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Marcas em quem cresce: as particularidades do tratamento psicológico de crianças

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Academic year: 2021

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DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO - DHE CURSO DE PSICOLOGIA

LUCIANE MORINI CASSENOTE

MARCAS EM QUEM CRESCE: AS PARTICULARIDADES DO

TRATAMENTO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS

IJUÍ – RS 2014

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LUCIANE MORINI CASSENOTE

MARCAS EM QUEM CRESCE: AS PARTICULARIDADES DO

TRATAMENTO PSICOLÓGICO DE CRIANÇAS

Trabalho de conclusão de curso

apresentado como requisito parcial para conclusão do curso de formação de Psicóloga

Orientadora: Kenia Spolti Freire

IJUÍ – RS 2014

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Ora eu penso: “Certamente que não! O principezinho guarda a flor todas as noites na redoma de vidro e vigia bem o carneiro...” Então, eu me sinto feliz. E todas as estrelas riem docemente.

Ora eu digo: “Uma vez ou outra a gente se distrai e basta isto! Uma noite ele esqueceu a redoma de vidro ou o carneiro saiu de mansinho, sem que fosse notado...” Então os guizos se transformam todos em lágrimas!...

Eis aí um mistério bem grande. Para vocês, que amam também o pequeno príncipe, como para mim, todo o universo muda de sentido, se num lugar, que não sabemos onde, um carneiro, que não conhecemos, comeu ou não uma rosa... Olhem o céu. Perguntem: Terá ou não terá o carneiro comido a flor? E verão como tudo fica diferente...

E nenhuma pessoa grande jamais compreenderá que isso tenha tanta importância! (Antonie de Saint-Exupéry)

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RESUMO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado: “Marcas em quem cresce: as particularidades do tratamento psicológico de crianças”, se constitui a partir de uma pesquisa bibliográfica embasada essencialmente na teoria psicanalítica, a respeito de algumas especificidades que caracterizam a condição do tratamento psicológico na infância. Parte-se de questionamentos, tais como: quem, afinal, é o paciente da clínica com crianças? Quais são suas especificidades sintomáticas? Reconhece-se que a partir dos primeiros atendimentos de uma criança e do contato inicial do psicólogo com os pais, desdobram-se questionamentos que se referem às particularidades desta forma de tratamento. Da chegada ao atendimento até a decodificação da demanda e do emaranhado que diz respeito à família e a criança, muito se tem a observar.

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ABSTRACT

This Final Graduation Work, entitled "marks in who grows: the particularities of the psychological treatment of children" is constituted from a bibliographical research based mainly on psychoanalytic theory, about some specificities that feature the condition of childhood psychological treatment. It starts with questionings such as: who, after all, is the patient of the children's clinic? What are their specific symptomatic? It is recognized that from the initial care of a child and the psychologist's initial contact with parents, unfold questions that relate to the particularities of this type of treatment. From the arrival service to the decoding of demand and to the tangle with regard to the family and the child, there is a lot to be observed.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...7

A ABORDAGEM DO SUJEITO: SOBRE O PACIENTE NA CLÍNICA COM CRIANÇAS...8

A ESPECIFICIDADE SINTOMÁTICA DA/NA CRIANÇA...21

CONCLUSÃO ...33

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INTRODUÇÃO

As crianças não buscam atendimento psicológico sozinhas. Tão pouco se enquadram nas “condições” que Freud coloca para que uma análise ocorra. Chegam normalmente acompanhadas pelos pais, trazendo consigo seu “mundo” de poucos anos de existência, resultado de todas as suas vivências, composto por todos que a cercam ou já a cercaram. Não costumam falar muito, as vezes negam-se à entrar para atendimento, fazem perguntas pessoais. Se o psicoterapeuta tiver sorte, elas escolherão brincar.

Junto delas, normalmente vêm os pais, alguns com muitas dúvidas a serem respondidas, demandas instauradas. Outros, sequer sabem o motivo de seus filhos serem encaminhados para tratamento.

A forma como chegam, ou os motivos que levam até a busca por um psicólogo deverão ser analisados. Independente da relação transferencial que irá se criar com os pais, da resistência por parte deles, da constituição psíquica ainda em formação da criança ou das causas de suas formações sintomáticas, um tratamento deve ser iniciado.

Esta pesquisa de caráter bibliográfico tem como objetivo, em seu primeiro capítulo, trazer considerações sobre quem é o paciente na clínica com crianças. As modificações dos atendimentos ao longo do tempo, os recursos usados para melhor entendimento do caso, bem como as características do acolhimento e a chegada dos pais serão temáticas abordadas. Um estudo de caso já publicado também foi trabalhado.

No segundo capítulo, as particularidades do sintoma da/na criança são descritas a partir da constituição do aparelho psíquico. Além disso, a importância do discurso parental e suas implicações são trabalhadas até a construção de uma hipótese diagnóstica.

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CAPÍTULO I

A ABORDAGEM DO SUJEITO: SOBRE O PACIENTE NA CLÍNICA COM CRIANÇAS

Durante os primeiros atendimentos de uma criança, em que o psicólogo clínico recebe os pais e/ou cuidadores para as entrevistas iniciais, deve-se estar muito atento à história falada, uma vez que a história que eles elaboram a respeito da criança, remete à história de um sujeito em constituição e também versa sobre os pais enquanto sujeitos em laço de familiaridade.

Sabe-se que a história de um sujeito começa antes mesmo do seu nascimento. As informações acerca da relação conjugal, o desenvolvimento da criança, a história clínica de possíveis sintomas - da família nuclear e ampliada –, um possível percurso escolar; trazem diretrizes de suma importância para que o psicólogo possa acolher, significar e adentrar o “mundo” do seu paciente.

Ao definir o paciente da clínica com crianças, uma vez que se trabalha com um emaranhado que diz respeito à família e à criança, pode-se afirmar, segundo Mannoni (1980, p.32): “A criança que trazem até mim está situada numa família e carrega o peso da história de cada um de seus pais.” Somente com uma escuta cuidadosa, pode-se definir se o tratamento será destinado aos pais, à criança ou a ambos. As entrevistas iniciais têm o intuito de escutar a fala familiar em torno do sintoma e da criança e, assim, reconhecer o lugar e a significação do sintoma em questão no enlace familiar e na condução psíquica da criança.

Segundo Volnovich (1991), a história da análise de crianças começa por Freud e o menino Hans, muito embora não se possa considerar esta uma efetiva análise, uma vez que foi realizada pelo pai do garoto e, então, supervisionada por Freud. Freud (1897) diz que não é possível uma criança ser analisada, uma vez que a terapia pelo viés psicanalítico necessita que seus pacientes sejam “maduros”.

A partir da experiência de Freud com Hans e de algumas observações posteriores, Volnovich (1991) chega a três conclusões que se opõem à afirmação

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freudiana. A primeira faz menção a um dos conceitos fundamentais da psicanálise, a sexualidade infantil, que traz Hans como sustentador deste conceito a partir da sua fobia aos cavalos. A segunda conclusão é de que uma análise de crianças é possível, uma vez que há as três especificações necessárias: demanda (normalmente enunciada pelos pais), transferência1 e interpretação2. A terceira e última conclusão faz as questões teóricas desligarem-se das questões científicas; a partir do momento em que Freud descreve a neurose do adulto centrada na sua teoria da sexualidade infantil, supõe um saber na criança.

Em 1927, Anna Freud publica um livro intitulado “Psicanálise de crianças”, no qual fundamenta sua técnica. Segundo ela, para que uma criança seja analisada, ela precisa, antes de tudo, ter consciência de que está doente.

Esta é uma questão bastante polemizada, já que é sabido que muitas vezes a criança tem dificuldades em reconhecer suas limitações. Para “resolver” esta questão, Anna Freud propõe que seja realizado um pré-tratamento de caráter pedagógico, para que a criança aceite sua doença e entenda que precisa de ajuda para elaborá-lo. Além disso, propõe a transferência positiva como fundamental para que a análise seja possível. A psicanalista descreve dois elementos fundamentais para a intervenção com crianças, a saber: as formações do inconsciente – sonhos, desenhos, devaneios - e a transferência positiva. A transferência positiva faz-se de sentimentos suportáveis à consciência e, desta forma, ao inconsciente. “Transferência positiva é ainda divisível em transferência de sentimentos amistosos e afetuosos, que são admissíveis à consciência, e transferência de prolongamentos desses sentimentos no inconsciente.” (FREUD, 1912, p. 116)

Discordando da afirmação de Anna Freud, a respeito das características pedagógicas da análise infantil, Melanie Klein afirma que não é necessário que a criança tenha consciência de sua doença, já que o analista pode

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Conforme Roudinesco e Plon (1998), a transferência não é um termo próprio da psicanálise, mas foi introduzida por Freud, para denominar um processo fundamental do tratamento psicanalítico. Os desejos inconscientes do paciente, referentes a objetos externos, repetem-se durante a análise na pessoa do analista, o colocando, assim, na posição desses objetos.

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Termo utilizado por Freud, segundo Roudinesco e Plon (1998), para designar a maneira como a psicanálise atribui significado as manifestações do inconsciente -em que desejos do sujeito são evidenciados - ou a qualquer intervenção feita, a fim de que o sujeito compreenda os significados inconscientes de seus atos ou discurso.

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perceber, já nas primeiras entrevistas, sua condição sintomática. Segundo Klein, existe uma dualidade que sempre representará o sujeito - pulsão de vida e de morte – em que se estabelecem ansiedades precoces, inicialmente de características paranoides e logo depois depressivas3.

Conforme Volnovich (1991), Klein firma sua teoria no relacionamento de objeto parcial ou total e propõe guiar o tratamento a partir da fantasia inconsciente e da transferência. Sobre a relação transferencial, a psicanalista acredita que para o andamento do tratamento, este deve ocorrer em transferência, seja ela negativa ou positiva. Ainda considera que, por não conseguir associar livremente, a regra fundamental da análise de adultos não se faz eficaz com crianças. Sendo assim, propõe o brincar como técnica para o trabalho clínico com crianças, uma vez que o jogo possui sentido próprio.

Acontece que Freud propõe, mas seus discípulos dispõem. E os discípulos de Freud descobrem, (...) que o brincar pode se tornar um meio eficaz para fazer a análise de uma criança.

Lembre-se que, através de Hans, já tinha a psicanálise de crianças demanda, transferência e interpretação: faltava-lhe um meio eficaz, como foi a associação livre para a análise de adultos. Pois bem, o meio é este: o brincar. Efetivamente, é através do jogo que Melanie Klein sustenta ser possível o acesso à problemática da criança. (VOLNOVICH, 1991, p. 15)

Na Escola Psicanalítica pós-freudiana, diferente de Melanie Klein e Anna Freud, nos anos 70 Lacan atinge o auge de suas articulações teóricas. A partir de então, Françoise Dolto, Maud Mannoni e Rosine Lefort apresentam-se no cenário psicanalítico propondo o trabalho clínico com crianças, articulando elementos fundamentais da teoria lacaniana.

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De acordo com Volnovich (1991), toda teoria de Klein gira em torno do relacionamento de objeto, seja este total ou parcial. As ansiedades de características paranoides, podem ser consideradas uma expressão da posição esquizoparanóide. Já a posição depressiva, diz respeito à estruturação do Édipo precoce, que ocorre por volta do nono mês de vida, onde o outro passa a fazer parte da vida da criança. O objeto que anteriormente era parcial passa a ser bom e mau ao mesmo tempo, sendo assim, centro da neurose. Com pouco mais de um ano de vida, a criança reconhece uma mãe boa e má ao mesmo tempo, sendo esta ambivalência a confirmação da passagem das ansiedades paranoides.

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A sugestão inicial de Dolto é que a criança deve ser inserida na estrutura familiar, para que seja efeito desta família e assim, “desejo do Outro”. Partindo deste pressuposto, o sintoma da criança é também considerado como de uma estrutura familiar. A psicanalista propõe que se a criança não consegue falar de algum conflito incluído no seu sintoma, é porque sua família não sustenta uma elaboração suficiente à situação em questão. Inova, então, a intervenção psicanalítica na clínica com crianças: na sua sessão participaria qualquer pessoa que tivesse algo a contribuir acerca da sintomatização e/ou da criança. Mannoni segue nesta mesma linha, e propõe que o importante não é quem se deve tratar, mas sim reconhecer o lugar e a articulação a qual a questão do sofrimento psíquico está fixada. Abre-se, desta forma, a inclusão dos pais no tratamento psicológico com crianças.

Com os pais dentro da sessão, as coisas mudavam. Tudo era mais complicado, as transferências começavam a ser cruzadas, às vezes os pais terminavam brigando ou acusando muitas vezes o terapeuta.

Ninguém desconhecia que a transferência em psicanálise de crianças era atravessada pela transferência dos pais, constituindo um campo múltiplo. Na verdade, porém, e enquanto era ignorada através de uma ação denegatória, parecia nem ser percebida, a menos que tirassem a criança do tratamento.

Sem dúvida a psicanálise de um adulto é bem mais tranquila, não há tantas demandas em jogo, do tipo das que atualmente afetam a sociedade moderna e têm como eixo as crianças. (VOLNOVICH, 1991, p. 26)

Há algum tempo, psicólogos e psicanalistas iniciaram um trabalho com os pais, a fim de introduzir eles nessa inevitável relação transferencial e não deixa-los interromper o tratamento. Para que o trabalho tenha continuidade e ocorra da melhor maneira possível, é necessário uma intervenção com os pais a partir da interpretação de seus elementos inconscientes.

Durante os atendimentos, é importante sempre considerar que os pais formam, junto da criança, uma transferência compartilhada; também por isso é possível que consigam simbolizar suas faltas. Desta maneira, a intervenção com os pais faz-se fundamental para o andamento do tratamento; no aparelho psíquico em formação de nossos pacientes, os cuidadores aparecem como circuladores de inscrições simbólicas, e assim, possibilitam mudanças.

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É preciso sustentar, através da transferência, que o conteúdo recalcado4 compareça, além de tudo aquilo que nunca esteve em curso no desenvolvimento da criança. É tarefa do psicoterapeuta, sustentar a relação transferencial com a criança e seus cuidadores paternos, acompanhar a subjetividade que está sendo formada, refletir e buscar novos caminhos clínicos.

Uma criança chega ao consultório de um analista pelas ressonâncias que gera num adulto. É forçoso, portanto – e este não é um dado menor -, dar lugar e importância aos acordes singulares que uma criança desperta naquele que nos procura. Segundo pude comprovar, alguns analistas de crianças desconsideram esse índice presente em todo começo. Com isso, lamentavelmente, deixam escapar a relevância posterior de sua incidência na abordagem da criança. Quando consideramos, ao contrário, as diversas significações que uma criança recria no psiquismo de um adulto encontramos, com não pequena surpresa, a localização condensada que uma criança acaba ocupando em qualquer ser humano. Na maioria dos casos e não por razões casuais, mas de estrutura, quem busca a consulta para uma criança são os pais. Em tal situação – e, embora pareça óbvio, nem sempre é -, a criança que eles nos trazem é um filho. (FLESLER, 2012, p. 11)

Partindo desse pressuposto, devemos investigar toda a história da queixa que inicialmente é apresentada pelos cuidadores paternos sobre a criança. De maneira geral, uma ou algumas entrevistas iniciais são propostas para que o psicólogo possa situar-se diante do sintoma da criança trazido pelo discurso parental. Esta é uma maneira de resgatar suposições elaboradas a partir do sintoma que a criança apresenta.

Segundo Tavares (2007),

A entrevista clínica é um procedimento poderoso e, pelas suas características, é o único capaz de adaptar-se à diversidade de situações clínicas relevantes e de fazer explicitar particularidades que escapam a outros procedimentos, principalmente os padronizados. (p.46)

O trabalho com a anamnese configura-se como um recurso às entrevistas iniciais na clínica psicológica com crianças. A anamnese é uma entrevista que pode ser estruturada ou não e que serve para conhecermos a história dos pais e da

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De acordo com Roudinesco e Plon (1998), Freud designava como conteúdo recalcado toda ideia ligada à pulsão que se mantinha no inconsciente, por poder vir a afetar o funcionamento psíquico.

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criança e, assim, estabelecer algum reconhecimento e/ou hipótese acerca da problemática familiar. O principal objetivo da anamnese é resgatar dados da história de vida do paciente; desta forma, o psicólogo intervém de modo à complementar e aprofundar determinados assuntos que são trazidos.

De acordo com as ideias desenvolvidas por Marcelli (1998), o modo como o psicólogo foi contatado e as motivações inicialmente anunciadas durante o acolhimento fazem parte da construção do caso e devem ser consideradas no momento do reconhecimento da problemática familiar. Este autor propõe que, normalmente, no primeiro atendimento, a criança chega com a mãe. Sobre esta situação, afirma que é a mais comum e não há nada a se observar sobre isto. Ainda propõe que o comparecimento da criança com os pais pode significar uma motivação de ambos pelo tratamento ou, então, que há uma discórdia entre eles; desta forma, um viria para vigiar o outro. Também pode ocorrer da mãe vir sozinha sem a criança, o que pode significar um controle de modo impositivo ao mundo da criança. Se a criança chegar acompanhada da mãe e da fratria, pode indicar algum problema de interação familiar. A criança acompanhada pelo pai frequentemente é uma situação relacionada aos casos de discordância na família, divórcios ou algum outro tipo de situação não habitual, como falecimento da mãe. Se a criança chegar sozinha ou acompanhada de um terceiro (assistente social, avô, vizinho...), pode representar um grande sofrimento de abandono ou rejeição familiar.

As razões que levam os pais a buscar tratamento psicológico infantil são variadas: o sintoma da criança desperta neles certa inquietação e eles buscam auxílio para entender o que está acontecendo. Quando um psicólogo é procurado pela família, esta busca saber sobre o sintoma que se apresenta na criança já que há uma pergunta a ser respondida.

Entretanto, não são todos que questionam. Alguns não consultam ou perguntam, apenas demandam que o psicoterapeuta “ajuste” a criança à demanda que depositam nela. Segundo Flesler (2012), a criança estaria posicionada em uma condição de objeto de amor. Assim, a transferência não aconteceria de modo simbólico, mas assumiria posições imaginárias, uma vez que a criança esbarraria no narcisismo dos pais. Situação um pouco mais complexa ocorre quando os pais são encaminhados por alguém para o tratamento. Neste caso, não há questionamento,

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demanda ou perguntas, mas procura por respostas; eles estão incomodados por alguém “de fora” (poder-se-ia dizer um terceiro) perceber algo em seus filhos que não os faz questão. Assim, a criança se apresentaria como objeto de gozo, acontecendo a transferência pela vertente real.

Alguns autores afirmam que não é a família que contribui para a problemática da criança, mas que a família produz essa problemática. “É talvez por isso que a psicanálise de crianças pode ser mais complicada que a análise de um adulto, pois envolve a demanda dos pais e a articulação do sintoma da criança com a conflitiva deles.” (VOLNOVICH, 1991, p. 18) Depois de acolher a queixa, faz-se necessário decodificar a demanda que vem por parte dos cuidadores para então articular o sintoma da criança com a conflitiva trazida pela estrutura familiar.

Os pais, ao reconhecerem a necessidade de escuta que seus filhos têm, estão também reconhecendo que ali não existe apenas um objeto, mas sim um sujeito de palavra. Na psicoterapia com crianças, justifica-se a necessidade de escuta e intervenção com a família, pois a subjetividade da criança ainda está amarrada à dos pais.

Situemos fragmentos de um caso clínico apresentado por Jerusalinsky (2002). Trata-se de Pedro, que com dois anos e seis meses chega com a mãe, carregado no colo, com a queixa de que não caminha e não fala, usando fraldas e babador, com diagnóstico de paralisia cerebral.

O menino diferencia familiares de estranhos e apresenta-se muito observador, embora se mostre retraído para interagir com as pessoas. Seu olhar é direcionado a quem fala, aparentemente parece compreender o que lhe dizem, mesmo que demore bastante tempo para mostrar seu entendimento. Ele demonstra uma dificuldade cognitiva, não tem iniciativas e facilmente acaba por fixar-se na posição passiva que a mãe o coloca. Senta com dificuldade e normalmente se desloca sentado, com o apoio de seus braços. Muito embora normalmente seja carregado no colo, consegue caminhar quando alguém o oferece suporte para manter o equilíbrio. Possui atraso no desenvolvimento de diferentes áreas e, psiquicamente, um sintoma de inibição.

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Sua mãe não o permite explorar as coisas, por isso Pedro se faz inibido. Por ser extremamente sustentado no real por esta mãe que não o deixa explorar as coisas que lhe chamam atenção, ocorre uma falha na sustentação simbólica e na antecipação imaginária, que possibilitariam que ele fizesse uma equivalência do seu lugar perante o mundo. A partir dos elementos que a mãe traz, é possível perceber de onde vêm as marcas que se inscrevem nele para justificar tamanha inibição e os excessivos cuidados que recebe. Por ter nascido prematuro de oito meses, Pedro teve dificuldades para mamar e ficou internado na UTI por cinco dias. Por ter ficado esse período no hospital, a mãe do menino não pôde colocar em prática seus cuidados maternos, por isso agora o faz em excesso. Seu desamparo não é somente orgânico, mas também simbólico; cabe ao Outro dar significado às suas insatisfações a partir do seu saber inconsciente.

Se, diante do real da prematuridade do corpo de um bebê não se opera a sustentação simbólica dos fatos que acometem a sua vida, produz-se, então, um desamparo propriamente dito: um desamparo psíquico, da ordem do simbólico, diante do qual emerge o traumático. E, tal como é próprio do traumático, a cena se repete sem poder ser ressignificada. (JERUSALINSKY, p. 198, 2002)

Neste caso clínico, a entrevista inicial foi proposta somente com a mãe, mas Pedro esteve presente, enquanto sua irmã ficou com uma tia. Em seu imaginário, a mãe considera o menino impotente e assim, a família não faz as barreiras simbólicas indispensáveis para sua constituição. Segundo relatos, o neurologista encaminha o garoto para tratamento, mas existe um grande espaço de tempo nisso; o que mais tarde fica-se sabendo, é que o garoto iniciou um tratamento que durou seis meses, mas que foi interrompido pelo nascimento da sua irmã.

A mãe não consegue falar da evolução do filho e por isso tenta suprimir um “descuido” anterior superprotegendo-o. “Quanto mais o filho é mostrado, dado a ver, no que fracassa, tanto menos os pais parecem ter algo a dizer acerca do que isso lhes concerne.” (JERUSALINSKY, 2002, p. 200) Assim, uma intervenção no sintoma não é suportável se os pais não estiverem implicados no tratamento.

As histórias da família sempre foram relatadas de maneira contida, o que sugeria que algo não podia ser dito. Então, ao longo das sessões, a mãe relata que

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durante a gestação de Pedro, sofreu violência do pai do garoto e que eles só não se separam por causa das crianças, mas especialmente pelo menino, que possui certas limitações. Assim, ao não se desenvolver, Pedro garante, de maneira inconsciente, que seus pais não se separem.

Ao longo das sessões, objetos são oferecidos para que ele encontre equilíbrio para andar e assim não dependa do outro. A cada fracasso de seu equilíbrio, de sua postura, Pedro lança seu olhar à mãe com cara de choro, não por dor física, mas sim por dor narcísica, por fracassar diante do olhar do Outro. Durante o tratamento, foi trabalhado com a mãe para que apostasse nesse filho e que acreditasse que ele é capaz.

Após um tempo no consultório, Jerusalinsky (2002) nota que os atendimentos então um tanto rotineiros e sugere a Pedro irem até a pracinha. Inicialmente o garoto se interessa pela areia, onde enterra partes do corpo e movimenta-se até que elas apareçam novamente. Posteriormente busca os balanços e o roda-roda, sempre buscando brinquedos em que possa ser movimentado por outra pessoa.

Mas é no escorregador que Pedro autoriza-se a brincar com seu corpo, já que este passa a estar ao lado do prazer - ao estar no alto, se precipita a realizar o que é de desejo do Outro: sua mãe que o chama para que escorregue. Cada vez mais apropriado desse corpo que antes lhe era estranho, Pedro evolui muito durante o tratamento – seu joelho flexiona com mais facilidade, consegue sentar e levantar com mais facilidade e seu equilíbrio aumentou bastante. Entretanto, continua não se permitindo caminhar sozinho.

Em um determinado momento durante o deslocamento até a pracinha, foi sugerido a ele que não desse a mão, mas que caminhasse lado a lado. Assim, é mostrado ao garoto que ele tem condições de andar sozinho, que não precisa ser protegido a todo o momento. Pedro então começa a caminhar.

Ao escolher um boneco com ferimento na testa para cair, parte de uma nova brincadeira que Pedro sugere, o menino realiza ativamente aquilo que sofre passivamente. Além disso, brincadeiras em que se alternavam presença e ausência passaram a ser recorrentes à medida que ele encontra sustentação psíquica na

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ausência da mãe, já que simbolicamente ela sempre estará presente. Brincadeiras que sugeriam o controle esfincteriano passaram a ser necessárias. Para que o efetivo controle ocorra, é necessário que haja demanda, que a criança esteja em condições psíquicas e que seu corpo sustente anatomicamente isso.

Mas, para que advenha uma realização do lado da criança, não basta uma demanda imperativa a partir do parental, é preciso que o circuito de desejo e demanda parental incida em um tempo psíquico e em um tempo maturacional do lado da criança, que permita que os efeitos de tal demanda se precipitem nela como uma conquista, como um domínio, como uma possibilidade de apropriação de ser corpo e do funcionamento de suas funções. (JERUSALINSKY, 2002, p. 223)

Nos momentos finais do tratamento, em que Pedro já realizava expressivas conquistas, a mãe anunciou que muito provavelmente estivesse grávida. Para sustentar a sintomática do casal, em que a relação é mantida pelos filhos, pode-se concluir que o sintoma parental não se modificou, mas que Pedro mudou a forma como responde a este sintoma. O trabalho foi realizado para que o menino pudesse se tornar sujeito desejante e desamarrar sua subjetividade da subjetividade dos seus pais; as intervenções foram não somente para que ele evoluísse seus esquemas psicomotores, cognitivos e de comunicação, mas também para que sua capacidade de simbolização evoluísse.

Assim como para a mãe de Pedro, para toda mãe o falo que a sustenta enquanto significante, fará com que ela antecipe aquele sujeito que está por vir. A partir da antecipação, o bebê terá uma representação, um lugar preexistente e fundamental; uma vez que faz uma equivalência simbólica ao lugar que a criança ocupará.

Ao nascer, toda criança encontra-se em uma estrutura familiar que se coloca através dos discursos das funções materna e paterna. A função materna constitui os primeiros significantes do bebê, que acaba por inaugurar uma imagem de sujeito e um corpo para a criança se identificar. A função paterna (lei maior) serve como referência à materna e vai destacar limites e referir “ideais do eu5” para a

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De acordo com Roudinesco e Plon (1998), Freud conceituava como uma referência ao substituto do narcisismo e produto de identificações.

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criança. Os traços psíquicos das funções materna e paterna instauraram referências simbólicas ao advir psicológico de uma criança.

Ao inscrever-se, a parentalidade desdobra uma rede de antecipação (amparos e convocações) e precipitação, que leva ao desenvolvimento e à constituição psíquica pelas ações da criança em realizar algo que os pais desejam; esta relação envolve a criança em um berço simbólico.

O berço simbólico tem a função de inserir a criança em um discurso repleto de significantes que existem antes mesmo de sua existência. Para que ocorra a precipitação de uma realização em uma criança, há uma expectativa do Outro que coloca antecipadamente a criança em um lugar que ela ainda não ocupa. Segundo Jerusalinsky (2002), existe uma distância real que a criança precisa percorrer para realizar determinada tarefa antecipada, uma vez que há um intervalo simbólico entre esses momentos. “Os tempos da infância não transcorrem mansamente e alguns fins só serão alcançados se determinados princípios forem mantidos. Para cada tempo do sujeito é preciso reiterar a antecipação e a nominação dos pais.” (FLESLER, 2011, p.48)

No entanto, para que a produção aconteça, a criança terá que se lançar nesta cena que o Outro antecipa, ao implicar seu desejo na capacidade de realizar uma nova ação. Segundo Jerusalinsky (2002),

Temos aí a antecipação simbólica, a antecipação imaginária e a antecipação funcional do Outro e, do lado do bebê, esta produção que só poderá advir como precipitação.

O agente materno sustenta o funcionamento da função do bebê: bate as costas para que libere o ar que engoliu na mamada ou segura seu corpo para que mantenha e experimente o equilíbrio que ainda lhe é impossível sustentar sozinho. (p.161)

Cabe à função materna sustentar a ação da criança, mas também oferecer espaço para que ela se precipite, se lance e se implique a realizar essas ações como sujeito: a tarefa de produzir um estiramento da corda pulsional6 da criança também é dada à função materna. Quando a criança está implicada pela

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Pulsão, segundo Roudinesco e Plon (1998), é energia que se encontra nas atividades motoras e no funcionamento do aparelho psíquico de um sujeito.

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demanda que é do Outro, sua cadeia significante busca satisfação, pois seu circuito pulsional se alonga. Quando finalmente a criança consegue realizar a precipitação anteriormente antecipada, podemos dizer que ela passa a responder como sujeito diante de sua realização.

A criança existe quando passa a ter significado na estrutura de um sujeito. Pela particularidade de não falar ao psicólogo, como o adulto faz, é um objeto especial da terapia. Freud insere os pais na estruturação de um sujeito, nas teorias do trauma, nas questões da sexualidade, do narcisismo, no complexo de Édipo, nas formações dos sintomas... Posteriormente, Lacan fala da importância que todo sujeito lança ao fato de ter sido desejado pelos pais. “O desejo dos pais entre eles e o desejo dos pais por um filho guardam entre si uma lógica balanceada pela recriação do objeto do desejo, de amor e do gozo.” (FLESLER, 2011, p. 61) É preciso considerar a transmissão do desejo de pais para filhos, mas também deve-se considerar o dedeve-sejo dos pais entre eles como homem e mulher.

Nenhum trânsito é gerado por causalidade espontânea. Tampouco os tempos da infância. Ao reconhecer a infância como um tempo em curso e contemplando o fato constatável de que a presença dos pais não é banal ou puramente fenomenológica, mas de estrutura, Freud assinala a especificidade da intervenção do analista com os pais, outorgando-lhe um estatuto de influxo analítico, mas sem explicitar exatamente a que está se referindo. E, a meu ver, essa intervenção está muito distante de pretender psicanalisá-los. (FLESLER, 2011, p. 137)

Durante o tratamento psicológico da criança, pode-se esperar um luto da criança imaginária, permitindo com que os cuidadores e a própria criança ocupem um lugar mais adequado. A mudança de posição dos pais ou cuidadores pode ser atribuída à relação transferencial que estes obtêm com o terapeuta. “O analista intervindo aí, é claro, como Outro com seus componentes simbólicos, reais e imaginários ameniza um pouco para a mãe este lugar de Outro real que ela não cessou de encarnar para seu filho.” (LERUDE, 1991, p.138)

Segundo Jerusalinsky (1999), os pacientes adultos demandam cura de seus sintomas. Durante o tratamento, os benefícios aparecem e, muitas vezes, o sintoma mostra-se fundamental para este sujeito. Com as crianças, segue-se a mesma linha de pensamento, exceto pelo fato de que a demanda vem dos

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cuidadores paternos e não dos pequenos pacientes. Apesar da semelhança inicial, a demanda ao psicólogo infantil vai além da exclusão do sintoma, mas também inclui o pedido – embora muitas vezes velado – de estruturação subjetiva de um sujeito. Quando esse pedido não aparece nos pais e/ou na criança, passa a ser uma motivação do psicólogo. O adulto normalmente já está constituído e “nas crianças, embora as articulações constituintes desse sujeito já estejam previamente configuradas na ordem do discurso, elas padecem, entretanto, da fragilidade própria dos acontecimentos que ainda são futuros e estão expostas, portanto, às vicissitudes de sua inscrição.” (JERUSALINSKY, p. 155, 1999). Assim, cabe ao terapeuta dedicar-se àquilo que ainda não se constituiu.

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CAPÍTULO II

A ESPECIFICIDADE SINTOMÁTICA DA/NA CRIANÇA

A criança implica um problema, e prefiro pensá-lo em termos matemáticos, como um problema real. Para a matemática, um problema é um problema real quando abre a possibilidade de solução. À diferença de um problema imaginário, o problema real implica uma solução possível. Claro que, para poder alcançar essa solução possível, é preciso delimitar qual o impossível em questão.

De que real se trata quando falamos de crianças? O que primeiro se apresentou como problema aos psicanalistas era a criança que chegava ao consultório, pois não vinha o paciente para o qual havia sido criada a psicanálise. Não vinha por si mesma: era trazida; não falava sua problemática – queria brincar, no melhor dos casos; e, sobretudo, eis aí o que Freud expôs, não apresentava a neurose de transferência para ser abordada do mesmo modo com que se abordava um adulto. (...) A criança vem com os pais, traz ou pede objetos, pequenos objetos, brinquedos, e nos apresenta uma problemática maior, já assinalada por Freud quando disse que a transferência é compartilhada com os pais. Flor de problema, então, o que a criança apresentou com esse real. (FLESLER, 2011, p. 19)

Existem várias maneiras de se conduzir um tratamento psicológico infantil. Alguns psicólogos trabalham somente com os pais, pois consideram que, por determinação destes, ocorrem os sintomas da criança. Outros, trabalham total e exclusivamente com a criança através do brincar, pois entendem que o psicólogo deve intervir quando ela brinca.

Acredita-se que não seja possível curar a criança de seus sintomas, mas sim possibilitar a ela situar-se com suas dificuldades para que possa estabelecer uma linguagem com relação a isto, uma vez que ela conhece a realidade do casal parental. A palavra deve ser instaurada a fim de que a alteridade dos cuidadores seja inscrita.

Segundo Volnovich (1991, p.27) “O tratamento de uma família não resolve o sintoma da criança, mas o tratamento da criança, sem dúvida, dá conta diretamente da atividade fantasmática dos pais.” Quando é dada à criança a missão de responder ao ideal dos pais e da sociedade, ela passa a ser objeto de extremo cuidado e satisfação; seu gozo passa a ser regra e pode vir a produzir sintomas.

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Proponho, portanto, escutar a criança como sendo o sujeito de seu próprio discurso e não como se ela estivesse sendo falada pelo Outro. Nem sempre a origem do sintoma se encontra no discurso materno ou paterno, mas há momentos nos quais, por mais que a criança elabore uma fantasia, não consegue mudar sua posição sintomática e, por consequência, há uma impossibilidade de sair de um determinado lugar. Pode acontecer que esta mudança seja uma ameaça muito grande à perda do amor materno, por temor de que algo catastrófico possa ocorrer. (ROSENBERG, 2002, p. 69)

O sintoma da criança, por aparecer no lugar de um desejo recalcado, normalmente está dirigido aos pais como uma maneira de se fazer ouvir. O sintoma se coloca como motivo destes para buscar tratamento. Visto de outra maneira, pode ter vindo de algo mal resolvido na vida dos pais da criança com seus próprios pais; desta forma, a criança faz renascer conflitivas anteriormente mal colocadas.

O sintoma aparece em substituição a um desejo reprimido, podendo ser utilizado inconscientemente pelos pais para pedir análise. Por outro lado, pode aparecer no lugar de algo que ficou bloqueado no desenvolvimento de suas relações inconscientes com seus próprios pais. Recordemos, porém, que o sintoma é também a solução de compromisso entre a realização do desejo inconsciente e o insuportável do Eu para tolerar sua realização. No caso da criança, a intolerância da realização do desejo inconsciente que pulsa por satisfazer está bloqueada por um Eu que tenta satisfazer o desejo dos pais. Frente ao perigo da perda de amor, a criança se reprime para satisfazer o outro. (ROSENBERG, 2002, p. 48)

Ao longo do tratamento psicológico, pode-se esperar um luto da criança imaginária, permitindo com que os cuidadores e a própria criança ocupem um lugar mais adequado. A mudança de posição dos pais ou cuidadores pode ser atribuída à relação transferencial que estes obtêm com o terapeuta.

Durante o desdobramento clínico, os pais são confrontados com deslizamentos sintomáticos que podem afetá-los de modo particular ou a sua relação. Assim, têm seus desejos e recalques abordados e quando, por algum motivo, se colocam entraves quanto ao tratamento da criança em função do comparecimento clínico da resistência dos pais, há que ser trabalhado com os mesmos, os elementos constitutivos da resistência e dos conflitos psíquicos apresentados por eles e pela criança.

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Este trabalho não deixa de ter efeito de retorno sobre os pais, pois a criança melhora, mas também porque cada um pode ocupar seu lugar um pouco menos mal. Isto não quer dizer que se fez uma análise mais sim que as questões que animam o sujeito puderam ser deslocadas, que os sintomas foram levados em conta de outra maneira que não como do real do corpo, mas como um dizer, uma formulação simbólica inscrita numa dialética com os Outros reais encarnados pelos pais. Isto supõe também que o Outro não seja mais infinito, ilimitado, e sim barrado; em outros termos, que os pais, os irmãos e irmãs sejam reconhecidos enquanto sujeitos, sujeitos de um discurso, limitados; eles não podem nem dar tudo, nem tomar tudo. O sujeito é responsável pelo que lhe acontece mesmo que não tenha escolha ou que a escolha seja para ele muito reduzida (ele deve então desenvolver sua capacidade de esperar). (LERUDE, 1991, p.139)

Qualquer forma que a presença dos pais tiver, faz-se fundamental para o andamento do tratamento psicológico. Por sugestões ou menções feitas por eles, novos elementos aparecerão, fazendo com que o tratamento produza novas formas de subjetivação. Este discurso parental é efeito da repressão secundária, onde aparecem sobras das primeiras marcas, aquelas de origem. A criança investe naquilo que a chama, onde suas representações a levarão ao recalque primário, mesmo que as marcas só se façam presente no recalque secundário.

O discurso parental já é produto da repressão secundária e facilita este caminho de regressão. Nas suas mensagens a criança pode achar múltiplas vias evocativas que lhe permitirão investir diversas representações que a conduzirão ao recalque primário. No entanto, as raízes em que se funda no outro, permanecerão como restos intraduzíveis. Recupera no outro do encontro, algo do outro traumatizante do adulto primeiro. Elementos do recalque secundário reverberam como ondas que tocam com suas vibrações elementos do recalque primário produzindo um novo som. Assim os significantes desarraigados do código da língua são re-evocados e podem ser transcritos para o processo secundário a partir do qual podem tornar-se conscientes. (ROSENBERG, 2002, p. 41)

Os representantes da pulsão não podem escapar, já que estão fixos no inconsciente pelo processo de recalque primário. Assim, estes conteúdos recalcados primariamente atraem novos e circulam de modo menos traumático, já que conseguem obter vias de satisfação que as vezes não são sintomáticas.

Aquilo que os pais trazem, na transferência, produz efeito e colabora para que a dimensão sexual circule. Assim, o analista sustenta essas mensagens e se coloca como apoio para que a criança deixe seu recalque mais flexível. Os filhos colocam os pais um lugar de transferência, pois à eles um saber também é atribuído;

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“eles são portadores do enigma que por sua vez transferem ao analista em um movimento de ‘transferência da transferência’ como nos diz Jean Laplanche. No encontro com eles na sessão já há uma re-edição das relações primeiras.” (ROSENBERG, 2002, p. 42)

A psicoterapia proporciona que significações já instauradas articulem-se e desarticulem-se durante o processo de subjetivação da criança; assim o inconsciente dos pais também será atingido, uma vez que se eles estão dentro da relação transferencial, aceitaram ser interpretados.

Uma questão fundamental a ser considerada sobre os pais no tratamento das crianças é que os sintomas delas evidenciam o inconsciente parental. O tratamento psicológico da criança pode ser considerado mais complexo que o de um adulto, pois envolve o sintoma da criança articulado à demanda e a conflitiva dos pais, representada por um ideal. O psicólogo infere nesta problemática como um terceiro, para intervir nessa relação. A criança participa do fracasso deste ideal e seus sintomas são de alguma forma uma confirmação e, assim, um meio de afirmar a sua subjetividade. Além disso, os sintomas dizem de uma realidade do inconsciente parental, seja na questão materna e/ou paterna ou na relação conjugal.

Alguns psicólogos entendem que o sintoma da criança está relacionado com um conflito na sexualidade dos pais e, assim, propõem um trabalho só com eles e com seu desejo, excluindo assim, o aparelho psíquico em constituição da criança. Muitas vezes, manifestações relacionadas à conduta são consideradas sintoma e é esquecido que, para ser sintoma, é necessário que haja conflito entre as instâncias do aparelho psíquico e uma satisfação pulsional não-realizada pelo recalque.

Mediante os tropeços próprios das trocas de palavras, letras, nas interrupções e irrupções discursivas, nos gestos e olhares, é que o trabalho analítico se processa. O sintoma da criança é traço que a marca, é fonte de simbolismos. O brincar em análise é texto e escritura que se configura no “como se” – via denegatória, subjetivante, que ao mesmo tempo põe em cena o sintoma da criança. Na articulação entre os sintomas constitutivos próprios da infância e os sintomas clínicos, a criança tece sua rede discursiva, brincando. (MEIRA, 2010, p. 144)

Ao pensar a formação do sintoma psíquico, a psicanálise remete às operações os conteúdos próprios da estrutura inconsciente como articuladores de

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conflitos e desencadeadores de um sofrimento psíquico. De acordo com Volnovich (1991), para Melanie Klein o aparelho psíquico constitui-se, desde sua origem, na formação do inconsciente; produto das primeiras identificações, articula mecanismos de defesa frente à angústia que o bebê produz com medo do aniquilamento. A angústia faz com que o desenvolvimento psíquico aconteça, uma vez que o sujeito já nasce projetando e introjetando de modo que este processo constitui seu aparelho psíquico; o trabalho clínico recai sobre os conteúdos fantasmáticos, expressos pela linguagem. Para Lacan, o inconsciente se constitui a partir da linguagem; assim, o inconsciente está presente onde o Outro se encontra. Mannoni diz que não são os fatos que produzem marcas psíquicas, mas sim as palavras.

Tanto Mannoni, quanto Dolto, afirmam que a subjetividade é produzida pelo Outro e, desta forma, o sintoma da criança é um deslocamento da sexualidade dos pais. O discurso materno é capaz de sustentar a compreensão necessária à formação do sintoma. O bebê permanece alienado à imagem do Outro pela condição de infans e passa a ocupar um lugar marcado pelo desejo desse Outro. Assim, uma relação imaginária e especular se faz; Lacan denomina isso de fase do espelho, momento em que a criança fica dependente em sua demanda pelo amor da mãe, identificando-se, então, com ela.

Uma vez que o sintoma se estrutura de maneira articulada, vinculado à articulação do desejo, faz-se necessário abordar os pais nesta experiência clínica em direção à cura. Assim, “(..)flexibilizar o recalque na condução da cura a partir de uma manobra que possibilite incluir os pais em momentos pontuais do tratamento da criança, onde a viscosidade prevalece sobre o fluxo” (ROSENBERG, 2002, p.37) Trata-se de uma possibilidade de trabalhar clinicamente frente aos momentos de extrema resistência e repetição7, onde as possíveis elaborações fracassam e a angústia assume consideráveis proporções a ponto de paralisar o sujeito.

De acordo com Rosenberg (2002), Jean Laplanche oferece-nos um novo conceito para que a formação do sujeito psíquico seja pensada. Propõe a existência de um inconsciente que não nasce e tampouco é pré-formado desde o nascimento deste sujeito; também salienta que não é um inconsciente produto de uma

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A partir de Roudinesco e Plon (1998), repetição diz de um processo inconsciente que, por ser indomável, faz com que o sujeito reproduza atos, ideias, sonhos ou pensamentos anteriormente geradores de sofrimento.

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consequência especular em que o desejo não se diferencia do discurso da mãe e do infans. Ao introduzir o conceito de metábola, coloca uma lacuna entre o inconsciente da mãe e seu filho, dizendo que o inconsciente da criança funda-se a partir do recalque primário. Assim, as questões fundamentais da sexualidade articuladas com o Édipo e com a castração, serão responsáveis pelas formações sintomáticas.

O complexo de Édipo é o organizador da posição sexual do sujeito, no qual se manifesta como um desejo sexual ou amoroso. Como formação do inconsciente, possui três operações: produção do falo, separação (complexo de castração) e mediação.

“O complexo de Édipo aparece entre os 3 e os 5 anos. Seu declínio marca a entrada num período chamado latência, e sua resolução após a puberdade concretiza-se num novo tipo de escolha objetal.” (ROUDINESCO, PLON. 1998. p. 166). Lacan em sua releitura de Freud apresenta o complexo de Édipo como estrutura e nos permite entender melhor o valor construído que o falo possui e sua circulação pelas funções materna e paterna. A função do pai é a operação em que o sujeito se sustenta para constituir uma estrutura - Ideal do Ego.

O complexo de Édipo é visto como uma função simbólica: o pai intervém (lei) para privar a criança de uma relação amorosa com a mãe e assim, nos permite entender a constituição da identificação e da sexualidade. “(...) o Édipo é um mito ou fenômeno de ordem imaginária, do qual é necessário esclarecer o registro simbólico que o organiza.” (CABAS, 1982, p. 105) Sua questão principal é a experiência em que a criança vive ao perceber que sua demanda não será mais respondida com o desejo da mãe, mas sim, através da lei do Outro.

Em resumo, a primeira operação edípica consiste em vencer a resistência de um organismo biológico em transformar-se em erógeno; vencimento que é realizado pela função materna como agente concreto de um código. Assim sendo, a relação mãe-filho, que no observável parece ser uma relação de dois, é de fato uma relação que comporta três termos: a mãe, o filho, e o código que os determina. (CABAS, 1982, p. 116)

No primeiro tempo do complexo de Édipo, a criança é vista como assujeito, pois é objeto de desejo do Outro; sendo assim, ela responde à demanda deste Outro, pois para ela é necessário e suficiente ser o falo. “O que a criança

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busca como desejo de desejo, é poder satisfazer o desejo da mãe.” (LACAN, 1995, p. 197) Além disso, a criança imagina que alguém tem algo que faz o desejo materno investir; portanto o Outro absoluto e onipotente é quem desempenha a função materna. Neste contexto, o pai surge com um terceiro nessa relação e sua função de interditar a relação entre a mãe e o bebê ainda não se faz necessária.

Já no segundo tempo, a criança inaugura a sua experiência diante da falta, então quem desempenha a função materna revive a condição faltosa e ocorre o narcisismo secundário, em um momento de rivalização. A função paterna surge aqui, para fazer uma ruptura e introduzir a lei de interdição da relação incestuosa entre mãe e filho – complexo de castração. Neste período o falo e o pai confundem-se, pois a criança vê o pai (imaginário) como o falo da mãe. Ocorre um momento simbólico por excelência e o Nome-do-pai8 faz a criança se colocar na linguagem.

No terceiro e último tempo, a preocupação da criança passa de ser ou não o falo (estatuto imaginário), para a de ter o falo (estatuto simbólico). Neste momento, ela se apropria do corpo e dos significantes que vem do Outro. Cabe ao pai então, confirmar que tem o falo e isso acaba por mobilizar o desejo da mãe, levando a criança à posição de sujeito de desejo e à inauguração do Ideal do Eu.

A observação analítica capacita-nos a identificar ou adivinhar essas vinculações entre a organização fálica, o complexo de Édipo, a ameaça de castração, a formação do superego e o período de latência. Essas vinculações justificam a afirmação de que a destruição do complexo de Édipo é ocasionada pela ameaça de castração. (FREUD, 1924, p. 197)

O período de latência inicia na dissolução do complexo de Édipo, que ocorreu na fase fálica. Ocorre então a elaboração do Édipo, em que a criança foi proibida do incesto e renunciou à satisfação de suas pulsões sexuais com seus pais, sendo levada a voltar sua atenção para outros objetos que não sejam familiares. Neste tempo ocorre o surgimento das regras, a aprendizagem é caracterizada pela perda do Outro e há uma pausa na evolução da sexualidade.

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A partir de composições de Roudinesco e Plon (1998), Lacan criou este termo para denominar o significante da função paterna.

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Somente após a interdição paterna - em que a criança está na posição de falo da mãe - e a entrada na linguagem, é que a criança poderá sair desse lugar de alienação e poderá vir a responder como sujeito desejante. É fundamental que o paciente trabalhe seu discurso; o espaço de cura é da criança, mas podem perpassar por este espaço outros discursos que a ajudem a pensar e assim, deslizar sua cadeia significante. Nem todo sintoma se faz de conflitos parentais deslocados, mas a criança pode, dentro da transferência, refazer seu desejo.

Ao escutar o inconsciente dos pais, permite-se que estes re-simbolizem o lugar que este filho e esse sintoma ocupam em suas histórias. O tratamento psicológico é da criança e é em torno dela que o trabalho deve se desenvolver. Entretanto, é preciso reservar o acolhimento aos pais, pois são formadores dos sintomas e da estruturação psíquica. É fundamental que questionamentos também se direcionem ao inconsciente deles.

Assim, faz-se pertinente pensarmos no levantamento de hipótese psicodiagnóstica como integrante do tratamento psicológico de crianças. Segundo teorizações de Volnovich (1991), o diagnóstico nos possibilita identificar a situação da criança e assim, compreender a situação familiar. Antes de tudo, deve-se lembrar sempre que a criança é sujeito do seu próprio discurso.

Em torno dos relatos trazidos pelos pais sobre as questões acerca da problemática, esboça-se a história da criança e também a própria história dos pais. Cabe ao psicólogo diagnosticar o conflito que, por sua vez, não é uma doença e, portanto, faz-se incurável, pois não há sintoma suprimido. Freud “define o conflito como uma luta de forças que acompanha o ser humano do nascimento até a morte.” (VOLNOVICH, 1991, p. 46) e assim, afirma que conflitos no desenvolvimento são fundamentais; não há sujeito sem conflitos.

Neste momento, fazem-se, ainda, pertinentes as observações de Volnovich (1991). Propõe que, para Melanie Klein, as ansiedades básicas paranoides e depressivas são conflitivas e as neuroses são defesas frente a isto; já Anna Freud considera o conflito como uma tensão entre o ego e o superego. Anna Freud e Melanie Klein requerem inicialmente o diagnóstico da criança e posteriormente da família; as entrevistas iniciais com os pais eram utilizadas somente a título de informação. Para os autores que seguem embasamento teórico

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lacaniano, a criança deve ser diagnosticada articulada à estrutura familiar; assim, a interpretação do sintoma está vinculada a esta estrutura, já que a família não estaria apenas contribuindo para esta produção sintomática.

A construção de um psicodiagnóstico transcorreria a partir de quatro etapas: entrevista inicial, testes, devolução e informe. Segundo Volnovich (1991), o diagnóstico psicanalítico apresenta partes não consecutivas, são elas: entrevista com os pais, entrevista com a criança, entrevista familiar e todas as entrevistas significativas que possibilitem organizar a demanda.

De acordo com Volnovich (1991), para Klein o diagnóstico é feito baseado em: conceituação do conflito atual, baseado nas ansiedades precoces; principais defesas frente à ansiedade; tipo de “rapport” com o analista; fantasias principais, consideradas como fundamentais, já que permitem compreender o que modifica no conflito; prognóstico em função da atitude dos pais e contribuição dos conflitos familiares à doença da criança.

Ainda segundo apontamentos realizados por Volnovich (1991), para seus diagnósticos, Anna Freud interpretava: estudos dos movimentos pulsionais, a partir dos estágios de desenvolvimento, já que considerava fundamental identificar possíveis regressões ou fixações nas fases oral de sucção, oral canibal, anal expulsiva, anal retentiva, fálica e complexo de Édipo; expressão da agressividade, pois é uma defesa e expressão da demanda pulsional, uma vez que uma criança inibida produz patologias; organização tópica ego-superego em função da história da criança; fixações através dos traços de caráter e a atividade fantasmática, lugar benéfico para simbolização; conflitos da criança com a família e com o meio ambiente, onde a questão social da criança é bastante valorizada; temperamento, tolerância à frustração e possibilidade de sublimação, como fundamentais para verificar se a criança pode ser analisada. Françoise Dolto considera fundamental para análise de uma criança: apreensão psicanalítica da mensagem, onde o sintoma é palavra que não pode ser pronunciada mesmo com vários sujeitos de enunciação (mãe, pai, criança, representante familiar); determinar qual é o lugar da criança no desejo dos pais; articular o fantasma9 da criança na fantasmática familiar, já que o

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Conceito elaborado por Freud em 1897, que diz da forma como o sujeito representa para si sua vida imaginária, de acordo com Roudinesco e Plon (1998).

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fantasma da criança é uma reprodução do fantasma dos pais; conflito definido como falha na articulação entre o imaginário e o simbólico e a reestruturação com os pais da significação e os problemas dos filhos.

Volnovich (1991) afirma que a construção do diagnóstico tem a função de organizar a demanda. Nos autores citados, percebe-se que todos pretendiam diagnosticar o conflito, muito embora cada um possua uma concepção diferente sobre este conceito. As três psicanalistas crêem na capacidade da criança de compreender o que se passa, pois reconhecem um saber na criança.

Assim sendo, quem é o sujeito do sintoma? De quem ou do que o sintoma fala? Como construir a abordagem do sujeito do sintoma na clínica com crianças?

Ao pensar a intervenção clínica com crianças, desde o acolhimento até o estabelecimento do tratamento, Flesler (2012), propõe o resgate do conceito de influxo analítico. Para esta psicanalista, o influxo analítico sobre os progenitores, é caracterizado por Freud para descrever a resistência por parte dos pais no tratamento psicológico infantil. Com características de redistribuição e reenlaçamento de gozo, o influxo analítico permite intervenção nos três registros: real, simbólico e imaginário.

Toda experiência clínica é sempre singular. Desta forma os pais ao buscarem o terapeuta sempre chegarão de formas distintas; assim, a relação transferencial pode aparecer junto com a demanda, mas sofrer mudanças ao longo do tratamento. Há ainda, para além dos cuidadores e da criança, a instituição escolar e a médica, que segundo Siquier e Salzberg (2002), podem estar envolvidas no tratamento da criança; desta forma, a transferência pode ser positiva ou negativa.

O sintoma da criança a leva até o tratamento. Neste sintoma, o não-dito do discurso parental se encontra. Pelo narcisismo parental, é comum que haja uma superestimação dos pais pela criança, encobrindo suas dificuldades. Ao buscar um tratamento, essa imagem de “filho ideal” passa a não mais existir. Muitas vezes, a forma que a criança encontra de sair dessa posição, de se separar do ideal parental, é produzindo sintoma.

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Recebemos uma criança marcada pelos desejos, expectativas, frustrações que já antes de nascer vão se conformando no mito familiar. A criança nasce antes para a linguagem do que para a vida; também escutamos antes esse filho, na palavra dos pais, que com ele entrevistamos. Esses encontros com eles nos permitem saber como e onde situam esse filho: quanto os gratifica, quanto os desilude, quanto o amam ou o odeiam, ou quanto esse filho é uma testemunha incômoda ou necessária de suas próprias insuficiências. (SIQUIER; SALZBERG, 2002, p. 84)

Da criança, escutamos sobre o mito familiar a partir de sua visão, as marcas que a constituíram e os emaranhados que envolvem o seu sintoma, para que busque uma forma de tornar-se sujeito desejante. Assim, é possível que a criança invista em seu próprio mundo de forma subjetiva.

Por pertencer ao mesmo campo simbólico da linguagem, pais e crianças estão em uma mesma amarração discursiva. Segundo Kupfer (2002), Flechet diferencia dois tipos de sintoma, a partir de proposições de Melman: o primeiro é o sintoma analítico, que é estrutural e constitutivo dos sujeitos, está relacionado com o recalcamento primário e os pais se envolvem simbolicamente.

O segundo tipo concerne às manifestações sintomáticas, desenvolvidas de modo inconsciente pelos cuidadores paternos, que desenvolverão na criança algo de seu. Dessa forma, é possível perceber que os pais sempre estarão presentes no tratamento infantil, uma vez que imaginariamente e simbolicamente estarão sempre incluídos na produção de seus sintomas.

Todo analista de crianças tem que ser meio abilolado. Obrigado a sentar-se no chão, conhecer os últimos lançamentos em games, bater figurinha, vibrar com dominó, jogar bola com almofadas, ir ter com orientadoras educacionais quando dá briga na escola ou quando o boletim está “no vermelho”, e, como se tudo isso não bastasse, lidar com os pais do seu pequeno paciente. Apesar de todas as dificuldades inerentes às outras atividades acima descritas, incrivelmente é o último item que parece levá-lo à loucura. Por quê? (CORSO, 1997, p.65)

Entre as muitas particularidades da clínica com crianças, está a do psicoterapeuta ter condições de intervir em manifestações de sintomas antes mesmo que estas “apareçam”. Neste trabalho clínico, o futuro está sempre em jogo, na medida em que os pais normalmente estão preocupados com o que a criança irá se tornar.

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Para os pais, de acordo com Corso (1997), a criança não traz preocupações quando bem adequada ao ideal parental que eles imaginam. Em termos estruturais, a infância é constituída sempre a partir da antecipação dos pais, “é completamente normal que recebamos a missão de adequar um sujeito no ideal dos pais. São os casos de bom prognóstico.” (CORSO, 1997, p. 69)

As crianças são efeitos do inconsciente parental. Os pais, muitas vezes não colaboram com o tratamento da forma esperada e, assim, é necessário esperar que o inconsciente deles manifeste-se para que determinadas informações apareçam. Corso (1997), baseada em considerações de Ferenezi, afirma que os pais apropriam-se dos filhos como objeto de satisfação e que a criança entende que deve manter a mãe por perto para que sua satisfação seja sempre realizada. “A onipotência do bebê dá lugar ao senso da realidade, que passa por saber de que atitudes e presenças depende a satisfação. (CORSO, 1997 p. 71)” Assim, o sintoma na criança surge e caberia então, ao psicólogo, “livrar” a criança do assujeitamento do inconsciente parental, anteriormente fundamental para a constituição psíquica dos pequenos, uma vez que são os pais os responsáveis pelas primeiras identificações.

O caminho de viabilidade deste trabalho com os pais é uma história de três gerações, onde o pai e a mãe são tomados pelo analista do filho em uma posição mista de analítica com parental. Mas o analista é um pai já avô, que tem uma perspectiva histórica, uma noção da passagem dos tempos, da sucessão das gerações que só um velho tem. Somente desta forma conseguiremos dar uma perspectiva histórica do que está acontecendo aos pais das crianças que atendemos. “Isto que hoje incomoda tem a ver com o filho que tu foste, com a forma como vocês se casaram, com o momento em que esta criança nasceu, com a relação atual com os avós desta, ou com a morte de algum dele, com o irmão que foste, com aquela depressão que te acometeu em determinada época, com um desencontro por ocasião do parto, com uma frase do médico, etc...” (CORSO, 1997, p.76)

Desta maneira, ao abordar clinicamente os sujeitos do sintoma, acolhendo os pais e compreendendo suas limitações, mais estruturalmente se constitui a intervenção e a direção da cura, possibilitando à criança e aos seus progenitores a constituição de elaborações necessárias para o deslizamento do sintoma na cadeia significante.

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CONCLUSÃO

Desde o início da história da análise de crianças com Freud e Hans muita coisa mudou: Anna Freud com suas análises das formações do inconsciente e a fundamental transferência positiva; Melanie Klein com sua teoria sobre a dualidade que sempre representará o sujeito e a técnica do brincar; a Escola Psicanalítica pós-freudiana em que, Françoise Dolto, Maud Mannoni e Rosine Lefort propõem um trabalho clínico com crianças utilizando referências de Lacan.

Mas é com Dolto que os pais assumem um papel nesse tratamento, já que para ela a criança é efeito da estrutura familiar. Mannoni confirma as proposições de Dolto e ainda diz que o importante não é quem é o paciente, mas sim em que lugar o sofrimento psíquico está fixado.

Os pais, ao chegarem à sessão e começarem seu relato sobre a problemática das crianças, muito sobre eles estão dizendo. Uma vez que a história do pequeno paciente inicia-se antes mesmo de seu nascimento, a relação conjugal passa a ser também foco das entrevistas iniciais. Após uma cuidadosa escuta, finalmente o paciente poderá ser definido: serão os pais, a criança ou ambos?

Para alguns psicólogos, a família produz a sintomática da criança. Assim, uma demanda deve ser instaurada para que este sintoma possa ser articulado à conflitiva familiar.

Durante a constituição psíquica da criança, é necessário que a mãe antecipe no filho representações de um sujeito e de um corpo que ele alinda não possui, para que ele possa se identificar. Assim, a função materna faz-se fundamental para a inscrição simbólica da criança e para sua precipitação.

O papel do psicólogo não é “curar” a criança de seus sintomas, mas sim dar possibilidades dela ressituar-se diante dos seus conflitos. Através da palavra instaurada, a alteridade dos pais deve ser inscrita. Assim, durante o desdobramento clínico, deslizamentos sintomáticos da criança confrontarão os pais, o que poderá ocasionar entraves no tratamento, por conta da resistência deles.

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