território das (bis)sexualidades –, contextualizo o processo de constituição do território das sexualidades nas sociedades ocidentais e discuto acerca das práticas ditas bissexuais em outras épocas e culturas (Grécia Antiga, Aristocracia Japonesa Feudal, Roma Antiga e alguns povos indígenas). Em seguida, apresento os diferentes usos da palavra “bissexual” ao longo do tempo e a reivindicação deste termo nos anos 1970 como uma categoria identitária. Além disso, discorro a respeito da emergência do movimento bissexual brasileiro nos anos 2000. Por fim, produzo uma análise do lugar marginalizado que as bissexualidades têm ocupado inclusive na produção científica brasileira.

No capítulo 3 – Trajetos da pesquisa –, descrevo como esta pesquisa foi realizada a partir da perspectiva ético-política da cartografia.

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Em seguida, discorro sobre minha imersão no campo e apresento as entrevistas que realizei com três mulheres bissexuais cisgêneras: Sofia, Emília e Nicole. Além disso, faço um relato das atividades das quais participei relacionadas às bissexualidades (Roda de Conversa sobre Bissexualidade em Florianópolis, 15ª Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo e 21ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo). Por fim, descrevo as interlocutoras da pesquisa e apresento as estratégias que utilizei para analisar o material de campo.

No capítulo 4 – Marginalização de mulheres bissexuais –, analiso as diversas experiências de discriminação relatadas pelas interlocutoras ao longo das atividades de campo vindas tanto de homens heterossexuais como de mulheres lésbicas, sendo que essas experiências estão organizadas em três subtemas. No primeiro subtema - apagamento das bissexualidades - analiso as situações em que as bissexualidades são consideradas como inexistentes e são apagadas pelo binário heterossexual/homossexual. No segundo subtema - hipersexualização das bissexualidades - problematizo algumas formas de erotização das mulheres bissexuais, como a frequente associação das mesmas à não monogamia, infidelidade, promiscuidade e transmissão de doença. Por fim, no terceiro subtema - patologização das experiências bissexuais - analiso a implicação de profissionais de psicologia na reprodução da bifobia.

No capítulo 5, analiso a implicação das políticas identitárias no processo de controle e marginalização das experiências de mulheres bissexuais em dois subtemas. No primeiro subtema - policiamento de rótulos -, problematizo os mecanismos de controle e vigilância em relação às sexualidades presentes nos movimentos sociais. Já no segundo subtema - ideologia lésbica -, abordo a implicação da idealização da identidade lésbica no processo de marginalização das bissexualidades e reprodução da bifobia. Assim, questiono as políticas identitárias que se baseiam em uma noção de identidade fixa, original, homogênea e verdadeira.

Por fim, no capítulo 6, elaboro as considerações finais dessa dissertação.

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2 TERRITÓRIO DAS (BIS)SEXUALIDADES

Neste capítulo, a partir da noção de território de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2012b), problematizo o lugar mais ou menos estável que se produziu ao longo do tempo acerca das sexualidades e, mais especificamente, das bissexualidades. Essa noção nos permite pensar que não existe e nunca existiu uma verdade única sobre as sexualidades e bissexualidades, mas sim movimentos que foram constituindo esses territórios. Além disso, nos possibilita considerar a impermanência desses territórios e os movimentos que constantemente produzem fissuras e desestabilizam sua ordem.

Assim, antes de descrever com detalhes como esta pesquisa foi realizada, neste capítulo, contextualizo alguns acontecimentos históricos no território das sexualidades. Não no sentido linear, evolucionista e teleológico; mas com o propósito de analisar jogos de força, rupturas, descontinuidades e desvios de trajeto (Fonseca, Nascimento, & Maraschin, 2012). Em seguida, apresento práticas que poderiam ser compreendidas como bissexuais em outras épocas e culturas, como na Grécia Antiga, na Aristocracia Japonesa Feudal, na Roma Antiga e em alguns povos indígenas. Além disso, discuto os diferentes usos da palavra bissexual ao longo do tempo, até a reivindicação, nos anos 1970, deste termo como uma categoria identitária. A partir disso, discorro a respeito do ativismo bissexual nos Estados Unidos da América nos anos 1970 e da emergência do movimento bissexual brasileiro nos anos 2000. Por fim, produzo uma análise do lugar marginalizado que as bissexualidades têm ocupado na produção científica brasileira.

2.1 Processo de territorialização das sexualidades

Para problematizar o processo de territorialização das sexualidades, tomo por base o livro História da Sexualidade I: a vontade

de saber (1988), no qual Michel Foucault analisou como os discursos e

as relações de poder no ocidente constituíram o território das sexualidades.

Segundo Foucault (1988), a Igreja Católica teve importante papel na análise e na regulação das práticas sexuais. Isso se deu, principalmente, a partir do século XVII, quando a pastoral cristã, em resposta às Reformas Religiosas, investiu na prática da confissão nos países católicos. O sacramento da confissão foi uma maneira de controlar as práticas sexuais dos sujeitos e de prescrever regras para que cada um fizesse seu próprio julgamento. Desse modo, por meio da confissão, o cristianismo provocou

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mudanças expressivas na maneira como os sujeitos viviam sua sexualidade, reforçando um modelo baseado na monogamia, na procriação e no casamento (Foucault, 2012).

A partir do século XVIII, as práticas sexuais dos sujeitos passaram a ser reguladas também desde um discurso racional dos Estados. Com o surgimento dos aglomerados urbanos, considerados como um problema econômico e político, os governos começaram a analisar e a controlar quantitativamente a população por meio de estatísticas de natalidade, morbidade, fecundidade e doença. Nesse contexto, a conduta sexual da população foi tomada como uma importante categoria de análise para controlar os problemas decorrentes do aumento demográfico (Foucault, 1988).

Foucault (1988) chamou de biopoder essa nova forma de poder direcionada para gerir a vida dos sujeitos. O biopoder se desenvolveu, por um lado, por meio das disciplinas do corpo (no intuito de produzir corpos úteis e dóceis) e, por outro, por meio da biopolítica da população (uma tentativa dos governos de controlar os fenômenos biológicos e sociológicos da população). Para Foucault, o controle dos nascimentos, a histerização do corpo da mulher, a sexualização da infância e a psiquiatrização das “perversões” foram políticas do sexo que se desenvolveram a partir do século XVIII para disciplinar os indivíduos e regular a população.

Neste mesmo século, a ciência começou a ver a epistemologia sexual11 a partir de um sistema de oposições, e não mais de semelhanças

e graus de desenvolvimento. Assim, criou-se uma estética da diferença sexual, em que a mulher não era mais entendida como uma variação inferior e imperfeita do homem, mas como um outro sexo, totalmente diferente, com formas e funções próprias. Desde então, passou-se a marcar as diferenças biológicas entre homem e mulher, produzindo-se dois sexos opostos (dimorfismo sexual): o masculino e o feminino. Inclusive, linguisticamente instituiu-se nomes diferentes para dois tipos distintos de órgãos que não eram diferenciados desta forma até então: o pênis e a vagina (Laqueur, 2001).

Posteriormente, a partir do século XIX, foi constituído um novo campo do conhecimento que buscou analisar e classificar cientificamente as práticas sexuais. Foucault (1988) chamou de Ciência Sexual o conjunto de discursos científicos e institucionais que buscou produzir uma verdade sobre o sexo. A partir desse novo saber, as práticas sexuais passaram a ser

11 A epistemologia sexual se refere aos métodos e as formas de produzir

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pensadas em termos médicos e classificadas como normais e patológicas. Nesse contexto, a lógica confessional da Igreja Católica, como mecanismo de produção de verdade, foi atualizada. O sujeito “desviante” (até então “pecador”) devia a partir de agora “confessar” sua perversão sexual para um profissional da ciência capaz de analisar, classificar e tratar sua sexualidade.

Antes desse processo de patologização das sexualidades, a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo era nomeada como um ato de sodomia, que se referia a qualquer prática sexual sem fins de procriação (sexo oral, sexo anal, sexo com contracepção). Nesse período a sodomia era considerada um pecado frente a Deus e um crime contra o Estado (Pretes & Vianna, 2007). Somente mais tarde, com o advento da Ciência

Sexual (Foucault, 1988), esse ato passou a ser patologizado e classificado

em termos médicos.

Em 1869, o médico austro-húngaro Karoly Maria Benkert criou a categoria “homossexual”, que passou a ser usada para marcar aqueles sujeitos que se relacionavam sexualmente com pessoas do mesmo sexo (Lewis, 2012). Em 1886, o psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing, classificou as sexualidades como normais e perversas em sua enciclopédia intitulada “Psicopatia do sexo”, que se tornou uma referência para médicos e juízes. Neste contexto, a masturbação foi patologizada e o ânus, a boca e a mão passaram a ser controlados pelas políticas de antimasturbação e antihomossexualidade do século XIX (Preciado, 2015). Em 1897, Havelock Ellis usou o termo “inversão sexual” para referir-se à feminilidade de alguns homens (Vieira, 2009).

A partir das reflexões desse autor, Freud (1980) teorizou sobre as “aberrações sexuais” e nomeou de “invertidas” aquelas pessoas cujo “objeto sexual” era do mesmo sexo. Denominar certar pessoas como “invertidas”, significava dizer que existiam pessoas cujo desejo não era “invertido”12. Neste sentido, criou-se um novo discurso acerca da

sexualidade, no qual a homossexualidade era vista como anormal e enigmática e a heterossexualidade como normal e aceitável. Ou seja, nesse processo de medicalização das práticas sexuais, a homossexualidade, que antes era entendida como um pecado, passou a ser vista como um desvio psíquico e/ou biológico em oposição à “verdadeira” sexualidade: a heterossexualidade.

Segundo Foucault (1988, p.112), o aparecimento das “espécies e subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia e

12 Para uma análise mais aprofundada acerca da “inversão sexual” e da

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‘hermafroditismo psíquico’” no século XIX permitiu, por um lado, um controle das “perversões”, mas, por outro, possibilitou a constituição do que ele chamou de “discurso de reação”. Isto é, no século XX as pessoas que foram classificadas como homossexuais começaram a reivindicar sua legitimidade e a se auto identificar com as próprias categorias médicas que as desqualificavam. E por meio de um longo percurso de ativismo lésbico e gay, em 1973, a homossexualidade foi retirada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).

Nessa mesma época, a bissexualidade surgiu como um novo termo para se referir à sexualidade dos sujeitos que se relacionavam tanto com homens como com mulheres e não se identificavam nem com a heterossexualidade, nem com a homossexualidade (Lewis, 2012). Embora essa terceira categoria da sexualidade tenha surgido somente na década de 1970, será possível observar a seguir que as práticas ditas bissexuais já haviam sido relatadas em outros momentos da história. 2.2 Práticas bissexuais ao longo do tempo

Segundo Elizabeth Sara Lewis (2012), as práticas que hoje chamamos de bissexuais foram relatadas em outras épocas e em outras culturas, como na antiguidade grega, japonesa e romana e em rituais de certos povos indígenas. Embora nessa seção eu empregue o termo “práticas bissexuais” para me referir às pessoas que se relacionavam tanto com homens como com mulheres, como foi mencionado na seção anterior, a classificação da sexualidade humana nos termos da heterossexualidade, da homossexualidade e da bissexualidade é uma invenção do século XIX.

Na mitologia grega e romana, o que hoje chamamos de bissexualidade fazia parte da sexualidade das deusas e dos deuses. Além disso, na Grécia Antiga era comum um homem casado com uma mulher ter relação sexual e afetiva com um adolescente ou jovem adulto. Considerava-se que o amor entre homens ajudava a aumentar as qualidades do jovem, tornando-o um cidadão respeitável e sábio. Nessa relação, o homem mais velho proporcionava uma formação sexual e filosófica ao rapaz mais jovem. Além disso, a ligação entre homens fazia parte de uma estratégia militar, pois pensava-se que unidos afetivamente eles se protegeriam e não abandonariam a unidade em momentos difíceis (Lewis, 2012). Neste sentindo, o relacionamento entre dois homens era admitido socialmente e tinha o suporte de instituições pedagógicas e militares (Foucault, 1984).

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Essa “bissexualidade grega” foi problematizada por Michel Foucault (1984) em seu livro História da Sexualidade II: o uso dos

prazeres, sendo esse um dos poucos momentos no qual o autor aborda a

temática da bissexualidade. No capítulo Erótica, Foucault afirma que, na antiguidade grega, amar alguém do próprio sexo ou alguém do sexo oposto não era entendido como escolhas opostas ou excludentes. Se relacionar com mulheres e rapazes era compreendido como “inclinações [...] igualmente verossímeis que [...] podiam coexistir perfeitamente num mesmo indivíduo” (Foucault, 1984, p. 168). Neste mesmo capítulo, Foucault lança uma importante discussão ao questionar se é possível usar o termo “bissexualidade” para falar sobre a sexualidade grega:

Bissexualidade dos gregos? Se quisermos dizer com isso que um grego podia, simultânea ou alternadamente, amar um rapaz ou uma moça, que um homem casado podia ter seus paidika, que era corrente, após as inclinações "para rapazes" na juventude, voltar-se de preferência para as mulheres, então, pode-se muito bem dizer que eles eram "bissexuais". Mas se quisermos prestar atenção à maneira pela qual eles refletiam sobre essa dupla prática, convém observar que eles não reconheciam nela duas espécies de "desejos", "duas pulsões", diferentes ou concorrentes, compartilhando o coração dos homens ou seus apetites. Podemos falar de sua "bissexualidade" ao pensarmos na livre escolha que eles se davam

entre os dois sexos, mas essa possibilidade não era referida por eles a uma estrutura dupla, ambivalente e 'bissexual" do desejo. A seus

olhos, o que fazia com que se pudesse desejar um homem ou uma mulher era unicamente o apetite que a natureza tinha implantado no coração do homem para aqueles que são "belos", qualquer que seja o seu sexo (Foucault, 1984, p. 168, grifos meus).

Essa maneira distinta e mais fluida de experimentar a sexualidade na Grécia Antiga nos faz questionar a fixidez das categorias modernas que definem as práticas sexuais. Além disso, nos permite problematizar os binarismos que constituem a sexualidade no ocidente, incluindo a noção moderna de definir a sexualidade com base no sexo/gênero da pessoa desejada. Como mencionado na citação anterior, um grego podia

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amar ao mesmo tempo ou em momentos diferentes da vida um homem e/ou uma mulher, sem que isso fosse tratado como formas opostas de desejo ou como dois gostos distintos presentes num mesmo sujeito. Ou seja, a “homossexualidade” não era vista como uma sexualidade oposta à “heterossexualidade”. E a “bissexualidade” não era entendida como uma ambivalência. Para os gregos, não era o sexo da pessoa amada que constituía o desejo, mas sim sua beleza. Deste modo, preferir homens e/ou mulheres era pensado como maneiras diferentes de obter prazer, que convinham melhor a certos sujeitos ou a certos momentos da existência. Inclusive, na sociedade grega não existiam categorias classificatórias para as diferentes formas de amar e sentir prazer, não havendo distinção entre heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade.

No entanto, é preciso considerar que quando Foucault discutiu a “bissexualidade dos gregos” em História da Sexualidade II: o uso dos

prazeres (1984), ele estava se referindo efetivamente aos homens e não

às mulheres. Inclusive, ao longo de seu livro ele pouco abordou a sexualidade da mulher grega. Talvez isso tenha ocorrido devido à escassez de registros acerca dessa temática, visto que na Grécia Antiga a mulher não era considerada um sujeito político, social e intelectual. Não apenas em relação a Grécia Antiga, mas de modo geral, na historiografia tradicional a imagem da mulher esteve atrelada a questões reprodutivas, maternas e domésticas (Da Mata, 2009). Apesar disso, encontrei um estudo chamado “As práticas ´homossexuais femininas´ na antiguidade grega” de Giselle Moreira da Mata (2009) que analisa indícios de práticas sexuais entre mulheres presentes nas obras da poetisa Safo da ilha grega de Lesbos.

Diferente dos padrões da época, as aristocratas da ilha de Lesbos tinham intelectualidade avançada e podiam ser educadas em escolas exclusivas para meninas. Assim como muitos homens gregos, as mulheres dessa ilha se envolviam em relações amorosas no contexto educacional. Dentre as aristocratas da ilha, Safo se destacou, sendo considerada uma das mulheres mais importantes da antiguidade grega e responsável por impulsionar a formação intelectual de muitas mulheres. Ela foi a primeira mulher com registro de poesias significativas para a cultura ocidental e inclusive teve moedas marcadas com seu rosto em circulação. Apesar de ter sido casada com um homem e de ter tido uma filha, Safo fez diversos cantos de admiração e amor destinados a mulheres e homens (da Mata, 2009).

De modo semelhante à Grécia Antiga, na aristocracia japonesa feudal era comum que um samurai adulto, casado com uma mulher, se envolvesse com um jovem para ensinar o código moral dos samurais e

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iniciá-lo sexualmente. Tais relações eram consideradas importantes para manter o equilíbrio entre o yin (elemento feminino) e o yang (elemento masculino) do sujeito. Nesse caso, um samurai que se relacionasse apenas com pessoas de um dos sexos estaria em desequilíbrio e, assim, não seria considerado um bom guerreiro (Lewis, 2012).

Na Roma Antiga, o homem também podia ter relações sexuais com ambos os sexos. No entanto, a penetração deveria ser do homem na mulher, do mestre no escravo e do homem romano no homem estrangeiro. De acordo com Elizabeth Sara Lewis (2012), as práticas que hoje chamamos de bissexuais faziam parte da antiga sociedade romana, porém o homem romano livre deveria ser sempre o penetrador nas relações sexuais, já que a passividade era desqualificada e associada a mulheres, escravos e estrangeiros. Nesse contexto, algumas mulheres também mantinham relação sexual com ambos os sexos, no entanto essa prática era extremamente malvista, pois desafiava a hierarquia patriarcal romana, na qual o homem deveria ser viril e dominador e a mulher passiva e dominada (Possamai, 2010). No trecho a seguir, pode-se observar uma crítica de Marco Valério Marcial13 a uma mulher que mantinha relações

sexuais com ambos os sexos:

A tríbade Filenis enraba os garotinhos e, mais libidinosa que um marido no seu ardor lúbrico, num só dia ela fode onze moças. [...] Embora faça tudo com libidinagem, não chupa um caralho, ato que ela julga ser pouco viril, mas devora com frenesi as bocetas das moças (Marcial, Epigramas, VII, 67, citado por Possamai, 2010).

A prática bissexual também era comum em rituais de alguns povos indígenas e tribos isoladas. Em várias tribos na África e na Oceania, como os Kivaï da África Ocidental e os Sambia e os Baruya da Nova Guiné, os jovens recebiam por via oral ou anal o esperma de um homem adulto para obter as virtudes da masculinidade. Nas tribos camaronesas Beti e Bassa, as mulheres casadas com homens dançavam tocando seus órgãos genitais para aumentar a fertilidade da terra. Até o início do século XX, soldados do Oásis de Siuá, no Egito, se relacionavam com outros soldados como uma prática de formação filosófica e estratégia militar de maneira similar

13 Marco Valério Marcial viveu em Roma durante o Alto Império e se tornou

famoso em 80, quando publicou os epigramas de inauguração do anfiteatro Flávio (Coliseu). Nos seus escritos ele criticou pessoas que não viviam de acordo com as normas da época (Possamai, 2010).

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à Grécia e ao Japão Antigo. Além disso, diversos povos indígenas, da Ásia às Américas, valorizavam que os xamãs tivessem relacionamentos com homens e mulheres como uma forma de entender melhor os membros da tribo (Lewis, 2012).

Como foi possível acompanhar nessa seção, tanto na antiguidade grega, japonesa e romana, como em alguns povos indígenas e tribos isoladas, as práticas sexuais não se davam exclusivamente entre pessoas do sexo oposto. Muitas pessoas se relacionavam com homens e mulheres simultaneamente ou alternadamente. No entanto, como já mencionado anteriormente, não se usava o termo bissexualidade para se referir a essas práticas, sendo este uso adotado somente na década de 1970.

2.3 Da etimologia ao ativismo bissexual

Embora essas práticas chamadas de bissexuais sejam relatadas há muito tempo, a bissexualidade como uma classificação da sexualidade e uma categoria identitária é uma invenção mais recente. Segundo April Callis (2009), o termo “bissexualidade” foi usado para descrever uma prática ou desejo sexual somente no início do século XX. Antes disso, esse termo possuía outros significados.

Desde o século XVII até o início do século XX, a expressão “bissexual” foi usada para se referir a sujeitos com atributos biológicos ou anatômicos considerados como femininos e masculinos (semelhante a concepção atual de “intersexual”14). Esse uso era comum no campo da

medicina, do direito e da teologia para se referir a um terceiro sexo. No que se refere ao direito, por exemplo, a pessoa “bissexual” foi sujeitada a uma série de restrições jurídicas, diferentes dos direitos das pessoas dos outros “dois sexos” (Lewis, 2012).

Já no final do século XIX, o termo “bissexual” começou a ser usado por sexólogos para se referir a uma mistura de uma condição anatômica e um estado psicológico. As pessoas bissexuais eram aquelas que expressavam características psicologica e anatomicamente masculinas e femininas (Callis, 2009). Richard von Kraff-Ebing chamou de “hermafroditismo psicossexual” essa combinação psicológica de masculinidade e feminilidade (Lewis, 2012). Posteriormente, essa noção foi popularizada por Freud (1980), que se referiu a um “hermafroditismo

14 Um "estado intersexual" se refere a um corpo que possui uma genitália que não

é entendida nem como feminina, nem como masculina. Na linguagem biomédica, denomina-se "genitália ambígua" ou, mais atualmente, "genitália incompletamente formada" (Machado, 2005).

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psíquico” na sua obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Nessa mesma obra, Freud explorou a noção de “sexualidade perverso-polimorfa” para se referir ao momento inicial da vida humana em que, segundo ele, a pulsão sexual do sujeito não possuiria objeto fixo e até mesmo independeria desse objeto em função de suas possibilidades autoeróticas (Oliveira, 2016). Somente no início do século XX que cientistas passaram a usar o termo “bissexual” para se referir a pessoas que sentem atração sexual por homens e mulheres. No entanto, a bissexualidade ainda não era considerada uma categoria independente ou uma sexualidade, mas sim um estágio do desenvolvimento (Callis, 2009).

O sexólogo Havelock Ellis, por exemplo, acreditava que os sujeitos iniciavam a vida como bissexuais, com características heterossexuais e homossexuais, mas com o tempo sentiriam mais atração por um sexo. Para Freud, de modo semelhante, os sujeitos teriam uma “predisposição originariamente bissexual”, mas com o amadurecimento se tornariam heterossexuais ou homossexuais. Ambos achavam que a bissexualidade trazia incerteza e dúvida para os estudos da sexualidade (Callis, 2009). Assim, por muito tempo, as práticas chamadas bissexuais não foram classificadas como uma sexualidade em si, mas nomeadas alternadamente nos termos da heterossexualidade e da homossexualidade. Deste modo, a bissexualidade não foi considerada como uma categoria sexual para o discurso científico, mas entendida como um estágio, uma posição intermediária ou uma pré-sexualidade. Pode-se pensar que, de certa forma, essa perspectiva segue imbricada nos discursos contemporâneos que negam a existência das bissexualidades e insistem em classificar os sujeitos como heterossexuais ou homossexuais (Callis, 2009).

Conforme mencionado na seção anterior, os sujeitos que foram identificados como homossexuais usaram das categorias e conceitos da medicina para se articularem como movimento político (Foucault, 1988). Já no caso da bissexualidade, por não haver essas categorias e conceitos, a articulação do movimento bissexual aconteceu de modo mais lento e cresceu a partir da insatisfação com o movimento gay e lésbico (Callis, 2009).

Segundo Elisabeth Sara Lewis (2012), os sujeitos começaram a se auto identificar como bissexuais no início dos anos 1970. Nessa época, vários coletivos de ativismo político bissexual foram criados nos Estados Unidos da América, como o Bisexual Forum em Nova York e o Bisexual

Center em São Francisco. Tais coletivos tinham como objetivo criar

espaços de sociabilidade para pessoas que se identificavam como bissexuais e lutar pelo seu reconhecimento dentro da comunidade gay e

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lésbica, já que elas se sentiam excluídas do movimento. Assim, no início dos anos 1980, foi reivindicado que o termo bissexual fosse incluído nos nomes de organizações, conferências e paradas (Callis, 2009). Com o aumento da visibilidade do rótulo bissexual e dos grupos de ativismo bissexual, muitas mulheres que antes se identificavam como lésbicas feministas começaram a se identificar como ativistas bissexuais (Lewis, 2012).

No Brasil, a emergência de coletivos que problematizam a questão das bissexualidades se deu somente a partir dos anos 2000. De acordo com Regina Fachini (2004), quando surgiram os primeiros coletivos de ativismo homossexual brasileiro, no final dos anos 1970, fazer sexo com homens e mulheres era entendido como uma prática “libertadora”. No entanto, quem se identificava como bissexual era visto como uma pessoa enrustida, “dentro do armário” ou “em cima do muro”. O que era considerado revolucionário e o que deveria ser assumido era a homossexualidade. A partir dos anos 1980, com o surgimento da AIDS – a chamada “peste gay” – fazer sexo com homens e mulheres deixou de ser algo “libertador” e passou a ser entendido como uma prática promíscua. Nesse momento, começou-se a falar da “ponte bissexual do HIV” e, assim, a prática bissexual passou a ser entendida como uma prática que contamina. Por um lado, pode-se pensar que essa noção de “ponte bissexual” demonstra um pensamento homofóbico, pois considera que o “homossexual sujo” contamina o “universo heterossexual puro”. Por outro lado, retrata a bifobia de muitas lésbicas que consideram a mulher bissexual “suja” ou como um “vetor de doenças” por se relacionar sexualmente com homens cisgêneros.

Apesar de já termos entrado no século XXI e da AIDS ter deixado de ser chamada de “peste gay”, o movimento LGBT brasileiro ainda não se livrou das “brincadeiras maldosas” que insistem em associar bissexualidade a enrustimento, promiscuidade, contaminação e traição. No intuito de problematizar essas questões, no início dos anos 2000, pessoas que se auto identificam como bissexuais começaram a se organizar politicamente e a exigir reconhecimento no movimento brasileiro. Desde então, vários coletivos de ativismo bissexual vêm sendo criados, como o Espaço B da Associação da Parada GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros)15 de São Paulo em 2004, o Coletivo

Brasileiro de Bissexuais (CBB) e Núcleo Bis (Núcleo de Bissexuais de

15 Em 2004 o movimento social de pessoas dissidentes das normas de gênero e de

sexualidade empregava a letra G na frente da sigla. Somente mais tarde que a sigla mudou de GLTB para LGBT.

(34)

Brasília – DF) em 2005, o coletivo Bi-sides em 2010, o Coletivo BIL (Coletivo de bissexuais e lésbicas) de Minas Gerais em 2013, o MovBi (Movimento de Bissexuais) de João Pessoa em 2013 e o coletivo Primavera Bissexual de São Paulo em 2016. Atualmente, apenas o Bi-sides, o Coletivo BIL, o MovBi e o Primavera Bissexual seguem suas atividades, sendo que o MovBi se tornou a primeira ONG bissexual brasileira (Bi-sides, 2017).

De modo geral, esses coletivos têm denunciado as discriminações relacionadas às bissexualidades e exigido o reconhecimento do termo bifobia para se referir a discriminações específicas dirigidas a pessoas que se auto identificam como bissexuais. Além disso, têm lutado contra o apagamento e a exclusão das bissexualidades no contexto heterossexual e nos espaços do movimento LGBT. Para isso, têm proposto debates sobre o tema e buscado que suas pautas sejam incluídas em encontros, seminários e espaços de representação política para pessoas LGBT.

Nas seções do capítulo 2 apresentadas até aqui, foi possível acompanhar alguns movimentos históricos que parecem constituir o território das bissexualidades, como a presença das chamadas práticas bissexuais em outras épocas e culturas, os diferentes usos da palavra bissexual, o não reconhecimento da bissexualidade como uma sexualidade pelo discurso médico no século XX, a reivindicação da bissexualidade como uma categoria identitária e, consequentemente, a emergência do ativismo bissexual. A fim de complementar essa análise, na seção seguinte faço um mapeamento das produções científicas contemporâneas com o intuito de identificar o lugar que as bissexualidades têm ocupado nos discursos científicos brasileiros. 2.4 Território das bissexualidades na produção científica brasileira

A fim de considerar os discursos e as supostas verdades produzidas em relação às bissexualidades na produção científica brasileira, realizei um levantamento bibliográfico junto à BVS (Biblioteca Virtual em Saúde) e ao Catálogo de Teses e Dissertações da Capes16 usando o

descritor “bissexualidade”17. A BVS inclui dados das bibliotecas e centros

de documentação das Redes Nacionais dos países latino-americanos abrangendo, por exemplo, SciELO, LILACS e MEDLINE. Já o Catálogo de Teses e Dissertações da Capes é um sistema de busca bibliográfica,

16 Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

17 O descritor “bissexualidade” faz parte do Vocabulário de Termos em

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