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Os novos perfis familiares em face dos princípios Constitucionais de 1988

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FABIANA MEZZOMO

OS NOVOS PERFIS FAMILIARES EM FACE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE 1988

Três Passos (RS) 2015

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FABIANA MEZZOMO

OS NOVOS PERFIS FAMILIARES EM FACE DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE 1988

Trabalho de conclusão do Curso de Graduação em Direito objetivando aprovação no componente curricular Trabalho de Curso - Tc.

UNIJUI - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS - Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientadora: MSc. Fernanda Serrer Scherer

Três Passos (RS) 2015

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Dedico este trabalho à minha família, inspiração para escolha, pesquisa e desenvolvimento do tema.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente à minha família, ao meu namorado, à minha orientadora e ao professor Bedin pela colaboração na elaboração desse trabalho, cada um a seu modo.

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“Quando você está estudando um assunto, ou considerando alguma filosofia, pergunte a si mesmo, somente. Quais são os fatos? E qual a verdade que os fatos revelam? Nunca se deixe divergir pelo que você gostaria de acreditar ou pelo que você acha que traria benefícios às crenças sociais se fosse acreditado. Olhe apenas e somente para quais são os fatos.”

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RESUMO

A presente pesquisa monográfica pretende fazer uma abordagem histórica do direito de família brasileiro, a iniciar pela família patriarcal romana, que serviu de padrão familiar para muitas civilizações, inclusive para o Brasil. Além disso, traz aspectos da história da família brasileira, bem como de mudanças sociais ocorridas no século XX, que somadas ensejaram a quebra da hegemonia do patriarcalismo. Trata do significado da Constituição Federal de 1988 para a evolução do pensamento jurídico brasileiro, e busca demonstrar o teor e a importância dos princípios constitucionais enquanto normas aptas a reger as relações familiares e a guiar os legisladores, intérpretes e aplicadores do direito ao encontro de soluções justas para as demandas familiares. Discorre sobre as características das famílias brasileiras atuais, cotejando-as com o entendimento jurisprudencial dos tribunais superiores do país. Analisa o contexto e a pertinência de eventual aprovação do Estatuto da Família, projeto de lei em fase de conclusão na Câmara dos Deputados. Almeja assim ensejar reflexões acerca do tratamento legislativo e jurisprudencial dispensado às famílias brasileiras, levando em consideração os preceitos da Constituição Federal de 1988.

Palavras-Chave: Famílias. Princípios constitucionais. Dignidade da pessoa humana. Constituição Federal de 1988. Estatuto da Família.

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ABSTRACT

This monographic research aims to make a historical approach of the Brazilian family law, to begin the Roman patriarchal family, which served as a familiar pattern for many civilizations, including Brazil. In addition, it brings aspects of the Brazilian family history and social changes in the twentieth century, which together gave rise to break the hegemony of patriarchy. It deals with the meaning of the 1988 Constitution for the evolution of Brazilian legal thought, and seeks to demonstrate the content and importance of constitutional principles as standards able to govern family relations and to guide legislators, law interpreters and enforcers to finding solutions just to family demands. Discusses the features of the current Brazilian families, comparing them with the jurisprudential understanding of the country's top courts. Analyzes the context and relevance of eventual adoption of the Statute of the Family, bill nearing completion in the House of Representatives. Aims thus give rise to reflections on the legislative and judicial treatment given to Brazilian families, taking into consideration the precepts of the Constitution of 1988.

Keywords: Families. Constitutional principles. Dignity of human person. Federal Constitution of 1988. Statutes family.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1 EVOLUÇÃO DA NOÇÃO DE FAMÍLIA ... 11

1.1 A família romana no tempo ... 11

1.2 A família clássica do Código Civil Brasileiro de 1916 ... 18

1.3 Conquistas femininas do século XX que repercutiram na reorganização das relações familiares ... 23

2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA ... 32

2.1 O superprincípio da dignidade da pessoa humana ... 37

2.2 Princípio da solidariedade ... 41

2.3 Princípio da igualdade entre filhos, e cônjuges e companheiros... 43

2.4 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente ... 45

2.5 Princípio da não-intervenção e da liberdade ... 46

2.6 Princípio da afetividade ... 48

3 ALGUNS NOVOS PERFIS FAMILIARES ... 51

3.1 Família socioafetiva ... 52

3.2 Família anaparental ... 55

3.3 Família homoafetiva ... 58

3.4 Família pluriparental ... 63

3.5 Famílias paralelas ... 63

3.6 Estatuto das Famílias: princípios constitucionais e a necessidade de uma legislação infraconstitucional ... 69

CONCLUSÃO ... 77

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa a compreender os novos perfis familiares em face dos princípios constitucionais de 1988 atinentes ao direito de família, tanto implícitos como explícitos, para descobrir se essas normas possibilitam seu reconhecimento jurídico, diversos do perfil tradicional clássico do Código Civil de 1916, bem como se há necessidade de sua positivação em legislação esparsa.

Para tanto, está estruturado em três capítulos. No primeiro, serão tecidas considerações históricas, que remontam à gênese da família patriarcal no Direito Romano, modelo que se tornou o padrão familiar adotado pela maioria das civilizações, e que perdurou ao longo dos séculos. Na sequência, haverá a explanação acerca da família brasileira, da colonização até os dias atuais, indicando as mudanças ocorridas na sociedade que refletiram na alteração da ideologia familiar no país.

No segundo capítulo, serão abordados os principais aspectos dos mais destacados princípios constitucionais relacionados à família, em uma perspectiva pós-positivista, a partir da Constituição Federal de 1988. O princípio da dignidade da pessoa humana reserva para si especial atenção, em razão de seu significado para a atual quadra histórica de direitos, especialmente no que tange ao direito de família. O leitor perceberá a remissão a esse princípio ao longo de todo o texto.

No terceiro e último capítulo, serão apresentados alguns novos perfis verificados hodiernamente na sociedade brasileira, aliando teoria e jurisprudência, a fim de verificar a postura dos tribunais frente a essas novas conformações familiares. Além disso, será analisada a necessidade da elaboração de uma legislação

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infraconstitucional para a legitimação e reconhecimento jurídico das novas estruturas familiares da sociedade contemporânea pós Constituição Federal de 1988, bem como a pertinência de sua aprovação no atual momento jurídico no Brasil.

Na iminência da positivação do Estatuto da Família, essa pesquisa justifica-se na medida em que proporciona uma reflexão sobre novos perfis familiares à luz da Carta Magna, como também sobre o devido tratamento legislativo que essa instituição demanda enquanto base da sociedade brasileira.

Como se trata de um trabalho científico, a pesquisa seguiu as linhas teórica e metodológica. Teve objetivo exploratório, e a coleta de dados se deu pelo procedimento bibliográfico e documental, construída por meio de documentação indireta.

Para tanto, foram consultadas fontes bibliográficas disponíveis em meios físicos, bem como material disponível na rede de computadores. Além disso, usou-se os métodos de abordagem do tipo indutivo e hipotético-dedutivo.

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1 EVOLUÇÃO DA NOÇÃO DE FAMÍLIA

A família é um fenômeno social que tem noção e características variadas no tempo, no espaço e na sociedade sobre a qual é analisada. Sua concepção sofreu alterações ao longo dos últimos séculos e já não tem as mesmas características e finalidades de outrora.

Por essa razão, mostra-se conveniente fazer uma breve digressão histórica antes de tratar da família nos dias atuais, de modo a destacar os pontos principais da evolução social, para propiciar uma melhor compreensão do atual estágio do direito de família brasileiro e do tema proposto.

Assim, a abordagem será iniciada pela exposição da família romana, a qual foi o modelo inspirador de toda a sociedade e cultura ocidental e subsistiu por longos períodos na história brasileira.

1.1 A família romana no tempo

Roma surgiu “da unificação de aldeias latinas pela ação dos etruscos no século VII a.C” (AZEVEDO; SERIACOPI, 2007), e desde então foi palco de inúmeros acontecimentos políticos e jurídicos, cuja importância se reflete até os dias atuais.

John Gilissen (2003) lembra que o direito romano foi aperfeiçoado durante doze séculos (VII a.C a XV). Dentre as principais contribuições, destacam-se as regras de proteção à propriedade, que remanesceram em alguns direitos modernos.

O direito romano continua vivo em várias instituições liberais individualistas contemporâneas, principalmente naquelas instituições jurídicas concernentes ao direito de propriedade no seu prisma civilista e ao direito das obrigações, norteando o caráter privatístico do nosso Código Civil [Brasileiro de 1916], priorizador da defesa da propriedade como direito real, erga omnes, absoluto, portanto, como um direito ilimitado, calcado no privilégio de usar Uus utendi), gozar Uus fruendi) e abusar da coisa Uus abutendi), justificando inclusive [...], a legítima defesa da posse. (VÉRAS NETO, 2006).

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Rodrigo da Cunha Pereira (2012) refere que os romanos também foram referência de organização familiar, inclusive para o Brasil, cujo ordenamento foi espelhado no direito português, que por sua vez, teve inspiração romana.

Sobre as características do casamento romano, Luiz Antonio Rolim (2000, p. 161) informa que

Os romanos sempre foram monogâmicos e o casamento para eles, além de ser a forma legal de coabitação de duas pessoas de sexos distintos, com a intenção de procriar e educar os filhos, constituía também uma comunidade absoluta de vida.

Nessa ordem jurídica, vigia o princípio da autoridade, em que o pater familias era o chefe de família, a quem a esposa, filhos, escravos e agregados eram subordinados. A conotação de família era ampliada, incluindo outras pessoas além do outro cônjuge e filhos, assim como os bens materiais de propriedade do chefe.

Com efeito, pertinentes as colocações de Engels (1944), citado por Paulo Lôbo (2011), advertindo que na antiga sociedade romana, a palavra “família” em princípio não era usada para se referir aos pais e filhos, e sim para designar o conjunto de escravos.

Famulus queria dizer escravo e família era o conjunto de escravos pertencentes a um mesmo homem.” (LÔBO, 2011, p. 23, grifo do autor).

De acordo com Irineu de Souza Oliveira (2000), a família romana era um grupo econômico, religioso e jurídico-político, uma vez que o pai concentrava as incumbências de gerenciador do patrimônio da família, de sacerdote, e de magistrado na relação para com os demais membros.

A família era, praticamente, um núcleo econômico e, tinha também grande representatividade religiosa e política. O pater familias era o grande homem, o grande chefe, que acumulava em suas mãos uma imensa gama de poderes. (PEREIRA, 2004, p. 127).

O patriarca detinha poderes para dar e tirar a vida dos sucessores, inclusive para impingir-lhes castigos corpóreos (GONÇALVES, 2011). Da mesma forma podia proceder com seus escravos.

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Dessa maneira, fácil depreender que só homens poderiam adquirir o status de pater familias após a morte de seu pai (SANTOS, J.; SANTOS, M., 2009), e era o filho homem quem herdava o patrimônio do de cujus e ficava encarregado de geri-lo.

Isso ocorria, para além dos motivos machistas culturais típicos da época, porque a mulher ingressava para a família do marido, demonstrando a discriminação de função familiar dos filhos pelo sexo.

No período mais pagão, ao casar a mulher passava a cultuar os deuses do marido, não mais os seus. Sílvio de Salvo Venosa (2013) destaca que era o patriarca quem possuía a incumbência de manter o culto dos antepassados, uma vez que a religião doméstica era o fundamento da família romana. Assim,

O pai é o chefe supremo da religião doméstica; dirige todas as cerimônias do culto como bem entende, ou antes, como vira fazer seu pai. Ninguém na família lhe contesta a supremacia sacerdotal. [...] Como sacerdote do lar, não reconhece nenhum superior (COULANGES, 2006).

Importante observar que, embora cada família adorasse seu deus, não se falava em monoteísmo, como pregado posteriormente pelo cristianismo. Nesse sentido, Coulanges (2006) afirma que

Nessa religião primitiva cada deus só podia ser adorado por uma família. A religião era puramente doméstica. [...] Cada família acreditava possuir antepassados sagrados. [...] a religião não residia nos templos, mas nas casas; cada um tinha seus deuses; cada deus protegia apenas a uma família, e era deus apenas de uma casa. [...] a religião doméstica não se propagava senão de varão para varão.

Compreendidas essas características, passa-se à compreensão das formas de casamento romano. De acordo com as lições de Walter do Nascimento (2004, p. 50), havia dois modos: o cum manu, “pelo qual a mulher ingressava na família do marido e ficava em posição igual à de filha”; e o sine manu, no qual a mulher continuava ligada “juridicamente à sua família de origem.”

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A regra era o casamento cum manu, que “nos primeiros séculos da era cristã, [...] foi desaparecendo aos poucos, prevalecendo o casamento sine manu como única forma de matrimônio legal.” (ROLIM, 2000, p. 167).

Isso porque na modalidade sine manu, havia paridade entre os cônjuges, direitos e deveres recíprocos. Não havia subordinação, sendo necessário para o matrimônio apenas o affectio maritalis (ROLIM, 2000). Nesse momento já se percebe um avanço social, para firmar a igualdade conjugal.

O casamento sine manu era geralmente celebrado com separação de bens. [...] Os bens que fossem adquiridos após o casamento seriam administrados pelo marido. No século II depois de Cristo o casamento sine manu substituiu definitivamente o casamento cum manu. (ROLIM, 2000, p. 164, grifos do autor).

Embora possível o divórcio no direito romano, era raro, e só ocorreu de forma mais significativa no primeiro século antes de Cristo, em função dos acontecimentos históricos (guerras, corrupção) que influenciaram a vida romana (ROLIM, 2000).

Entretanto, para o governo não era interessante haver divórcios, assim como não eram convenientes famílias pequenas. Afinal, o Estado precisava de um bom exército, jovem e volumoso. “A filiação numerosa sempre foi um elemento essencial para o crescimento da civitas e da força político-militar romana.” (STEINWASCHER NETO, 2012, grifo do autor).

Preocupado com os rumos da sociedade, o imperador Augusto procedeu a uma “reforma moral familiar” por volta do ano 28 a.C., na qual foi incentivado o casamento e a procriação, por meio das leis Julia de maritandis ordinibus e Julia et papia poppaea (ROLIM, 2000).

Conforme Steinwascher Neto (2012),

Esta reforma era necessária em virtude dos danos, tanto ético-morais, quanto demográficos, que as Guerras Civis do final da República provocaram na sociedade romana. A reforma ético-matrimonial (e principalmente demográfica) de Augusto teve a função

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de manter a estabilidade do Império e garantir uma posição de supremacia político-econômica aos romanos-itálicos sobre os provinciais.

O supracitado autor revela que a população aderiu à reforma dos costumes, tanto é que nos anos que se seguiram à criação das leis houve significativo aumento populacional.

No que tange ao catolicismo, insta lembrar que o Cristianismo se tornou a religião oficial de Roma com a ascensão de Teodósio ao Império em 379 (ALVES; OLIVEIRA, 2010), e sacralizou o casamento, que se tornou um dogma da religião católica.

No entanto, as mais contundentes modificações jurídicas se operaram quando do governo de Justiniano, imperador que contribuiu sobremaneira para a codificação do direito romano, bem como para sua evolução.

O imperador Justiniano (527-548) introduziu substanciais

modificações no instituto do matrimônio: a) estendeu o direito de casamento a todas as pessoas [plebeus não podiam casar com patrícios até então], independentemente de classe social, nacionalidade ou religião. Bastava apenas o affectio maritalis [...] c) estabeleceu o dever de fidelidade entre os esposos; d) determinou que os pais deveriam constituir um dote em favor das filhas (bens dotais). Esses bens, após o casamento, passavam a ser administrados pelo marido em benefício do casal e não podiam ser alienados sem o consentimento de ambos [...]. (ROLIM, 2000, p. 167-168).

O dote, na verdade, era uma espécie de contraprestação da mulher para fazer frente aos encargos advindos do casamento (IHERING, apud NASCIMENTO, 2004).

Rolim (2000, p. 156) observa que

Esse rigorismo do patriarcado romano só começou a ser amenizado no período do Principado [27 a.C – 284 d.C], influenciado pelas novas idéias trazidas pela filosofia grega e, principalmente, pelo cristianismo. No Dominato [284 d.C – 565 d.C] os poderes do pater famílias foram sendo absorvidos pelo Estado, que passou a ditar as normas de convivência e relacionamento no seio familiar.

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Não se pode ignorar que havia outros tipos de organização familiar, como as monoparentais e as formadas com concubinas, conquanto em menor proporção, pois reprovados pela Igreja, grande mentora da época.

Osvaldo Hamilton Tavares (1985, p. 51) pondera que

A Igreja Católica insurgiu-se veementemente contra o concubinato. Santo Agostinho e Santo Ambrósio combateram a união livre, sem casamento. Por fim, o Concílio de Trento condenou o concubinato, de maneira absoluta, sem exceção alguma. O Código de Direito Canônico chegou até a dispor a respeito de sanções particulares contra os concubinos (Cânones 1.078, 2.357, § 2.º e 2.358).

Com a intervenção da Igreja no instituto do casamento, o término da sociedade conjugal foi dificultado, devendo os interessados apresentar justa razão para tal desiderato, já que, nos dizeres eclesiásticos, o matrimônio deveria ser eterno até a morte de um dos cônjuges.

Nos séculos IX e X as uniões matrimoniais eram freqüentemente [sic] combinadas sem o consentimento da mulher, a qual era sempre muito jovem. Na Idade Média, o casamento foi fortemente influenciado pelo Direito Canônico, o qual introduziu alterações jurídicas na estrutura familiar com a indissolubilidade do vínculo matrimonial. (CANEZIN, 2004, p. 146).

Assim, foi o modelo patriarcal da família romana que perdurou por séculos nas sociedades ocidentais europeias como a família padrão legítima, muitas vezes sendo imposto e indesejado. Em que pese objetivasse prole legítima, o casamento romano não se pautava em afeto (VENOSA, 2013).

O que se percebe através da história é que a real preocupação dos romanos antigos era com o patrimônio, não com o bem estar e os sentimentos das pessoas. Além disso, perante os olhos do Estado, da Igreja e da própria sociedade, importava a legitimidade das uniões, não restando espaço para questionamentos acerca da satisfação dos indivíduos.

Discorrendo sobre a família romana, José Reinaldo de Lima Lopes (2000, p. 59, grifos originais) sintetiza:

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O direito privado [...] é um sistema de regras pelo qual se mantém unida a família como unidade produtiva. As regras de sucessão determinam quem se torna o chefe da família e com que meios. As regras do matrimônio determinam como se unem e separam patrimônios e como se acrescem, pelos regimes dotais e pelo regime de poder que há entre marido e mulher, as unidades familiares, verdadeiras sociedades que unem homem e mulher por uma affectio que não é o sentimento romântico moderno, mas algo como a affectio dos sócios de uma sociedade. O direito de propriedade (dominium) é uma espécie também de jurisdição, de poder de comandar as coisas e as pessoas da família [...].

No Brasil, ao longo do século XVI, a organização familiar ocorrida nos engenhos de açúcar nordestinos em muito se assemelhou à romana clássica, com a predominância da família patriarcal.

“Engenho” era o local de fabricação de açúcar, principal produto de exportação da época. Com o passar do tempo, o termo teve seu significado ampliado, e passou a abranger outros elementos que compunham a produção do açúcar, como “os canaviais, as matas de onde se extraía lenha para as fornalhas, a casa-grande – residência do proprietário -, a senzala, - alojamento dos escravos -, a moenda e demais instrumentos de produção, as casas de moradores, etc.” (AZEVEDO; SERIACOPI, 2007, p. 213, grifos dos autores).

Portanto, a estrutura organizacional daquela sociedade também se projetou de forma assemelhada à dos romanos, tendo em vista que o senhor do engenho era o pater familias, responsável pela manutenção familiar e pelos escravos, e o casamento era a forma legítima de constituir família, pois naquela época a Igreja era vinculada ao Estado.

Como a constituição de família pelo casamento se tornou tradição, por muito tempo não houve reclamação social para a legalização de outras formas de família, tampouco foi sentida essa necessidade. A isso se coaduna o fato de que as mulheres tinham poucos direitos e nenhuma voz social.

A sociedade romana era machista, assim como o cristianismo que foi nela desenvolvido, conforme lembra Canezin (2004, p. 144):

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A igreja católica nega à mulher a possibilidade de ingressar em seu quadro sacerdotal, ainda mantém o dogma da indissolubilidade do casamento, dizendo ser este um sacramento, e que representa a união de Cristo com a Igreja...

Assim, não restava muito à mulher, que considerada incapaz, era sempre dependente do pai ou do marido para subsistir jurídica e socialmente, legado trazido ao Brasil que perdurou até meados do século XX.

1.2 A família clássica do Código Civil Brasileiro de 1916

A colonização na América, sobretudo no Brasil, foi realizada por portugueses. Como na Europa a família patriarcal era o modelo padrão, esse foi naturalmente trazido e adotado, sendo mantido por todo o Brasil-Império, assim como em grande parte do século XX (LÔBO, 2011). Começou a perder força somente após a Proclamação da República Brasileira.

Alves e Oliveira (2010, p. 464) informam que “a emergência da economia do café e o desenvolvimento das cidades e de uma nova mentalidade influenciada pelos valores da modernidade” foram fatores determinantes que culminaram na implantação do regime republicano no Brasil.

Em 15 de novembro de 1889, o marechal Manoel Deodoro da Fonseca pôs fim ao Império com o apoio do Exército. Houve ausência do povo nas primeiras decisões republicanas, momento em que “São tomadas as primeiras medidas para a laicização do Estado, como a instituição do casamento civil e a secularização dos cemitérios.” (BRASIL, 2009).

A Proclamação da República foi um acontecimento relevante para o desenvolvimento do direito de família brasileiro, pois significou o rompimento do Estado com a Igreja Católica. Até então só era válido o casamento religioso.

Às autoridades eclesiásticas católicas cabiam funções que deveriam ser exercidas pela burocracia estatal. A educação, a saúde pública e as obras assistenciais eram espaços de atuação da Igreja Católica. Assim como a concessão de registros de nascimentos, casamentos e óbitos. (GOMES, 2012, p. 111).

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Foi com a promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 que o casamento civil passou a ter validade perante o novo Estado.

O surgimento do casamento civil no Brasil data de 1891, com a primeira Constituição Republicana, visto que, anteriormente à Proclamação da República, em 1889, apenas se casava por meio do casamento religioso, o qual tinha efeitos civis imediatos [...]. Assim, a Constituição Republicana dispôs que, em virtude da separação havida entre o Estado e a Igreja, apenas o casamento civil passava a ser reconhecido pelo Estado, devendo ser garantida a sua gratuidade [...]. (RAMOS, 2014, p. 151).

No contexto histórico da República Velha (1889-1930), a massa da sociedade brasileira era pobre e agrária. Embora já houvesse indústrias, a economia era baseada na produção e exportação cafeeira (AZEVEDO; SERIACOPI, 2007).

Nesse período, a maioria da população trabalhava no campo, nas plantações de café ou na sua pequena propriedade. Como não havia métodos contraceptivos ao alcance das pessoas, era comum haver famílias numerosas, com mais de dez filhos, os quais auxiliavam nas tarefas domésticas e na agricultura desenvolvida pelos pais.

Portanto, nessa quadra histórica, a característica da família da maior parte da população era ser uma unidade de produção e subsistência mútua.

Outro fator importante para a gradual alteração de ideologia patriarcal foi a chegada dos imigrantes no Brasil. “Entre 1887 e 1930 entraram no país 3,8 milhões de estrangeiros” (AZEVEDO; SERIACOPI, 2007, p. 391), imigrantes europeus que almejavam trabalho para melhorar sua condição de vida. Foram para as lavouras de café, em substituição à mão de obra escrava (a escravatura foi abolida em 1888), bem como para as fábricas.

[...] a chegada dos imigrantes transformou o perfil de nossa sociedade. Ao mesmo tempo que assimilaram hábitos e costumes vigentes no Brasil, os estrangeiros contribuíram para modificar modos de agir, de pensar, de se alimentar e se divertir da população que aqui vivia [...]. (AZEVEDO; SERIACOPI, 2007, p. 391).

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Assevera Thiago Felipe Vargas Simões (2007, p. 2) que desde o “descobrimento” do Brasil em 1500, “todos os costumes e tradições portuguesas passaram a fazer parte do cotidiano brasileiro, dentre eles as leis e as imposições sacras advindas daquele Estado-Eclesiástico.”

Quando da edição do Código Civil Brasileiro de 1916, pensado e elaborado por Clóvis Beviláqua, a inspiração do legislador permaneceu sendo o direito português, também influenciado por preceitos do direito canônico. Com efeito, se positivou apenas o que já estava em voga, e não houve mudanças de paradigmas ou de valores sociais.

Preconizava o caput do art. 233 do Código Civil de 1916: “O marido é o chefe da sociedade conjugal”. Definiu-se que legítima era apenas a família decorrente do casamento, discriminou filhos legítimos e ilegítimos, e teceu várias consequências sucessórias em razão da legitimidade ou não do vínculo marital, sendo que a sociedade conjugal válida só seria desfeita pela morte de um dos cônjuges (BRASIL, 2015l).

Em vários dispositivos a lei civilista faz referência expressa ao homem, que era o sujeito de direitos. A mulher casada era relativamente capaz. Logo, era dependente social e juridicamente do marido, sendo-lhe relegada a incumbência da maternidade e da organização doméstica.

À mulher, a única realização possível era o casamento e a maternidade, pois eram consideradas destituídas de mentalidade racional. Sua única vantagem era a maternidade, que lhe conferia a educação dos filhos, sempre sob a supervisão e autoridade do marido. (CANEZIN, 2004, p. 146).

A lei, em verdade, refletia a moral e o pensamento dominante da sociedade. Por essa razão, lido hoje, o texto original do Código Civil de 1916 é repulsivo, pois repleto de expressões pejorativas e depreciativas. Há termos cuja carga axiológica não condiz com o que se espera do termo, como ocorre com a expressão “mulher honesta”, que

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não significava mulher íntegra, decente, isto é, este vocábulo não é indicativo da honestidade da mulher no mesmo sentido em que o é para o homem. Honesto é aquele homem que cumpre seus deveres, paga suas contas em dia etc. Nos costumes absorvidos pelo Direito, honesta é aquela mulher que tinha sua sexualidade controlada pelo marido ou pelo pai. Pouco importa se ela é cumpridora de seus deveres, se paga suas contas em dia. Os dicionários jurídicos no Brasil registravam que honesta era a mulher que tinha recato, por seus atos de decência. (PEREIRA, 2000, p. 2).

A virgindade da mulher era tão relevante para a validade do matrimônio que, se não mais fosse à época do casamento e o marido descobrisse, ele podia anular o casamento, observado o prazo prescricional da lei civil de 1916: “Art. 178. Prescreve: § 1º Em dez dias, contados do casamento, a ação do marido para anular o matrimônio contraído com mulher já deflorada [...].” (BRASIL, 2015l).

Note-se que nada sobre a virgindade masculina é mencionado, o que ressalta o abismo de tratamento relegado aos sexos pela legislação e pela própria sociedade. Discorrendo sobre a diferença entre os gêneros no início do século XX, Eni de Mesquita Samara (2002, p. 35) afirma que

O Código Civil de 1916 reconheceu e legitimou a supremacia masculina, limitando o acesso feminino ao emprego e à propriedade. As mulheres casadas ainda eram, legalmente, incapacitadas e apenas na ausência do marido podiam assumir a liderança da família.

Não bastasse a desigualdade jurídica, a mulher estava eternamente atrelada ao marido, uma vez que o vínculo matrimonial era indissolúvel.

Somente após a República a necessidade de melhor regular o casamento civil foi sentida pela sociedade. Houve algumas propostas divorcistas na Câmara de Deputados, mas nenhuma vingou (IBDFAM, 2007).

Apenas com o Código Civil de 1916 que houve a possibilidade jurídica de interposição da ação de desquite por qualquer dos cônjuges, cujo principal efeito era autorizar a separação de fato e pôr fim ao regime dos bens (BOTTEGA, 2010), mas não dissolvia o vínculo matrimonial.

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Contudo, as hipóteses de cabimento da mencionada ação eram numerus clausulus, dispostos no art. 317, a saber: adultério, tentativa de morte, sevícia, ou injúria grave, abandono voluntário do lar conjugal, durante dois anos contínuos (BRASIL, 2015l).

O desquite também se tornou viável por mútuo consentimento dos cônjuges quando casados há mais de dois anos, o que deveria ser homologado pelo juiz. Porém, de qualquer maneira, o vínculo conjugal não restava dissolvido e a contração de novas núpcias não estava legalmente autorizada (IBDFAM, 2007).

No que tange a outras formas de relacionamento, a influência canônica fez com que o concubinato fosse severamente desestimulado na lei civil, através de proibições.

O legislador brasileiro de 1916, baseado em razões de moralidade familiar, não se mostrou imune à influência do Direito Canônico, jamais condescendendo com o concubinato. Essa influência apresenta-se bem nítida na proibição de doações do cônjuge adúltero ao seu cúmplice (artigo 1.177), da nulidade da instituição da concubina como beneficiária do contrato de seguro de vida (artigo 1.474), na incapacidade testamentária passiva da concubina (artigo 1.719, inciso III, combinado com artigo 1.720) e na proibição de reconhecimento de filhos adulterinos (artigo 358). (TAVARES, 1985, p. 51).

Percebe-se que o legislador de 1916, assim como no direito romano, não considerou o afeto para a elaboração do respectivo código. Adotou a então predominante visão patrimonialista, conservadora e patriarcal, vez que reelegeu o homem como chefe de família.

Por essa razão, denota-se que o Código Civil de 1916 foi elaborado para atender às exigências da elite de uma sociedade ruralista, ainda dominada pela ideologia da Igreja Católica, sem almejar progressos que significassem mais direitos às pessoas (RAMOS, 2014).

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1.3 Conquistas femininas do século XX que repercutiram na reorganização das relações familiares

Com o decorrer dos anos, o Diploma Civil não estava mais conseguindo regular a realidade social com eficácia, porque vários fatores convergiram para a evolução do pensamento e das prioridades da sociedade.

Como efeito da industrialização iniciada nas primeiras décadas do século XX, a população urbana teve aumento considerável, precipuamente pelas atividades que começaram a ser desenvolvidas, acenando possibilidade de emprego e atraindo mão de obra (SAMARA, 2002).

Além disso, evidenciam-se como determinante para as mutações sociais as conquistas femininas, aliadas aos movimentos que lutavam contra a discriminação de gêneros e igualdade de condições.

O direito ao voto só foi permitido a elas em 1932, com a sanção de um novo código eleitoral, que consagrou o sufrágio universal e secreto, assinado por Getúlio Vargas. Através desse ato político, Rita de Cássia Barbosa de Araújo (2003) lembra que foi concedido o direito ao voto aos brasileiros maiores de vinte e um anos, alfabetizados, de ambos os sexos.

O movimento das mulheres era emblemático. As mulheres queriam novas relações familiares e queriam isto junto com o direito de votar e serem votadas. Esta transformação significava reestruturar as fronteiras do público e do privado. Mulheres operárias sempre trabalharam, mas agora queriam não apenas salários, mas direitos de participação política. (LOPES, 2000, p. 370).

Assinala Araújo (2003) que as “brasileiras adquiriam assim, pela primeira vez e após árdua luta, cidadania política, contribuindo para o aumento significativo do número de votantes no país.”

Necessário mencionar que a maioria maciça das mulheres não tinha acesso à educação formal até então, porque havia poucas instituições de ensino e era algo sem utilidade prática para o desempenho das funções domésticas e maternais.

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As mulheres casavam cedo e era comum se ter muitos filhos, cuja criação não lhes concedia liberdade e tempo para outras tarefas. Por isso, sequer passavam pelo processo de alfabetização (BELTRÃO; ALVES, 2009).

Além disso, o papel de provedor do lar era outorgado pela cultura patriarcal da época ao homem, que era quem acabava tendo as melhores oportunidades de aprendizado e de postos de trabalho, e quem atuava no espaço público.

Mas, atentos para o contingente que as mulheres representava, Explicam Beltrão e Alves (2009, p. 133) que “Os políticos tinham interesse na alfabetização geral da população, em especial das mulheres, pois somente as pessoas alfabetizadas podiam votar.” Por essa razão, é possível concluir que o incentivo à escolarização das mulheres foi efeito indireto da sua conquista aos direitos políticos.

Com efeito, a educação foi uma área que não teve atenção e investimento no país até o século XX. Em que pese os homens tivessem mais acesso aos bancos escolares e aos níveis superiores de educação, ainda era um objetivo incipiente por não convergir com a prática da produção agrícola. A prioridade era trabalhar, e não estudar.

Os motivos do baixo grau de investimento educacional brasileiro tiveram suas origens no modelo econômico primário-exportador baseado em uma estrutura escravocrata. Enquanto a população permaneceu no campo, utilizando meios arcaicos de produção, a escola não exerceu um papel importante na qualificação dos recursos humanos, sendo apenas agente de educação para o ócio ou de preparação para as carreiras liberais, no caso dos homens, ou para professoras primárias e donas-de-casa, no caso das mulheres. (BELTRÃO; ALVES, 2009, p. 129).

Na década de 1930, a industrialização e os serviços urbanos auxiliaram na expansão do ensino. A diversificação da base econômica do país, somada ao novo perfil da sociedade pela imigração, fez com que as pessoas da classe baixa vissem a educação como meio de ascensão social e passassem a priorizá-la.

Em 1961, foi sancionada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, que traçou os moldes da educação formal no país, sem fazer distinção de

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sexo. A partir daí, as mulheres começaram a ter igual chance de acesso aos níveis superiores de educação (BELTRÃO; ALVES, 2009).

Foi, pois, na segunda metade do século XX, quando as mulheres começaram a sair de casa para trabalhar fora, que começaram também a pensar em direito ao sexo, em salários iguais para funções iguais (até hoje não conseguido ainda, na prática) e na plena igualdade de direitos na sociedade. (CANEZIN, 2004, p. 148).

De forma concomitante, na década de 1960, a área médica obteve avanços científicos que possibilitaram a criação de métodos contraceptivos eficientes, que foram acessíveis às pessoas (PEDRO, 2003). Dessa maneira, a mulher pôde delimitar o número de filhos e definir quando tê-los, o que significou liberdade e a gênese da independência sexual feminina. Elas puderam se dedicar mais à carreira e a investir nos estudos.

Aliado a isso, o ingresso das mulheres no campo educacional reformulou seus objetivos, que passaram a ser estudar, arranjar um bom emprego, para depois constituir família e, talvez, procriar.

Foi igualmente importante a revolução sexual dos anos de 1960 visando a emancipação da sexualidade e a liberação dos rígidos costumes que segregavam a mulher ao lar e ao papel de esposa e mãe. Nesse período, houve um salto qualitativo na situação da mulher brasileira que ampliou sua presença em todos os níveis de ensino e passou a apresentar taxas crescentes de participação no mercado de trabalho. Houve uma confluência de condições objetivas, representadas pelos processos de modernização das estruturas produtivas do país, e de condições subjetivas, representadas pelas novas posturas culturais e ideológicas das mulheres. (BELTRÃO; ALVES, 2009, p. 133).

Samara (2002) lembra que as mulheres casadas se valeram de trabalhos domiciliares e temporários para conciliar o trabalho remunerado com as tarefas domésticas e maternais, submetendo-se, portanto, a uma dupla jornada que, geralmente, não era reconhecida e valorizada pelos homens.

Conquanto o contexto fático estivesse progredindo, juridicamente a mulher ainda se encontrava inferiorizada e sem direitos sociais, permanecendo dependente

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do marido até 1962, quando ocorreu a publicação da Lei nº 4.121, conhecida como “Estatuto da Mulher Casada”, que

[...] representou um marco histórico na luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, no Brasil, cujo maior mérito foi abolir da legislação brasileira a incapacidade feminina [...]. Por essa Lei, também foram revogadas diversas normas discriminadoras. Através do Estatuto da Mulher Casada ficou consagrado o princípio do livre exercício de profissão da mulher casada, permitindo que ela ingressasse livremente no mercado de trabalho, tornando-a economicamente produtiva, aumentando sua importância nas relações de poder no seio da família. O Estatuto não só corrigiu algumas restrições impostas à mulher casada como ainda ampliou seus direitos [...]. (CANEZIN, 2004, p. 149).

Dentre as alterações feitas pela referida lei, está a reformulação do caput do art. 233 do Código Civil de 1916, que passou a dispor que “o marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interêsse [sic] comum do casal e dos filhos”. Portanto, aos olhos do legislador, a família deveria continuar sendo patriarcal, embora a mulher contasse com mais ingerência na sociedade conjugal.

As Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967 não trouxeram inovações, posto que seguiram considerando o casamento a única forma de se construir família, além de manter a indissolubilidade do matrimônio, o que só foi alterado constitucionalmente em 1988.

Aponta Pereira (2004, p. 14) que

A resignação histórica das mulheres é que sustentava os casamentos. O fantasma do fim da conjugalidade foi atravessado por uma realidade social, em que imperava a necessidade de que o sustento do laço conjugal estivesse no amor, no afeto e no companheirismo. Aí reside uma das mudanças paradigmáticas e estruturantes do Direito de Família: a família deixou de ser essencialmente um núcleo econômico e de reprodução. Após várias tentativas de aprovação, apesar das forças religiosas em contrário, finalmente foi aprovada no Brasil, em 1977, a Lei do Divórcio.

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A Emenda Constitucional nº 09 modificou a redação do parágrafo primeiro do art. 175 da Constituição de 1967, autorizando a dissolução do casamento após três anos de separação judicial (divórcio indireto). (BRASIL, 2015j).

No mesmo ano, a dissolução do casamento foi regulamentada pela Lei nº 6.515 (Lei do Divórcio), que restringiu o divórcio a uma só vez (art. 38) e revogou expressamente as disposições do desquite no Código Civil. (BRASIL, 2015m).

É que a palavra desquitada carregava o peso de um preconceito que passou a designar mais que um simples estado civil. Desquitada tornou-se significado de mulher "livre", ou cuja conduta sexual era sempre colocada em dúvida. (PEREIRA, 2000, p. 2).

Por meio do divórcio indireto (por conversão), o vínculo matrimonial se tornou dissolúvel. O desquite e a separação judicial importavam em separação de corpos apenas, pois o laço conjugal ficava incólume.

Em verdade, houve a mera substituição de palavras (conforme artigo 39 da lei), pois a separação judicial “terminava” a sociedade conjugal (art. 2º, III, Lei nº 6.515/77), pondo fim “aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens” (BRASIL, 2015m), mas não a dissolvia, o que só ocorria com a morte de um dos cônjuges ou com o divórcio (parágrafo único do mesmo dispositivo).

A Lei do Divórcio previa apenas uma hipótese de divórcio direto (art. 40), nos casos de separação de fato há mais de 05 anos antes da emenda constitucional nº 09 de 1977. Para tanto, era exigida a cumulação de três requisitos:

(a) estarem as partes separadas de fato há cinco anos; (b) que esse prazo estivesse implementado antes da data da alteração constitucional, ou seja, antes de 28 de junho de 1977; e (c) a comprovação da causa da separação. (DIAS, 2003, p. 1).

A regra, porém, era a conversão da separação judicial em divórcio após 03 anos da decisão que a concedeu (artigo 25).

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As leis que seguiram reformando a Lei do Divórcio trouxeram melhorias, mitigando a necessidade de comprovação e indicação de culpa de um dos cônjuges. Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias (2004) assevera que

[...] sob o ponto de vista prático a única distinção entre a separação judicial e o divórcio é que a primeira permite a retomada da vida conjugal por simples petição dirigida ao juiz, enquanto o restabelecimento da convivência no segundo submete-se a um novo casamento – cuja celebração pode ser dispensada pelo juiz a pedido da parte na própria habilitação para o casamento. Tranqüilo [sic] perceber, portanto, a inutilidade da separação, cuja única e duvidosa vantagem não traduz conseqüências [sic] práticas.

O artigo 40 da Lei do Divórcio teve sua redação alterada em 1989 pela Lei nº 7.841, que reduziu o interstício da separação fática para dois anos, após o qual o ingresso da ação de divórcio direto estaria autorizado. No entanto, ainda não era suficiente e as demandas sociais reclamavam mais melhorias.

Contudo, os anseios sociais fizeram com que a jurisprudência construísse meios de facilitar a dissolução matrimonial por meio do divórcio direto. Maria Berenice Dias (2003, p. 2) comenta que

No momento em que se tornou possível a sua obtenção mediante a só comprovação da ruptura da vida em comum por dois anos consecutivos, institucionalizou-se o divórcio direto [...]. Superado o obstáculo que o condicionava a um termo inicial em data determinada, consolidou-se o divórcio como instituto autônomo, afastando a necessidade de prévia separação judicial como requisito para ser deferido somente por meio da conversão.

Somente em 2010, com a Emenda Constitucional nº 66 que alterou o §6 do art. 226 da Constituição Federal de 1988, foi juridicamente possível o divórcio direto sem requisito temporal (BRASIL, 2015k). Além disso, fez com que o instituto da separação perdesse sua função e desaparecesse, e extirpou a averiguação da culpa na dissolução da sociedade conjugal (DIAS, 2010).

Ainda, Dias (2010) criticou duramente a ingerência que o Estado tinha sobre essa área privada da vida das pessoas. Para ela,

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[...] o aspecto mais significativo da mudança talvez seja o fato de acabar a injustificável interferência do Estado na vida dos cidadãos. Enfim passou a ser respeitado o direito de todos de buscar a felicidade, que não se encontra necessariamente na mantença do casamento, mas, muitas vezes, com o seu fim.

Discorrendo sobre a importância da Lei do Divórcio, Pereira (2004, p. 14) dispara que “na colisão de princípios venceu o de maior valor. Em outras palavras, a Lei do Divórcio foi a derrocada do princípio da indissolubilidade pelo princípio da liberdade dos sujeitos, um dos pilares da base de sustentação da ciência jurídica.”

É indutivo que, possível e facilitada a dissolução do vínculo matrimonial, outros modelos de família foram naturalmente se formando. Afinal,

A família, na sociedade de massas contemporânea, sofreu as vicissitudes da urbanização acelerada ao longo do século XX, como ocorreu no Brasil. Por outro lado, a emancipação feminina, principalmente econômica e profissional, modificou substancialmente o papel que era destinado à mulher no âmbito doméstico e remodelou a família. São esses os dois principais fatores do desaparecimento da família patriarcal. (LÔBO, 2011, p. 20).

Nesse aspecto, pertinente referir as contribuições evolutivas feitas pela Constituição Federal de 1988, que albergou mudanças substanciais nos valores da ordem jurídica, com ampliação dos direitos fundamentais dos cidadãos, elegendo a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (BRASIL, 2015i).

Diante desse regramento inafastável de proteção da pessoa humana é que está em voga, atualmente entre nós, falar em personalização, repersonalização e despatrimonialização do Direito Privado. Ao mesmo tempo que o patrimônio perde importância, a pessoa é supervalorizada. (TARTUCE, 2006, p. 14, grifos do autor).

O artigo 226, caput, assim dispõe: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” (BRASIL, 2015i). Lôbo (2002, p. 8) sinala que

A proteção da família é proteção mediata, ou seja, no interesse da realização existencial e afetiva das pessoas. Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas

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algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana.

A preocupação do constituinte em proteger a família se justifica na medida em que famílias saudáveis preparam indivíduos para um bom convívio social. É do interesse do Estado combater violências, abusos, negligências, privações de direitos fundamentais, que são mazelas que maculam a paz social em razão das consequências que causam.

No afã de repaginar o estigma de expressões que se referiam a novas uniões, “O legislador constituinte, em 1988, substituiu a expressão concubinato por união estável (artigo 226) com a intenção de expurgar o preconceito desta palavra.” (PEREIRA, 2000, p. 2). Nas palavras de Ramos (2014, p. 153),

[...] a partir da Constituição cidadã, é a convivência familiar, guiada pela mútua assistência física, psicológica, emocional e patrimonial, e consolidada no respeito e na livre escolha de seus componentes, que deve definir, em cada caso, o que é família para o Estado e para a sociedade.

Compreensível a preocupação do legislador, uma vez que reconheceu a união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º, Constituição Federal de 1988).

A Constituição Cidadã, valorizando o indivíduo e objetivando promover o bem de todos, sem preconceitos (artigo 3º), refutou os antigos termos depreciativos dirigidos a filhos que não fossem “legítimos”, concedendo a todos aqueles que estiverem na condição de filho tratamento igualitário, de forma a humanizar a filiação e coibir discriminações. (BRASIL, 2015i).

Logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, foi publicada a Lei nº 8.069, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, que reforçou vários direitos já previstos constitucionalmente (artigo 227), objetivando a proteção integral dos menores (art. 1º da lei). (BRASIL, 2015n).

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A supracitada lei definia que os pais detinham o “pátrio poder” em relação a seus filhos menores de 18 anos, que correspondia aos deveres dos pais em relação aos filhos e os direitos desses para com aqueles (DIAS, 2009).

Assim pregava o dispositivo legal (BRASIL, 2015n):

Art. 21. O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.

A expressão “pátrio poder” constava no Código Civil de 1916 e só era reservada ao marido, sendo substituída por “poder familiar” apenas em 2009 pela Lei nº 12.010. Verifica-se que tardia foi a preocupação dos legisladores em excluir do ordenamento resíduo patriarcal.

Atualmente, estão expressamente igualadas (juridicamente) todas as pessoas em direitos e obrigações, e todos os filhos perante seus pais. Resta prosseguir na tentativa de verificar se todas as famílias estão reconhecidas, igualadas e tuteladas pela legislação pátria vigente.

Para tanto, será feita no próximo capítulo a explanação de alguns princípios do direito de família inseridos na Constituição Federal de 1988.

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2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA

A Constituição é a lei que organiza o Estado, determina a separação (e a limitação) dos Poderes do Estado, explicita direitos, deveres e responsabilidades, estabelece regras de elaboração de normas, fixa competências, além de traçar objetivos a serem alcançados pela sociedade que vai reger (viés programático). Nas palavras de Leal (2003, p. 1), é “o instrumento político-jurídico mais importante da organização social”.

É “a lei suprema do Estado”, ”é o fundamento de validade de toda a ordem jurídica, [...] que confere unidade ao sistema, é o ponto comum ao qual se reconduzem todas as normas vigentes no âmbito do Estado.” (BARROSO, 2009, p. 61).

Enquanto lei, para além da necessidade de apresentar legitimidade formal, uma Constituição precisa ter legitimidade material, pois deve conter e expressar os valores com que a sociedade a ser regulada se identifique e deseje. Em uma perspectiva pós-positivista, essa exigência só é possível de ser atendida em razão da carga axiológica que os princípios carregam em seu bojo (LEAL, 2003).

Discorre a autora supramencionada que os princípios constitucionais são a base de sustentação sobre a qual o sistema jurídico é construído, com o fim de concretizar os objetivos ditados pelos princípios sustentadores.

Conforme os objetivos vão sendo alcançados, eles se agregam ao sistema, e seus conteúdos não podem ser reduzidos, uma vez que a ordem jurídica funciona no sentido da ampliação dos direitos, o que significa vedação ao retrocesso social. Por essa razão, é importante que os princípios estejam positivados. (LEAL, 2003).

[...] o Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive (e especialmente) das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, que igualmente integram (juntamente com os princípios fundamentais) aquilo que se pode [...] denominar de

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núcleo essencial da nossa Constituição formal e material. (SARLET, 2011, p. 75).

Também considerados elementos centrais informadores do ordenamento jurídico, os princípios foram revestidos de força normativa pela teoria constitucional (pós-positivismo), o que significa que assim como as regras jurídicas, são normas jurídicas, que são imperativos de regulação de comportamento, sob a fundamentação de que a Constituição é lei positivada e, por isso, cogente (LEAL, 2003).

Dessa forma, insertos na Constituição Federal Brasileira de 1988 há dois tipos de normas: regras e princípios. São normas constitucionais sem hierarquia entre si, pois ambos “dizem o que deve ser e são razões de juízos concretos do dever ser” (PEREIRA, 2004, p. 30), integrando uma unidade.

Partindo para uma definição dos diferentes tipos de normas, Barroso (2009) ensina que regras são mais concretas, incidem somente para os casos previstos no texto legal, são aplicadas por subsunção, e em havendo conflitos entre regras, só uma é válida para regular o caso (modo “tudo ou nada”, nos termos de Ronald Dworkin, 2007, p. 39).

Por sua vez, princípios são mais abstratos, contém uma maior carga valorativa, albergam uma gama mais variada de situações fáticas, indicam uma direção a observar sem especificar a conduta a ser seguida, e a tensão entre dois ou mais conflitos é resolvida pela técnica de ponderação (BARROSO, 2009), sendo que “não há critérios preestabelecidos para a solução do conflito como ocorre com as regras” (LEAL, 2003, p. 82).

Além disso, pode-se acrescentar que princípios são “mandados de otimização” (LEAL, 2003, p. 86), pois podem ser levados a efeito em diferentes graus no caso concreto, a depender dos valores envolvidos. Como lembra Pereira (2004, p. 50), “A relatividade dos valores é que provoca a colisão de princípios. Se fossem absolutos os princípios seriam harmônicos entre si.”

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Outro traço distintivo entre regras e princípios apontado por Leal (2003) é a generalidade de ambos. Regras são produzidas para regularem determinados fatos, o que significa que sempre que tal fato ocorrer, é aquela regra que incidirá sobre o caso concreto (número indeterminado de atos e fatos da mesma natureza).

Diferentes são os princípios, que se fazem presentes em variados tipos de situações jurídicas, geralmente quando há embate de direitos, e que sua aplicação pode variar de acordo com o nível de abstração com que for usado.

A mesma jurista aduz que uma das funções desses últimos é veicular os objetivos que o Estado deve perseguir, “vinculando a todos os entes e valendo como um impositivo para o presente e como um projeto para o futuro que se renova cotidianamente, constituindo-se numa eterna construção da humanidade.” (LEAL, 2003, p. 50).

Foi o que ocorreu no Brasil com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que revolucionou o ordenamento jurídico por visar primordialmente à proteção do ser humano enquanto sujeito de direitos.

Com efeito, operou uma mudança substancial nos valores sociais e jurídicos, pois se viu uma ampliação dos direitos fundamentais dos cidadãos em detrimento de direitos patrimoniais, elegendo a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (BRASIL, 2015i).

Trata-se da primeira Constituição democrática do país, recém liberto de uma ditadura militar de mais de duas décadas que torturou e matou inúmeras pessoas, além de cometer outras tantas afrontas a direitos fundamentais.

Por óbvio, o direito de família também sofreu profundas alterações a partir da nova ordem constitucional. Percebendo as mudanças, Gustavo Tepedino (S.d) assevera que

É do ponto de vista axiológico [...] que se pode identificar a mais profunda alteração no vértice do ordenamento [...] a impor radical

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reformulação dos critérios interpretativos adotados em matéria de família.

Assim, os princípios enquanto fontes do direito ganharam relevo a partir da verificação da insuficiência das regras face à incessante variedade de casos concretos que a convivência humana gera.

Nesse sentido, Pereira (2004, p. 20) afirma que

[...] o sistema de regras tornou-se insuficiente, em face da revolução hermenêutica havida com o status que a pessoa humana alcançou, de fundamento da República Federativa do Brasil, por força do art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988. Com isso, mudaram, também, os parâmetros hermenêuticos que norteiam o intérprete. O positivismo, por conseguinte, tornou-se insuficiente, pois as regras não fizeram frente, de imediato, a tais situações hermenêuticas. Antes da existência da positivação de situações jurídicas novas, a jurisprudência tornou-se relevante fonte do Direito, pois decide fatos que ainda não são contemplados em regras jurídicas.

Referido autor defende que o direito não pode ser engessado pelo positivismo puramente formal, pois deve acompanhar a realidade social, o que só ocorrerá efetivamente se considerarmos um “direito principiológico”.

É somente em bases principiológicas que será possível pensar e decidir sobre o que é justo e injusto, acima de valores morais, muitas vezes estigmatizantes. Os princípios exercem uma função de otimização do Direito. Sua força deve pairar sobre toda a organização jurídica, inclusive preenchendo lacunas deixadas por outras normas, independentemente de serem positivados, ou não, isto é, expressos ou não expressos. Eles têm, também, uma função sistematizadora [...]. (PEREIRA, 2004, p. 34).

Verifica-se que a Lei Maior acabou por estabelecer novo norte à interpretação jurídica, principalmente no que se refere ao Direito de Família.

Com o advento da Lei Fundamental, em 1988, o que se constatou foi a existência de princípios voltados ao ramo do Direito de Família, os quais auxiliam os julgadores no intento de realizar justiça nos casos concretos (PEREIRA, 2004).

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Isso se deve ao fato de que os princípios conferem ao sistema jurídico a dinamicidade necessária para que o texto legal permaneça atualizado e apto a continuar regulando os casos concretos, mesmo diante de novos fatos oriundos da evolução social.

Esclarece Tartuce (2006, p. 2) que após a promulgação da Lei Maior de 1988, “os antigos princípios do Direito de Família foram aniquilados, surgindo outros, dentro dessa proposta de constitucionalização, remodelando esse ramo jurídico”, razão pela qual necessária a análise dos mais relevantes princípios constitucionais norteadores do Direito de Família presentes na Lei Maior.

Compreendido que os princípios são normas e, portanto, sua observância é obrigatória, necessário salientar que em nosso ordenamento há princípios constitucionais expressos, escritos no texto constitucional, e outros implícitos, que são apreendidos através da leitura global da Constituição Federal. Oportuno ressaltar que enquanto princípios, não há que se falar em hierarquia entre eles pelo fato de estarem positivados na Constituição ou não.

Maria Berenice Dias (2009) refere que não há consenso entre os estudiosos sobre a quantidade exata de princípios atinentes ao Direito de Família inseridos no diploma constitucional. Há princípios que se aplicam a todo o direito, não apenas para o direito de família, outros são mais direcionados a esse ramo. Portanto, para o intento desse trabalho, faz-se necessário uma prévia seleção dos princípios mais específicos cuja repercussão sobre a família é mais expressiva.

O certo é que o entendimento do teor dos princípios é essencial para a compreensão de uma gama de direitos e dos motivos que levam os julgadores a decidir algumas questões de determinada forma.

Considerando que a dignidade da pessoa humana é o maior e mais complexo princípio do ordenamento jurídico brasileiro, que perpassa por todo o sistema normativo brasileiro, e que é a pedra de toque de todas as inovações no Direito de Família, necessário iniciar a análise por esse princípio, e tecer as considerações pertinentes acerca de seu conteúdo.

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2.1 O superprincípio da dignidade da pessoa humana

Esse princípio foi positivado no direito brasileiro apenas em 1988, na Constituição Federal. Pode parecer uma atitude tardia, mas, se for feita comparação com o direito estrangeiro, foi após a Segunda Guerra Mundial e a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 que a dignidade da pessoa humana passou a constar nas Constituições Democráticas (SARLET, 2011).

Está expressamente escrito no artigo 1º, inciso III da Lei Maior que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito Brasileiro. É considerado um superprincípio porque informa todo o sistema jurídico brasileiro e, comparativamente aos outros, desfruta de um maior prestígio axiológico-valorativo, conforme aponta o autor referido. No entanto, a Carta Política nada refere acerca do conteúdo desse princípio.

Por essa razão, parte-se para a doutrina no intuito de localizar uma conceituação satisfatória. Na lição de Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 73, grifo do autor), a dignidade da pessoa humana é

[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

Percebe-se que o conceito supracitado carrega muitos aspectos, o que é decorrente da própria complexidade e abrangência de dignidade. Para compreendê-los, cumpre referir que a dignidade da pessoa humana inserida na Constituição Federal Brasileira de 1988 tem origem kantiana.

Afinal, foi Immanuel Kant o pensador que melhor trabalhou o conceito moderno (secular) e a fundamentação de dignidade, e a expressão “dignidade da

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pessoa humana” é a ele atribuída. Até os dias atuais sua teoria influencia a doutrina majoritária.

Para esse filósofo, a dignidade está vinculada à natureza racional do ser humano, o que culmina em uma qualidade indissociável. Defende que o fundamento da dignidade humana reside na capacidade (potencial) de autonomia da vontade humana, que consiste na faculdade (liberdade potencial) de agir e reger sua vida do modo que melhor lhe aprouver, dentro das regras sociais e respeitando a dignidade alheia (SARLET, 2011).

O homem possui consciência racional e moral, e tem um valor inestimável, o que o afasta da condição de coisa, a qual é possível atribuir um preço. O ser humano não tem preço, mas sim dignidade, e por isso é possível relegar-lhe responsabilidade e liberdade.

Kant, de acordo com Pereira (2004, p. 69), defende que os homens não podem fazer outros homens instrumentos para a obtenção de seus desejos porque isso seria uma afronta ao ser humano.

Todos os seres humanos têm dignidade, que tem o mesmo valor, pois as pessoas nascem iguais em dignidade. Dignidade não diz respeito ao cargo ocupado, nem é atributo adquirido por merecimento pessoal.

Ela é inerente ao ser humano, e por essa razão o Estado não pode conferir nem retirar dignidade, havendo limites em sua atuação. Mas pode promovê-la e deve respeitá-la.

Sarlet (2011) afirma que, ao erigir o princípio da dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado Democrático e Social de Direito, o constituinte consagrou que o Estado existe em função da pessoa, que é seu fim, não seu instrumento, e que o Estado passa a ser o garantidor da promoção da dignidade das pessoas, individual ou coletivamente consideradas.

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A ideia de respeito à dignidade também é presente nas relações entre os sujeitos, por viverem em comunidade. Ter dignidade também implica em respeitar a dignidade alheia, postura que engloba também um respeito ao meio ambiente, pois em última análise, quem contribui para a degradação ambiental está ferindo vários outros direitos fundamentais de inúmeras pessoas.

Dignidade é um valor inato de todo o ser humano, qualidade intrínseca, irrenunciável, inalienável, que

[...] pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo [...], ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que reconhecida e atribuída a cada ser humano como algo que lhe é inerente. (SARLET, 2011, p. 52).

Sarlet defende que não há direito à dignidade, porque a ordem jurídica não pode conceder algo que é inato (qualidade intrínseca) ao ser humano. O que deve ser entendido como direito à dignidade é o "reconhecimento, respeito, proteção, promoção e desenvolvimento da dignidade." (SARLET, 2011, p. 84).

Em razão do caráter multidimencional que a dignidade da pessoa humana assume, o referido doutrinador reforça que a dignidade humana implica em respeito à vida e à integridade física e moral do sujeito, o qual deve ter condições mínimas de existência digna, bem como liberdade, autonomia, igualdade e outros direitos fundamentais assegurados.

Quanto à positivação do princípio, percebe-se ao analisar a estrutura da Lei Maior que a dignidade da pessoa humana está alocada dentro do título I, intitulado “Dos princípios fundamentais”, e não dentro do título II relativo aos direitos e garantias fundamentais.

Sobre esse ponto, Sarlet (2011, p. 84) afirma que

[...] a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui

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